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Psicologia USP - Between inhibition and action: borders of analytic work witer children

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Psicologia USP

Print version ISSN 0103-6564

Psicol. USP vol.11 n.1 São Paulo  2000

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642000000100013 

ENTRE A INIBIÇÃO E O ATO: FRONTEIRAS DO TRABALHO ANALÍTICO COM CRIANÇAS

 

Jussara Falek Brauer1
Instituto de Psicologia - USP

 

 

O propósito, no presente texto, é de teorizar sobre o brincar utilizado como meio no trabalho analítico no caso de crianças graves. O brincar será aqui enfocado na perspectiva da passagem ao ato, fenômeno presente em casos de psicose, a partir de onde se proporá uma articulação. A inibição, conceito proposto por Freud, será trazida enquanto antípoda do ato, fenômeno observado igualmente em casos de psicose, principalmente aqueles que ocorrem na infância.

Descritores: Comportamento de brincar. Atuação. Processos psicoterapêuticos. Psicose infantil. Crianças autistas. Inibição. Psicanálise.

 

 

Não foi casualmente que se escolheu o brincar como meio propiciador quando o trabalho analítico a conduzir tem como alvo uma criança. É das crianças a facilidade em lidar com o universo do faz-de-conta. Pode-se dizer que quando propomos a uma criança que se expresse através da brincadeira para que possamos ler aí algo de sua subjetividade, e a criança responde a isso, que se criou entre nós e a criança um espaço de metaforização no qual o discurso de uma análise pode se tecer. O brincar é um ato mediado pelo simbólico.

Sob esta perspectiva, tentarei trabalhar com coisas que se incluiriam melhor sob a categoria de um "não brincar." Coloco em foco situações em que a criança se envolve naquilo que nós psicanalistas costumamos chamar de "atuações" – uma situação em que uma criança dá um murro no analista por exemplo, situação desconcertante pela qual quem se propõe a trabalhar com crianças graves certamente já passou.

Cito um exemplo:

Paulinho é autista. Já passou por vários psiquiatras, duas internações no H.C., e psicoterapia dos 6 aos 9 anos. Paulinho não fala, é muito agitado, não lê, dependendo dos pais para tudo. Urina na cama à noite, dormindo de fraldas por essa razão. É explorador, mexe em todos objetos da sala de atendimento de forma repetitiva em uma seqüência cíclica, circular, estereotipada, na qual um objeto parece deter a maior parte de seu interesse desde o início: Reinaldo, o terapeuta. Observar é tudo o que se pode fazer por meses a fio. Observar e ouvir o menino e também a mãe que permanece impermeável às pontuações e cortes que parecem não surtir qualquer efeito. A inibição toma conta do trabalho na forma de uma certa paralisia.

Em uma dada sessão Paulinho brinca com carrinhos e diz bate. Vai à janela e olha o movimento lá fora. A um dado momento contrai-se e diz bateu. Pega a bola e bate com ela no chão. Vira-se para o terapeuta e com a mão fechada dá-lhe um murro no rosto.

Que fazer? Como ler o acontecido? Como direcionar a intervenção?

No trabalho com crianças graves tenho tido como "regra fundamental" que na sala de atendimento é dado fazer tudo aquilo que vem à cabeça, salvo destruir o mobiliário, machucar-se, machucar o terapeuta. Esta é a regra, tendo em vista o perverso polimorfo que é supostamente a criança em questão.

Sob esta perspectiva, a direção aqui seria tentar um corte de sessão, o que sob o ângulo que eu enfoco hoje não seria errado, já que o corte da sessão iria no mesmo sentido do corte significante, do corte que a palavra instaura.

Paulinho no entanto nos levou a descobrir algo mais. Sua "atuação" haveria quebrado a paralisia do trabalho? Como insistia no bate, optamos por pensá-lo como significante, que pontuamos no discurso da mãe, quando surgiu. Isso produziu finalmente deslocamento, rememoração. São lembradas cenas em que Paulinho apanha por não dormir, e por associação começou a ser trazido o relato dos impasses pelos quais passava a vida sexual do casal, que sofria prejuízo com a insônia de Paulinho, uma queixa inicial para este caso.

