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Psicologia USP - The unconscious and the conditions of an authorship

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Psicologia USP

Print version ISSN 0103-6564

Psicol. USP vol.10 n.1 São Paulo  1999

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641999000100011 

O INCONSCIENTE E AS CONDIÇÕES DE UMA AUTORIA1

 

Edson Luiz André de Sousa
Instituto de Psicologia - UFRGS
Instituto de Artes - UFRGS

 

 

Este ensaio considera as seguintes interrogações: O que é um autor? Em que condições uma autoria pode se legitimar? Em que medida a experiência do inconsciente pode reposicionar a clássica pergunta sobre a autoria? Considerando o ato de escrever que instaura no sujeito uma necessária condição de exílio percebe-se a pertinência da idéia de um apagamento do lugar/ sujeito para que o lugar/autor possa advir. Este autor se fundaria na medida em que cumpre a função de instaurador de discursividade (Michel Foucault). Entre outros exemplos o presente artigo revisita o trabalho do poeta T.S. Eliot que trouxe muitas luzes a esta discussão.
Descritores: Inconsciente. Escrita. Escritores. Subjetividade. Poesia.

 

 

Tomar a obra literária por um efeito em lugar de tratá-la como origem absoluta, considerá-la como reflexo, o resultado, o traço do autor equivale a considerá-la uma ruína, um resto, um resíduo, como nascida de um fracasso.
Jean Bellemin-Noël (1983, p.78)

 

Muito freqüentemente somos confrontados com uma experiência radical em nossas vidas no momento em que nos colocamos na posição de leitor dos escritos que produzimos. O estranhamento que eventualmente podem causar nossas produções indica o desequilíbrio do "eu", que a experiência do inconsciente, desde a formulação freudiana, vem demonstrando de forma sistemática. A interrogação sobre a autoria nos reenvia necessariamente a uma reflexão sobre os determinantes das condições de uma enunciação, exigindo uma teorização das relações entre sujeito e história.

Outra pergunta que se impõe quando transitamos neste campo diz respeito à pergunta sobre a obra. Tentar encontrar respostas à indagação "o que é uma obra?" possibilita ampliar a problematização sobre a autoria. O que legitima uma produção como obra está num ponto de encontro, marcado por uma certa invisibilidade, entre o ato do autor e o efeito discursivo que tal ato produzirá na cultura. Estas interrogações "O que é um autor?" e "O que é uma obra?" abrem-nos muitos caminhos nem sempre convergentes. Foucault (1992) numa brilhante conferência feita na Socie-dade Francesa de Filosofia, em 1969, discorre amplamente sobre este tema e apresenta algumas teses que muito nos ajudam em nosso percurso. Foucault situa historicamente estas noções, mostrando que a função autor não se exerce de forma universal e constante sobre todos os discursos. Diz ainda que "a palavra obra e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas como a individualidade do autor." (Foucault, 1992, p.39).

Outro pensador que tem se dedicado muito a este tema é o artista e poeta francês René Passeron.2 Em um de seus livros recentemente publicado La naissance d'Icare: éléments de poïétique générale, desenvolve uma análise apaixonante da relação entre autor e obra a partir do conceito de poïética. Para Passeron é preciso sobretudo sublinhar no processo de criação da obra o que ele nomeia como "conduta produtiva". As três características específicas desta conduta produtiva seriam:

l a produção de um objeto singular, ou seja um protótipo

l a produção de um objeto com o estatuto de uma pseudo-pessoa

l uma produção que compromete seu autor (Passeron, 1996, p.32).

De uma forma ou de outra a psicanálise sempre está confrontada com estas perguntas: O que é um texto? Como se constitui um autor? Quais as fronteiras, em todas suas figurações possíveis - zonas de passagens, territórios de silêncios, limites intransponíveis - entre aquele que escreve e o sujeito-autor deste ato, entre o escrito e evidentemente o leitor suposto? Trazer algumas respostas a estas interrogações implica necessariamente discorrer sobre a noção de sujeito para a psicanálise e sua relação com a linguagem. Partiremos da hipótese de que todo o ato de escritura verdadeiro, ou seja, um escrito que produz um sujeito, implica uma certa condição de exílio daquele que enfrenta o desafio do escrever. A tensão que se cria é justamente que há uma diferença importante entre aquele que se põe a escrever e o sujeito que este escrito produz. Este exílio não é sem conseqüências, pois como nos lembra Dominique Laporte é freqüente que o escritor experimente um risco corporal. Esta expressão em nosso idioma adquire um matiz bastante peculiar, pois à idéia de perigo se associa um elemento gráfico do desenho.

