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História, Ciências, Saúde-Manguinhos - Starvation, eugenics and the development of nutrition in Pernambuco according to Gilberto Freire's, Josué de Castro's and Nelson Chaves' analyses

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História, Ciências, Saúde-Manguinhos

Print version ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.8 no.2 Rio de Janeiro July/Aug. 2001

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702001000300002 

 

 

Fome, eugenia e constituição do campo da nutrição em Pernambuco: uma análise de Gilberto Freyre, Josué de Castro e Nelson Chaves

Starvation, eugenics and the development of nutrition in Pernambuco according to Gilberto Freire's, Josué de Castro's and Nelson Chaves' analyses

 

Versão modificada de capítulo de tese de doutoramento defendida e aprovada em 14 de dezembro de 1999, junto à Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz, sob a orientação de Ricardo Ventura Santos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos

Professor do Departamento de Nutrição,
Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), Campus Universitário — Trindade
88040-900 Florianópolis — SC Brasil
fguedes@floripa.com.br

 

VASCONCELOS, F. de A. G. de: 'Fome, eugenia e constituição do campo da nutrição em Pernambuco: uma análise de Gilberto Freyre, Josué de Castro e Nelson Chaves'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(2): 315-39, jul.-ago. 2001.

O objetivo deste artigo é examinar a contribuição dos estudos de Gilberto Freyre, Josué de Castro e Nelson Chaves, produzidos nas décadas de 1930 e 1940, para o processo de constituição do campo da nutrição em Pernambuco. O estudo procura demonstrar que as temáticas fome e eugenia constituem as categorias centrais que expressam os pontos de tensão e de comunhão das abordagens desses autores pernambucanos, pelo estatuto científico nesse campo do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: fome, eugenia, história da nutrição no Brasil.

 

VASCONCELOS, F. de A. G. de: 'Starvation, eugenics and the development of nutrition in Pernambuco according to Gilberto Freyre's, Josué de Castro's and Nelson Chaves' analyses. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(2): 315-39, July-Aug. 2001.

The purpose of this article is to examine the contribution of the studies Gilberto Freyre, Josué de Castro and Nelson Chaves produced for the development of the Pernambuco nutrition field, from 1930 to 1940. The article attempts to demonstrate that both subjects — starvation and eugenics — are the central categories that express tension and communion in these three authors' approaches to this field of knowledge.

KEYWORDS: starvation, eugenics, the history of nutrition in Brazil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 São um pouco divergentes os marcos emergenciais da nutrição brasileira, conforme a literatura pesquisada. Alguns autores apontam o livro de Eduardo Magalhães, Higiene alimentar, publicado em 1908. Outros, os estudos desenvolvidos, a partir de 1906, por Álvaro Osório de Almeida no campo da fisiologia da alimentação. Entretanto, a existência de estudos anteriores a respeito de doenças carenciais relacionadas à alimentação e de hábitos alimentares da população brasileira, tais como aqueles desenvolvidos pelos médicos Gama Lobo sobre 'avitaminose A' e Nina Rodrigues sobre o consumo de farinha de mandioca, atesta que o interesse por esta temática é bem mais remoto (Maurício, 1964; Castro, 1977; Coimbra et alii, 1982; L' Abbate, 1982; Martins, 1994; Freyre, 1998). Uma outra referência que merece destaque é o estudo desenvolvido por Peregrino Júnior (1941), o qual, ao realizar um resgate histórico da bibliografia sobre a temática, procura identificar os chamados precursores e fundadores do campo da nutrição brasileira.

 

 

Introdução

     À luz de alguns estudos realizados nos últimos vinte anos, podemos afirmar que a emergência da nutrição, como campo específico do saber científico, dentro do cenário mundial, é um fenômeno relativamente recente, característico do início do século XX. Também podemos sustentar que as condições históricas para a constituição desse campo foram estimuladas com o advento da revolução industrial européia, ocorrido no século XVIII (Lilley e Beaudry, 1991; Ypiranga, 1991).
     Para alguns, o estatuto de ciência da nutrição teve início no século XVIII, com as descobertas científicas de Lavoisier sobre o fogo, a combustão, a oxidação, as calorias, o valor calórico dos alimentos e as necessidades alimentares do ser humano; propagou-se com as descobertas do século XIX sobre os elementos químicos que compõem os seres vivos e a natureza e, finalmente, no início do século XX, foi outorgado a partir do descobrimento dos aminoácidos, das proteínas, dos ácidos graxos, das vitaminas e da relação entre alimentação e doença (Mayer, 1980). Para outros, o estatuto de ciência foi sendo adquirido a partir da segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da bacteriologia e as conseqüentes alterações no campo das idéias e da prática médico-sanitária. Entretanto, tal estatuto só foi alcançado na primeira metade do século XX, quando os conhecimentos acumulados sobre a composição dos alimentos e sobre a relação entre dieta e enfermidade, dentro do processo de divisão do trabalho em saúde, exigiam a atuação de um profissional capacitado nesse campo (Lilley e Beaudry, 1991; Ypiranga, 1991).
     Segundo essa linha de raciocínio, no período compreendido entre 1914 e 1918 e nas duas décadas subseqüentes, os novos conhecimentos científicos sobre a alimentação humana propagaram-se entre diversos países, como Inglaterra, França, antiga União Soviética, Japão, Estados Unidos da América, Canadá, Itália, Alemanha, Dinamarca, Holanda, Argentina, México e Brasil, onde foram criados os primeiros centros de estudos e pesquisas, os primeiros cursos para formação de profissionais especialistas e as primeiras agências condutoras de medidas de intervenção em nutrição (Maurício, 1964; Coimbra et alii, 1982; L'Abbate, 1982).
     No Brasil, a emergência do campo da nutrição, seja como disciplina, política social e/ou profissão, tem sido contextualizada no bojo das transformações econômico-político-sociais e culturais que o país vivenciou no decorrer dos anos de 1930 e 1940. Ou seja, a nutrição teria emergido como parte integrante do projeto de modernização da economia brasileira, conduzido pelo chamado Estado Nacional Populista, contexto histórico que delimitou a implantação das bases para a consolidação de uma sociedade capitalista urbano-industrial (Ypiranga, 1981; Coimbra et alii, 1982; L'Abbate, 1982; Vasconcelos, 1999a). Entretanto, é preciso registrar que, desde a segunda metade do século XIX, o saber sobre a alimentação da população brasileira começou a despontar dentro do campo do saber médico, por intermédio das teses apresentadas às duas faculdades de Medicina (Bahia e Rio de Janeiro) existentes até então no país (Coimbra et alii., 1982; Martins, 1994).
     Sendo assim, podemos dizer que, como desdobramento da chamada higiene alimentar,1 área de estudo surgida no interior das faculdades de medicina, a institucionalização acadêmica do campo da nutrição levou quase cem anos para ocorrer. Ao longo desse processo, dentro do conjunto de atores envolvidos com a sua constituição, particularmente entre os chamados médicos nutrólogos, encontram-se aqueles que se integraram ao chamado movimento sanitarista da Primeira República ou que sofreram as suas influências. De acordo com a literatura investigada, nos primeiros anos da década de 1930, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, duas correntes bem definidas e distintas do saber médico confluíram para a constituição do campo da nutrição. Por um lado, aqueles que eram partidários da corrente que chamamos de perspectiva biológica, preocupados essencialmente com aspectos clínico-fisiológicos relacionados ao consumo e à utilização biológica dos nutrientes e influenciados por concepções das escolas de nutrição e dietética norte-americana e de centros europeus. Por outro lado — e em simultâneo —, aqueles que compartilhavam das idéias da corrente que chamamos de perspectiva social, preocupados em especial com aspectos relacionados à produção, à distribuição e ao consumo de alimentos pela população brasileira e influenciados, particularmente, pelas concepções do pioneiro da nutrição na América Latina, o médico argentino Pedro Escudero (Maurício, 1964; Coimbra et alii, 1982; L'Abbate, 1982; Vasconcelos, 1999a).
     Apesar de, hegemonicamente, centralizar-se nesses dois principais pólos urbano-industriais do país, a existência de pesquisas sobre as condições nutricionais da população brasileira fora desse eixo central nos indica a descentralização desse processo para outros estados brasileiros. No caso particular de Pernambuco, observamos que, no decorrer das décadas de 1930 e 1940, esse estado contava com considerável conjunto de estudos realizados por importantes intelectuais envolvidos na história de constituição do campo da nutrição no país, entre os quais destacamos Gilberto Freyre, Jamesson Ferreira Lima, Josué de Castro, Nelson Chaves, Orlando Parahym e Ruy Coutinho. Deles, Freyre é o único não vinculado às correntes de médicos nutrólogos que emergiam naquele período. Entretanto, a abordagem sociológica contida nos seus escritos da época sobre o padrão e os hábitos alimentares da sociedade brasileira nos habilita a incluí-lo nesse rol.
     Neste artigo, a partir de uma breve análise das trajetórias intelectuais de Freyre, Castro e Chaves, ao longo das décadas de 1930 e 1940, procuramos examinar como as temáticas fome e eugenia constituem categorias centrais de suas abordagens, expressando pontos de convergência e de divergência desses autores em torno do processo de constituição do campo da nutrição em Pernambuco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 A respeito da discussão sobre temas como eugenia, raça, movimento sanitarista e construção da nacionalidade brasileira, bem como sobre as (re)leituras que a obra de Freyre tem sofrido a partir da segunda metade da década de 1980, remeto às seguintes entre outras leituras: Araújo (1994); Marques (1994); Lima eHochman (1996); Stepan (1996); Teixeira (1997); Barros (1998); Santos (1998) e Lima (1999).

