Services on Demand
Article
Indicators
Related links
Share
História, Ciências, Saúde-Manguinhos
Print version ISSN 0104-5970
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.8 no.2 Rio de Janeiro July/Aug. 2001
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702001000300002
Fome, eugenia e constituição do campo da nutrição em Pernambuco: uma análise de Gilberto Freyre, Josué de Castro e Nelson Chaves Starvation, eugenics and the development of nutrition in Pernambuco according to Gilberto Freire's, Josué de Castro's and Nelson Chaves' analyses
Versão modificada de capítulo de tese de doutoramento defendida e aprovada em 14 de dezembro de 1999, junto à Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz, sob a orientação de Ricardo Ventura Santos.
Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos Professor do Departamento de Nutrição, |
|
1 São um pouco divergentes os marcos emergenciais da nutrição brasileira, conforme a literatura pesquisada. Alguns autores apontam o livro de Eduardo Magalhães, Higiene alimentar, publicado em 1908. Outros, os estudos desenvolvidos, a partir de 1906, por Álvaro Osório de Almeida no campo da fisiologia da alimentação. Entretanto, a existência de estudos anteriores a respeito de doenças carenciais relacionadas à alimentação e de hábitos alimentares da população brasileira, tais como aqueles desenvolvidos pelos médicos Gama Lobo sobre 'avitaminose A' e Nina Rodrigues sobre o consumo de farinha de mandioca, atesta que o interesse por esta temática é bem mais remoto (Maurício, 1964; Castro, 1977; Coimbra et alii, 1982; L' Abbate, 1982; Martins, 1994; Freyre, 1998). Uma outra referência que merece destaque é o estudo desenvolvido por Peregrino Júnior (1941), o qual, ao realizar um resgate histórico da bibliografia sobre a temática, procura identificar os chamados precursores e fundadores do campo da nutrição brasileira.
| Introdução À luz de alguns estudos realizados nos últimos vinte anos, podemos afirmar que a emergência da nutrição, como campo específico do saber científico, dentro do cenário mundial, é um fenômeno relativamente recente, característico do início do século XX. Também podemos sustentar que as condições históricas para a constituição desse campo foram estimuladas com o advento da revolução industrial européia, ocorrido no século XVIII (Lilley e Beaudry, 1991; Ypiranga, 1991). |
2 A respeito da discussão sobre temas como eugenia, raça, movimento sanitarista e construção da nacionalidade brasileira, bem como sobre as (re)leituras que a obra de Freyre tem sofrido a partir da segunda metade da década de 1980, remeto às seguintes entre outras leituras: Araújo (1994); Marques (1994); Lima eHochman (1996); Stepan (1996); Teixeira (1997); Barros (1998); Santos (1998) e Lima (1999).
3 Em nota explicativa, Freyre (1998, p. 81) comenta a respeito dos autores desta classificação das proteínas. Para quem as chamadas proteínas de segunda classe são aquelas de origem vegetal, enquanto as de primeira classe são de origem animal.
| Freyre: a alimentação em Casa-grande e senzala Neto do médico Ulysses Pernambucano de Mello, considerado um pioneiro da psiquiatria social no Brasil (Kelner et alii, 1985), Gilberto Freyre nasceu, em 1900, na cidade do Recife. Aos 17 anos, seguiu para os Estados Unidos, onde obteve o grau de bacharel em artes liberais, especializando-se em ciências políticas e sociais. Em 1922, obteve o título de mestre em ciências políticas, jurídicas e sociais pela Universidade de Colúmbia (Nova York). No período de 1926 a 1930 foi secretário particular do governador de Pernambuco, Estácio Coimbra. Em 1933, publicou o clássico Casa-grande e senzala, cujas sucessivas edições o tornaram internacionalmente conhecido. Em 1946, foi eleito deputado federal por Pernambuco, e participou da Assembléia Constituinte. Em 1948, por intermédio de projeto de lei de sua autoria, foi criado, em Recife, o instituto que originou a atual Fundação Joaquim Nabuco. Em 1949, participou, na qualidade de delegado do governo brasileiro, da Assembléia-Geral das Nações Unidas. Da sua produção intelectual, no decorrer das décadas de 1930 e 1940, além do título já referido, destacamos Sobrados e mucambos (1936); Nordeste (1937); Açúcar (1939); O mundo que o português criou (1940); Região e tradição (1941); Problemas brasileiros de antropologia (1943); Perfil de Euclides da Cunha e outros perfis (1944); Sociologia (1945) e Interpretação do Brasil (1947) (Freyre, 1998).