Como conceituar então o murro que Paulinho dá em seu terapeuta. Qual sua função nesta sessão? Como lê-lo? Em uma palavra, ele pode ser lido pelo analista?

A pergunta tem um objetivo claro, se levamos em conta que aquilo que é da ordem do inconsciente é antes de mais nada algo que se lê. Então, que estatuto dar a esse ato?

Retomemos os conceitos fundamentais da psicanálise - inconsciente, repetição, transferência, pulsão - e dentre eles o de repetição.

Freud (1914/1972), no texto Recordar, repetir, elaborar faz a seguinte afirmação: "... o analisado não recorda nada do que foi esquecido ou reprimido, vive-o de novo. Não o reproduz como recordação, mas como ato; repete-o sem saber, naturalmente o repete."

Este texto nos é precioso para as articulações que pretendemos fazer aqui por trazer a repetição em ato, por incluir o ato.

Nossa experiência clínica com crianças graves nos ensinou a considerar o ato como eixo importante de articulação.

Se em alguns casos nos vemos em apuros com nossos pequenos clientes em função de sua atuação exacerbada, em outros é o silêncio e a imobilidade que nos deixam o que pensar.

Já no início de suas articulações, neste texto, Freud (1914/s.d.) relaciona a repetição com o reprimido, não tardando por notar que a transferência não é por si mesma mais que uma repetição, e a repetição, a transferência do passado esquecido. Pode-se antever as dificuldades teóricas que se apresentam para a articulação que propomos fazer. Como falar em reprimido no caso da psicose e do autismo? Como falar em rememoração em casos que parecem não dispor do registro temporal passado – presente - futuro, permanecendo em um universo sem tempo, sempre igual?

A experiência com essas crianças nos tem indicado que embora estejamos diante de um impasse em que somos obrigados a inventar estratégias de tratamento que contornem o fato de que a associação livre não deslisa, de que não se consegue sequer brincar, seria um erro presumir que se trate nestes casos de qualquer coisa que não seja de discurso. Pois se a pontuação do bate de Paulinho produziu um efeito de rememoração e de associação livre na mãe, a razão é justamente o fato de ter sido tomado enquanto significante.

Assim, temos uma repetição da criança que, se não pode ser lida na linha de um recalcamento, e se não reenvia a própria criança a um fragmento de memória, tem um impacto sobre o discurso materno que faz com que ela rememore e passe a associar.

Relatamos então um evento em que um ato do menino quebra a paralisia do tratamento e traz o discurso. Mas seria suficiente pensar só nestes termos? Penso que podemos caminhar ainda mais um pouco.

Não seria demasiado lembrar Freud, que alguns anos depois do texto citado acima, em Além do princípio do prazer, escreve observando seu neto, que a partir do jogo de carretel começa a utilizar-se de dois vocábulos: fort e da:

A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance ... (Freud, 1920/1998a, p. 19)

Freud que observara o surgimento de duas novas palavras a partir da brincadeira repetitiva com o carretel, jogado longe para ser encontrado em seguida, enfoca no texto a repetição de uma situação de desprazer. Vamos aqui colocar o acento na repetição.

Gostaria então de pontuar as relações que o autor vai fazendo entre recalcamento, repetição e desprazer, logo denominado de instinto de morte, no mesmo texto. Freud aprende da observação de seu neto que a repetição da situação desagradável, atuada na brincadeira com o carretel, devia ser lida como um ato que põe um limite ao gozo, na medida em que dá ensejo, na medida em que forja essas duas palavras novas que o menino passa a pronunciar. Assim, o jogo do carretel não estaria ainda na categoria de um espaço de metaforização já estabelecido, mas de uma metaforização em curso, que ainda irá se estabelecer.

Tentemos precisar mais a idéia.

Retornemos aos nossos pequenos pacientes psicóticos. Se o comportamento deles não pode ser considerado na categoria de um brincar estruturado enquanto tal, vou propor sua leitura no sentido da passagem ao ato.

Lacan, em uma conferência debate em novembro de 1975, na Yale University, estabeleceu uma diferenciação entre "acting out" e passagem ao ato.