O risco corporal é imediato, pois não há nada que garanta que o golpe do estilo - podemos pensar também em estilete, pois é esta a origem da palavra estilo - não escorregará do corpo da língua a minha própria carne envenenada pela palavra, pela letra ou frase destinadas a um Outro excessivamente familiar. (Laporte, 1984, p.6).

Laporte vai, por conseguinte, pensar que a inibição da escrita é na verdade conseqüência direta de uma excessiva familiaridade com a língua, ou para seguirmos a lógica de nosso pensamento, uma impossibilidade de instaurar para o sujeito um lugar de exílio. Muitos escritores testemunham esta necessidade de se colocar em uma posição de estrangeiro para que neste intervalo criado entre o familiar da língua e o desconhecido de um sujeito produzido pelo texto, um estilo possa se constituir (Sousa, 1992). Sobre este tópico sempre me impressionou muito a leitura de um livro do escritor francês Perec (1969) chamado La Disparition. O leitor se surpreende atônito, aturdido, incrédulo, ao saber no final da narrativa de 312 páginas que o desaparecimento em questão é a letra E do texto. Os que têm a mínima familiaridade com o francês podem ter a exata dimensão do que isto significa. O mais extraordinário é o fato do leitor francês poder chegar a esta revelação sem a mínima desconfiança desta falta, o que indica um lugar novamente estranho ao que é mais usual.

Ainda dentro desta perspectiva do risco corporal vale lembrar uma hipótese de Foucault, importantíssima, para situarmos o nascimento da função autor.

Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores. (Foucault, 1992, p.47).

É esta transgressão, portanto, que indica uma responsabilidade, um novo lugar deste autor. O que durante muito tempo podia ser apresentado e recebido num anonimato, pois, como diz Foucault (1992), a sua "antigüidade, verdadeira ou suposta, era uma garantia suficiente", hoje não se consegue abordar um texto sem nos perguntarmos sobre o autor, pois "o anonimato literário não nos é suportável." (p.50).

A psicanálise interroga de forma radical esta ilusão de autonomia do ego, esta aparente certeza de sua identidade para mostrar as determinações constitutivas de um sujeito a partir de uma exterioridade. Jacques Lacan vai traduzir estas teses produzidas por Freud, mostrando como este sujeito inflado narcisicamente é na verdade efeito do significante. Há, então, uma alienação constitutiva tão bem demonstrada no famoso texto sobre a Etapa do Espelho de Lacan (1998) que indica que é neste intervalo/movimento de "um ao outro" que temos que deduzir um sujeito. Os poetas sabem muito bem disto, pois nada melhor do que a experiência da escritura para reatualizar estas teses psicanalíticas.

Poderíamos pensar que uma das funções da escritura seria de manter vivo este intervalo, de velar por esta alteridade necessária em nossa relação com a linguagem. O apagamento desta alteridade teria como conseqüência um empobrecimento da experiência, empobrecimento este anunciado por Walter Benjamin, há algumas décadas, como a tragédia do homem contemporâneo. Muitos escritos podem vir a cumprir uma função de resistência. Resistência em dois sentidos: resistem à pasteurização da experiência e também resistem ao leitor, obrigando-o a um esforço de encontrar para si um outro lugar discursivo.

Quando pensamos no que transmite um texto, percebemos que fundamentalmente o essencial é a lógica de sua construção, ou seja, seu estilo. É aqui que o texto/poema e o visual/pintura se interseccionam, pois como nos lembra Shitao, pintor chinês do início do século XVIII, a pintura constitui o sentido mesmo do poema enquanto o poema é a iluminação que pulsa no coração da pintura.

Podemos então pensar no famoso adágio freudiano propondo uma pequena alteração: Onde o Isso era, o estilo deve advir. Cabe ao leitor recuperar este esforço do escritor, no sentido de que leitura implica interpretação, ou seja, dedução de um sujeito da enunciação. Estaríamos diante da imagem de um leitor que no seu ato de leitura - experiência tão individual - nos evoca a perda que o escritor sofreu para que a escritura pudesse surgir. Talvez seja por isso que Vermeer, pintor holandês do século XVII, colocava suas mulheres leitoras diante de uma janela: evocação do fora/dentro, presente/ausente, possível/impossível, do silêncio do olhar/ruído do mundo com que a escritura nos interpela. Não existe, portanto, continuidade linear entre o sujeito que produz e a obra produzida.

