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História, Ciências, Saúde-Manguinhos - Bleeders and surgeons: medical practitioners in nineteenth century Minas Gerais

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História, Ciências, Saúde-Manguinhos

Print version ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.6 no.2 Rio de Janeiro July/Oct. 1999

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59701999000300003 

 

Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX

Bleeders and surgeons: medical practitioners in nineteenth century Minas Gerais

 

 

 

 

 

 

A pesquisa desenvolvida neste artigo faz parte da tese de doutorado A arte de curar e os seus agentes na província de Minas Gerais no século XIX, apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade do Estado de São Paulo (USP), em abril de 1998

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Betânia Gonçalves Figueiredo

Prof. do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Rua Juiz de Fora, 783/401
30180-061 Belo Horizonte — MG Brasil
e-mail: beta@dedalus.lcc.ufmg.br

 

FIGUEIREDO, B. G.: ‘Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, VI(2): 277-91, jul.-out. 1999.

Este artigo tem como objetivo analisar a atuação de práticos, especificamente barbeiros e cirurgiões, ao longo do século XIX, em Minas Gerais. A partir do momento em que cursos de cirurgia e medicina iniciaram suas atividades no Brasil, o confronto com práticos da cura ganhava maior repercussão, o que não impedia a presença de barbeiros e cirurgiões, sem formação acadêmica, atuando na área da saúde.

PALAVRAS-CHAVE: barbeiro, cirurgião, história da medicina, Brasil.

 

FIGUEIREDO, B. G.: ‘Bleeders and surgeons: medical practitioners in nineteenth century Minas Gerais’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, VI(2): 277-91, July.-Oct. 1999.

The article analyzes the work of practitioners, especially bleeders and surgeons, in nineteenth-century Minas Gerais. Once surgical and medical courses had been established in Brazil, conflicts between academically trained medical workers and folk practitioners intensified. Bleeders and surgeons with no academic training nevertheless remained active in the health area.

KEYWORDS: bleeder, surgeon, history of medicine, Brazil.

 

As nojentas sanguessugas ficavam expostas em vidros, na vitrine da barbearia do sr. Moura. Os médicos pediam-nas e o sr. Moura enviava. Eram colocadas nos doentes, na parte onde deveria ser tirado o sangue. Agarravam-se à pele, geralmente do braço, pernas, nádegas, ou costas. Chupavam o sangue e se intumesciam. Quando fartas do repasto hemofágico, soltavam-se. Se fosse necessário, punham-se outras no mesmo local, para tirar mais sangue. ...
As sanguessugas já cheias eram depositadas em água e soltavam o sangue.
E estavam prontinhas para novas aplicações. Uns médicos preferiam sanguessugas, outros, ventosas sarjadas
(Andrade, 1982, p. 233).

 

