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Revista Brasileira de Psiquiatria - Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais

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Revista Brasileira de Psiquiatria

Print version ISSN 1516-4446

Rev. Bras. Psiquiatr. vol.22 n.1 São Paulo Jan./Mar. 2000

http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462000000100012 

Livros


Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais
Por Paulo Dalgalarrondo. 2000. Porto Alegre: Artmed. 271 páginas. ISBN 85-7307-595-3

 

Heidegger, num certo momento de sua obra, perguntou-se: por quê poetas em tempos de penúria? Retomo-o, transformando alguns termos e me indago: por que psicopatologistas em tempos pós-modernos? Tempos que Marshall Berman identifica como aqueles em que "tudo o que é sólido desmancha no ar".

Dalgalarrondo nos traz, no bojo de seu novo livro, pistas resolutivas para as duas interrogações. Traz a si próprio, como o psicopatologista - refiro-me ao artífice de conceitos fundadores e estáveis, transcultural e transhistoricamente, do que seja patológico no comportamento humano -, e traz poetas para ilustrar, nas imagens que só a intuição artística sabe tão bem engendrar, o que as palavras não exaurem: a essência do que é dito, os matizes mais sutis das vivências comunicadas.

Mas, como transcorre seu projeto? Alertando-nos inicialmente de que "a semiologia é a base, o pilar fundamental da atividade médica" e, após discorrer sobre as distinções entre ícones, índices e símbolos, começa por empreender seu intento: tomar e dissecar cada uma das funções psíquicas, ao longo de todo o espectro cognitivo-afetivo-conativo, conceituando-lhes suas alterações psicopatológicas e agregando a essas, nas mais diversas correntes teóricas, um esboço de sua etiopatogenia.

Acompanha cada uma das funções psíquicas uma semiotécnica básica que nos orienta, por meio de perguntas ao paciente, no rastreamento e na identificação dos sintomas que eles possam apresentar. Finaliza o trabalho apontando as grandes síndromes psiquiátricas, também seguidas de semiotécnicas específicas que facilitem suas identificações. E, à guisa de chave-de-ouro, brinda-nos com a parte mais lúdica e singela do livro: um glossário de denominações populares relacionadas à psicopatologia, que inclui achados desde o caipiríssimo "caguira" até o nordestino "aperreado", passando por vários outros termos usados em no Brasil.

Trata-se de um trabalho de psicopatologia descritiva, que, segundo Andrew Sims, descreve e categoriza as experiências anormais como contadas pelo paciente e observadas em seu comportamento, sem uma preocupação maior de articulá-las entre si. Sob essa óptica, vem juntar-se o autor, no cenário brasileiro, embora de uma forma mais aprofundada, a Isaías Paim, autor do já clássico "Curso de psicopatologia" (primeira edição em 1969). Difere, no entanto, de Nobre de Mello, autor do também clássico "Psiquiatria/psicologia geral e psicopatologia" (primeira edição em 1970), na medida em que esse, além do puramente descritivo, empreende incursões pelo terreno fenomenológico-existencial.

Com escrita fluida e elegante, Dalgalarrondo cumpre seus propósitos. Os reparos que lhe faço são muito mais referentes à minha forma de ver a psicopatologia do que propriamente ao escopo e competência de sua empreita. Penso, por exemplo, que a etiopatogenia dos sintomas deva estar mais lotada na psiquiatria clínica, disciplina aplicada que se alimenta de ciências como a própria psicopatologia, a neurofisiologia, a neurofarmacologia e outras, e não na psicopatologia, que, a meu ver, deve contribuir apenas para a identificação e designação, o mais fiel e nuclear possível, do fato psíquico.

Além disso, alio-me à conceituação de psicopatologia por Lantéri-Laura: algo que tramita entre a psicologia do patológico e a patologia do psicológico. Ou seja, penso ser necessário, a partir do fenômeno dado, buscar, com controles próprios do método fenomenológico e pela redução eidética, articulá-lo com os outros fenômenos patológicos ou não do psiquismo do paciente, num esforço de compreensibilidade psicológica (psicologia do patológico), até que se estabeleça, na consciência do observador, a vivência do irredutível, ou seja, da essência (eidos) dos fenômenos vivenciados, ou ainda, do terreno básico de onde esses últimos emergiram. Dalgalarrondo, em alguns momentos de seu trabalho, tangencia esse procedimento, quando, entre outras passagens, fala dos "transfundos das vivências psicopatológicas e sintomas emergentes" (capítulo 24), mas não o aplica na maior parte do corpo da obra.

Autores como Jaspers ("Psicopatologia geral", 1913) e E. Minkowski ("Tratado de psicopatologia",1966) devem nos inspirar ainda a que estabeleçamos uma ponte possível entre a psicopatologia descritiva e a fenomenológica. Diferentemente de outras especialidades médicas, em que os sinais e sintomas são ícones ou índices, a psiquiatria trabalha também com símbolos. Posto isso, o pensamento, a sensibilidade e a intuição ainda são, e sempre serão, o instrumento propedêutico principal do psiquiatra, pois que, sem a homogeneidade conceitual do que seja cada fato psíquico não há, e não haverá, homogeneidade na abordagem clínico-terapêutica do mesmo. Essa é a nossa tarefa: mergulhar nos fenômenos que transitam entre duas consciências, a nossa, a do psiquiatra/pessoa e a do outro, a do paciente/pessoa. Deixar que os fenômenos se fragmentem, que suas partes confluam ou se esparjam, num movimento próprio e intrínseco a eles. Cabe-nos a leitura da configuração final desse jogo estrutural, sem maiores pressupostos ou intencionalidade, e com procedimentos posteriores de verificação. Essa é a tarefa da Fenomenologia.

 

De qualquer forma, como saldo final do livro em análise, penso que o seu autor vem contribuir enormemente, mais uma vez, para com a psiquiatria brasileira e me traz à recordação o filósofo Merleau-Ponty: "A ciência manipula as coisas, mas renuncia a habitá-las". Dalgalarrondo se permite habitá-las.

 

Mauro Aranha de Lima
Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.