"O texto é aquilo pelo qual o homem 'difere', diferente e diferido, indefinidamente - a escritura é alteridade (lição de Proust) e autonomia (lição de Valery)." (Bellemin-Noël, 1983, p.77).

Como evocamos a questão do escrito a partir da idéia de exílio, gostaria de lembrar um fragmento poético de Waly Salomão, cujos escritos nos surpreendem pela irreverência, estranheza e lucidez. Num de seus escritos intitulado Poema Jet-lagged podemos ler: "Escrever é se vingar da perda ..." (Salomão, 1996). Tentaremos trazer algumas reflexões sobre esta idéia principalmente pela tensão paradoxal que tal enunciado produz, pois ao mesmo tempo que uma escritura retem de certa forma o tempo, ela só é possível se estivermos dispostos a suportar este lugar de ausência produzido pela ato de escritura.

Depois de ler o poema de Salomão lembrei de três situações que experienciei e que penso pode trazer algumas luzes sobre esta relação autor/obra.

A primeira foi no Museu de Arte da Filadelfia onde estive para ver especialmente "O grande vidro" de Marcel Duchamp e também sua última obra, que levou mais de 30 anos para finalizar e que ele nomeou Etant donné. Minha emoção e pressa era tanta que, num primeiro momento, não detive meu olhar em nenhum outro trabalho. Depois de algum tempo junto às obras de Duchamp, fui fazer um breve percurso no museu e me surpreendi com as pinturas e desenhos em grandes dimensões de um artista norte-americano chamado Cy Twombly3. Suas pinturas lembravam garatujas de criança que ensaiam seus primeiros traçados. Por vezes se via algumas palavras, mas escritas como se fossem de uma criança que se inicia na escrita. Não deveríamos pensar estes trabalhos como um ato de escritura? Como uma representação possível desta experiência de iniciação na escrita? O método de trabalho de Twombly legitima ainda mais estas hipóteses, pois o artista se impõe certas regras de trabalho no intuito de recuperar o que poderia ter sido este momento inicial de encontro com a escrita. Como ele obtêm este resultado? Tentando instaurar no gesto mesmo que inscreve o traço esta dimensão da perda, de um certo apagamento da consciência, numa tentativa de minimizar o peso do que chamamos nosso controle egóico. Este artifício - pois trata-se aí evidentemente de um artifício - é obtido acordando, por exemplo, de madrugada e no escuro de seu atelier, para registrar tímidos traços na tela. Esta dualidade do claro/escuro, visível/invisível, permite-nos pensar no movimento de ausência/presença, movimento este que é como sabemos condição de possibilidade de qualquer escritura. Roland Barthes se interessou muito pela pintura de Twombly. Ele propôs o termo de texto gráfico para caracterizar a pintura deste artista. Barthes chama a nossa atenção para esta dimensão do gesto. Diz Barthes:

Twombly diz à sua maneira que a essência da escritura, não é nem uma forma nem um uso, mas simplesmente um gesto, o gesto que a produz deixando-a acontecer como um rascunho, uma sujeira, uma negligência (...). Como se da escritura, ato erótico forte, não restasse que a fadiga amorosa. (Barthes, 1953).

Passemos à segunda situação. Acontece novamente num museu, o British Museum de Londres, onde podemos ver a famosa pedra de Roseta. Como sabemos foi a partir dela que Champollion começou a decifrar os hieróglifos egípcios. A pergunta que surgia era justamente saber como tinha sido possível este ato de decifrar pelo simples confronto do pequeno parágrafo escrito em hieróglifo com as respectivas traduções em grego e a escritura demótica que era a escrita egípcia de uso comum. O texto gravado na pedra tinha 14 linhas em hieróglifo, 32 em escrita demótica e 54 em grego. O método de Champollion interessa-nos particularmente, pois o essencial é que haja uma operação de perda, de queda do sentido, de busca de um invariante no nível do traço para que uma leitura pudesse ser possível. Como sabemos, Champollion vai encontrar este elemento no nome próprio - elemento que serviu de apoio na passagem de uma língua à outra justamente por serem intraduzíveis. É a partir do nome de Cleópatra que ele começa a deduzir uma chave de leitura dos signos presentes no texto.