    Aqueles que possam estar imaginando que esta citação data de séculos passados enganam-se. A referência é Belo Horizonte no início deste século. O sr. Moura foi um barbeiro conhecido no início do século em Belo Horizonte e descrito como "muito simpático, de cavanhaque e cartolinha, que criava as sanguessugas e as aplicava para sangria. Tinha isso anunciado no jornais" (idem, ibidem). Além de se ocupar em fazer as barbas e cortar os cabelos de seus clientes, prestava o serviço de alugar as sanguessugas para médicos e clientes em geral. O sr. Moura atuava na cidade, em 1900, e, provavelmente, era o único a desenvolver tais serviços e atividade comercial.
    Se acompanharmos a explicação dada para o verbete ‘barbeiro’ nos dicionários que circulavam no século XIX, encontraremos: "Homem que faz as barbas e as raspa, corta, ou apara. Há barbeiros de lanceta, ou sangradores. Outros dantes consertavam as espadas, limpando-as, aliás alfagemes" (Moraes Silva e Freire, 1922).
    No Grande Dicionário Português ou Thesouro da língua portuguesa do frei Domingos Vieira, de 1871, as atividades do barbeiro continuavam divididas em três áreas, como no dicionário de Moraes Silva e Freire: o fazer as barbas e cortar os cabelos; o barbeiro de lanceta, sangrador, e o barbeiro de espadas. Hoje não temos dúvidas em entender o barbeiro como aquele que faz as barbas e corta os cabelos, e o sentido do barbeiro de lanceta e barbeiro de espadas já ficou lá pelas calendas gregas. Mas, ao que tudo indica, a atividade do barbeiro de lanceta ou sangrador perdurou até o início deste século.
    No que se refere às sanguessugas, o sr. Moura responsabilizava-se apenas por atender às solicitações dos médicos e clientes, criando e alugando as "bichas" para fins de sangria. Representava uma figura intermediária entre o barbeiro de lanceta, que fazia as vezes de cirurgião e médico, e o barbeiro como conhecemos hoje em dia.
    Se considerarmos a atualização do Formulário e guia prático de saúde (Chernoviz, 1904), uma das publicações populares sobre medicina no Brasil do século XIX, na sua 17a edição,1 verificamos que há descrição detalhada de como proceder a uma boa sangria utilizando-se de sanguessugas. O guia indicava quais os melhores lugares do corpo para "deitar as bichas":2 "sobre o peito na pleuris, atrás dos ouvidos nas congestões cerebrais, ao redor dos olhos em algumas oftalmias, e todos as vezes que for indicado o tratamento antifogístico pouco enérgico".
    O guia segue relatando que, por volta de 1832, abusou-se muito desse método terapêutico (ou seja, aproximadamente no período em que Debret retrata os barbeiros no Rio de Janeiro), mas que "atualmente" (podemos supor, pela data da edição, que se referia aos primeiros anos do século XX) "usa-se das bichas menos freqüentemente e em menor quantidade do que se costumava fazer antes". Contudo, não havia dúvidas de que a prática ainda era utilizada. Considerando que as atualizações do guia ocorressem a cada nova edição,3 e que fornecia detalhes com relação às características da "bicha", sua conservação, maneira de aplicá-las e modos de "desengurgitar" as bichas do sangue que chuparam, é possível concluir que a prática de utilizar sanguessugas continuava, no final do século XIX e início do XX.
    O guia circulou pelo Brasil no século XIX e início do XX, junto com outras publicações do gênero. Estas representavam, muitas vezes, a tábua de salvação de fazendeiros, práticos e também de muitos médicos e farmacêuticos. Era comum as farmácias terem, entre seus livros, guias de medicina popular. Um prático da medicina e cirurgia que circulava por Curvelo e vizinhanças era sempre descrito com "o Chernoviz" debaixo do braço (Cruz, 1965, p. 33). Diante da dúvida, consultava-se um desses guias.4 As publicações de Chernoviz encontravam-se entre as mais populares.5 Esse fato permite-nos concluir que as informações contidas em seu guia prático eram realmente lidas e, muitas vezes, aplicadas à população doente.
    A ‘arte’ de manipular e aplicar as "bichas" não se restringia aos barbeiros, mas durante boa parte do século XIX estes foram os principais responsáveis pela sua conservação. Os médicos locais não tinham as sanguessugas, de acordo com Andrade (op. cit.), memorialista que nos conta um pouco sobre a medicina no início do século em Belo Horizonte, mas utilizavam-nas mandando buscá-las com o sr. Moura, conforme a descrição do início do artigo.
    A utilização de ventosas também é considerada corriqueira em torno do século XIX, estendendo-se pelo século XX. O mesmo Andrade (1982, p. 233), em Belo Horizonte, nos dá notícias de ventosas sendo aplicadas em 1913, ressaltando que a utilização delas não dependia de indicação nem autorização médica. Para ele, como para muitos na nova capital de Minas Gerais, as ventosas eram familiares. A preferência recaía sobre as ventosas sarjadas, e os próprios pacientes usavam-nas para alívio da dor, sem a necessidade de indicação médica. O sarjador era um aparelhinho francês, com vários fios de navalha, que apareciam e sumiam quando acionado um botão, e neste movimento os fios cortavam a pele. A seguir, aplicava-se a ventosa, e o sangue surgia dos cortes abertos pelas navalhas. Mas, na ausência do aparelhinho francês, o método utilizado era o dos copinhos vendidos em farmácias, esquentando-os com chama de álcool e aplicando-os sobre a pele, fazendo vácuo, nos locais doloridos.
