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Educação e Pesquisa - Notes about children’s portraits

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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702

Educ. Pesqui. vol.26 no.1 São Paulo Jan./June 2000

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022000000100007 

Notas em torno de retratos de criança

 

Rogério Fernandes
Universidade de Lisboa

Correspondência para:
Rogério Fernandes
Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação
Universidade de Lisboa
Al. da Universidade
1649-013 Lisboa – Portugal
e-mail: rfernand@fpce.ul.pt

 

 

Resumo

Ao destacar o caráter polissémico da palavra criança, o artigo questiona tal polissemia para tempos pretéritos. Afirma que o vocábulo foi muitas vezes substituído por outros, com o intuito de designar com mais propriedade as fases de desenvolvimento infantil e problematiza com isto o estudo clássico de Philippe Ariès acerca do sentimento de infância na Idade Média.
As análises partem de uma releitura da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes e rastrea no texto do cronista as palavras usadas para significar criança na acepção que hoje se dá ao termo. O propósito foi o de efetuar sondagem em uma das obras desse grande criador da língua portuguesa no período considerado. A essa fonte acrescentam-se algumas páginas da literatura que focaliza a criança em diferentes situações, cuja análise permitiu reconstruir as diversas representações de crianças, as quais, por sua vez, depõem sobre traços significativos da mentalidade pedagógica, em Portugal, quanto ao modo de conceber a infância.
Conclui pela necessidade de compreender o termo infância em seu plural, pois assinala a variedade de perfis que essa categoria histórica, social e psicológica comporta; e alerta para o facto de que é preciso recordar que os retratos de crianças não provêm diretamente de crianças, mas foram produzidos por aqueles que já não eram meninos.

Palavras-chave

Infância – Criança – Literatura portuguesa.

 

Notes about children’s portraits

Abstract

By highlighting the polysemic character of the word ‘child’, this paper questions such polysemy in past times. The paper asserts that the word ‘child’ has many times been substituted by others with the purpose of designating more properly the phases of the child development. By doing that, the classic study by Philippe Ariès about the feeling of childhood during the Middle Age is questioned.
The analyses start from a re-reading of the Chronicle of D. João I, by Fernão Lopes, and it traces in the author’s text the words used to denote ‘child’ in its current meaning. The paper’s objective was to investigate one of the works of this great author of the Portuguese language in the period studied. Besides Lopes’ work, some other pages of the literature that present the child in different situations were also examined. The analyses allowed the reconstruction of various representations of children that revealed significant facets of the Portuguese pedagogical thinking as regards ways of conceiving the childhood.
The paper concludes by arguing for the need of a plural understanding of the term childhood. The plurality would signal to various profiles that this historical, social and psychological category allows. The study also calls attention to the fact that the portraits of children have not come directly from the children themselves but they have been made by those that were no longer children.

Keywords

Childhood – Child – Portuguese literature.

 

 

A palavra criança cobre hoje uma diversidade de significações que nos permite a sua utilização em diferentes contextos. Essa característica polissémica nem sempre se verificou. O vocábulo era muitas vezes substituído por outros que designavam com mais propriedade as fases de desenvolvimento infantil.

Vem isto a propósito da teoria desenvolvida por Philippe Ariès acerca do sentimento de infância na Idade Média, tema que tem sido objecto de viva contestação, apesar de o próprio investigador ter confidenciado que gostaria de ter prolongado o seu contacto com aquele período histórico.

Entretanto, o ponto de vista dos novos historiadores da infância não se compagina com o de Ariès. Riché, por exemplo, chama precisamente a atenção para o esquecimento a que a história da criança na Idade Média foi injustamente votada.

