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Análise Social - Revolução e Cidadania: Organização, Funcionamento e Ideologia da Guarda Nacional (1820-1839)

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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.180 Lisboa  2006

 

Arnaldo da Silva Marques Pata, Revolução e Cidadania. Organização, Funcionamento e Ideologia da Guarda Nacional (1820-1839), Colibri, 2004, 180 páginas.

 

Em 1872, o Memorial Diplomatique, de Paris, publicava um estudo sobre Portugal, traduzido como «Vida constitucional de um povo de raça latina». O seu conteúdo agradou à classe política portuguesa: nele equiparava-se a vida política de Portugal com as da Suíça, Bélgica e Holanda, diferenciando-a da turbulenta e militarista Espanha; em suma, o país era louvado pela regularidade do seu funcionamento institucional. Como rasgo do «bom senso» dos portugueses, o artigo destacava que, de entre todos os países onde se instituíra a Guarda Nacional, Portugal foi o primeiro onde se reconhecera a sua «inconveniência».

Essa «inconveniência», no entanto, não foi óbvia para os liberais de vários países europeus ao longo de quase um século. Por isso, qualquer tentativa de compreender o que eram a cidadania e a acção política da época das grandes revoluções não deve deixar de questionar os significados albergados por uma instituição destas características — ou seja, uma força armada formada, idealmente, por todos os cidadãos fisicamente aptos e com «algo que perder»; uma força que, ainda por cima, se organizava de forma democrática, com os suboficiais e oficiais eleitos por e entre os próprios cidadãos-soldados que formavam cada secção da Guarda. A renovação da historiografia sobre a experiência da cidadania no nascimento do mundo contemporâneo exige o estudo destas instituições onde se pretendeu encarnar o ideal republicano do cidadão-soldado, do virtuoso patriota armado, em condições de deliberar de forma colectiva, tomar nas suas mãos a defesa do bem público e, em situações de crise institucional, encarnar a soberania nacional. Igualmente, a história do desmantelamento das guardas nacionais, o «reconhecimento da sua inconveniência», tanto em Portugal como em França, Espanha ou noutros países onde instituições semelhantes funcionaram, para além de corresponder ao final da era das revoluções liberais, também nos revela o final de uma época onde a sociedade liberal era imaginada como uma comunidade de cidadãos unidos por um interesse público comum. Passou-se então a reconhecer a complexidade social, a conflitividade dos interesses presentes e a necessidade de apurar a existência de agências armadas especializadas na coerção pública — como polícias ou gendarmerias —, separadas da cidadania comum e sujeitas, já não directamente à capacidade de deliberação dos cidadãos, mas sim à lei e aos poderes públicos. As milícias de partido, próprias do século XX, fazem parte de outro mundo.

Revolução e Cidadania, o trabalho de Arnaldo Marques Pata, não podia ser mais oportuno. Nele se analisa, pela primeira vez numa monografia, a organização e a vida da Guarda Nacional em Portugal — apesar de o grosso da análise se limitar ao caso de Lisboa. Originalmente, o trabalho foi redigido como tese de mestrado na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, orientada pelo professor Espinha da Silveira, e incorpora, como fonte sistemática fundamental, os fundos sobre a Guarda Nacional que se encontram no arquivo do Ministério do Reino, apesar de trabalhar também fontes impressas da época e a historiografia contemporânea.

O livro divide-se em seis capítulos coerentes e bem ordenados. O primeiro retrata os projectos de guarda nacional das experiências liberais da década de 1820 — que não tiveram a possibilidade de se consolidarem institucionalmente. Também identifica os elementos ideológicos por trás do projecto das guardas nacionais, colocando-o em relação com duas experiências históricas bem conhecidas pelos liberais portugueses da época: a francesa e a espanhola. O segundo capítulo analisa a implantação das guardas no território português a partir de 1834, uma vez finalizada a guerra civil e aproveitando a desmobilização do exército libertador e dos numerosos batalhões de voluntários que tinham participado na contenda. Neste capítulo atende-se tanto às formulações doutrinárias como aos problemas de organização no conjunto do país entre 1834 e 1838 — a falta de motivação dos cidadãos e autoridades responsáveis, os problemas na obtenção de armamento ou uniformes, a desconfiança política perante a possibilidade de se estar a armar guerrilheiros miguelistas — e, finalmente, a alguns valiosos serviços de ordem pública prestados pelas guardas nacionais contra salteadores ou guerrilheiros. Os restantes capítulos centram-se no caso dos batalhões da Guarda Nacional de Lisboa. O terceiro, sobre a sua organização, os seus serviços de guarnição e a sua vida interna; o quarto, sobre as eleições para oficiais, ressaltadas como um elemento fundamental do seu carácter democrático. O autor, neste capítulo, aproveita para elaborar um retrato da composição sócio-profissional desses oficiais e cruzá-lo com a avaliação das suas preferências políticas, tal como eram vistas no Ministério do Reino, mostrando assim que — nesse nível — não havia diferenças quanto à origem sócio-profissional entre oficiais exaltados, ordeiros ou cartistas. O capítulo 5 trata do protagonismo político da Guarda Nacional entre a revolução de Setembro de 1836 e os confrontos de 1838 com o exército; finalmente, o capítulo 6 retrata a vida dos batalhões lisboetas após a derrota dos exaltados em 1838 e o seu progressivo desarmamento.