Ao longo de várias passagens, Freyre (1998) chama atenção para esses dois produtos nativos a mandioca e o milho , particularmente para a farinha de mandioca, que, segundo ele, transformou-se no alimento fundamental do brasileiro. Nessas passagens está sempre presente o confronto entre as farinhas de mandioca e de trigo, uma criativa analogia que esse autor realiza com determinadas antíteses, tais como branco/negro, colonizador/colonizado etc., que se faziam presentes na discussão que, à época, ocorria em torno de temas como eugenia, raça e construção da nacionalidade brasileira. Sendo assim, a farinha de mandioca, considerada um alimento fonte de carboidratos, de proteínas de 'segunda classe',3 pobre em vitaminas e minerais e, portanto, de baixo valor biológico-nutricional, passou a simbolizar o nativo, o mestiço, o mulato, o caboclo brasileiro. Ao passo que a farinha de trigo, também considerada um alimento fonte de carboidratos, mas com proteínas quase de 'primeira classe' (quase nobres), maior teor de vitaminas e minerais e, portanto, superior em valor biológico-nutricional, além de melhor digestibilidade, passou a simbolizar o adventício, o branco colonizador. Nesse sentido, à medida que a farinha de mandioca constituía a base do padrão de consumo alimentar do brasileiro, explicava-se, de certa forma, utilizando os termos de Freyre, as menores 'eficiência' e 'eugenia' do brasileiro em relação ao europeu. O trecho a seguir sintetiza essa questão:
A segunda característica que identificamos foi a que chamamos de enfoque econômico-social da abordagem de Freyre. Ou seja, para esse autor, o padrão de consumo e os hábitos alimentares da sociedade colonial brasileira, particularmente da zona da mata açucareira, foram produtos do sistema econômico-social baseado na monocultura latifundiária escravocrática. Vejamos mais uma das passagens, em que essa perspectiva do autor fica bastante clara:
A terceira característica identificada foi a que chamamos de enfoque geográfico da abordagem de Freyre. Ou seja, para este autor, determinadas condições físico-geográficas, tais como solo, clima e pluviosidade, contribuíram para a formação do padrão de consumo e dos hábitos alimentares da sociedade colonial brasileira. Um dos trechos em que essa perspectiva do autor aparece é o que segue:
Como conseqüência da associação desses três conjuntos de fatores explicativos, etnoculturais, econômico-sociais e geográficos, surgiu, como já apontado nos trechos anteriores, um padrão alimentar brasileiro dos 'mais deficientes e instáveis'. Entretanto, conforme Freyre (op. cit., p. 33) procura destacar, dentro do sistema econômico escravocrata, a população 'melhor alimentada' encontrava-se entre as duas classes antagônicas: os senhores de engenho e os escravos. Senão, vejamos: "É ilusão supor-se a sociedade colonial, na sua maioria, uma sociedade de gente bem alimentada. Quanto à quantidade, eram-no em geral os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Os grandes proprietários de terras e os pretos seus escravos. Estes porque precisavam de comida que desse para os fazer suportar o duro trabalho da bagaceira."
|
4 Na tentativa de melhor precisar a origem dessa peleja acadêmica entre os dois autores, consultamos junto ao acervo da Biblioteca Nacional um exemplar da primeira edição de Casa-grande e senzala (Freyre, 1933), no qual constatamos que as críticas feitas por Freyre a Castro já se encontram nele contidas. Vide, por exemplo, as páginas 52 e 65 da respectiva edição.