É indubitável que a história da cultura intelectual e do ensino foi privilegiada e a da educação propriamente dita não tem ainda o lugar que deveria ter. A criança foi a grande esquecida dos historiadores da Idade Média, ao passo que verificamos pelos documentos escritos e pela iconografia que a criança está presente na família, na escola e na sociedade. (Riché, 1991, p.38)

Danièle Alexandre-Bidon (1991), por sua vez, recorda que a história do ensino primário na Idade Média é um fenómeno relativamente recente, que ainda no início dos anos 80 não era coisa vulgar. Insuficientemente estudada, mal estudada, tinha-se quase a impressão de que tudo começava no colégio, ao passo que, na realidade, tudo começava à mesa da ama! De resto, tantas relações semânticas ligavam a aprendizagem da leitura e a alimentação das crianças que o caso não é nada de espantar: mesa e mesinha, alimentar o corpo e nutrir o espírito, o mesmo termo significando, nessa época, alimentar e educar (id., p.52-53).

É evidente que, por nossa parte, não podemos prestar um contributo de importância para o tema da criança no quadro medieval. Limitámo-nos, em primeiro lugar, a proceder a uma releitura da Crónica de D. João I de Fernão Lopes, rastreando no texto do imortal cronista as palavras usadas para significar criança na acepção que hoje damos ao vocábulo. Desta perspectiva, pretendemos apenas proceder a uma sondagem numa das obras de um grande criador da língua portuguesa no período considerado.

Além disso, algumas páginas da nossa literatura focam a criança em diferentes situações. A sua análise permitiu-nos reconstruir as diversas representações de crianças que foram sendo feitas, as quais, por sua vez, depõem sobre traços significativos da mentalidade pedagógica portuguesa quanto ao modo de conceber a infância.

Trata-se, portanto, de um pequeno ensaio destinado a mapear alguns terrenos susceptíveis de sondagens mais profundas.

 

A criação, a mãe e a ama

O costume de as famílias senhoriais entregarem os filhos à amamentação das amas, do mesmo modo que os Municípios, as Misericórdias e os Hospitais dos Expostos confiavam a estas a criação dos órfãos e dos expostos (ou engeitados), é referenciado na alvorada da terra portuguesa. Os Cancioneiros medievais contêm alusões a essa prática, censurada por uns, aprovada ou pacificamente aceita para outros. Há mesmo uma justa literária em relação a essa prática.

O ofício das amas era muitas vezes desvalorizado, assim como as profissões ou capacidades dos respectivos maridos, visto que se tratava de gente pobre em cujas residências eram, todavia, tratados na puerícia os meninos das famílias opulentas. Havia casos, porém, de residência das amas em casa da família que lhes confiava os filhos. A carta de comtia, por exemplo, cuja entrega, segundo Fernão Lopes, era feita pelo escrivão dos maravedis, era colocada no peito do menino, estando este no berço ou no colo da ama se acaso a tivesse (id., p.178-179, v.2).

Apesar das críticas, a entrega de crianças às amas continuará até ao século XIX adiantado, embora, nesse tempo, semelhante recurso fosse maioritariamente procurado nos casos de ilegitimidade. As páginas finais de O crime do Padre Amaro focam precisamente um desses casais de criadores de meninos, sobre os quais recai suspeita de assassínio, o que poderiam ter praticado a coberto de elevadas taxas de mortalidade infantil, beneficiando integralmente da quantia já recebida para suportar as despesas da criação. Pensa-se, de resto, que esse episódio poderá ter sido inspirado a Eça de Queiroz por um facto real. Foi tornado público, por outro lado, que D. João VI perdoou a uma ama um número bastante imponente de assassínios de bebés, sob a promessa de que não reincidiria nessa prática.

Seja como fôr, em Fernão Lopes achamos a declaração expressa da relação afectiva das mães e das amas para com a criança que criavam: "(…) a madre na door do filho e a ama que o cria semte(m) mor pena que outro nenhuu (…)" (id., p.100).

Esta relação afectiva não anulava o desprendimento social com que era olhado o nascimento, o que, segundo Ariès, se devia à incerteza quanto à sobrevivência do bebé, nos primeiros tempos de vida. A ausência de registos de nascimento embaraçava a atribuição da idade real. Fernão Lopes deixa transparecer tal dificuldade, quando escreve: "(…) e deixou por herdeiro seu filho (…) em idade pouco mais ou menos de quinze años" (id., p.208; itálico nosso); "Este dom Joam (…) seria de idade ataa [até] sesemta annos (…)" (id., p.211; itálico nosso).