O acting out é um ato necessariamente inibido. A passagem ao ato efetua aquilo que o acting out inibe. A passagem ao ato é da ordem da escritura.

Assim, se podemos traduzir o brincar de uma criança como um acting out, sugiro que pensemos o comportamento de Paulinho no registro de uma passagem ao ato, ali onde o simbólico pode-se dizer que falha e o que acontece é que o bater, que deveria ser um brincar de bater, vira ato propriamente dito.

Vamos problematizar, então, isso que eu acabei de colocar agora, de que o simbólico falha.

Seguindo aquilo que é colocado por Lacan, vamos tentar articular a passagem ao ato, colocando-a em relação à escritura, como sendo da ordem dela.

Há que esclarecer, inicialmente, de que se trata em uma passagem ao ato psicótica, em que algo se escreve em segunda potência. Quer dizer, que é só depois de submetida à inibição, e não ao recalcamento característico da estrutura neurótica, é que a letra se efetua, mas na forma de um ato concreto.

Temos então aqui como articulador entre esses dois conceitos de acting out e passagem ao ato, o conceito de inibição. E o que é uma inibição no olhar freudiano? Em seu texto Inibições, Sintomas e Ansiedade, Freud (1925/1998c) afirma o seguinte a respeito da inibição:

No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições das funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma, portanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele. (p. 13)

Assim, o sintoma fica definido como formação do inconsciente, e a inibição, como distúrbio egóico.

O significante, quando forcluído, e não recalcado, faz solicitação ao ego que supre a falha, produzindo inibição.

Para construirmos rapidamente nosso tecido conceptual vamos apelar mais uma vez para Freud (1940/1998b) que no texto Esboço de Psicanálise compara o sonho a uma psicose de curta duração. Ele diz:

Um sonho, no entanto, é uma psicose, com todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose. Uma psicose de curta duração sem dúvida, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil, introduzida com o consentimento do indivíduo e concluída por um ato de sua vontade. Ainda assim é uma psicose e com ela aprendemos que mesmo uma alteração da vida mental tão profunda como essa pode ser desfeita e dar lugar à função normal. (p. 45)

Acrescentando mais abaixo:

Já conhecemos certo número de coisas preliminares a esse empreendimento. De acordo com nossa hipótese, é função do ego enfrentar as exigências levantadas por suas três relações de dependência – da realidade, do id e do superego – e não obstante, ao mesmo tempo, preservar a sua própria organização e manter a sua própria autonomia. A pré-condição necessária aos estados patológicos em debate só pode ser um enfraquecimento relativo ou absoluto do ego, que torna impossível a realização de suas tarefas. A exigência mais severa feita ao ego é provavelmente a sujeição das reivindicações instintivas do id, para o que ele é obrigado a fazer grandes dispêndios de energia em anticatexias. Mas as exigências feitas pelo superego também podem tornar-se tão poderosas e inexoráveis que o ego pode ficar paralisado, por assim dizer, frente às suas outras tarefas. Podemos desconfiar de que, nos conflitos econômicos que surgem neste ponto, o id e o superego freqüentemente fazem causa comum contra o ego arduamente pressionado que tenta apegar-se à realidade a fim de conservar o seu estado normal. Se os outros dois se tornam fortes demais, conseguem afrouxar e alterar a organização do ego, de maneira que sua relação correta com a realidade é perturbada ou até mesmo encerrada. Vimos isto acontecer no sonhar: quando o ego se desliga da realidade do mundo externo, desliza, sob a influência do mundo interno, para a psicose. (Freud, 1940/1998b, pp. 45-46)

A hipótese freudiana sobre a psicose é, portanto, que nesta estrutura o ego entra em falência. Já podemos então fazer um elo entre as hipóteses freudianas sobre a psicose – devida a uma falência do ego – e a inibição, igualmente um distúrbio de funcionamento desta instância.

De fato, a clínica com crianças graves tem nos mostrado que suas "deficiências" podem ser situadas com maior exatidão como decorrentes de inibições. Sigamos.