| Esses dois últimos trechos citados, conforme veremos adiante, foram utilizados por Castro (1980) para rebater as críticas que lhe foram dirigidas por Freyre em Casa-grande e senzala. Portanto, devemos examinar com vagar essas críticas. Observamos que elas aparecem como notas explicativas, nas quais Freyre, além de procurar defender-se de possíveis interpretações equivocadas de sua obra, reclama para si a primazia sobre determinadas abordagens. Por seus conteúdos e pelas datas das referências apontadas, obviamente entendemos que algumas tratam-se de atualizações à primeira edição dessa sua obra.4 Uma delas refere-se à tese de livre-docência para a cátedra de fisiologia da Faculdade de Medicina do Recife, defendida por Castro, no ano de 1932. Disse Freyre (op. cit., p. 82) a respeito:
Observa-se nessa passagem que, apesar de reconhecer que Castro chegou às mesmas conclusões gerais de seu estudo, Freyre procurou enfatizar as diferenças existentes entre os métodos e os instrumentos utilizados por ambos. Ou seja, Castro utilizou-se do método (ponto de vista) fisiológico e da técnica de inquérito alimentar recente aquisição da especialidade médica , enquanto Freyre empregou o método (critério) sociológico e a sondagem dos antecedentes sociais. Isso nos faz atentar para a demarcação de fronteiras de competência entre as especialidades que o sociólogo Freyre procurava apontar. E se acrescentarmos que, àquela altura, tanto Castro como Freyre participaram do processo de criação da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, talvez estejamos localizando nesse fato a origem das divergências existentes entre eles (Coimbra et alii, 1982; Barros, 1985). Castro: a fome das classes operárias no Recife Em 1929, aos 21 anos de idade, após concluir o curso de medicina da Universidade do Brasil (UB), o pernambucano Josué de Castro retornou à cidade do Recife. Entre 1930 e 1935, dividiu-se entre o exercício da medicina (endocrinologia e nutrição), a docência de fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife e a publicação dos seus primeiros escritos. Em 1932, realizou a pesquisa As condições de vida das classes operárias no Recife, uma investigação baseada na metodologia de orçamento e padrão de consumo alimentar entre quinhentas famílias de três bairros operários dessa cidade. Os resultados desse estudo tiveram ampla divulgação nacional, provocando a realização de estudos similares, até mesmo daquele que serviu de base para a regulamentação da lei do salário mínimo e da formulação da chamada ração essencial mínima, estabelecida por intermédio do decreto-lei nº 399, de 30 de abril de 1938. Em 1935, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde sua atuação localizou-se ora nos espaços acadêmico-científicos, ora nos da tecnoburocracia estatal e/ou no âmbito de distintas organizações e entidades civis, destacando-se a idealização do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), em 1940; a criação e direção do Serviço Técnico de Alimentação (Stan), no período de 1942 a 1944; a criação da Comissão Nacional de Alimentação (CNA), em 1945; a criação e direção do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil (Inub), em 1946; a criação e direção do periódico científico Arquivos Brasileiros de Nutrição, em 1944; e a fundação da Sociedade Brasileira de Nutrição (SBN) em 1942 (Linhares, 1980; L'Abbate, 1982; Coimbra et alii, 1982).
Posteriormente, comentando a respeito do impacto da divulgação dos dados revelados por esse inquérito, diz Castro (1980, p. 139):
Após comentar sobre os inquéritos posteriores que corroboraram os alarmantes resultados do seu estudo, Castro começa a discutir sobre as conseqüências daquelas precárias condições alimentares para as populações nordestinas, contrapondo-se a Freyre. As críticas que ele faz sobre as concepções do autor de Casa-grande e senzala são abertas e incisivas. De acordo com Castro (1980, p. 145), Freyre teria afirmado que, na região do Nordeste açucareiro, "os mais bem alimentados sempre foram o senhor de engenho e o escravo, e que o senhor alimentava bem o escravo para que ele produzisse mais". Utilizando-se de um estudo realizado por outro contemporâneo Ruy Coutinho sobre a alimentação e o estado nutricional do escravo no Brasil, Castro (op. cit., pp. 145-8) procura demonstrar que, além dos interesses econômicos subjacentes na ação do senhor de engenho em "abastecer" o escravo de maior teor energético ("maiores quantidades de combustível"), não havia a preocupação com o fornecimento dos "alimentos protetores", responsáveis pelos "reparos" e manutenção da "máquina de combustão", fazendo com que as senzalas fossem o espaço de "afecções nutritivas, avitaminoses, tuberculose e tantos outros males habituais". Nesse sentido, fez a seguinte crítica:
Retornando à leitura de Casa-grande e senzala, vamos observar nesta passagem que Freyre (1998, p. 44), implicitamente, contra-argumenta essa concepção de Castro:
Voltando à leitura da obra de Castro (1980, pp. 147, 146), observamos que em Geografia da fome, continuando a discorrer sobre a dieta das classes operárias no Recife, ele introduz a polêmica discussão acadêmica acerca da carência protéica da dieta e suas manifestações orgânicas sobre o nordestino da zona da mata, a qual irá ressurgir a partir da década de 1960, nos escritos de Chaves. Sendo assim, ele escreveu:
Ao finalizar sua análise sobre as conseqüências da insuficiência energética da dieta das classes operárias no Recife, ele reafirma a "tese do mal de fome e não de raça", numa forma de interlocução com os cientistas de outros campos disciplinares que, à época, procuravam desfocar da questão biológica para a questão cultural o preconceito de 'meio' e de 'raça' que se tinha sobre o povo brasileiro. Dessa forma, ele argumenta:
Portanto, para Castro, a suposta reduzida capacidade de trabalho (produtividade) das classes operárias da zona açucareira do Nordeste brasileiro, que não conseguiam acompanhar o ritmo muscular dos trabalhadores da região Sul do país, ou mesmo da zona do sertão nordestino identificadas como regiões de melhor alimentação , era uma das primeiras manifestações diretas da insuficiente ingestão calórica dessa população. Esse argumento extrapolado posteriormente para o trabalhador brasileiro como um todo constituiu um importante instrumento de legitimidade das políticas sociais implantadas no país, a partir da década de 1940. Chaves: a subalimentação no Nordeste brasileiro Em 1930, aos 24 anos de idade, Nelson Chaves, natural do município de Água Preta, localizado na zona da mata-sul de Pernambuco, diplomou-se médico pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1931, retornou à cidade do Recife, onde, entre 1932 e 1941, exerceu, em sua clínica particular, atividades médicas na especialização de endocrinologia e nutrição. Em 1934, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade do Recife como professor assistente da cátedra de clínica terapêutica. Em 1935, consagrou-se livre-docente dessa mesma cátedra e, em 1943, da cátedra de fisiologia. No período de 1940 a 1943, exerceu o cargo de diretor-geral do Departamento de Saúde Pública de Pernambuco. Em 1949, assumiu o cargo de secretário de Saúde e Assistência Social do Estado de Pernambuco, por ocasião do governo de Barbosa Lima Sobrinho (Coêlho, 1983; Costa, 1995a).
Concepção que também pode ser observada em Alimentação e saúde pública, em que Chaves (1948a, pp. 4-5) aborda em um ensaio epidemiológico, baseado em dados empíricos (estatísticas vitais), a interdependência entre subalimentação, mortalidade infantil, tuberculose, retardo do crescimento e cárie dentária. A presença da chamada 'tese do mal de fome e não de raça' é claramente expressa neste trecho:
Uma segunda constatação a que chegamos é que as publicações desse período também compartilham elementos da chamada teoria do círculo vicioso da pobreza/doença, identificados nas obras de outros autores da época, a exemplo de Castro. O trecho a seguir é bastante ilustrativo da identificação do autor com esse referido enfoque explicativo:
Por último, outra constatação a que chegamos diz respeito ao conteúdo crítico-político que suas publicações passam a apresentar no pós-1945. Esse posicionamento do autor pode ser explicado, por um lado, pelo próprio espírito de redemocratização que a sociedade brasileira vivenciava nesse contexto caracterizado pelo fim da ditadura do Estado Novo (1937-45). Por outro lado, também pode expressar o desencadeamento dos conflitos travados entre Chaves e Castro pela hegemonia da autoridade científica no campo da nutrição em saúde pública. Sendo assim, é preciso atentar para o fato de que, ao longo dos anos de 1930 e 1940, Castro ocupou os mais elevados postos da agenda pública do Estado brasileiro, no campo da nutrição que se constituía. Enfim, o trecho a seguir reforça elementos do espírito de comunhão e de dissensão existentes na trajetória intelectual desses dois autores:
Chaves versus Castro: a relação entre o biológico e o social na constituição do campo da nutrição Ao longo da investigação, nos deparamos com alguns pontos de tensão existentes entre Chaves e Castro, os quais tanto auxiliaram a melhor compreensão das nossas questões iniciais, como indicaram a necessidade do seu aprofundamento para melhor elucidação. Um desses pontos diz respeito à aludida divergência existente entre eles, em torno da utilidade da mucunã vermelha na alimentação do sertanejo nordestino, conforme relatada por Barbosa Lima Sobrinho no prefácio do livro Fome, criança e vida (Chaves, 1982). Uma das tentativas de aprofundar essa questão foi rastrear as cronologias desses dois cientistas, procurando observar os seus pontos de convergência, de especificidades e de distanciamento. Entre esses pontos observados nas duas trajetórias, podemos ressaltar o nítido pertencimento dos primeiros escritos de Castro à vertente de análise do campo da nutrição que chamamos de perspectiva social. Ao mesmo tempo, podemos apontar a exclusiva identificação dos primeiros escritos de Chaves à vertente que chamamos de perspectiva biológica. Portanto, se a questão da divergência entre os dois teve como epicentro o domínio científico sobre as propriedades nutricionais da mucunã vermelha, podemos datá-la entre 1946 e 1949. Ou seja, a primeira referência que Castro fez sobre as pesquisas com essa leguminosa exótica do sertão nordestino apareceu, em 1946, na primeira edição de Geografia da fome, quando, ao mapear a fome e as estratégias de sobrevivência utilizadas nos longos períodos de estiagem da região, ele aponta um estudo realizado, em 1888, por Rodolfo Marcos Teófilo. Na edição de Geografia da fome (1980, p. 224) que consultamos, ele faz referência às pesquisas realizadas no Inub, que conduziram à seguinte conclusão sobre a mucunã vermelha: "Trata-se, pois, de uma leguminosa de alto valor nutritivo e atóxica, que, considerando sua extraordinária resistência aos períodos de seca, deveria ser plantada no sertão "como um valioso recurso para combate à fome nos períodos de calamidade."