A terceira situação é um caso clínico cuja apresentação foi feita pelo Dr. Jean Bergès, no serviço para atendimento de crianças que ele dirige no Hospital Saint-Anne, em Paris. Tratava-se de uma menina de 9 anos, com uma inteligência bem acima da média, mas que era incapaz de ler e de escrever. Ao ouvir o relato desta menina de sua relação com as letras do alfabeto e as palavras, pude entender o que Bergès sempre insistia em seus seminários, ou seja, que o obstáculo à escrita e também à leitura por parte de uma criança se deve à irrupção do imaginário no simbólico, ou seja, uma certa fascinação pela imagem associada à letra. Esta menina, por exemplo, tinha uma história para cada letra do alfabeto e era justamente por um excesso de sentido que se encontrava impedida de ler e escrever. São estas imagens que barram para ela o acesso à letra. Bergès (1987) lembra-nos num artigo intitulado Leitura e Escrita Literal que, na escritura, a letra nada mais é do que desejo recalcado. Dito de outra forma, para que seja possível esta operação de acesso à possibilidade da escrita, é necessário que possa se constituir na criança este movimento de presença e ausência, que permite que um lugar de falta possa ser instaurado, como uma presença sob o fundo de ausência. É este o lugar do objeto a que Lacan nomeou como o objeto causa de desejo. O acesso à escritura só é possível nesta operação de recalcamento do desejo que, como sabemos, funda a possibilidade da lei. Escrever para a criança nada mais é do que jogar com a ausência. É com os primeiros atos de escritura que a criança aprende a contornar esta ausência.

De certa forma, podemos pensar esta ausência como algo da ordem de uma pausa, de uma zona de silêncio. E estes silêncios não são menos eloqüentes que muitos discursos e têm sua função e seu interesse numa trama discursiva qualquer. Para lembrar brevemente dois escritores que deram um lugar privilegiado a esta inscrição "do que falta", "do espaço branco", "do silêncio", poderíamos lembrar os concertos "silenciosos" de John Cage e o trabalho de tradução de fragmentos da Bíblia por Campos (1993) onde fez questão de "traduzir" as respirações, os espaços de pausa, do texto em hebraico. Ele indica na tradução, através de alguns signos, o tempo das pausas, quase como numa partitura, como se fosse possível traduzir também o tempo e o ritmo da leitura.

O ato de escritura e o próprio escrito surgem justamente neste espaço produzido pela experiência de um certo descentramento do autor na sua relação com a linguagem. Um poeta que vem interrogar - com seus poemas - o lugar do autor, a função do escrito, a relação do escrito com a tradição e a história e também a responsabilidade do leitor é Thomas Sterns Eliot. Ele inaugurou um novo tempo na escritura poética depois da publicação de seu célebre poema The Waste Land, em 1922, traduzido para nossa língua por Ivan Junqueira como A Terra desolada (Eliot, 1993). Este poema, junto com Ulysses de Joyce (1977), publicado também neste ano, vai fazer época e influenciar toda uma geração de poetas e escritores.

Eliot, com este poema, indica-nos o impasse do homem contemporâneo que se seduz com a idéia de poder prescindir da história. O poema evoca algumas conseqüências da cultura do narcisismo e do delírio de autonomia, temas tão presentes em nosso tempo. Uma das grandes polêmicas em torno de The Waste Land dizia respeito à forma particular de fazer uso de citações como método de escritura. Eliot recolheu fragmentos de muitos textos para compor seu poema. Por vezes ele recolhe frases inteiras, por vezes uma ou duas palavras. Em alguns momentos, indica para o leitor a referência, em outros não faz nenhuma menção, deixando ao leitor este trabalho de investigação.

Podemos dizer que este ato segue um pouco a mesma direção de Marcel Duchamp com seus ready-mades. A aparente repetição de um elemento nos revela contudo sua diferença, pois o elemento em questão não é, em estrito senso, o mesmo por causa de seu deslocamento. Isto é válido tanto para o objeto de Duchamp como para os versos "transplantados" de Eliot.