    Os barbeiros foram considerados os precursores dos cirurgiões. Detinham a habilidade de intervir com seus instrumentos no corpo ulcerado, com pústulas. Além de aplicarem ventosas e deitarem as chamadas "bichas" — sanguessugas — ocupavam-se com a estética dos cabelos e das barbas, cortando e aparando. O trabalho desses homens — não encontramos nenhuma referência à presença de mulheres nesse ofício — era basicamente manual. Talvez o que aproximasse as três idéias apresentadas pelos dicionários do início do século passado seja, exatamente, a habilidade de desempenhar trabalhos a partir da utilização das navalhas: tanto o barbeiro das barbas e cortes de cabelo, como o barbeiro sangrador e o barbeiro de espadas dominavam o mesmo instrumental de trabalho: as navalhas, as lâminas, todos instrumentos cortantes e afiados.
    Os pontos marcantes das atividades dos barbeiros relacionavam-se com o trabalho manual e o vínculo com a carne e o sangue. Numa sociedade marcada pela presença do trabalho escravo, o prestígio do barbeiro não era elevado. Soma-se a isto o desprestígio — datado do período medieval — daqueles que lidavam com o sangue. Os barbeiros estavam, de certo modo, vinculados aos cirurgiões: ambos exerciam atividades vinculadas ao corpo: pernas quebradas, pústulas, doenças de pele, aplicação de sanguessugas. Se seguirmos a seqüência de pranchas de Debret retratando o Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX, encontraremos, no mesmo quadro do cirurgião negro, a representação do açougue de carne de porco. O texto que acompanha cada gravura não estabelece nenhum vínculo direto entre as duas representações, mas o fato de as gravuras aparecerem na mesma prancha não nos deixa dúvida de que a relação entre as atividades do cirurgião-barbeiro e do açougueiro provinham do estigma do sangue.
    De acordo com Debret (1978, p. 360), somente os pobres recorriam aos cirurgiões negros, que, além de aplicar ventosas, indicavam remédios e vendiam talismãs: "pois as pessoas mais abastadas mandam tratar seus negros pelo cirurgião da casa". Neste relato observamos sinais de distinção entre o status do barbeiro e o do cirurgião. O primeiro, barbeiro que fazia as vezes de cirurgião, estava muito mais próximo da população escrava, enquanto o segundo, o cirurgião sem a complementação barbeiro, referia-se a um trabalho mais sofisticado, destinado aos homens livres e com recursos.
    O século XIX é marcado por um movimento que podemos denominar de civilizatório. Surgiram regras de como proceder, não apenas no que se referia ao dia-a-dia da corte, mas ao conjunto de posturas, perpassando diversos aspectos da vida social, entre estes, a definição mais precisa sobre as profissões. A distinção entre o barbeiro e o cirurgião processou-se ao longo do século XIX, marcada pela formação acadêmica do cirurgião, em contraponto com a informalidade das atividades do barbeiro. Ao preparar-se formalmente para exercer a atividade de cirurgia, o trabalho manual eleva-se pela presença de uma formação intelectual, distanciando-se da prática do barbeiro. Neste movimento, as atividades do cirurgião acadêmico enquadram-se no rol das profissões liberais, enquanto os barbeiros permanecem junto às atividades manuais mecânicas, conforme classificação presente nas listas nominativas de 1870 (Paiva et al., 1990).
    Na elaboração de uma escala social das profissões, podemos localizar os médicos encabeçando a lista e, à distância, por exercerem atividades consideradas de outra natureza, seguiam os cirurgiões, e, por último, os barbeiros. Para os cirurgiões, a aproximação com os barbeiros era lastimável, almejavam aproximar-se dos médicos. Para os barbeiros, a aproximação dos cirurgiões era sinal de prestígio e elevação social (Lebrun, 1985). Esta hierarquia pode ser localizada no século XVII, em O doente imaginário de Molière (1673), no momento solene de argüição do candidato a médico: o primeiro a adentrar o recinto é o enfermeiro, seguido pelo boticário que, por sua vez, é seguido pelo cirurgião e, finalmente, o médico. Neste ponto interessa-nos ressaltar as posições diferenciadas que ocupavam o cirurgião e o médico no século XVII, na França, e por quais mudanças passaram no decorrer do século XVIII.
    Nos estatutos franceses, o ofício de cirurgia era classificado no mesmo patamar que o dos barbeiros. As mudanças ocorreram ao longo do século XVIII, quando os cirurgiões se desvincularam dos barbeiros, para desagrado dos médicos, que não viam com bons olhos o ingresso de uma categoria profissional considerada de menor importância, qualificação e valor, junto ao seu grupo. Obviamente havia uma preocupação com o mercado, por parte dos médicos, mas, principalmente, com relação à posição social que se desejava preservar e que é ameaçada com a entrada de profissionais, antes localizados nas artes mecânicas, para o grupo das artes liberais.
    É interessante acompanhar a declaração real francesa de 1730 estabelecendo os novos "estatutos e regulamentos gerais para os cirurgiões das províncias do reino" (Lebrun, idem, pp. 303-4):