 

 

 

 

 

 

3 Em nota explicativa, Freyre (1998, p. 81) comenta a respeito dos autores desta classificação das proteínas. Para quem as chamadas proteínas de segunda classe são aquelas de origem vegetal, enquanto as de primeira classe são de origem animal.

 

Freyre: a alimentação em Casa-grande e senzala

     Neto do médico Ulysses Pernambucano de Mello, considerado um pioneiro da psiquiatria social no Brasil (Kelner et alii, 1985), Gilberto Freyre nasceu, em 1900, na cidade do Recife. Aos 17 anos, seguiu para os Estados Unidos, onde obteve o grau de bacharel em artes liberais, especializando-se em ciências políticas e sociais. Em 1922, obteve o título de mestre em ciências políticas, jurídicas e sociais pela Universidade de Colúmbia (Nova York). No período de 1926 a 1930 foi secretário particular do governador de Pernambuco, Estácio Coimbra. Em 1933, publicou o clássico Casa-grande e senzala, cujas sucessivas edições o tornaram internacionalmente conhecido. Em 1946, foi eleito deputado federal por Pernambuco, e participou da Assembléia Constituinte. Em 1948, por intermédio de projeto de lei de sua autoria, foi criado, em Recife, o instituto que originou a atual Fundação Joaquim Nabuco. Em 1949, participou, na qualidade de delegado do governo brasileiro, da Assembléia-Geral das Nações Unidas. Da sua produção intelectual, no decorrer das décadas de 1930 e 1940, além do título já referido, destacamos Sobrados e mucambos (1936); Nordeste (1937); Açúcar (1939); O mundo que o português criou (1940); Região e tradição (1941); Problemas brasileiros de antropologia (1943); Perfil de Euclides da Cunha e outros perfis (1944); Sociologia (1945) e Interpretação do Brasil (1947) (Freyre, 1998).
     Em Casa-grande e senzala, Freyre (1998) realiza o primeiro e mais completo ensaio sociológico sobre o padrão e os hábitos alimentares da sociedade brasileira. A ênfase desse seu estudo é a região onde o patriarcalismo, baseado na monocultura latifundiária e escravocrática da cana-de-açúcar, teve sua mais característica e acentuada expressão — o Nordeste brasileiro, particularmente o estado de Pernambuco. Sendo assim, tomamos esse seu ensaio como objeto de nossa análise. Uma das primeiras constatações a que chegamos, ao lermos essa 34a edição de Casa-grande e senzala, é quão atualizada e sedutora parece permanecer essa obra sexagenária. Ou conforme constatou Araújo (1994, p. 208), referindo-se a Casa-grande e senzala, Sobrados e mucambos e Nordeste, como tais obras "permanecem vivas e em condições de despertar interesse e debate em nossos dias."
     Uma segunda constatação foi localizar, em Casa-grande e senzala, Freyre como um dos introdutores da discussão em torno do aprimoramento eugênico da população (raça) brasileira por meio de uma alimentação racional (nutrição), atribuída a Castro, por alguns autores que investigamos, tais como L'Abbate (1982), Lima (1997) e Magalhães (1997). Ou seja, ao enfatizar o conceito de cultura na discussão sobre a valorização do povo brasileiro, Freyre tornou-se um dos principais interlocutores do debate travado, nas décadas de 1920 e 1930, entre distintas correntes intelectuais brasileiras, a respeito da construção de uma identidade nacional. A abordagem sociocultural sobre o processo de miscigenação contida em Casa- grande e senzala nos parece ser um dos divisores de água (melhor dizendo, de idéias) para a derrocada final do paradigma racial/climático dominante até então. Nesse sentido, houve uma íntima identificação no interior do movimento médico-sanitário brasileiro que procurava afirmação das teses eugênicas, entre elas, a da valorização da raça brasileira (o mestiço) por meio de uma alimentação racional.2
     Vejamos, em linhas gerais, as principais características do padrão de consumo e dos hábitos alimentares da sociedade colonial brasileira, conforme registradas em Casa-grande e senzala. Uma primeira característica que identificamos foi a que chamamos de enfoque etnocultural da abordagem de Freyre. Ou seja, para esse autor, o padrão de consumo e os hábitos alimentares da sociedade colonial brasileira foram produtos do sincretismo alimentar das cozinhas (culinárias) do índio brasileiro, do negro africano e do branco português. Sendo assim, ele procura registrar em Casa-grande e senzala uma série de evidências com o intuito de demonstrar que foi a mistura das cozinhas dessas três raças que constituiu a cozinha mestiça, para ele a autêntica cozinha brasileira. Muito embora percebamos que, ao longo da sua análise, o autor procure atribuir um maior peso à contribuição do escravo africano. Vejamos um dos trechos em que essa perspectiva do autor torna-se evidente:

Para as necessidades de alimentação foram-se cultivando de norte a sul, através dos primeiros séculos coloniais, quase as mesmas plantas indígenas ou importadas. Na farinha de mandioca fixou-se a base do nosso sistema de alimentação. Além da farinha cultivou-se o milho; e por toda parte tornou-se quase a mesma a mesa colonial, com especializações regionais apenas de frutas e verduras: dando-lhe mais cor ou sabor local em certos pontos a maior influência indígena; noutros, um vivo colorido exótico a maior proximidade da África; e em Pernambuco, por ser o ponto mais perto da Europa, conservando-se um equilíbrio entre as três influências: a indígena, a africana e a portuguesa (Freyre, 1998, p. 32).