Zimra (1986), no texto Reverso do sonho: Um acting out escreve:2

Dar um sentido à passagem ao ato, disto a própria passagem ao ato se encarrega. Supostamente não se endereçando a ninguém, ela encontra sempre algo a dizer: porque. Ela encontra sempre um sentimento de dívida, e pode-se dar a ela imediatamente um sentido. Esta necessidade de sentido que parece ser inerente à passagem ao ato traduz um tempo da falência imaginária do sujeito, que se encontra imediatamente fechada por um terceiro.

Autor lacaniano, Zimra fala em sujeito e não em ego, e acrescenta à compreensão deste evento psicótico que na passagem ao ato, há este elemento de sentido sempre presente, e também um sentimento de dívida.

A passagem ao ato é a realização em ato daquilo que no sonho é fantasia. É, portanto, um enigma a ser cifrado, um enigma em ato, da ordem da escritura, feita para ser lida antes que decifrada.

E como escreve Allouch (1998) em La psychanalyse: Une erotologie de passage, contornando a definição deste tipo de evento: "A letra não é, aqui como na análise, essencialmente consagrada à circulação da informação, ela própria é ato, portanto, regramento do gozo, confissão de gozo, manobra, ocasião de gozo" (p. 81).

Assim, fato de estrutura simbólica, da ordem da escritura, a letra que aí se escreve não se endereça a ninguém, como diz Zimra (1986), não está consagrada à circulação de nenhuma informação. Allouch (1998) esclarecera antes no mesmo texto:

Resta um resto desta produção formal de um resto. A passagem ao ato é o índice imediatamente presente de que um outro modo de transmissão está em jogo diferente daquele, puramente formal, das ciências exatas. Ainda que nas ciências exatas também, Lacan o notou, não saberíamos passar absolutamente da palavra para apresentar os jogos puramente formais das pequenas letras. (p. 45)

É justamente isto que o psicanalista aprende no atendimento de casos de crianças com graves distúrbios. Que no seu "brincar," concebido como sendo ele também da ordem do significante, se trata de um outro modo de transmissão, diferente daquele puramente formal. Trata-se aí de uma transmissão que usa o ato como meio. Há que completar o processo instaurado pela passagem ao ato, possibilitar sua transliteração, termo introduzido pelo mesmo Jean Allouch em seu livro Letra por letra.

Mais ainda, retornamos ao proposto por Freud (1920/1998a) em Além do princípio do prazer, de que esse atuar da criança vem relacionado ao gozo, termo lacaniano para designar aquilo que no texto de Freud comparece sob o nome de instinto de morte.

É para estabelecer um limite ao gozo que a criança atua seu brincar, falar será sua grande realização cultural, diria Freud, a renúncia instintual, para o que ela terá se apoiado na leitura de seu parceiro, o analista.

 

 

Brauer, J. F. (2000). Between Inhibition and Action: borders of Analytic Work witer Children Psicologia USP, 11 (1), 243-252.

Abstract: The purpose of this text is to theorise about the playing method used as manner of analysing serious kids. This playing method will be understood here, from the point of view of the acting out, a phenomenon present on the psychosis cases, from where it shall be made an enunciation. Freud’s inhibition concept is also observed in childhood psychosis cases which can hamper the analyst’s work.

Index terms: Childhood play behavior. Acting out. Psychotherapeutic processes. Childhood psychosis. Autistic children. Inhibition. Psychoanalysis.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Allouch, J. (1998). La psychanalyse: Une érotologie de passage. Paris: Cahiers de L’Unebévue / E. P. E. L.         [ Links ]

Freud, S. (1998a). Além do princípio do prazer. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (1998b). Esboço de psicanálise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1940)        [ Links ]

Freud, S. (1998c). Inibições, sintomas e ansiedade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1925)        [ Links ]

Freud, S. (1914/1972). Recuerdo, repetition, elaboration. In Obras Completas. Madrid, España: Alianza Editorial. (Originalmente publicado em 1914)        [ Links ]

Zimra, G. (1986, octobre). Revers du rève: Un acting out. Littoral. Identité Psychotique, 21. Toulouse, France: Erès.        [ Links ]

 

 

 

1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. E-mail: jfalek@usp.br

2 A tradução de textos em francês ou espanhol apresentada adiante é feita por mim, livremente.