...ordenamos que aos mestres na arte e ciência cirúrgica das cidades e lugares onde exercem exclusivamente a cirurgia, sem a misturarem com nenhuma outra profissão mecânica, e sem fazerem qualquer comércio e tráfico, eles ou as suas mulheres, seja reconhecido o exercício de uma arte liberal e científica, gozando nesta qualidade das honras, distinções e privilégios de que gozam os que exercem as artes liberais...

    O documento francês, do século XVIII, deixa claro a existência das duas artes profissionais, com posições hierárquicas diferenciadas, entre as mecânicas e as liberais. Os cirurgiões, elevados às artes liberais, têm muito o que comemorar, apesar dos preconceitos contra os quais terão de lutar. Afinal, a mudança significava ascensão social, gozar das honras, distinções e privilégios característicos das artes liberais, ao passo que o mundo das artes mecânicas era apresentado como socialmente desprestigiado e considerado como atividade pouco honrosa.
    De certa forma, a hierarquia apresentada por Molière em O doente imaginário manteve-se nas Minas Gerais do século passado. Ao longo do século XIX, constatamos movimentos em direção a uma definição mais precisa das profissões relacionadas ao cuidado do corpo doente. As pessoas que passaram por uma formação acadêmica deveriam ocupar-se, preferencialmente, de cuidar do corpo. Na impossibilidade de difundir este padrão por todas as regiões, havia uma série de intermediações viabilizando a atuação daqueles que intervinham no corpo doente. No que se refere às profissões, é bastante clara a delimitação das atividades do barbeiro, visando restringi-la, cada vez mais, aos cuidados estéticos com cabelos e barbas.
    Mesmo assim, com relação ao barbeiro e ao cirurgião, percebemos que não havia, na prática, uma delimitação bem estabelecida indicando onde começava o trabalho de um e o do outro. Há relatos em que o cirurgião atuava como médico, diagnosticando e receitando, e há outros em que o barbeiro atuava como médico e como cirurgião, transparecendo uma delimitação muito pouco precisa entre as atividades de cada um. Saint-Hilaire (1974, p. 29), relata-nos o trabalho de um cirurgião, que teve a oportunidade de observar quando atendia ao chamado de um homem que sofria de "não sei que doença de pele": "O honrado cirurgião disse-lhe que lhe ia dar um remédio. No dia seguinte estaria são. Com semelhante droga esfregou as partes enfermas a que benzeu depois, mandando o paciente deitar-se, e assegurou-se o êxito de sua medicação."
    Saint-Hilaire estranhou a ação do cirurgião. A desconfiança aumentava à medida que ele divulgava seus títulos a Saint-Hilaire, e este questionava-se sobre a veracidade de toda aquela propaganda. A riqueza do relato permite-nos muitas observações. A atuação do cirurgião é a de um médico, indicando a dificuldade em se restringir às artes cirúrgicas numa terra com pouquíssimos médicos. Por outro lado, sua forma de atuar desafia os conhecimentos acadêmicos: além da droga que espalha pelas partes do corpo doente, há o reforço da reza. Para Saint-Hilaire (idem, p. 29) era muito difícil acreditar na eficiência desse procedimento: "não posso conceber que um homem que se intitula cirurgião e, por conseguinte, deve ter sido diplomado, sancione com o exemplo as práticas supersticiosas". O relato do viajante, que representa o mundo civilizado, é esclarecedor. Realmente não é possível admitir que um homem que se diz cirurgião lance mão de práticas supersticiosas no momento da intervenção. Ao que tudo indica, a razão, para Saint-Hilaire, deveria estar dissociada da superstição, da crença, e o tom do seu relato indica desconfiança quanto à formação daquele que se intitulava cirurgião. Há o confronto entre dois modos de se relacionar com o mundo. Um, representado pelo estrangeiro europeu, que coloca o mundo racional em contraposição ao mundo da superstição. Esta concepção busca divulgar um modelo de civilização pautado na razão. Outro, que pode ser lido nas entrelinhas desse relato, indica uma maneira mais tradicional de se relacionar com o mundo, quando não há necessidade premente de dissociar razão e fé. O cirurgião atua de forma natural, não há conflito na sua prática ao unir remédio específico com benzeção.
    Investigando os almanaques mineiros (almanaques do comércio, indústrias e profissões),6 é possível perceber duas categorias de barbeiros: simplesmente barbeiros e barbeiros e cabeleireiros. A informação nos diz muito pouco sobre quais eram realmente as funções desempenhadas por cada um deles, mas só o fato de haver a distinção é indicativo de que existia mais de uma forma de desempenhar essas atividades. Em outras palavras, indicativo da mobilidade e redefinição do significado de atuar como barbeiro. Este cortava cabelo, fazia barba e aproveitava seus instrumentos para realizar pequenas cirurgias que incluíam sangrar, escarificar, aplicar ventosas e sanguessugas, clisteres e extrair dentes (Camargo, 1976, p. 5). Entre os ditados populares encontramos "quem lhe dói o dente vai à casa do barbeiro".7 Ao longo do século XIX, observamos transformações significativas na atuação dos barbeiros. A atividade desempenhada por eles passou, cada vez mais, a se restringir a cortar os cabelos e aparar as barbas. O barbeiro foi abandonando aos poucos a multiplicidade das suas atividades, enquanto as outras, especificamente relacionadas ao corpo doente, foram se tornando especialidade dos boticários, médicos e práticos. Consolidou-se, assim, a distinção entre as figuras do médico, do cirurgião e do dentista, ocupando espaços antes divididos com os barbeiros.