     Ao longo de várias passagens, Freyre (1998) chama atenção para esses dois produtos nativos — a mandioca e o milho —, particularmente para a farinha de mandioca, que, segundo ele, transformou-se no alimento fundamental do brasileiro. Nessas passagens está sempre presente o confronto entre as farinhas de mandioca e de trigo, uma criativa analogia que esse autor realiza com determinadas antíteses, tais como branco/negro, colonizador/colonizado etc., que se faziam presentes na discussão que, à época, ocorria em torno de temas como eugenia, raça e construção da nacionalidade brasileira. Sendo assim, a farinha de mandioca, considerada um alimento fonte de carboidratos, de proteínas de 'segunda classe',3 pobre em vitaminas e minerais e, portanto, de baixo valor biológico-nutricional, passou a simbolizar o nativo, o mestiço, o mulato, o caboclo brasileiro. Ao passo que a farinha de trigo, também considerada um alimento fonte de carboidratos, mas com proteínas quase de 'primeira classe' (quase nobres), maior teor de vitaminas e minerais e, portanto, superior em valor biológico-nutricional, além de melhor digestibilidade, passou a simbolizar o adventício, o branco colonizador. Nesse sentido, à medida que a farinha de mandioca constituía a base do padrão de consumo alimentar do brasileiro, explicava-se, de certa forma, utilizando os termos de Freyre, as menores 'eficiência' e 'eugenia' do brasileiro em relação ao europeu. O trecho a seguir sintetiza essa questão:

Daí: pela ausência quase completa do trigo entre os nossos recursos ou possibilidades naturais de nutrição, o rebaixamento do padrão alimentar do colonizador português; pela instabilidade na cultura de mandioca abandonada aos índios — agricultores irregulares —, a conseqüente instabilidade do nosso regime de alimentação. Ao que deve se acrescentar a falta de carne fresca, de leite e de ovos, e até de legumes, em várias das zonas de colonização agrária e escravocrata; talvez em todas elas, com a só exceção, e essa mesma relativa, do planalto paulista.

De modo que, admitida a influência da dieta — influência talvez exagerada por certos autores modernos — sobre o desenvolvimento físico e econômico das populações, temos que reconhecer ter sido o regime alimentar do brasileiro, dentro da organização agrária e escravocrata que em grande parte presidiu a nossa formação, dos mais deficientes e instáveis. Por ele possivelmente se explicarão importantes diferenças somáticas e psíquicas entre o europeu e o brasileiro, atribuídas exclusivamente à miscigenação e ao clima (Freyre, op. cit., p. 33).

     A segunda característica que identificamos foi a que chamamos de enfoque econômico-social da abordagem de Freyre. Ou seja, para esse autor, o padrão de consumo e os hábitos alimentares da sociedade colonial brasileira, particularmente da zona da mata açucareira, foram produtos do sistema econômico-social baseado na monocultura latifundiária escravocrática. Vejamos mais uma das passagens, em que essa perspectiva do autor fica bastante clara:

De modo geral, em toda a parte onde vingou a agricultura, dominou no Brasil escravocrata o latifúndio, sistema que viria privar a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca. Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais de nutrição. Os quais, sem serem dos mais ricos, teriam dado para um regime alimentar mais variado e sadio que o seguido pelos primeiros colonos e por seus descendentes, dentro da organização latifundiária e escravocrata (Freyre, op. cit., pp. 32-3).

     A terceira característica identificada foi a que chamamos de enfoque geográfico da abordagem de Freyre. Ou seja, para este autor, determinadas condições físico-geográficas, tais como solo, clima e pluviosidade, contribuíram para a formação do padrão de consumo e dos hábitos alimentares da sociedade colonial brasileira. Um dos trechos em que essa perspectiva do autor aparece é o que segue:

Pode-se generalizar sobre as fontes e o regime de nutrição do brasileiro: as fontes — vegetação e águas — ressentem-se da pobreza química do solo, exíguo, em larga extensão, de cálcio; o regime, quando não peca pela deficiência em qualidade tanto quanto em quantidade, ressente-se sempre da falta de equilíbrio. Esta última situação, geral: inclui as classes abastadas. A deficiência pela qualidade e pela quantidade é e tem sido desde o primeiro século o estado de parcimônia alimentar de grande parte da população. Parcimônia às vezes disfarçada pela ilusão da fartura que dá a farinha de mandioca intumescida pela água.

A pobreza de cálcio do solo brasileiro escapa quase de todo ao controle social ou à retificação pelo homem; as outras duas causas, porém, encontram explicação na história social e econômica do brasileiro — na monocultura, no regime de trabalho escravo, no latifúndio, responsáveis pelo reduzido consumo de leite, ovos e vegetais entre grande parte da população brasileira. São suscetíveis de correção ou de controle (Freyre, op. cit., p. 42).

     Como conseqüência da associação desses três conjuntos de fatores explicativos, etnoculturais, econômico-sociais e geográficos, surgiu, como já apontado nos trechos anteriores, um padrão alimentar brasileiro dos 'mais deficientes e instáveis'. Entretanto, conforme Freyre (op. cit., p. 33) procura destacar, dentro do sistema econômico escravocrata, a população 'melhor alimentada' encontrava-se entre as duas classes antagônicas: os senhores de engenho e os escravos. Senão, vejamos: "É ilusão supor-se a sociedade colonial, na sua maioria, uma sociedade de gente bem alimentada. Quanto à quantidade, eram-no em geral os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Os grandes proprietários de terras e os pretos seus escravos. Estes porque precisavam de comida que desse para os fazer suportar o duro trabalho da bagaceira."
     Por conseguinte, deduz-se, conforme fez Teixeira (1997), que as demais camadas que compunham o tecido social brasileiro dentro do regime econômico patriarcal, em particular a chamada camada de homens livres, constituída essencialmente pelos mestiços ou caboclos, apresentavam um déficit ainda maior de consumo alimentar e, em conseqüência, piores condições nutricionais e sanitárias. Por fim, uma síntese da abordagem de Freyre (op. cit., p. 41) sobre o padrão de consumo e os hábitos alimentares no Brasil colonial encontra-se no trecho a seguir:

A nutrição da família colonial brasileira, a dos engenhos e notadamente a das cidades, surpreende-nos pela sua má qualidade: pela pobreza evidente de proteínas de origem animal e possível de albuminóides em geral; pela falta de vitaminas; pela de cálcio e de outros sais minerais; e, por outro lado, pela riqueza certa de toxinas. O brasileiro de boa estirpe rural dificilmente poderá, como o inglês, voltar-se para o longo passado de família na certeza de dez ou 12 gerações de avós bem-alimentados de bifesteque e legumes, de leite e ovos, de aveia e frutas a lhe assegurarem de longe o desenvolvimento eugênico, a saúde sólida, a robustez física, tão difíceis de ser perturbadas ou afetadas por outras influências sociais quando predomina a da higiene da nutrição.

 

4 Na tentativa de melhor precisar a origem dessa peleja acadêmica entre os dois autores, consultamos junto ao acervo da Biblioteca Nacional um exemplar da primeira edição de Casa-grande e senzala (Freyre, 1933), no qual constatamos que as críticas feitas por Freyre a Castro já se encontram nele contidas. Vide, por exemplo, as páginas 52 e 65 da respectiva edição.

 

 

 

     Esses dois últimos trechos citados, conforme veremos adiante, foram utilizados por Castro (1980) para rebater as críticas que lhe foram dirigidas por Freyre em Casa-grande e senzala. Portanto, devemos examinar com vagar essas críticas. Observamos que elas aparecem como notas explicativas, nas quais Freyre, além de procurar defender-se de possíveis interpretações equivocadas de sua obra, reclama para si a primazia sobre determinadas abordagens. Por seus conteúdos e pelas datas das referências apontadas, obviamente entendemos que algumas tratam-se de atualizações à primeira edição dessa sua obra.4 Uma delas refere-se à tese de livre-docência para a cátedra de fisiologia da Faculdade de Medicina do Recife, defendida por Castro, no ano de 1932. Disse Freyre (op. cit., p. 82) a respeito:

Inteiramente errado, a nosso ver, o sr. Josué de Castro no seu trabalho ... — no qual chega, aliás, do ponto de vista fisiológico e através da técnica mais recente na sua especialidade, às mesmas conclusões gerais que o autor deste ensaio, pelo critério sociológico e pela sondagem dos antecedentes sociais do brasileiro, isto é, "muitas das conseqüências mórbidas incriminadas aos efeitos desfavoráveis do nosso clima são o resultado do pouco caso dado aos problemas básicos do regime alimentar" — quando considera os alimentos ricos de hidratos de carbono os "de aquisição mais barata pela sua abundância natural, num país agrícola como o nosso". "A alimentação intuitiva, habitual, das classes pobres, trabalhadoras", acrescenta, "está, sob este ponto, de acordo com os fundamentos fisiológicos". Procuramos indicar neste ensaio justamente o contrário: que a monocultura sempre dificultou entre nós a cultura de vegetais destinados à alimentação...