 

A pequena idade

A idade pequena ou pequena idade (id., p.208 e p.211) tinha os 11 anos como ponto de referência (id., p.308 e p.311). Nessa fase etária incorporavam-se vários estádios e graus de desenvolvimento.

A palavra parvoo(s) aparece conotada com os conceitos de inocência e de mansidão (os inocentes parvoos…, tam doce como parvoo…), mas representava já um período de aprendabilidade, o da fala: os parvoos ou parvulos eram crianças de colo a quem as mães ensinavam a falar: "(…) emduziam as madres os inocentes parvoos que tinham do colo (…) emsinando-lhes como dissessem (…)" (id., p.261, v.1).

As crianças, por sua vez, eram meninos de peito ou mesmo ainda não nascidos em fase de gestação. Assim se explica o sentido de frases como aquelas que adiante se transcrevem: "Desfalleçia o leite aaquellas que tiinham crianças a seus peitos (…)" (id., p.307), ou: "(…) com molheres e filhos e muitas crianças pequenas (…)" (id., p.387), ou, finalmente, a alusão ao aborto da Rainha que, muito preocupada com a saúde do marido, "de guisa que logo moveo de hua criança (…)" (id., p.256.)

A palavra menino(a)s designava, em geral, uma criança com um grau maior de desenvolvimento físico e de resistência. O seu vestuário, porém, pertencia ainda ao escalão da criança: "(…) os trapos dos meninos (…)" (id., p.268). A sua robustez permitia a aplicação de castigos corporais: "(…) que elle o açoutaria no cuu, como fazem ao menino" (id., p.268); "(…) que o emtendia daçoutar no cuu come menino" (id., p.297.) No entanto, a palavra menino também podia significar criança de berço, conforme ocorre no mesmo livro (id., p.178-179, v.2).

Seguiam-se os moços, palavra que apresentava uma interessante gradação. Os moços ou moças pequenos, inclusive com menos de um ano, distinguiam-se dos que se designavam simplesmente por moço ou moças. Deste modo, Fernão Lopes refere-se a uma "moça pequena de oito meses nada, que no berço homde jazia se levantou (…)", isto é, a uma criança do sexo feminino, ainda de berço e apenas com oito meses (que se levantou por sinal devido a um prodígio). Referência se acha também a moços de três e quatro anos, os quais andavam "pedindo pam pella çidade por amor de Deos, como lhes emsinavam suas madres (…)" (id., p.307).

Os moços pequenos emparelhavam com homens e mulheres e podiam ser objecto de penas judiciais graves, inclusive a pena máxima. Foi o caso narrado por Fernão Lopes. Homens, mulheres e moços tinham empreendido o roubo de erva de uma vila para o arraial, visto que ela estava faltando, mas o roubo foi feito à revelia da vontade do Mestre. Agindo sem mandado do rei, e gritando falsamente que a vila estava tomada, "foram la os moços e azemees e homees de pe", acabando rapidamente com toda a erva. Nessas condições, o Mestre não hesitou em mandar prender um moço pequeno (id., p.379). Seguiram-se outras prisões: "E el Rey ouve desto mui grande menencoria, e mandava prender quantos achasem que a tomaram, e foram presos e levados amte elle seis moços culpados em esto." Um nobre da Corte intercede mas em vão: "numca tantas boas rezoees pode dizer a El Rei e lhe pedir por merce que o demover podese que os nam mandasse decepar" (id., p.291, v.2). Para efeitos judiciais, os moços pequenos iam lado a lado com os adultos e sofriam a sua sorte: "(…) levando cativos todollos homes e molheres e moços e g(u)ados e qua(n)to acharam" (id., p.291).