    Já nas listas nominativas de 1831 e 1832, do censo realizado na província de Minas Gerais, há a indicação apenas da ocupação do barbeiro. Também pouco se pode retirar dessa informação. Essas listas foram elaboradas a partir de uma estimativa de 708 mil habitantes para a província de Minas Gerais, sendo que a população por elas reconstituída8 estava na casa dos quatrocentos mil. Havia ainda o problema da valorização de algumas profissões em detrimento de outras, sendo que o critério de valorização variava de acordo com quem julgava, ou seja, o recenseador considerava, de acordo com seus critérios, a validade ou não da profissão. Não havia um critério unificando a atuação de todos que trabalhavam no levantamento das informações. Ao que tudo indica, um número significativo de escravos não informavam, ou suas informações não foram coletadas e/ou consideradas. Assim como os escravos, uma série de outras ocupações eram consideradas desprezíveis e/ou de menor importância para serem coletadas (Paiva et al., 1990).
    Era pequeno o conhecimento necessário para desempenhar a atividade de barbeiro, e este limitava-se ao campo prático. A valorização daqueles que lidavam com o corpo em chagas era pequena. É bastante reveladora, nos levantamentos censitários — especialmente de 1832 e 1871 — a, associação dos dados gerais com as profissões. Praticamente todos os barbeiros são homens pardos ou negros. Alguns, homens livres, outros escravos, mas todos pardos ou negros, reforçando a idéia de desqualificação do trabalho dos barbeiros.9
    Se alguns autores consideravam os barbeiros como precursores dos cirurgiões, é importante observar que estes conviveram com os barbeiros. A hierarquia entre os ofícios investiria de maior importância os cirurgiões. O conhecimento demandado para se tornar cirurgião era, com certeza, maior do que o necessário para o exercício da atividade de barbeiro sangrador. No século XIX, encontramos várias referências na legislação mineira sobre a necessidade de se submeter a exames para obter licença como cirurgiões, o que não acontecia tratando-se dos barbeiros, quando as licenças eram concedidas mediante o pagamento das taxas.10 Como forma de acompanhar minimamente estas atividades, a legislação passaria a definir as regras e condições para o exercício da atividade profissional: exigência de diplomas ou exigência de exames, vistorias nos estabelecimentos, taxas para licenças das atividades e funcionamento comercial, regras, sanções e multas para os que não se dispunham a obedecer à legislação.11
    Não encontramos nenhuma formação institucional para o desempenho das atividades dos barbeiros sangradores e/ou barbeiros de lanceta. As técnicas eram passadas pela aproximação com os mais velhos; a troca de conhecimentos se dava através da prática e da transmissão oral.
    O barbeiro ocupava posição pouco privilegiada entre os ofícios, situando-se abaixo do cirurgião. Joaquim Manuel de Macedo (1876), descreveu o quanto era (para ele) desagradável ver um "preto" sentado num banquinho no meio da rua, "com a cara entregue às mãos do outro que o ensaboa e barbeia, como se estivesse na sua loja". De acordo com Debret (1978, p. 209), os barbeiros ambulantes eram relegados ao último degrau da hierarquia dos barbeiros. O viajante também retratou alguns barbeiros ambulantes.
    É provável que numa cidade como o Rio de Janeiro houvesse barbeiros para os ricos e para os pobres, sendo que, entre estes, havia ainda a separação entre homens livres e escravos, mas o mesmo dificilmente ocorreria em cidades do interior de Minas Gerais. Encontramos referências aos barbeiros das cidades, feitas pelos memorialistas, e na legislação que busca cobrar impostos e licenças para o exercício da atividade e manutenção do comércio (ele deveria pagar licença para exercer o ofício e manter aberta a barbearia).12 A partir das informações recebidas pelos memorialistas, podemos perceber que era pequeno o número de barbeiros.
    A barbearia, com menos glamour que as farmácias, seria também o local para troca de informações sobre o acontecido, sobre a vida alheia, circulação de notícias do lugar e das redondezas. As barbearias eram consideradas "ponto de encontro e novidades", de acordo com um memorialista de Caxambu (Sá Alexina, 1957, p. 70). Quando comparadas com as farmácias, as barbearias destacavam-se por serem ambientes predominantemente masculinos.
    Havia também, circulando pelas cidades de Minas, os barbeiros ambulantes. Um deles tornou-se conhecido em Diamantina também por apresentar características de détraqué. Bambães, que chamava a todos de "meu belo", é citado por dois memorialistas da cidade como sujeito simpático, que circulava pelas ruas fazendo brincadeiras e exercendo seu ofício (Morley, 1966, p. 218; Arno, 1906, p. 89). Neste exemplo, o barbeiro exercia sua atividade de forma ambulante, perambulando pelas ruas e oferecendo seus serviços.
    Quando o barbeiro demonstrava habilidades outras além do trato com os cabelos, era motivo de destaque, como aconteceu com um deles na cidade de Poços de Caldas, considerado "histórico" na descrição de um memorialista médico. Um dos pontos em que se destacava Francisco Pereira era o fato de ser instruído, por saber ler e escrever, "coisa rara naquele tempo" (Mourão, 1952, p. 501) não apenas entre os barbeiros.