     Observa-se nessa passagem que, apesar de reconhecer que Castro chegou às mesmas conclusões gerais de seu estudo, Freyre procurou enfatizar as diferenças existentes entre os métodos e os instrumentos utilizados por ambos. Ou seja, Castro utilizou-se do método (ponto de vista) fisiológico e da técnica de inquérito alimentar — recente aquisição da especialidade médica —, enquanto Freyre empregou o método (critério) sociológico e a sondagem dos antecedentes sociais. Isso nos faz atentar para a demarcação de fronteiras de competência entre as especialidades que o sociólogo Freyre procurava apontar. E se acrescentarmos que, àquela altura, tanto Castro como Freyre participaram do processo de criação da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, talvez estejamos localizando nesse fato a origem das divergências existentes entre eles (Coimbra et alii, 1982; Barros, 1985).
     De fato, parece-nos que a abordagem sociológica que Freyre introduziu, no início da década de 1930, sobre o padrão e os hábitos alimentares da sociedade brasileira, enfocando particularmente seus aspectos socioculturais, teve forte influência sobre parte dos cientistas brasileiros que participavam do processo de constituição do campo da nutrição — os médicos nutrólogos. A recíproca, a meu ver, também é verdadeira. Sendo assim, observamos que tanto Casa-grande e senzala como outras obras desse autor, sobretudo Nordeste e Açúcar, aparecem quase que como referências obrigatórias nas publicações posteriores de seus conterrâneos e contemporâneos aqui analisados.

Castro: a fome das classes operárias no Recife

     Em 1929, aos 21 anos de idade, após concluir o curso de medicina da Universidade do Brasil (UB), o pernambucano Josué de Castro retornou à cidade do Recife. Entre 1930 e 1935, dividiu-se entre o exercício da medicina (endocrinologia e nutrição), a docência de fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife e a publicação dos seus primeiros escritos. Em 1932, realizou a pesquisa As condições de vida das classes operárias no Recife, uma investigação baseada na metodologia de orçamento e padrão de consumo alimentar entre quinhentas famílias de três bairros operários dessa cidade. Os resultados desse estudo tiveram ampla divulgação nacional, provocando a realização de estudos similares, até mesmo daquele que serviu de base para a regulamentação da lei do salário mínimo e da formulação da chamada ração essencial mínima, estabelecida por intermédio do decreto-lei nº 399, de 30 de abril de 1938. Em 1935, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde sua atuação localizou-se ora nos espaços acadêmico-científicos, ora nos da tecnoburocracia estatal e/ou no âmbito de distintas organizações e entidades civis, destacando-se a idealização do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), em 1940; a criação e direção do Serviço Técnico de Alimentação (Stan), no período de 1942 a 1944; a criação da Comissão Nacional de Alimentação (CNA), em 1945; a criação e direção do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil (Inub), em 1946; a criação e direção do periódico científico Arquivos Brasileiros de Nutrição, em 1944; e a fundação da Sociedade Brasileira de Nutrição (SBN) em 1942 (Linhares, 1980; L'Abbate, 1982; Coimbra et alii, 1982).
     Em sua trajetória intelectual nas décadas de 1930 e 1940, destacamos a edição dos livros: O problema fisiológico da alimentação no Brasil (1932), O problema da alimentação no Brasil (1934), Alimentação e raça (1935), Documentário do Nordeste (1937), Alimentação brasileira à luz da geografia humana (1937), Fisiologia dos tabus (1938), Geografia humana (1939) e Geografia da fome (1946).
     De acordo com Castro (1980, pp. 139-48), à época da realização do inquérito As condições de vida da classe operária no Recife, essa cidade possuía cerca de setecentos mil habitantes, dos quais aproximadamente 230 mil viviam nos chamados mocambos, localizados nos mangues e nos arredores da cidade, denotando a precocidade dos processos de urbanização desordenada da cidade e de marginalização de significativa parcela de sua população. E que isso era fruto de dois grupos de causas: "as secas periódicas do sertão nordestino e os salários miseráveis das zonas das usinas". Assim, os principais achados do inquérito dietético realizado em 1932 revelaram que: 1) a dieta era quase exclusivamente formada de farinha com feijão, charque, café e açúcar, denotando uma 'terrível monotonia' alimentar, pela falta de variedade dos alimentos que a compunham; 2) o consumo de leite e frutas, em quantidades 'irrisórias', foi verificado em apenas 19% e 16% das famílias, respectivamente, significando que 80% da população não consumia quase nenhum alimento do grupo dos 'protetores'; 3) o consumo calórico médio verificado foi de 1.645 calorias diárias, muito aquém das necessidades energéticas diárias de um adulto normal da região, estabelecidas em 2.640 calorias; 4) o consumo de carboidratos era proporcionalmente excessivo, em detrimento do baixo consumo de proteínas, cuja média foi de 62 gramas diários, sobretudo daquelas de origem vegetal — oriundas do feijão, milho e da farinha de mandioca; 5) o baixo consumo de lipídios, correspondendo a cerca de 13 gramas diárias, simbolizava também a deficiência de vitaminas lipossolúveis da dieta; e 6) o consumo de minerais, particularmente cálcio e ferro, e de vitaminas hidrossolúveis também encontrava-se muito abaixo das recomendações nutricionais.
     Com base nesses achados, entre as conclusões por ele apresentadas, destacamos a afirmação de que:

Diante desta exposição fica evidenciada a péssima qualidade da alimentação operária, sendo seu regime impróprio sob todos os aspectos. Só há uma maneira de alimentar-se pior do que esta: é não comer nada. É por isto que essa gente não fala em alimentar-se, mas em enganar a fome. Infelizmente a fome não se deixa enganar, apenas ilude-se sua sensação consciente, mas na intimidade profunda de cada célula perduram indefinidamente os seus efeitos... (Castro, 1959a, pp. 87-8).

     Posteriormente, comentando a respeito do impacto da divulgação dos dados revelados por esse inquérito, diz Castro (1980, p. 139):

Outros inquéritos realizados posteriormente vieram, no entanto, confirmar as nossas conclusões e remover a desconfiança ingênua, em face de nossas afirmações, dos que viviam até então mergulhados no seu ponto de vista lírico — de que não havia em nenhuma parte do Brasil gente morrendo de fome. O inquérito viera demonstrar exatamente o contrário: que, pelo menos naquela região do Nordeste açucareiro, do que mais se morria era de fome. Das conseqüências da fome crônica em que vivem há séculos as populações regionais.