 

Um passo em frente no crescimento

A palavra cachopo designava visivelmente a criança que passava pela primeira infância, e cujas brincadeiras eram já imitativas de actividades adultas, manifestando, por outro lado, capacidade de iniciativa grupal. É o que parece lícito deduzir das seguintes palavras de Fernão Lopes: "(…) começarom muitos cachopos e sair fora da cidade sem lho mamdanmdo neguem [ninguém] (…) com cavallinhos de canas que cada huu fazia (…) (id., p.390); "Nem falo dos cachopos quue sayraõ receber el Rey quoamdo foi pera Coimbra (…) ca dirão que lhe (s) podia ser emsinado" (id., p.124, v.2). A força física do cachopo é, porém, muito inferior à do adulto. Desse modo, o fanfarrão é comparado com a criança crescida: " (…) como se fosees huu grrão lutador trabalhamdo-vos per diribar [derrubar] huu cachopo" (id., p.85).

Entre o cachopo e o mancebo interpunha-se considerável distância em termos de idade: o mancebo podia contar pouco mais de 20 anos, sendo, aliás, escudeiro-fidalgo (id., p.296-297). Apesar disso, o cachopo dispunha de robustez suficiente para apanhar sozinho um feixe de varas e dispor-se à refrega (id., ib.).

Finalmente, a palavra rapaz designava indivíduos com idade e força suficientes para serem besteiros, isto é, manusearem as armas mais pesadas dos exércitos (id., p.379).

 

A integração social e a menoridade

Até aos 25 anos, segundo as disposições jurídicas produzidas por imperadores e reis, dizia o Conselho de Castela que o homem deveria ser considerado menor (id., p.313, v.2). Em consequência, havia práticas sociais cuja concretização, ocorrendo na infância, tinha de ser adiada pelo menos até a adolescência, apesar de essas dilações continuarem a agravar desníveis etários consideráveis.

Fernão Lopes apresenta algumas situações características desse período e relativas ao matrimónio. Os 14 anos de idade parecem marcar um nível de idade a partir do qual o casamento pleno era possível, já que se determinou que o segundo filho do rei de Castela, o Infante D. Fernando, "nã esposasse nem tomase molher nenhua" até que seu irmão fosse de 14 anos, tendo ele 9 anos nessa época. Por outro lado, sendo o Infante D. Henrique de 9 anos, trata-se do seu casamento (id., p.263 e p.411). Na mesma Crónica somos informados de que o rei de Castela sondara um dos filhos sobre a possibilidade de se casar com uma menina que então contava 4 anos, tendo ele 20, pelo que deveria esperar 9 ou 10 anos para casar efectivamente (id., p.446). Outro caso era o do jovem que só com 16 anos é junto com sua mulher que, nessa altura, já contava 27 (id., p.446). Uma menina, sendo moça de 14 anos, seria recebida pelo rei de Castela em Palença, a fim de aí ser celebrada solenemente a festa de esponsais (id., p.265).

Haveria, pois, uma distinção nítida entre o casar e o "tomar mulhe", ou seja, o viver maritalmente. As conveniências e os interesses impunham opções inteiramente alheias à idade e sentimentos daqueles em nome dos quais eram tomadas.

 

Uma visão adultocêntrica da criança

Independentemente das relações afectivas que se entretecem na Idade Média entre progenitores e filhos, as relações sociais remetem-nos para uma sociedade estruturada segundo o pensar e o querer dos adultos. A criança e o jovem eram fortemente comandados a partir de interesses que interferem com as suas vidas de uma forma absoluta. Para os adultos, a criança não dispunha de capacidade para se reger de modo racional. "A alma de um menino, que vem a ser?", perguntava o Padre António Vieira: "Uma vontade sem afectos e um entendimento sem uso."

 

Uma cena infantil no Paço Real

A literatura memorialística, do mesmo modo que outros ego-documentos, constitui uma das fontes mais ricas em ordem à reconstrução histórica do passado infantil dos adultos. Perante os silêncios sem história das crianças que somos, é preciso recorrer às memórias vivas das crianças que fomos.