Os cirurgiões

Cirurgia: parte da medicina que ensina a curar feridas, chagas, tumores, deslocações e as operações de abrir e cortar membros do corpo humano (Moraes Silva e Freire, 1922).

    No Brasil colonial, a divisão clássica dava-se entre o médico (ou físico), o cirurgião e o boticário. Cada qual com a sua função: aos médicos caberia medicar, aos cirurgiões, intervir no corpo doente e aos boticários, manipular os medicamentos. Sem dúvida, havia posições intermediárias entre estes profissionais,13 como também a troca em suas funções. A divisão oficial entre eles tinha como objetivo preservar a população da ação de "inescrupulosos" e "aventureiros", além de exercer controle fiscal (Machado et alii, 1978, p. 28). Com a institucionalização das escolas de medicina, que inicialmente eram escolas de cirurgia, esta divisão permanece, e o tempo de formação de cada profissional indica-nos uma certa hierarquia e níveis de formação específica. O curso de médico durava seis anos, o de farmacêutico e o de cirurgião, três, e o curso de parto demandava de um a dois anos.
    Se trabalharmos com a idéia de que uma das formas de valorizar a profissão relaciona-se com o tempo de formação, podem-se tirar algumas conclusões. Há diferença no tempo exigido para o médico e o cirurgião: para o primeiro, inicialmente, era necessário o dobro de tempo do segundo. Havia sempre a possibilidade, para o cirurgião, de completar seus estudos, e também se tornar médico, indicando que a formação desse seria mais demorada, demandando maior tempo e estudo. Há referências a vários cirurgiões que completavam seus estudos para se tornar médicos, o mesmo acontecendo com relação aos farmacêuticos. Já o contrário (de médico para farmacêutico ou cirurgião) não ocorria.
    Além disso, observamos que todo o discurso médico do período está direcionado para distinguir os profissionais qualificados dos chamados aventureiros, que, independentemente de apresentarem bons ou maus resultados na sua atividade,14 eram pessoas que não mereciam confiança, na opinião dos médicos. Neste momento, retornamos ao movimento civilizatório que busca impor padrões de comportamento, considerados mais avançados, ao conjunto da população. O discurso médico é exemplar neste sentido.
    Outro aspecto a ser considerado referia-se ao estudo e às práticas cirúrgicas, não só no Brasil como no mundo. A anestesia, através da inalação de éter, e posteriormente clorofórmio, foi utilizada pela primeira vez no Brasil em 1847 e 1848, respectivamente.15 Todas as intervenções cirúrgicas, até então, e muitas outras, posteriormente, realizavam-se sem anestesia, transformando o ato cirúrgico, sem dúvida, em ato de barbárie (Thorwald, s. d.). Todos sofriam com a prática, tanto aqueles que se submetiam ao procedimento, como aquele que o executava e os que o assessoravam e/ou assistiam. As qualidades de um bom cirurgião, na época da inexistência da anestesia, incluíam a frieza e, principalmente, a destreza com que realizava seu trabalho. Quanto mais rápido o ato, menor o tempo para se ouvirem os gritos de dor e as manifestações daquele que sofria além do suportável. Todos aqueles que se dirigiam para o ato cirúrgico sabiam do suplício que os aguardava. O campo de atuação do cirurgião era limitado pela dor suportável/insuportável do paciente.
    Mas não só aos homens do século XX a descrição das cirurgias sem anestesia causam pavor. No século XVII, circulava na Europa o manual de Richard Wiseman, Severall chirurgicall treatises (Thomas, 1991, p. 22), mais popularmente conhecido como "livro dos mártires de Wiseman".
    Os avanços no emprego dos anestésicos consolidaram-se na Europa nas últimas décadas do século (Gordon, 1995; Foucault, 1974), abrindo a possibilidade para o desenvolvimento no campo das cirurgias e, conseqüentemente, a habilidade dos cirurgiões. Às dificuldades para a realização das cirurgias, mesmo já com a presença da anestesia, acrescentavam-se os problemas relacionados com a falta de assepsia, por total desconhecimento da ação dos microrganismos. As mortes em decorrência de supuração das feridas operatórias encontravam-se na casa dos 80% a 90% (Santos Filho, 1987). A assepsia, pela desinfecção das mãos dos operadores e do instrumental, em solução fenicada, é adotada pelo cirurgião inglês Lister em 1867. Sem assepsia e sem anestesia, o espaço de desenvolvimento das cirurgias estava limitado, transformando o cirurgião em um profissional para os casos extremos, com pouca margem de sucesso e pouca possibilidade de investigação do corpo aberto. Mesmo que o ato cirúrgico transcorresse conforme o previsto, a recuperação defrontava-se com as infecções e supurações pós-cirúrgicas, decorrentes da total falta de cuidados com o instrumental e higienização do processo intervencionista.
    A cirurgia das amígdalas de Francelina, uma copeira e arrumadeira de aproximadamente trinta anos, na cidade de Diamantina, em 1885, é descrita por uma memorialista, Eclésia Rabello (1996, pp. 62-4). A infecção agravara-se e a pobre mulher, além da febre alta, já mal conseguia abrir a boca. O médico foi chamado e deu sua opinião: "é preciso que se faça a operação amanhã mesmo, enquanto se consegue abrir-lhe a boca". No dia seguinte, a cirurgia foi realizada no meio da sala de jantar, com todas as janelas abertas para garantir a luminosidade. A paciente assentou-se numa cadeira de braços, aconchegada em travesseiros, e a cirurgia foi presenciada por alguns moradores da casa. A seguir, acompanharemos a descrição de Rabello (idem, p. 62) que, ainda jovem, foi uma das pessoas que presenciaram a intervenção cirúrgica. Ela era uma das filhas do casal que empregava Francelina: "dr. Leite chegou, tirou o canivete da algibeira, trouxeram-lhe toalha, sabão e uma bacia de louça com água. Ele tirou o paletó, arregaçou as mangas da camisa, lavou as mãos e o canivete, enxugou-os."
    Estes detalhes são reveladores: as mãos do médico e os instrumentos (canivete retirado da algibeira) passaram, minutos antes da intervenção, por uma solução de água e sabão. Para auxiliar a pobre Francelina a abrir a boca, o doutor utilizou do cabo de uma colher e, com este apoio, cortou com o canivete as amígdalas inflamadas. Depois de alguns dias de repouso, Francelina recuperou-se totalmente. Morreu mais tarde, de tifo. Neste exemplo, a cirurgia foi realizada por um médico, que não teve dúvidas quanto ao diagnóstico e a necessidade, urgente, de proceder à cirurgia. Provavelmente ele já tinha conhecimentos sobre a importância de algumas providências assépticas. Água e sabão continuam, ainda hoje, sendo usados como desinfetantes.16