     Após comentar sobre os inquéritos posteriores que corroboraram os alarmantes resultados do seu estudo, Castro começa a discutir sobre as conseqüências daquelas precárias condições alimentares para as populações nordestinas, contrapondo-se a Freyre. As críticas que ele faz sobre as concepções do autor de Casa-grande e senzala são abertas e incisivas. De acordo com Castro (1980, p. 145), Freyre teria afirmado que, na região do Nordeste açucareiro, "os mais bem alimentados sempre foram o senhor de engenho e o escravo, e que o senhor alimentava bem o escravo para que ele produzisse mais". Utilizando-se de um estudo realizado por outro contemporâneo — Ruy Coutinho — sobre a alimentação e o estado nutricional do escravo no Brasil, Castro (op. cit., pp. 145-8) procura demonstrar que, além dos interesses econômicos subjacentes na ação do senhor de engenho em "abastecer" o escravo de maior teor energético ("maiores quantidades de combustível"), não havia a preocupação com o fornecimento dos "alimentos protetores", responsáveis pelos "reparos" e manutenção da "máquina de combustão", fazendo com que as senzalas fossem o espaço de "afecções nutritivas, avitaminoses, tuberculose e tantos outros males habituais". Nesse sentido, fez a seguinte crítica:

A rigor, o sociólogo não deveria escrever "os mais bem alimentados", mas os que comiam maiores quantidades de alimentos, o que é bem diferente. São afirmações como esta destituídas de todo fundamento, ao lado de uma impropriedade vocabular que denuncia o desconhecimento, o mais completo, do autor, dos assuntos de alimentação, que tornam a obra de Gilberto Freyre uma obra destituída de qualquer valor científico. Quando um sociólogo ignora que proteína e albuminóides vêm a ser a mesma coisa e cai na pachecada de escrever que a nutrição da família colonial brasileira é de má qualidade "pela pobreza evidente de proteínas e possível de albuminóides"..., não se pode mais levar a sério a sua obra científica. Porque a verdade é que esta ignorância lapidar daria para reprovar qualquer aluno secundário que estivesse fazendo seu exame de história natural, de química ou mesmo de economia doméstica.

     Retornando à leitura de Casa-grande e senzala, vamos observar nesta passagem que Freyre (1998, p. 44), implicitamente, contra-argumenta essa concepção de Castro:

Cremos poder-se afirmar que na formação do brasileiro — considerada sob o ponto de vista da nutrição — a influência mais salutar tem sido a do africano: quer através dos valiosos alimentos, principalmente vegetais, que por seu intermédio vieram-nos da África, quer através do seu regime alimentar, melhor equilibrado do que o do branco — pelo menos aqui, durante a escravidão. Dizemos aqui, como escravo, porque bem ou mal os senhores de engenho tiveram no Brasil o seu arremedo de taylorismo, procurando obter do escravo negro, comprado caro, o máximo de esforço útil e não simplesmente o máximo de rendimento.

Da energia africana ao seu serviço cedo aprenderam muitos dos grandes proprietários que, abusada ou esticada, rendia menos que bem conservada: daí passaram a explorar o escravo no objetivo do maior rendimento, mas sem prejuízo da sua normalidade de eficiência. A eficiência estava no interesse do senhor conservar no negro — seu capital, sua máquina de trabalho, alguma coisa de si mesmo: donde a alimentação farta e reparadora que Peckolt observou dispensarem os senhores aos escravos no Brasil.

     Voltando à leitura da obra de Castro (1980, pp. 147, 146), observamos que em Geografia da fome, continuando a discorrer sobre a dieta das classes operárias no Recife, ele introduz a polêmica discussão acadêmica acerca da carência protéica da dieta e suas manifestações orgânicas sobre o nordestino da zona da mata, a qual irá ressurgir a partir da década de 1960, nos escritos de Chaves. Sendo assim, ele escreveu:

A primeira manifestação clara de carência protéica é o crescimento lento e precário do homem do brejo nordestino. São as populações desta zona, na maioria, formadas de indivíduos de estatura abaixo do normal, rapazes de 15 anos parecendo meninos de oito. ... Embora se possa atribuir tal polarização biotipológica a fatores de várias categorias, desde os hereditários, ligando o fato à fixação racial do tipo negróide, de descendentes de negros atarracados, baixos e fortes, escolhidos a dedo na costa d'África para o árduo trabalho dos engenhos, até o da seleção condicionada pelo gênero de vida, não resta dúvida de que a falta de proteínas colabora nesta tendência ao aparecimento de indivíduos de estatura insuficiente, à hipotrofia geral, à fixação antropológica desse tipo mirrado na população, chamada impropriamente de raquítica. Quando mais acentuada a carência protéica, surgem as perturbações tróficas, com tendência aos edemas.

     Ao finalizar sua análise sobre as conseqüências da insuficiência energética da dieta das classes operárias no Recife, ele reafirma a "tese do mal de fome e não de raça", numa forma de interlocução com os cientistas de outros campos disciplinares que, à época, procuravam desfocar da questão biológica para a questão cultural o preconceito de 'meio' e de 'raça' que se tinha sobre o povo brasileiro. Dessa forma, ele argumenta:

Com a abolição da escravatura, os negros e os mestiços saídos das senzalas, ficando com a alimentação a cargo dos seus salários miseráveis, começaram por diminuir as quantidades de alimentos de sua dieta, e já não dispunham nem de combustível suficiente para produzir o trabalho que antes realizavam. Diminuíram, então, o seu rendimento para equilibrar o déficit orgânico, sendo esta diminuição tomada pelos patrões mais reacionários como um sinal de preguiça consciente, de premeditada rebeldia do negro liberto contra o regime feudal da economia açucareira. A verdade é que a moleza do 'cabra de engenho', a sua fatigada lentidão não é um mal de raça, é um mal de fome. É a falta de combustível suficiente e adequado à sua máquina, que não lhe permite trabalhar senão num ritmo ronceiro e pouco produtivo.

     Portanto, para Castro, a suposta reduzida capacidade de trabalho (produtividade) das classes operárias da zona açucareira do Nordeste brasileiro, que não conseguiam acompanhar o ritmo muscular dos trabalhadores da região Sul do país, ou mesmo da zona do sertão nordestino — identificadas como regiões de melhor alimentação —, era uma das primeiras manifestações diretas da insuficiente ingestão calórica dessa população. Esse argumento — extrapolado posteriormente para o trabalhador brasileiro como um todo — constituiu um importante instrumento de legitimidade das políticas sociais implantadas no país, a partir da década de 1940.

Chaves: a subalimentação no Nordeste brasileiro

     Em 1930, aos 24 anos de idade, Nelson Chaves, natural do município de Água Preta, localizado na zona da mata-sul de Pernambuco, diplomou-se médico pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1931, retornou à cidade do Recife, onde, entre 1932 e 1941, exerceu, em sua clínica particular, atividades médicas na especialização de endocrinologia e nutrição. Em 1934, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade do Recife como professor assistente da cátedra de clínica terapêutica. Em 1935, consagrou-se livre-docente dessa mesma cátedra e, em 1943, da cátedra de fisiologia. No período de 1940 a 1943, exerceu o cargo de diretor-geral do Departamento de Saúde Pública de Pernambuco. Em 1949, assumiu o cargo de secretário de Saúde e Assistência Social do Estado de Pernambuco, por ocasião do governo de Barbosa Lima Sobrinho (Coêlho, 1983; Costa, 1995a).
     A trajetória intelectual de Chaves teve início no ano de 1932, com a publicação de seus três primeiros artigos científicos — três estudos de casos clínicos sobre cretinismo endêmico, hipertireoidismo e artrite pulmonar — em periódicos editados em Recife. A primeira publicação em formato de livro data de 1935, tendo como título Tratamento médico do hipertireoidismo. No mapeamento de sua produção científica, no período de 1932 a 1949, foram registrados 41 títulos de sua autoria. Entre 1932 e 1944, observa-se que suas publicações ocorrem exclusivamente no campo da endocrinologia e/ou fisiologia, perfazendo um total de 21 de todos os títulos do período em apreço. O primeiro título em que aparece uma abordagem social da questão nutricional nordestina data de 1946, coincidentemente, ano da primeira edição do clássico de Castro, Geografia da fome. Em 1947, foram publicados os dois primeiros artigos em periódico editado em outro estado do país, ambos descrevendo as condições de subalimentação no Nordeste brasileiro. Em 1948, foi publicada sua primeira produção no campo da nutrição básica e experimental, abordando a questão do uso da mucunã vermelha (Dioclea grandiflora Benth) na nutrição humana. Temática que constituiu o estopim que propiciou a explicitação das divergências político-ideológico-intelectuais entre Chaves e Castro (Costa, 1995a; 1995b).
     A leitura das suas publicações desse período nos defrontou com importantes constatações. Uma das primeiras é que nessas publicações, em comunhão com outros cientistas da época, a exemplo de Castro e Freyre, Chaves está sempre procurando reafirmar a ênfase da alimentação racional sobre a dimensão racial/climática, como enfoque explicativo da qualidade de vida do povo brasileiro. Isso pode ser observado nesta passagem, em que esse autor realiza uma revisão dos inquéritos alimentares e de outros estudos realizados na região:

As condições desfavoráveis em que se encontra o povo brasileiro, outrora atribuídas aos fatores raça e clima, hoje estão claramente sob a dependência de fatores econômicos e sociais, entre os quais ressalta, como de primeira importância, a subalimentação. Já dizia são Tomás de Aquino que "para se praticar a virtude precisa-se, pelo menos, de um mínimo bem-estar fisiológico, cuja base reside numa alimentação pelo menos suficiente" (Chaves, 1948b, pp. 3-4).

     Concepção que também pode ser observada em Alimentação e saúde pública, em que Chaves (1948a, pp. 4-5) aborda em um ensaio epidemiológico, baseado em dados empíricos (estatísticas vitais), a interdependência entre subalimentação, mortalidade infantil, tuberculose, retardo do crescimento e cárie dentária. A presença da chamada 'tese do mal de fome e não de raça' é claramente expressa neste trecho:

A subalimentação é, sem dúvida, uma causa indireta, porém de maior importância na elevação dos coeficientes de mortalidade infantil, natimortalidade, retardamento do crescimento, mortalidade pela tuberculose, cárie dentária etc. Além disto, os estados carenciais, beribéri, a pelagra, a incidência das verminoses lhe estão diretamente ligados.

...Outrora tudo foi atribuído ao clima e à raça, hoje porém, depois que o conceito de hierarquia das raças, da inferioridade do mestiço, da mística de raças superiores e mais capazes, caiu por terra diante dos conhecimentos atuais sobre genética e sobre o conceito de raça, os fatores econômico-sociais passaram a ocupar o primeiro plano e despertar a atenção dos estudiosos.

     Uma segunda constatação a que chegamos é que as publicações desse período também compartilham elementos da chamada teoria do círculo vicioso da pobreza/doença, identificados nas obras de outros autores da época, a exemplo de Castro. O trecho a seguir é bastante ilustrativo da identificação do autor com esse referido enfoque explicativo:

O baixo salário com que vive a grande maioria dos nossos trabalhadores e o baixo nível de educação tornam impraticável alimentação adequada, mesmo que haja a melhor propaganda. A falta de educação, o afrouxamento moral, a falta de noção de responsabilidade são fatores de deficiência de produção, a qual abrange também os alimentos que constituem a fonte de energia para o trabalho. Há evidentemente um círculo vicioso que ameaça a nacionalidade. O homem produz pouco porque se alimenta mal e é doente, e, pelo seu nível educacional, tem um âmbito de aspirações muito reduzido e, produzindo pouco, não dispõe de quantidades suficientes de alimentos (Chaves, 1948b, p. 7).

     Por último, outra constatação a que chegamos diz respeito ao conteúdo crítico-político que suas publicações passam a apresentar no pós-1945. Esse posicionamento do autor pode ser explicado, por um lado, pelo próprio espírito de redemocratização que a sociedade brasileira vivenciava nesse contexto caracterizado pelo fim da ditadura do Estado Novo (1937-45). Por outro lado, também pode expressar o desencadeamento dos conflitos travados entre Chaves e Castro pela hegemonia da autoridade científica no campo da nutrição em saúde pública. Sendo assim, é preciso atentar para o fato de que, ao longo dos anos de 1930 e 1940, Castro ocupou os mais elevados postos da agenda pública do Estado brasileiro, no campo da nutrição que se constituía. Enfim, o trecho a seguir reforça elementos do espírito de comunhão e de dissensão existentes na trajetória intelectual desses dois autores:

Os nordestinos são autênticos representantes da fome. Nas regiões sertanejas, nas grandes secas, observa-se um verdadeiro desfile de rostos humanos consumidos pela doença e pela fome. Nas capitais nordestinas está à mostra gente fraca, mirrada, doente, na exibição de um verdadeiro quadro de miséria. As paradas de operários, obrigadas pelas polícias, durante a época do Estado Novo, em homenagem aos figurões políticos, eram verdadeiras paradas de fome. Também os desfiles de colegiais magros, desnutridos, doentes, militarizados, constituíam tristes exibições demagógicas em prejuízo da própria mocidade. A marcha forçada para crianças desnutridas acarretava a destruição das minguadas reservas alimentares. Acontece que as paradas eram feitas justamente na época em que forças estrangeiras estacionavam nas bases militares de Recife e Natal, e assistiam à exposição de nossa miséria (idem, ibidem, pp. 4-5).

Chaves versus Castro: a relação entre o biológico e o social na constituição do campo da nutrição

     Ao longo da investigação, nos deparamos com alguns pontos de tensão existentes entre Chaves e Castro, os quais tanto auxiliaram a melhor compreensão das nossas questões iniciais, como indicaram a necessidade do seu aprofundamento para melhor elucidação. Um desses pontos diz respeito à aludida divergência existente entre eles, em torno da utilidade da mucunã vermelha na alimentação do sertanejo nordestino, conforme relatada por Barbosa Lima Sobrinho no prefácio do livro Fome, criança e vida (Chaves, 1982). Uma das tentativas de aprofundar essa questão foi rastrear as cronologias desses dois cientistas, procurando observar os seus pontos de convergência, de especificidades e de distanciamento. Entre esses pontos observados nas duas trajetórias, podemos ressaltar o nítido pertencimento dos primeiros escritos de Castro à vertente de análise do campo da nutrição que chamamos de perspectiva social. Ao mesmo tempo, podemos apontar a exclusiva identificação dos primeiros escritos de Chaves à vertente que chamamos de perspectiva biológica. Portanto, se a questão da divergência entre os dois teve como epicentro o domínio científico sobre as propriedades nutricionais da mucunã vermelha, podemos datá-la entre 1946 e 1949. Ou seja, a primeira referência que Castro fez sobre as pesquisas com essa leguminosa exótica do sertão nordestino apareceu, em 1946, na primeira edição de Geografia da fome, quando, ao mapear a fome e as estratégias de sobrevivência utilizadas nos longos períodos de estiagem da região, ele aponta um estudo realizado, em 1888, por Rodolfo Marcos Teófilo. Na edição de Geografia da fome (1980, p. 224) que consultamos, ele faz referência às pesquisas realizadas no Inub, que conduziram à seguinte conclusão sobre a mucunã vermelha: "Trata-se, pois, de uma leguminosa de alto valor nutritivo e atóxica, que, considerando sua extraordinária resistência aos períodos de seca, deveria ser plantada no sertão "como um valioso recurso para combate à fome nos períodos de calamidade."
     Em Geografia da fome, pelo menos, não há referência nem críticas às pesquisas sobre a mucunã vermelha desenvolvidas por Chaves. Entretanto, na seqüência dos passos trilhados pela leitura do texto Novas pesquisas sobre a mucunã, publicado em uma segunda edição de Documentário do Nordeste (Castro, 1959b, p. 210), o próprio Castro nos esclareceu um pouco mais sobre essa polêmica:

Estes estudos sobre a mucunã provocaram vivos debates que, infelizmente, nem sempre se mantiveram no campo científico. Alguns procuraram levá-los ao terreno pessoal, como certos comentários publicados no Jornal do Commercio do Recife, em setembro de 1949. De tal modo se desviaram do assunto, fugindo para o campo das ofensas pessoais, estes nossos opositores, que os meus colegas professores da Faculdade Nacional de Filosofia enviaram àquele jornal uma carta de protesto que, pela alta expressão dos seus signatários, julgamos oportuno transcrever.