A infância do Marquês de Fronteira e d’Alorna parece ter deixado traços muito vivos na sua lembrança. Nascido em 1802, fica órfão quando está prestes a completar cinco anos. Sendo impossível entregar a sua tutela a sua avó materna, a Condessa d’Oyenhausen, futura Marquesa de Alorna, pelo facto de se encontrar exilada em Inglaterra, receberia esse encargo um dos seus tios, o Marquês de Belas. Este, recorda o Marquês de Fronteira e de Alorna, graças às influências de que dispunha no Príncipe Regente, o futuro D. João VI, consegue que "eu, seu pupilo primogénito, fosse agraciado com os títulos da casa de meus antepassados, bens da Coroa e direitos banais que a mesma desfrutava, os quais rendiam para cima de 14 000$000 r [éi]s. por ano" (Alorna, 1926, p.6).

Para tanto, era necessário que a criança, apesar de contar menos de cinco anos, se dirigisse a Mafra e fosse apresentada a Sua Alteza. Depois dessa formalidade, todos os direitos ficavam reconhecidos e os Fronteira e Alorna podiam continuar a beneficiar sem sobressaltos da sua considerável fortuna.

O que vai ser essa deslocação a Mafra a partir do palácio de Benfica onde o jovem órfão vivia, assim como a própria cerimónia de que seria protagonista, é descrito pelo Marquês com um admirável senso de discreto humor. Em primeiro lugar, a evocação do veículo e da ocupação do seu espaço interno, de que seguramente a parte menos cómoda era a que cabia ao herdeiro primogénito dessa grande casa:

Saí de noite de Benfica, meio a dormir, em uma sege, acompanhado por um íntimo amigo de meu Pai (…) e por Mr. Fabre, meu guarda-roupa, emigrado francês.
A jornada, segundo as minhas reminiscências, não foi das mais cómodas. A sege, uma das mais antigas de meu Pai e talvez de meu Avô, feita naturalmente de propósito para estas viagens, era estreita e não oferecia outra vantagem, além da sua solidez, para resistir aos baldões dos péssimos caminhos (…).
Os meus companheiros ocupavam uma boa parte do veículo, não só porque eram bem fornecidos de carnes, mas porque iam embuçados em grandes capotes; e o resto ia por tal forma cheio com as condeças e sacos com a minha toilette de Corte e com as grandes latas de gulodices que o velho copeiro de meu Pai (…) para ali tinha metido, que pouco espaço ficava para me assentar, indo por isso quase sempre no colo de um deles.

Se as condições de instalação eram já de si mesmas altamente incómodas para a criança, esta situação negativa agravava-se pela velocidade a que se conduzia o veículo. Ela tornava-se tanto mais perigosa quanto eram eivados de perigos os desvios e inclinações da estrada, designadamente na ladeira de Cheleiros, ainda hoje caracterizada por uma encosta muito acentuada. Assim recorda o Marquês de Fronteira e de Alorna, não sem alguma imprecisão, o acidente ocorrido durante a viagem:

Naquela época era moda o viajar a toda a brida e, embora os amos quisessem o contrário, os bolieiros não obedeciam: o cavalo da sela conservava-se sempre a galope, enquanto o das varas ia a trote rasgado. Nestas viagens a Mafra aconteciam muitas vezes desgraças terríveis. Na descida de Cheleiros caiu-me o cavalo das varas, escapando eu por milagre de sair pela sege fora, e ficar talvez morto. Este acontecimento atrasou alguma coisa a jornada e não me lembra o meio de que se serviram para a podermos continuar.

Uma vez em Mafra, é recebido com todo o desvelo pelos empregados da Casa Real, que guardavam excelente memória de seu Pai e lamentavam a sua morte prematura. Mas os direitos psicológicos da criança, por assim dizer, recuperam o seu lugar e logo a partir desse momento fazem-se ouvir sem mais inibições:

Logo que cheguei, entrei a gritar pelas criadas que tinha deixado em Benfica e, apesar dos esforços que empregavam e promessas que me faziam, não podiam socegar-me.