Em muitos momentos, Eliot modifica ligeiramente os versos de que ele se apropria. Nós podemos pensar aqui nos "ready-mades ajudados" (ready-mades aidés), como por exemplo as intervenções de Duchamp sobre certos objetos (o bigode desenhado numa reprodução da Monalisa de Leonardo Da Vinci, para citar uma delas).

Se alguns tentaram denunciar o método de Eliot, acusando-lhe de uma carência de criatividade e de inspiração, outros sublinharam que era justamente a repetição conduzida à sua potência máxima que constituía a inovação deste poema. Alguns críticos chegaram a falar de "corrupção do poético". Evidentemente estas críticas não puderam perceber aquilo que havia de singularmente novo no processo de Eliot que, longe de ser uma corrupção, era, ao contrário, a irrupção de um novo pensamento poético.

Encontramos já alguns traços deste uso da história da literatura, como fonte de escritura poética, no clássico ensaio de Eliot, de 1919, A tradição e o talento individual. Iremos indicar duas idéias principais. Primeiramente, Eliot insiste no fato de que todo poeta deve escrever com a consciência de seu passado. Eliot enuncia, neste princípio, uma responsabilidade e até mesmo uma ética do ato poético. Outro ponto bem central diz respeito a questão da emoção e da escritura. Eliot sustenta que a poesia não deve ser a expressão de uma emoção pessoal mas que ela deve tocar um conjunto de experiências que não são necessariamente as do poeta em questão. Ele busca conseqüentemente uma poesia marcada por um traço de "impessoal".

Esta interrogação sobre o impessoal vai nos interessar muito em nossa reflexão sobre o necessário exílio daquele que escreve. O que seria esta procura do impessoal? Eliot combatia a "subjetividade" tão preciosa, por exemplo, para os poetas românticos cujas fontes maiores sempre foram as sensações experimentadas e as emoções pessoais. De uma certa forma, a escritura como testemunha de um vivido íntimo e único, fazem resistência à sua maneira de ver o poético.

Eliot procurou introduzir uma poética do impessoal. Assim, acentuou a função do poeta como puro efeito de discurso, como uma espécie de porta-voz de uma época. O problema da citação está no centro desta questão. Como nos lembra Ellmann (1987), esta teoria do impessoal tem uma longa genealogia, mas Eliot foi o responsável pelo reaparecimento destas idéias em nosso século. Pound (1986) também utilizou este procedimento em seus Cantos, pois ele tenta barrar a mão do autor com as proliferações de citações e referências diversas.

Deduzimos daí um colocar em questão a "superpotência" do ego do escritor. Este aspecto nos permite ver com clareza a contemporaneidade e afinidade destes métodos com o procedimento psicanalítico. Se lembrarmos uma frase de Mallarmé - "Diante do papel o artista se faz" -seríamos tentados a dizer que com Eliot ele se "desfaz". Eliot procurava se opor ao individualismo dos românticos. Para que não se confunda os elementos em questão vale ressaltar que este movimento de apagamento do sujeito não implica o apagamento da função da autoria: "O que é que esta regra do desaparecimento do escritor ou do autor permite descobrir? Permite descobrir o jogo da função do autor." (Foucault, 1992, p.80).

Este "impessoal" representava para Eliot um movimento de se esvaziar de suas vivências mais íntimas. Esta atitude permitiria ao poeta ocupar um lugar bastante singular, pois ele poderia servir de espelho para sua época. Evidentemente não podemos falar de um método de recalcamento do "pessoal" em sentido estrito. Trata-se, sobretudo, da articulação deste "pessoal" com uma tradição que o ultrapassa. Eliot sustenta a idéia que o poeta deve servir de catalisador da experiência de seu tempo, recolhendo estes elementos em diversas fontes. De certa forma, com seu The Waste Land, ele procurou esboçar o que ele nomeava como "a mente da Europa".

Nesta perspectiva, podemos dizer que o verdadeiro poeta para Eliot é aquele que sabe escutar o seu tempo. Podemos deduzir daí como a subjetividade - este mundo de opiniões - pode se constituir como obstáculo. Somos tão agarrados à nossa imagem, aos nossos preconceitos, ao nosso cotidiano, às nossas opiniões, que nada mais fazemos do que as repetir com insistência. Mas, se há um movimento de queda/apagamento deste sujeito em nossa escuta do mundo, é ao escrever que poderemos reencontrar o "particular" de um estilo e a produção de um novo sujeito. Toda esta reflexão inaugurada por Eliot vem interrogar o lugar do autor. Dito de outra forma, suas proposições, tentam indicar um outro lugar possível e desejável para o autor e, conseqüentemente, para o escritor, liberando assim o poema de seu narcisismo.