A referida carta enviada ao redator do Jornal do Commercio do Recife, em 30 de setembro de 1949, foi subscrita por 45 professores da Faculdade Nacional de Filosofia, na qual Castro ocupava a cátedra de geografia humana. Nela os professores referem-se "às palavras injuriosas pronunciadas pelo sr. Osvaldo Gonçalves Lima acerca das atividades científicas e da probidade profissional do professor Josué de Castro, lavram veemente protesto contra tão insólita atitude e hipotecam ao eminente colega toda a solidariedade" (idem, ibidem, pp. 211, 213). Além dessa carta, também é publicada uma outra de autoria do professor João Cristóvão Cardoso, catedrático de química da Faculdade Nacional de Filosofia, encaminhada ao presidente da Comissão de Estudos Técnicos do Saps, informando o resultado de análise químico-toxicológica de amostra de mucunã vermelha, que "não o autorizava a supor a presença de alcalóides e glucosídios tóxicos".
Continuando o rastreamento da trajetória intelectual de Chaves, percebemos que as críticas dirigidas a Castro começaram a ser sutilmente expressas com a publicação de O problema alimentar do Nordeste brasileiro (Chaves, 1946). Entretanto, foi com a publicação de A subalimentação no Nordeste brasileiro (Chaves, 1948b) que essas críticas tornaram-se explícitas e contundentes, denotando a competição desses agentes sociais pelo estatuto desse novo campo intelectual que estava em construção. Ou seja, além dos pontos semelhantes que esses escritos de Chaves mantêm com a obra clássica de Castro (Geografia da fome), também percebemos pontos conflitantes. Particularmente, os artigos que descrevem as condições alimentares do brasileiro do sertão nordestino (Chaves, 1948b), além de serem os primeiros que apresentaram críticas refutando as conclusões das pesquisas de Castro sobre o valor nutricional da mucunã, contêm críticas sobre outros posicionamentos desse autor, tanto quanto à caracterização nutricional, como à utilização da fatalidade climática das secas como fator explicativo da fome endêmica do sertanejo nordestino. Conclusão O rastreamento da trajetória acadêmica desses autores analisados sinaliza a existência de elementos que contribuíram simultaneamente para a identificação e o distanciamento de suas obras. Antes de apontá-los, talvez fosse interessante atentar para a questão da aproximação e da diferenciação da origem de classe social desses cientistas. Freyre e Chaves vinculavam-se à aristocracia agrária, mantida econômica e politicamente pela monocultura da cana-de-açúcar na zona da mata pernambucana. Castro, por sua vez, descendia de família de agricultor sertanejo que, em função das secas periódicas, migrou para a cidade do Recife, identificando-se com a classe média urbano-industrial emergente. Portanto, o primeiro elemento que apontamos diz respeito ao contexto em que ocorreu o processo de formação intelectual de Freyre, Castro e Chaves. Esses três autores, como vimos, tiveram seus processos de formação profissional fora do território pernambucano e ao longo da década de 1920. Freyre, entre 1917 e 1922, obteve sua graduação e pós-graduação no campo das ciências políticas e sociais nos Estados Unidos da América, sendo particularmente influenciado pelo antropólogo Franz Boas. Castro, em 1929, concluiu o curso médico da Faculdade de Medicina da UB, sendo particularmente influenciado pela nutrologia do argentino Pedro Escudero e pela chamada nova geografia de Vidal de La Blache. Chaves, formado médico, em 1930, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, teve em seu processo de formação as influências da fisiologia/endocrinologia de Álvaro Osório de Almeida, do espanhol Gregório Marañon e do argentino Bernardo Houssay. O segundo elemento que apontamos diz respeito ao contexto em que ocorreu o início do processo de atuação e produção acadêmico-profissional desses três cientistas o estado de Pernambuco, particularmente a cidade do Recife, nos primeiros anos da década de 1930.