Os adultos iniciam então uma estratégia de sedução da criança, a fim de a persuadirem a aceitar as convenções do lugar:

Levaram-me ao colo para o quarto de outro tio que residia na Corte e era então Ministro dos Negócios Estrangeiros (…) e aí, depois de grandes promessas, presentes de bonitos e muito doce, conseguiram despir-me o fato de viagem, um pouco original (pois era um chapéu cinzento com grande laço azul e encarnado, um baju verde com alamares de oiro, grandes folhos caídos na camisa, calções de veludilho preto com grandes laços brancos caídos, meias cor de carne, e sapatos com laços brancos) e vestiram-me à Corte.

A parte mais trabalhosa do serviço coube naturalmente a Monsieur Fabre, o francês exilado que ganhava a vida como guarda-roupa do pequeno Marquês. Ele próprio o confessa ao escrever:

Foi isto negócio difícil para o meu guarda-roupa, porque, tendo eu o cabelo comprido e anelado, e sendo preciso pôr uma cabeleira empoada e de rabicho, não como a do grande Marquês de Pombal, mas do mesmo género, ainda que em miniatura, eu, a quem ela incomodava, queria a todos os momentos tirá-la, correndo assim o risco de se perder o trabalho que o cabeleireiro tivera em Benfica para arranjar aquela obra.

O infantil rebelava-se, pois, contra o convencionalismo dos adultos, incapazes de medir as distâncias entre os dois universos em presença. Tal rebelião manifestava-se em todas as oportunidades:

A muito custo conseguiram acomodar-me. Vestiram-me uma camisa com grandes punhos e bofes de renda de França, um pescocinho branco apertado por uma fivela de aço, uns calções de veludo preto com fivelas de aço e laços pretos, meias de seda branca, sapatos pretos com grandes saltos encarnados e abotoadura de madrepérola, espadim com copos de aço, e chapéu elástico de plumas brancas.

Assim vestida e armada, a criança com menos de cinco anos entrava no mundo da ficção adulta sem que pudesse, nessa época, decodificá-la. Ele próprio o confessa ao revelar como galgava de um ápice até ao topo a escadaria das hierarquias nobiliárquicas:

Nunca fui ao Paço sem espada, porque nunca fui Moço Fidalgo, tendo gozado, desde a idade de cinco anos, as honras de Grande do Reino.

Havia, no entanto, que consumar a cerimónia de iniciação que no Paço de Mafra se representava. À distância dos anos, o Marquês de Fronteira evoca-a com um sentimento irónico, na sucessão de terrores em que ela se constituiu:

Conduzido por meu tutor e tios, encaminhei-me para a sala de recepção do Príncipe Regente, sendo acompanhado pelos meus dois companheiros de jornada até onde a etiqueta da Corte lhes permitia, mas, apenas os perdi de vista, desatei num berreiro de choro, sem querer seguir por diante, gritando por meu irmão de quem nunca me tinha separado, e por Mr. Fabre, meu guarda roupa. Logo que avistei S. A., tremi de medo, tal foi a impressão que me causou a sua fealdade, mas, conhecendo quase todos os que o cercavam, porque ou eram meus parentes ou amigos de meu Pai, tranquilisei-me.

A cena vai atingir o seu vértice cómico e equívoco, precisamente no acto seguinte, rememorado nestes termos:

Sua Alteza costumava fazer sempre a mesma pergunta às crianças que, na minha posição, lhe eram apresentadas, e era ela: Para que lhe serve a espada que traz à cinta? Meu tio tinha-me ensinado a resposta que eu, à força de me ser repetida, decorei, e, quando S. A., segundo a etiqueta, me fez a pergunta, respondi de pronto: Para defender a V. A.! O Príncipe nem para mim olhou, e estou hoje convencido de que nem ouviu a minha resposta.
Logo que respondi, gritei por Mr. Fabre, e S.A., persuadindo-se de que eu tinha levado comigo um frade, disse para meu tio: Chamem o Frade! Meu tio disse-lhe que era pelo meu guarda-roupa que eu chamava e que não era frade.