Este narcisismo faria resistência à tradição. De certa forma, Eliot sofre de reminiscências no nível de sua escritura. É com seu The Waste Land que uma tradição esquecida ressurge. Maud Ellmann se refere à afirmação de Freud (1893-1895) nos Estudos sobre Histeria onde diz: "as histéricas sofrem de reminiscências", para dizer que The Waste Land é o mais histérico dos textos.

De alguma forma, Eliot ilustra com este poema a necessária condição de exílio de quem escreve e o escrito que surge como testemunho desta condição. A lógica de seu método aponta-nos este movimento de descentramento subjetivo necessário à produção de um novo sujeito do texto. Vemos, por conseqüência, a demonstração de uma das teses lacanianas - inspiradas no texto freudiano - de que devemos pensar o sujeito como efeito do significante. Este autor teria que ser pensado como ficção que vem cumprir sua função na medida em que instaura uma discursividade (Foucault, 1992, p.59). Esta autoria consequentemente implica uma multiplicidade de eus. Um dos ensaios mais esclarecedores e inovadores sobre este tema, e que nos permite revisitar estas idéias com novos elementos, é o belo livro de Ana Maria Costa A ficção do si mesmo:

O "eu" se situa como uma ficção construída no lugar de um dejeto corporal, que necessita do reconhecimento do outro para que se torne algo possível de compartilhar. É a partir dessa necessidade que se instaura na cultura a temática do engano ou da verdade, orientadora de todo um pensamento situado desde a metafísica até a hermenêutica, na busca da interpretação. Se a psicanálise possibilita um estatuto de verdade à ficção, é desde que ela desloca a questão da verdade para o ato enunciativo. (Costa, 1998, p.127).

São estes movimentos que procurei pontuar em minha reflexão, lembrando Twombly, Champollion e Eliot entre outros que mencionei. Suas obras testemunham com muita precisão esta operação de descentramento tão magnificamente desenvolvida por Severo Sarduy no seu livro sobre o Barroco. Ele mostra esta passagem da lógica circular coperniciana, onde impera a idéia de um centro, para a cosmologia barroca, ilustrada pela descoberta de Kepler do movimento em elipse que o planeta Marte faz em torno do Sol. A elipse desorganiza o campo de um único centro como organizador do espaço. Foi por isso que Kepler, depois de anos de observação, ao constatar este movimento procurou, num primeiro momento, negar o que tinha visto, tão fortes eram "as conotações teológicas e a autoridade icônica do círculo, forma natural e perfeita." (Sarduy, 1975).

Poderíamos então dizer que este novo sujeito vai exigir do espectador/leitor um verdadeiro trabalho de leitura, pois somente suportando este desequilíbrio, esta ameaça de queda e de perda, é que talvez possamos encontrar um lugar para nós nestas obras.

 

 

SOUSA, E.L. The Unconscious and the Conditions of an Authorship. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.225-38, 1999.

Abstract: This paper considers the following questions: what is an author? What conditions can an author be legitimated in? Can the experience of the unconscious replace the classic question of the place of the author? Considering the act of writing that establishes in the subject a necessary exile condition, the discussion introduces the idea of an effacement of the place/suject so that the place/author can appear. Among other examples the present paper considers T.S. Eliot's work.
Index terms: Unconscious. Handwriting. Writer. Subjectivity. Poetry.

 

 

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1 Este artigo é uma versão ampliada de algumas idéias apresentadas no ensaio "O inconsciente entre o escrito e o escritor", Revista da APPOA, Porto Alegre, n.15, 1998.

2 René Passeron dirige a revista francesa Recherches Poïétiques. Publicou inúmeros livros dos quais podemos destacar: Oeuvre picturale et le fonctions de l'apparence. Paris, Vrin, 1962, 2.ed. 1986; Histoire de la peinture surréaliste. Paris, Le livre de poche, 1968; Pour une philosophie de la création. Paris, Klincksieck, 1989; La naissance d'Icare: éléments de poïétique générale. ae2cg éditions, 1996.

3 Algumas pinturas de Cy Twombly foram recentemente mostradas na XXIV Bienal de São Paulo, 1998.