    Os médicos cirurgiões, no final do século XIX, ainda tinham área de atuação dividida com pessoas sem formação acadêmica, que se apresentavam como curadores ou curandeiros. Entre estes encontramos Manoel Martins, vulgo Mané Martins, que andava pela região de Curvelo, norte de Minas Gerais, sempre acompanhado do seu canivete Roger. Era com ele, bem afiado, sem anestesia e sem assepsia, que demostrava toda sua destreza e habilidade na prática de operações: "para o canivete de Mané Martins os panarícios e outros tumores inflamatórios eram café pequeno, casos insignificantes de sua vida de curador desabusado. E assim sua fama corria sertão" (Rabello, op. cit., p. 33).
    Mané Martins e o dr. Carlos Leite tinham alguns pontos em comum: atuavam na mesma região, ao que tudo indica, na mesma época, fins do século XIX, e utilizavam os canivetes nas pequenas intervenções. Mas havia também outros tantos pontos que os distanciavam. Os instrumentos de Mané Martins, especialmente o seu famoso canivete Roger, não passavam por água e sabão com a mesma freqüência que o instrumental do dr. Carlos Leite. Além disso, a formação de Mané Martins se deu de modo informal e sua atuação caracterizava-se pela itinerância. Provavelmente, o público de Mané Martins distinguia-se dos clientes do dr. Carlos Leite.
    Na intervenção do médico nas amígdalas da Francelina, não obtivemos informações referentes aos honorários cobrados. Francelina era uma empregada da família Rabello e toda a cena — da chamada do médico, o diagnóstico e a intervenção cirúrgica — transcorrem nesse espaço. Não é possível afirmar que o mesmo procedimento seria adotado caso Francelina estivesse junto aos seus familiares, fora da residência da família que a empregava. Talvez, nesta situação, quem seria chamado a atuar fosse Mané Martins.
    As cirurgias nestas condições, quando bem-sucedidas, eram consideradas verdadeiros milagres. Um memorialista conta-nos um desses casos milagrosos: um escravo com a perna quebrada na altura da coxa tentou encaná-la três vezes, sem sucesso, até a intervenção cirúrgica. Nestes casos tudo indicava a amputação, mas o cirurgião optou por uma intervenção mais elaborada: cortou as extremidades do osso rompido, e o indivíduo recuperou-se. As informações do memorialista foram obtidas em uma incursão na capelinha de senhora Santana em Ouro Preto, em fins do século passado (Cabral, 1969, p. 43).
    Os vínculos estabelecidos entre o cirurgião e a sociedade, conseqüentemente, não eram muito tranqüilizadores, pois associavam-se imediatamente às dores lancinantes da intervenção cirúrgica. Isso talvez justifique a posição inferior do cirurgião em relação ao médico, além da associação do cirurgião com a carne, aberta em chagas, coberta de sangue. No período medieval, entre as profissões consideradas desprezíveis encontramos o médico e, principalmente, o cirurgião (Le Goff, 1980, p. 86).17 De acordo com Le Goff (op. cit.), a sociedade sanguinária do Ocidente medieval oscilava ente o deleite e o horror pelo sangue derramado, não escapando do desprezo o cirurgião e até o médico.
    O cirurgião no Brasil é ‘descendente’ direto do barbeiro. Novamente, chamo atenção para uma das gravuras de Debret (1978, p. 211), em que se lê na placa da barbearia: "barbeiro, cabeleireiro, sangrador, dentista e deitão de bixas (sic)". Há uma desqualificação inerente ao trabalho servil, e a sua aproximação com atividades consideradas pouco nobres se dá facilmente.
    Por outro lado, confiar navalhas afiadas aos escravos não deixava de ser algo arriscado. Os que se sujeitavam aos seus serviços não deixavam de correr certos riscos pelo simples ato do barbear, em movimentos violentos. Corriam boatos em Diamantina, no final do século XIX, sobre um barbeiro excelente, mas meio amalucado ou détraqué, se utilizarmos a expressão da época. Entre as suas desventuras contava-se que saiu fugido de Ouro Preto, antes de se fixar em Diamantina, por ter pressionado, além da medida, a navalha no pescoço de um desafeto. O instrumental de trabalho do barbeiro transformava-se rapidamente em arma perigosa, e o ataque sempre colocava em posição de vantagem o barbeiro, lidando com a cabeça do cliente/inimigo.
    Podemos observar também uma nítida divisão de tarefas entre o médico e o cirurgião, indicando o desprestígio (atividade menos qualificada) do segundo com relação ao primeiro.
    Em terras sem médicos nem cirurgiões formados, as intervenções eram realizadas por curiosos ou por aqueles que, por proximidade de ofício, aventuravam-se a cuidar da saúde alheia. Há notícias de que os farmacêuticos realizavam pequenas intervenções cirúrgicas, colocavam os braços e pernas quebrados no lugar e até realizavam algumas amputações, quando tudo indicava esse procedimento. Dois farmacêuticos de Montes Claros, na virada do século, ficaram conhecidos não apenas pela eficiência em receitar, mas também pelas pequenas intervenções cirúrgicas que realizavam: "Eusébio Sarmento e Cristiano de O’ marcaram época em Montes Claros; quase ninguém procurava o médico sem ter ouvido primeiro a opinião de um destes dois" (Paula, 1979, p. 160).
    De acordo com o dr. Mourão (1952, p. 395), havia em 1903 quatro médicos na cidade de Poços de Caldas, mas como um deles faleceu logo no início do século, naquele ano a população contou com três ou talvez apenas dois médicos. Computada a população da cidade na época, concluímos que a média de paciente por médico permanecia muito baixa. Essas informações, ao que tudo indica, não diferem significativamente de outras cidades. Em Pitangui, temos notícias de dois médicos no final do século XIX (Patrício, 1964, p. 17).
    O espaço para exercer outras atividades, que não a de médico e cirurgião formados, continuou aberto até fins do século XIX. Neste longo caminho de implementação do conhecimento médico acadêmico junto à sociedade, há alguns pontos a serem considerados: por um lado, a existência de poucos médicos formados, a falta de hábito da população de recorrer aos seus serviços, e a crença nas práticas tradicionais. Por outro, havia todo um movimento visando definir, com maior clareza, a atuação de cada um desses profissionais. A marca definidora desse movimento referia-se à formação acadêmica e valorização da formação intelectual, institucionalizada para desempenho destas funções, em contrapartida a práticas caseiras, apelos a fé e superstições. Nessa trajetória, a definição das atividades do barbeiro limitadas ao corte de cabelos e barbas obteve sucesso.