Esta atmosfera burlesca envolve a cena capital em que a criança, travestida de adulto e transportada para um mundo adulto mas fictício, recupera os direitos à sua própria infantilidade.

 

A criança da rua: o revolucionário

Dedicado a Antero de Quental em 1873 por Guilherme de Azevedo, A Alma Nova é uma das obras poéticas mais extraordinárias da chamada Geração de 70. Nesse livro, em que verdadeiramente latejam os novos ideais do século, fala-se de facto da Humanidade e da Justiça.

Num dos seus poemas, Azevedo insere o que poderíamos chamar o discurso da Ordem, a interpelação brutal da criança da rua, em cujo vulto franzino se divisa desde logo o futuro revolucionário.

Assim começa o poema:

Pequeno, donde vens cantando a
 [MARSELHESA;
Da barricada infame ou doutra vil torpeza?

Diante destas alternativas, o futuro que se lhe atribui nada tem de risonho. Oculta na sua mão poderá estar a lâmina mortal ou a lima destinada a adelgaçar os ferros da masmorra. O seu futuro é ambíguo: vulto de arcanjo, ei-lo que esvoaça entre as fumaças do petróleo com que os seus camaradas da Comuna tinham deitado fogo a Paris. É preciso forçá-lo a descobrir-se e a revelar a arma temível que transporta, e que é, afinal, a do saber e da cultura:

Que esplêndido porvir! Do nada apenas sais
começas a morder as púrpuras reais,
ó filho trivial da lívida canalha!…
E, vamos, deixa ver, guardaste uma navalha?!,
Não tremas que eu bem vi! Que trazes tu na
[mão?
Intentas já limar as grades da prisão,
Fazendo cintilar um ferro contra o sólio,
Arcanjo que adejais nos fumos do petróleo?!…
Mas, vamos, abre a mão: não queiras que eu te
[dê.
Bandido, eu bem dizia! – a carta do ABC!…

Escrito no quadro do revolucionarismo romântico, o poema é uma das muitas glorificações oitocentistas da criança pobre e do poder extraordinário da escolarização primária, por meio da escola ou de modalidades informais de instrução popular, relativamente ao destino social. A ilusão da felicidade futura da criança miserável graças, apenas, à força da educação.

 

A criança da rua: a educação "natural"

Em 1851, Latino Coelho (1825-1891), escritor, militar, político, membro da Academia Real das Ciências e lente da Escola Politécnica publicava na Revista Popular, editada em Lisboa, a crónica intitulada O Gaiato, mais tarde recolhida na galeria dos Tipos Nacionais. Era um retrato do que chamamos criança da rua, cujo modo de viver provocava a repulsa das classes superiores. A própria palavra gaiato sugeria desde logo um indivíduo de orientações ambíguas. Como escreve Latino, tratava-se de um ente repugnante, cujo nome soava "equivocamente aos ouvidos castos e delicados" (p.23).

Entretanto, o gaiato representa mais do que um tipo de criança. Ele transporta consigo o germen dos destinos da pátria, ambivalentes e incertos. O gaiato, hoje, não seria tanto um ser que sugeriria a "degradação da espécie humana no primeiro alvorecer da vida": mais do que isso, seria "uma posição social que serve como de ponto de partida para destinos gloriosos ou ignóbeis, lucrativos ou miseráveis" (p.24).