Entretanto, em Casa-grande e senzala, com sua abordagem sociocultural sobre o processo de miscigenação, enfatizando distinções entre influências genéticas (biológicas) e sociais, mais especificamente entre raça e cultura, Freyre introduziu conceitos inéditos na discussão sobre a inferioridade racial do mestiço brasileiro, apontando para a concepção da construção de uma identidade nacional brasileira, a partir da valorização da miscigenação das três raças o branco, o negro e o índio. |
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Araújo, Ricardo Benzaquen 1994 Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, editora 34. [ Links ]
Barros, Pedro Motta de 1998 'Alvorecer de uma nova ciência: a medicina tropicalista baiana'. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. IV(3), pp. 411-59. [ Links ]
Barros, Souza 1985 A década de 20 em Pernambuco: uma interpretação. Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife. [ Links ]
Bourdieu, Pierre 1998 O poder simbólico. 2ª ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. [ Links ]
Bourdieu, Pierre 1994 'El campo científico'. Revista de Estudios Sociales de la Ciencia (Redes), 1:2, pp. 131-60. [ Links ]
Bourdieu, Pierre 1987 A economia das trocas simbólicas. 2ª ed., São Paulo, Perspectiva. [ Links ]
Castro, Anna Maria de 1977 Nutrição e desenvolvimento: análise de uma política. Tese de livre-docência, Rio de Janeiro, Instituto de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. (mimeo.) [ Links ]
Castro, Josué de 1980 Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10ª ed. rev., Rio de Janeiro, Antares/Achiamé. [ Links ]
Castro, Josué de 1959a 'As condições de vida das classes operárias no Nordeste'. Em Documentário do Nordeste. 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, pp. 75-91. [ Links ]
Castro, Josué de 1959b 'Novas pesquisas sobre a mucunã'. Em Documentário do Nordeste. 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, pp. 183-213. [ Links ]
Chaves, Nelson 1982 Fome, criança e vida. Recife, Fundação Joaquim Nabuco/ Ed. Massangana. [ Links ]
Chaves, Nelson e Lima, Oswaldo Gonçalves 1949 A mucunã vermelha na nutrição: novos comentários. Recife, Imprensa Oficial. [ Links ]
Chaves, Nelson; Teodósio, Naíde Regueira; Lima, Oswaldo Gonçalves e Pessoa, Waldir 1948 A mucunã vermelha (Dioclea grandiflora Benth) na nutrição. Recife, Laboratório de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife/Serviço Gráfico Jornal do Commercio. [ Links ]
Chaves, Nelson 1948a Alimentação e saúde pública: mortalidade infantil, tuberculose, estatura, cárie dentária. Recife, Imprensa Oficial. [ Links ]
Chaves, Nelson 1948b A subalimentação no Nordeste brasileiro. Recife, Imprensa Oficial. [ Links ]
Chaves, Nelson 1946 O problema alimentar do Nordeste brasileiro: introdução ao seu estudo econômico-social. Recife, Médico-Científica. [ Links ]
Coêlho, Heloisa de Andrade Lima 1983 'Formação do profissional nutricionista na América Latina e no Brasil, com ênfase em Pernambuco'. Revista Alimentação & Nutrição, IV:11, pp. 47-51. [ Links ]
Coimbra, Marcos; Meira, João Francisco Pereira de e Starling, Mônica Barros de Lima 1982 Comer e aprender: uma história da alimentação escolar no Brasil. Belo Horizonte, MEC/Inae. [ Links ]
Costa, Maria Christina Malta de Almeida (org.) 1995a Quarenta anos de nutrição no Nordeste: uma retrospectiva. Recife, Editora Universitária da UFPE. [ Links ]
Costa, Maria Christina Malta de Almeida (org.) 1995b Memória científica do Departamento de Nutrição e das instituições predecessoras (1950-1966). Recife, Editora Universitária da UFPE. [ Links ]
Freyre, Gilberto 1998 Casa-grande e senzala. 34ª ed., Rio de Janeiro, Record. [ Links ]