     A referida carta enviada ao redator do Jornal do Commercio do Recife, em 30 de setembro de 1949, foi subscrita por 45 professores da Faculdade Nacional de Filosofia, na qual Castro ocupava a cátedra de geografia humana. Nela os professores referem-se "às palavras injuriosas pronunciadas pelo sr. Osvaldo Gonçalves Lima acerca das atividades científicas e da probidade profissional do professor Josué de Castro, lavram veemente protesto contra tão insólita atitude e hipotecam ao eminente colega toda a solidariedade" (idem, ibidem, pp. 211, 213). Além dessa carta, também é publicada uma outra de autoria do professor João Cristóvão Cardoso, catedrático de química da Faculdade Nacional de Filosofia, encaminhada ao presidente da Comissão de Estudos Técnicos do Saps, informando o resultado de análise químico-toxicológica de amostra de mucunã vermelha, que "não o autorizava a supor a presença de alcalóides e glucosídios tóxicos".
     As pesquisas desenvolvidas por Chaves e Teodósio foram publicadas em 1948 e 1949. A publicação A mucunã vermelha (Dioclea grandiflora Benth) na nutrição (Chaves et alii, 1948) apresenta os resultados das pesquisas de determinação botânica, análise química e experimental iniciadas em 1946 pelo grupo de cientistas liderados por Chaves. Na seção em que esses autores apresentam a revisão da literatura realizada sobre o assunto, aparecem as críticas aos estudos feitos pelo grupo liderado por Castro. O texto cita a passagem de Geografia da fome em que Castro ressalta o valor nutritivo da mucunã, bem como faz citação de conclusões apresentadas em artigo publicado nos Arquivos Brasileiros de Nutrição. As pesquisas iniciais levaram o grupo a concluir pela não toxicidade da mucunã; entretanto, os resultados do estudo experimental — com a morte de ratos e pombos — apontaram a sua toxicidade. Ao final, concluem que, apesar do elevado teor protéico, a mucunã apresenta um 'medíocre' valor nutritivo, sendo necessária, entretanto, a continuidade dos estudos.
     A publicação A mucunã vermelha na nutrição: novos comentários (Chaves e Lima, 1949, p. 17), entretanto, constitui literalmente uma 'declaração de guerra' entre esses cientistas. As suas 17 páginas foram exclusivamente dedicadas à refutação das consideradas "conclusões precipitadas e improcedentes" tiradas pelo "dr. Josué de Castro" ou pelo "autor de Geografia da fome" (expressões usadas ao longo do texto) acerca da utilização da mucunã na nutrição humana. Em suas conclusões finais, lê-se:

Está suficientemente evidenciado que as proteínas da mucunã são incompletas, que esta leguminosa possui um fator de perturbação capaz de produzir lesões em vários órgãos e até mesmo degeneração gorda do fígado e morte em curto espaço de tempo; que é utilizada como alimento, apenas, em situação de extrema penúria, não tendo nunca se fixado, por seu valor nutritivo para o homem, através dos séculos. Vale acentuar que é comum a utilização de alimentos pelo homem, com base na experiência popular. É o caso, por exemplo, da soja, que, além de numerosas virtudes, possui uma proteína de elevado valor biológico, aproximada das proteínas animais, capaz de manter a vida e promover o crescimento.

Por que utilizar a mucunã, se dispomos, além das proteínas animais, das proteínas do feijão, do trigo, do amendoim, da castanha, do milho etc.? Se devemos intensificar a cultura de alguma leguminosa, essa deverá ser a soja, ouvida naturalmente a opinião autorizada dos agrônomos. Devemos fazer o que fizeram outros povos: aumentar a produção de proteínas animais para que elas possam ser distribuídas ao povo a preços razoáveis. Ele precisa de leite, ovos, carnes e proteínas vegetais de boa categoria, entre elas a soja, algumas ervilhas (já bem estudadas), a castanha, o amendoim etc.

Quanto ao problema do sertão, só será solucionado pelos métodos já sobejamente conhecidos, inclusive a construção de açudes e aproveitamento do São Francisco, para dar estabilidade às culturas, permitindo a produção intensiva de cereais, a criação de gado bovino, caprino etc.

Pobre sertanejo, leva uma vida heróica de lutas contra a natureza e escassez de recursos e o que lhe oferecem é mucunã para comer.

     Continuando o rastreamento da trajetória intelectual de Chaves, percebemos que as críticas dirigidas a Castro começaram a ser sutilmente expressas com a publicação de O problema alimentar do Nordeste brasileiro (Chaves, 1946). Entretanto, foi com a publicação de A subalimentação no Nordeste brasileiro (Chaves, 1948b) que essas críticas tornaram-se explícitas e contundentes, denotando a competição desses agentes sociais pelo estatuto desse novo campo intelectual que estava em construção. Ou seja, além dos pontos semelhantes que esses escritos de Chaves mantêm com a obra clássica de Castro (Geografia da fome), também percebemos pontos conflitantes. Particularmente, os artigos que descrevem as condições alimentares do brasileiro do sertão nordestino (Chaves, 1948b), além de serem os primeiros que apresentaram críticas refutando as conclusões das pesquisas de Castro sobre o valor nutricional da mucunã, contêm críticas sobre outros posicionamentos desse autor, tanto quanto à caracterização nutricional, como à utilização da fatalidade climática das secas como fator explicativo da fome endêmica do sertanejo nordestino.

Conclusão

     O rastreamento da trajetória acadêmica desses autores analisados sinaliza a existência de elementos que contribuíram simultaneamente para a identificação e o distanciamento de suas obras. Antes de apontá-los, talvez fosse interessante atentar para a questão da aproximação e da diferenciação da origem de classe social desses cientistas. Freyre e Chaves vinculavam-se à aristocracia agrária, mantida econômica e politicamente pela monocultura da cana-de-açúcar na zona da mata pernambucana. Castro, por sua vez, descendia de família de agricultor sertanejo que, em função das secas periódicas, migrou para a cidade do Recife, identificando-se com a classe média urbano-industrial emergente. Portanto, o primeiro elemento que apontamos diz respeito ao contexto em que ocorreu o processo de formação intelectual de Freyre, Castro e Chaves. Esses três autores, como vimos, tiveram seus processos de formação profissional fora do território pernambucano e ao longo da década de 1920. Freyre, entre 1917 e 1922, obteve sua graduação e pós-graduação no campo das ciências políticas e sociais nos Estados Unidos da América, sendo particularmente influenciado pelo antropólogo Franz Boas. Castro, em 1929, concluiu o curso médico da Faculdade de Medicina da UB, sendo particularmente influenciado pela nutrologia do argentino Pedro Escudero e pela chamada nova geografia de Vidal de La Blache. Chaves, formado médico, em 1930, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, teve em seu processo de formação as influências da fisiologia/endocrinologia de Álvaro Osório de Almeida, do espanhol Gregório Marañon e do argentino Bernardo Houssay. O segundo elemento que apontamos diz respeito ao contexto em que ocorreu o início do processo de atuação e produção acadêmico-profissional desses três cientistas — o estado de Pernambuco, particularmente a cidade do Recife, nos primeiros anos da década de 1930.
     Em relação às divergências observadas entre Freyre e Castro, nos parece mais sensato afirmar, concordando com estudos anteriores, que coube a Castro a introdução da discussão em torno do "aprimoramento eugênico do povo brasileiro através de uma alimentação racional". Seguindo a trilha apontada por tais estudos, a chamada "tese do mal de fome e não de raça" foi sendo paulatinamente construída e apresentada por Castro, na seqüência das publicações de O problema fisiológico da alimentação no Brasil (1932), O problema da alimentação no Brasil (1934), Alimentação e raça (1935) e Alimentação brasileira à luz da geografia humana (1937). Atualmente, essa tese vem se difundindo entre os estudiosos da nutrição na busca da reconstituição histórica desse campo do saber (L'Abbate, 1982; Lima, 1997; Magalhães, 1997). De fato, observamos que já na introdução da pesquisa As condições de vida das classes operárias no Recife, publicada pela primeira vez, em 1935, como parte do livro Alimentação e raça, encontra-se dela uma primeira versão. Vejamos:

Os modernos antropologistas, através de múltiplas indagações biológicas, chegaram à evidência de que os caracteres de deficiência e de inferioridade de alguns povos, atribuídos outrora a fatores étnicos, à fatalidade racial, são apenas conseqüências diretas de más condições higiênicas e principalmente de uma alimentação má. É esse, precisamente, o nosso caso. Hoje ninguém mais afirma conscientemente que a mestiçagem seja a verdadeira causa da baixa vitalidade do nosso povo. O cruzamento do índio, do negro e do português não gera, por fatal hereditariedade, um mestiço débil, anêmico e raquítico. Se a maioria dos mulatos se compõe de seres estiolados, com déficit mental e incapacidade física, não é por efeito duma tara racial, é por causa do estômago vazio. Não é mal de raça, é mal de fome. É a alimentação insuficiente que não lhe permite um desenvolvimento completo e um funcionamento normal. Não é a máquina que seja de ruim qualidade; e se o seu trabalho rende pouco, ela estanca e pára a cada passo e se despedaça cedo é por falta de combustível suficiente e adequado (Castro, 1959a, pp. 75-6).

     Entretanto, em Casa-grande e senzala, com sua abordagem sociocultural sobre o processo de miscigenação, enfatizando distinções entre influências genéticas (biológicas) e sociais, mais especificamente entre raça e cultura, Freyre introduziu conceitos inéditos na discussão sobre a inferioridade racial do mestiço brasileiro, apontando para a concepção da construção de uma identidade nacional brasileira, a partir da valorização da miscigenação das três raças — o branco, o negro e o índio.
     Em relação à análise das publicações de Chaves no decorrer das décadas de 1930 e 1940, identificamos uma fase inicial, situada no período de 1932 a 1944, voltada exclusivamente para a perspectiva biológica da nutrição, particularmente para o estudo de aspectos fisiológicos e endocrinológicos de indivíduos. A emergência da abordagem social nos estudos de Chaves ocorreu por volta de 1946, cerca de uma década depois, em relação às publicações de Castro e Freyre. A origem da emergência dessa abordagem social, além dos fatores apontados anteriormente, pode estar associada à própria atuação de Chaves como diretor-geral do Departamento de Saúde Pública de Pernambuco no período de 1940 a 1943 e, posteriormente, como secretário de Saúde e Assistência Social do Estado de Pernambuco no período de 1949 a 1951 (Costa, 1995a), cargos que propiciaram e/ou exigiram uma ampliação dos campos de conhecimento e atuação desse cientista, para além das fronteiras da dimensão exclusivamente biológica, característica da fisiologia e da endocrinologia.
     Portanto, ao analisarmos as obras de Freyre, Castro e Chaves, buscando identificar os possíveis pontos de aproximação e de distanciamento existentes em suas abordagens, observamos que todos eles, dentro de determinados limites de envolvimento, compartilhavam da matriz ideológica que, à época, procurava desfocar da questão racial para a questão sociocultural o preconceito racial/climático que se tinha sobre o povo brasileiro, particularmente sobre o processo de mestiçagem no Brasil. Nesse sentido, podemos dizer que esses cientistas pernambucanos integraram-se perfeitamente à categoria mais ampla de intelectuais que, nas décadas de 1930 e1940, imbuíram-se na tortuosa tarefa de construção da nacionalidade brasileira. Nesse mesmo recorte, identificamos a emergência de pontos de tensão entre as abordagens de Freyre e Castro e de Chaves e Castro, que podem ser analisados, de acordo com a concepção estrutural construtivista de Bourdieu (1998; 1994; 1987) sobre a natureza do conhecimento e da prática científica, como fenômenos inerentes à chamada luta simbólica pelo estatuto científico sobre uma determinada área de conhecimento, disciplina ou campo intelectual. Como vimos, nesse momento das trajetórias intelectuais desses cientistas pernambucanos, foram construídos os habitus científicos, teve início o processo de acumulação do capital científico de cada um deles e explicitou-se o embate acadêmico entre eles na demarcação de determinadas áreas ou territórios específicos do campo da nutrição que se constituía em nível nacional. Assim, em Geografia da fome, ao afirmar o caráter não científico que teria a obra de Freyre (1998), por este não ter domínio da linguagem específica dos "assuntos de alimentação" e não usá-la, Castro (1980, pp. 145-6) reclamava para si o estatuto científico em falar e agir legitimamente no campo da nutrição. Já em Casa-grande e senzala, ao apontar que determinadas conclusões sobre os hábitos e o padrão alimentar da população brasileira, às quais Castro teria chegado, eram "inteiramente erradas", Freyre (1998, p. 82) reivindicava o estatuto do método sociológico. Por outro lado, a divergência acadêmica entre Chaves e Castro, iniciada na década de 1940, tendo como alvo a competência científica sobre o conhecimento do valor biológico-nutricional e da utilização da mucunã vermelha na nutrição humana, expressou, de forma bastante nítida, os conflitos existentes entre as duas principais vertentes conformadoras do campo da nutrição em Pernambuco: a biológica e a social (Vasconcelos, 1999a). Enfim, acreditamos que a compreensão dos pontos de tensão identificados entre esses autores não se reduziu aos limites de interesses pessoais e/ou institucionais de natureza científico-epistemológica; faz-se necessário o aprofundamento de suas dimensões político-ideológicas. Além disso, vale ressaltar que a análise dessas e de outras fontes investigadas sugere que a gênese e conformação do campo da nutrição em Pernambuco constituiu um processo complexo, definido sob a influência de diferentes interesses (econômicos, políticos, sociais e, mesmo, científicos) produzidos interna e externamente pela comunidade científica investigada.
     Em síntese, o principal objeto significativo que garantiu identidade às obras analisadas foi o quadro de miséria social do Nordeste brasileiro no contexto analisado. Sendo assim, acreditamos que o "bando de marinheiros — mulatos e cafuzos doentes", oriundos dos sobrados e mocambos brasileiros, que inspiraram a obra de Freyre, "os homens caranguejos dos mangues do Capibaribe", que angustiaram Castro, e "os operários e colegiais desnutridos desfilando nas ruas do Recife, no decorrer do Estado Novo", conforme registrou Chaves, simbolizam os elementos de comunhão existentes nas obras desses autores que nos possibilitaram identificar os anos de 1930 e 1940 como o período de emergência do campo da nutrição em Pernambuco.
     Nas décadas subseqüentes (1950 e 1960), surgiu o contexto que possibilitou a continuidade do confronto das idéias desses cientistas. Com o aparecimento de novos paradigmas e a entrada em cena de novos agentes sociais, observou-se a definitiva institucionalização do campo da nutrição nesse estado brasileiro, processo esse delimitado pela criação do Curso de Nutricionistas (1957), pela fundação do Instituto de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (1962), pelo início dos cursos de especialização em Nutrição em Saúde Pública para médicos (1963) e pelo desenvolvimento das primeiras pesquisas e experiências de intervenção nutricional de caráter populacional na zona da mata pernambucana, todos sob a tutela de Chaves (Costa, 1995a; Vasconcelos, 1999b).

 

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Recebido para publicação em março de 2000.
Aprovado para publicação em dezembro de 2000.