Na sociedade portuguesa de meados do século XIX, em pleno movimento histórico da Regeneração, a vida deixara de ter apenas como teatro o cenário doméstico e passara a ser pública: a rua, afirma Latino, "é o verdadeiro teatro onde a civilização vai desfilando, entre os aplausos e as pateadas de espectadores antagonistas" (id.). Decorreria daí que o gaiato gozava de inegáveis vantagens sobre os seus adversários. Em lugar de dever ser criado no resguardo dos lares, era

... um ser privilegiado dentro da família humana. Quase que nasce livre. Quase que veio ao mundo já herói e protagonista de cem dramas grandiosos. Afeito às durezas da vida, experimentado a todas as intempéries, pode dizer que é o homem da natureza, livre como ela, ligeiro como o vento, sagaz como a rapoza, bravo como o leão das selvas. (p.24-25)

Esta luta pela vida leva o gaiato a desenvolver capacidades que, de outro modo, ficariam coactas. Ele é Aquiles, "no meio de uma cidade populosa, enlameada, nas vielas estreitas e infectas de um bairro escuso" (p.25-26). É folhetinista, quer dizer, jornalista satírico, "por índole, por necessidade, raras vezes por distracção" (p.26). É "observador por instinto e crítico por por hábito" (p.27). Sem que nunca tivesse lido Horácio nem Alphonse Karr, "a sua crítica é implacável e perpétua. Aparece um ridículo, e o gaiato saudou-o logo com o dictério, com a zombaria, com a apupada estrondosa" (id.).

Educado, por assim dizer, pela natureza, o gaiato excede todas as expectativas. Os seus dons de crítico podem exprimir-se por meio de um epigrama, do lançamento de uma laranja podre ou de um pedaço de hortaliça…Deleita-se com a música:

A sua garganta, mais elástica do que a do cantor mais vitoriado, desata-se em notas variadíssimas de um assobio agudo e penetrante. O gaiato, que na vida social é um tipo e um tirocínio, é no mundo musical um meio que a Providência destinou a vulgarisar os cantos que devem tornar-se populares. (p.29)

As vocações do gaiato podem desdobrar-se em vários campos. Iniciado nos mistérios da fortuna social, ele saberá ascender todos os degraus da epopeia gatunal, para usar a expressão de Latino, quando a vida lhe depara oportunidades. Inspirando-se em Malthus, o cronista dirá que "no banquete social não haverá talher para todos os convidados" e, desse modo, nem todos os gaiatos chegarão a posições destacadas na vida. Desse modo não poderá ir muito longe:

O gaiato, que nasceu debaixo deste horóscopo funesto, que lhe nega todo o acesso social, ficará sendo gaiato toda a vida, e, com o apontar da virilidade, receberá, como galardão dos seus serviços, o diploma de malandrino. (p.36)

Retrato de criança, historicamente e socialmente datado, ele reproduz a aceitação da adultificação prematura da infância, apontando afinal como modelos virtuosos de vida aqueles que, como dizia o romancista Soeiro Pereira Gomes, nunca foram meninos.

Perante este quadro, perguntamo-nos se o gaiato representa verdadeiramente uma criança, pelo menos tal qual o retratou Latino Coelho, ou se, pelo contrário, ele representa um adulto subevoluído do ponto de vista físico mais do que do ângulo mental. O gaiato não traz até nós nenhuma reacção de infância, ao contrário do Marquês de Fronteira que, adultificado, solta em liberdade incómoda a criança que havia em si.

 

Conclusões

É bem verdade que infância se escreve no plural. Categoria histórica, social e psicológica, a infância e aqueles que dela são portadores, ou antes, que a vivem, apresentam uma considerável variedade de perfis. Sob essa variedade será necessário descobrir o que existe de comum, para além dos delineamentos imprecisos.

Por outro lado, é preciso recordar que estes retratos de crianças não provêm directamente de crianças, senão que foram produzidos por aqueles que já não eram meninos. A história da infância, a história da criança constituem, até certo ponto, histórias de silêncios, de crónicas que ninguém escreveu.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 03.10.00
Aprovado em 20.02.01

 

Rogério Fernandes tem vasta produção sobre história da educação portuguesa, publicada também no Brasil. É professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Participa da Rede de Investigadores em História e Museologia da Infância e da Educação (RIHMIE).