Freyre, Gilberto 1933 Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt. [ Links ]
Kelner, Salomão; Coutinho, Amaury Domingues; Rocha, Leduar de Assis; Costa, Pedro Veloso; Abath, Guilherme Montenegro e Oliveira, Asdrúbal Carlos de 1985 História da Faculdade de Medicina do Recife 1915-1985. Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Ciências da Saúde. [ Links ]
L'Abbate, Solange 1982 Fome e desnutrição: os descaminhos da política social. Dissertação de mestrado, São Paulo, Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. (mimeo.) [ Links ]
Lilley, Susan A. e Beaudry, Micheline 17-20.9.1991 'La formación del futuro nutricionista-dietista en Canadá'. Em Reunión de Cepandal, 4, Memória. San Juan, Opas/Incap, pp. 87-104. [ Links ]
Lima, Eronides da Silva 1997 Gênese e constituição da educação alimentar: a instauração da norma. Tese de doutoramento, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. (mimeo.) [ Links ]
Lima, Nísia Trindade 1999 Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro, Revan/Iuperj/Ucam. [ Links ]
Lima, Nísia Trindade e Hochman, Gilberto 1996 'Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República'. Em Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz/CCBB, pp. 23-40. [ Links ]
Linhares, Maria Yedda 1980 'Biografia'. Em Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço) (J. Castro). 10ª ed. rev., Rio de Janeiro, Antares/Achiamé, pp. 333-7. [ Links ]
Magalhães, Rosana 1997 Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz. [ Links ]
Marques, V. R. B. 1994 A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas, Editora da Unicamp. [ Links ]
Martins, Thales 1994 'A biologia no Brasil'. Em Fernando de Azevedo (org.), As ciências no Brasil. 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora UFRJ, vol. 2, pp. 233-300. [ Links ]
Maurício, Hélio Vecchio 1964 'Evolução da nutrição e do seu ensino no Brasil'. Arquivos Brasileiros de Nutrição, 20:2, 117-34. [ Links ]
Mayer, André 1980 'Prefácio à nona edição'. Em Geografia da fome (o silema brasileiro: pão ou aço). (J. Castro). 10ª ed. rev., Rio de Janeiro, Antares/Achiamé, pp. 11-7. [ Links ]
Peregrino Júnior, J. 1941 Alimentação: problema nacional. Rio de Janeiro, Officina Graphica Mauá. [ Links ]
Santos, Ricardo Ventura 1998 'A obra de Euclides da Cunha e os debates sobre mestiçagem no Brasil no início do século XX: os sertões e a medicina antropologia do Museu Nacional'. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. V (supl.), pp. 237-53. [ Links ]
Stepan, Nancy Leys 1996 The hour of eugenics: race, gender, and nation in Latin America. Nova York, Cornell University Press. [ Links ]
Teixeira, Luiz Antonio 1997 'Da raça à doença em Casa-grande e senzala'. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. IV(2), pp. 231-43. [ Links ]
Vasconcelos, Francisco de Assis Guedes de 1999a 'Os arquivos brasileiros de nutrição: uma revisão sobre produção científica em nutrição no Brasil (1944 a 1968)'. Cadernos de Saúde Pública, 15:2, pp. 303-16. [ Links ]
Vasconcelos, Francisco de Assis Guedes de 1999b Como nasceram os meus anjos brancos: a constituição do campo da nutrição em saúde pública em Pernambuco. Tese de doutoramento, Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. (mimeo.) [ Links ]
Ypiranga, Lúcia 17-20.9.1991 'El nutricionista en Brasil: contribución para el análisis y proyección de la formación del nutricionista-dietista en la América Latina'. Em Reunión de Cepandal, 4, Memória. San Juan, Opas/Incap, pp. 169-85. [ Links ]
Ypiranga, Lúcia 1981 'Formação profissional do nutricionista: histórico dos cursos e currículos'. Revista Alimentação & Nutrição, II:5, pp. 58-60. [ Links ]
Recebido para publicação em março de 2000.
Aprovado para publicação em dezembro de 2000.