Notas:

1 Esta edição está disponível na biblioteca da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A primeira é de 1841. Luiz Napoleão Chernoviz era médico de origem polonesa e atuou durante aproximadamente 15 anos. Foi autor de duas obras bastante populares no Brasil: o próprio guia e o Diccionário de medicina popular e das sciencias accessorias (2 vols.).

2 Esta e outras expressões, tais como barbeiro, cabeleireiro, sangrador, dentista e deitão de bixas (sic) aparecem na placa de uma loja de barbeiros da gravura de Debret (1978, p. 211).

3 A edição consultada é de 1904 (17a), e anunciava no seu prólogo que "a aceitação constante obtida pelo formulário médico do dr. Chernoviz nos impõe o dever de mantê-lo sempre a par de todos os adiantamentos e descobertas terapêuticas e da ciência medicina".

4 Lycurgo Santos Filho (1991, pp. 438-42) lista uma série de guias de medicina popular. Além do Chernoviz, podemos citar Medicina doméstica, de William Buchan; Dicionário médico prático para uso dos que tratam da saúde pública onde não há professores de medicina, de João Lopes C. Machado; e O médico e o cirurgião da roça, de Louis François Bonjean.

5 Além de várias referências às obras de Chernoviz na documentação consultada, ao que tudo indica estas publicações foram um sucesso editorial (Gonçalves, 1980, p. 74).

6 Uma das funções destes almanaques era servir como indicadores profissionais. São editados por cidade e divididos por temas. A partir das profissões, são listados os nomes dos profissionais com os respectivos endereços.

7 Minas farmacêutica (Belo Horizonte, no 43, 1943, pp. 1-10).

8 As listas que chegaram até os arquivos não estão completas. A partir da chamada população reconstituída, calculou-se a população estimada. Este trabalho de reconstituição das listas foi realizado pela equipe de história demográfica do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG), sob a coordenação de Clotilde Paiva e Marcelo Magalhães Godoy. Há, também, para a província de Minas Gerais o censo realizado em 1870.

9 Santos Filho (1991, p. 431) descreve o barbeiro do século XIX como "indivíduo de baixa condição, mulato ou negro, escravo ou livre".

10 Para aqueles que exerciam a profissão de barbeiro, a licença era obtida mediante pagamento das taxas estipuladas (Coleção das Leis da Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais, ano XXXVIII, parte 1, resolução 1, 771, 21 de setembro de 1871, artigo 11).

11 Foi possível mapear esta regulamentação através das Coleções das Leis da Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais e dos códigos de postura de vários municípios mineiros, nos últimos cinqüenta anos do século passado. As duas séries documentais encontram-se disponíveis no Arquivo Público mineiro.

12 Esta exigência não se referia apenas aos barbeiros. Todas as atividades profissionais citadas pelos códigos de posturas estavam sujeitas a formas variadas de controle e fiscalização. Não é possível, a partir dos códigos, inferir até que ponto estes dispositivos legais eram seguidos ou não.

13 Entre estas intermediações podemos citar as parteiras, os raizeiros, os tira-bichas, os barbeiros, os ciganos etc.

14 A argumentação predominante apóia-se na ausência de formação de certos ‘profissionais’, que são identificados com charlatões.

15 A utilização do éter com sucesso ocorreu nos Estados Unidos em 1846 e, no mesmo ano, a notícia se espalhava pela Europa e pelo mundo (Scliar, 1996, pp. 193-4). Sobre o mesmo tema, uma descrição mais detalhada pode ser encontrada em Thorwald (s. d., p. 127)

16 Na década de 1880, já haviam sido divulgados no meio acadêmico os procedimentos de higienização dos instrumentos cirúrgicos e das feridas, de um modo geral, com mais do que água e sabão. Os estudos de Semmelweis (1818-65), e posteriormente Lister (1827-1912), indicavam a necessidade de utilização de soluções mais eficazes na higienização dos instrumentos. Lister utilizou-se de várias diluições do ácido carbólico. Além disso, introduziu toda uma sistemática de higienização: troca periódica das roupas hospitalares, separação dos leitos a uma certa distância uns dos outros, entre outras medidas.
De acordo com o dicionário do dr. Chernoviz (1890, p. 1.111), encontramos indicações para emprego da solução de ácido fênico na higienização das feridas: verbetes feridas ‘tratamento geral e complicação das feridas’ e ácido fênico.

17 A lista é extensa e inclui, entre outros, soldados, prostitutas, mercadores, barbeiros, carniceiros, alquimistas, tripeiros etc.

 

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Recebido para publicação em setembro de 1998.
Aprovado em dezembro de 1998.