Na historiografia portuguesa interessada pelos acontecimentos políticos, a Guarda Nacional foi retratada quando, juntamente com o batalhão do Arsenal da Marinha, protagonizou a revolução de Setembro, se opôs à Belemzada e resistiu às políticas do setembrismo ordeiro em 1838, agindo nestes últimos casos como guardiã da pureza setembrista. Marques Pata volta a analisar a participação das guardas nacionais de Lisboa nestes acontecimentos, mas também realiza uma operação clarificadora: delimita o alcance da mobilização dos cidadãos-soldados, referindo que apenas uma pequena parte dos 21 batalhões lisboetas acudiu às rebeldes percussões de tambor, enquanto os restantes se mantiveram fiéis às autoridades ou, mais frequentemente, desmobilizados. Deste modo, o autor delimita o efeito da politização radical ou exaltada dentro das guardas lisboetas, notando que na jornada decisiva de 13 de Março de 1838 apenas acudiram à mobilização aproximadamente 800 dos 10 800 alistados. Por um lado, se tivermos em conta que o alistamento nas guardas, com as respectivas excepções, era universal entre os cidadãos com direito de voto, não resulta surpreendente que a força de uma facção política minoritária fosse limitada. Por outro lado, esta constatação não incorpora a passividade dos cidadãos-soldados ordeiros, cartistas ou miguelistas, que, ao menos em Lisboa, não converteram os seus batalhões em armas das suas próprias preferências políticas. Apesar de o autor não perguntar explicitamente por que é que a Guarda Nacional lisboeta não contemplou outro tipo de politizações, recolhe informação que reforça a imagem que levou Costa Cabral a desarmar as guardas e deixá-las languidecer. Em primeiro lugar, a procura de isenções por parte dos cidadãos e, em segundo, o protagonismo de alguns exaltados. Segundo conta o autor, o serviço na Guarda Nacional — a instrução, as rondas, os serviços de guarnição, algumas detenções ou escoltas de presos — não era apreciado pelos cidadãos, que valorizavam mais a livre disposição do tempo e a eleição dos ambientes sociais onde se relacionarem. Tratando de não servirem em batalhões, procuravam justificações, certificados médicos, faziam uso da sua influência social e pessoal ou, finalmente, pagavam a substitutos assalariados, os «marcas». Perante esta desmobilização da cidadania respeitável e a sua disposição para pagar, ilegalmente, as isenções, alguns aventureiros exaltados terão, de facto, podido fazer do serviço na Guarda Nacional a sua profissão. Como comandantes ou oficiais intermédios, recebiam dinheiro a troco de eximirem os cidadãos e, com o tempo, obtinham a lealdade dos «marcas», que também se convertiam em guardas profissionalizados.

Esta explicação é consistente; no entanto, o autor não contribui com provas definitivas que possam descartar a interpretação alternativa, a dos próprios «patriotas» que viam na acção politizada das guardas a expressão «da parte sã da nação» (p. 125), ou seja, daqueles cidadãos dispostos a sacrificarem a sua vida privada em prol do benefício do bem público, ao contrário daqueles que fugiam dos seus compromissos com o bem comum e procuravam isenções para não servirem na Guarda. Para intermediar estas duas leituras — que não são totalmente incompatíveis — seria necessária uma aproximação mais minuciosa à vida das guardas nacionais: quantificar a presença dos «marcas», a percentagem de substituições entre os 300 ou 400 soldados que se deviam apresentar ao serviço cada dia e ainda a carga mensal de serviços realizados por aqueles cidadãos-soldados que cumpriam correctamente as suas obrigações. Outra suposição do autor que não é suficientemente contrastada é a de que a ideologização radical penetrou nas guardas através dos seus comandantes (p. 123), deixando de lado a possibilidade de a eleição desses comandantes ser o produto de uma composição social e política prévia de cada um dos batalhões — ele próprio informa-nos de que 39,4% dos oficiais eleitos eram exaltados — ou de que o ethos do radical, um tipo de cidadão com vocação activista, conhecedor da organização e disposto a sacrificar o seu tempo nela (pela sua própria disponibilidade), tivesse êxito como líder interno, sem que isso pressuponha uma representatividade. Esta hipótese poderá também explicar outro dado ressaltado pelo autor: o facto de grande parte dos homens das secções da Guarda Nacional que lideraram os cidadãos-soldados nas situações críticas não terem sido os comandantes formais, mas outros improvisados ou interinos.

Seria enriquecedor para a nossa compreensão da década de 1830 em Portugal que se realizassem estudos similares ao de Marques Pata para as guardas nacionais de outros distritos, onde, além dos serviços de ordem pública, também havia tanto indolência como politização, por vezes de cor distinta da de Lisboa. O batalhão de Santarém, por exemplo, foi dissolvido depois de se ter incorporado num pronunciamento cartista em 1837. No entanto, essa compreensão da vida política da época seria ainda mais enriquecedora com a integração do estudo da vida das guardas nacionais com a de outros âmbitos de participação e obrigação política, tanto os informais (como os clubes) como os formais. Neste sentido, as eleições em seio da Guarda Nacional não se deveriam desvincular das eleições em muitos outros âmbitos, sobretudo durante os primeiros anos: eleições municipais ou para comissário/ regedor de paróquia, administrador de concelho, membro de uma junta de recenseamento, juiz, etc. Do mesmo modo, também a análise da obrigação com o bem comum no serviço na Guarda Nacional se deveria vincular com a de outro grande conjunto de prestações obrigatórias, como os impostos e o serviço militar na tropa de linha — que recaía, normalmente, na parte da população que não tinha recursos para ser membro da Guarda Nacional —, e a de outras figuras de serviço obrigatório ao Estado, como os cabos de polícia. Talvez apenas uma análise do conjunto dos vínculos de participação e obrigação possa dar conta do significado real das guardas nacionais e, simultaneamente, da condição de cidadania nos primórdios do liberalismo.

Apesar de o voo da imaginação historiográfica poder levar-nos a pedir mais — mais ainda do que as fontes disponíveis nos permitem dilucidar —, Revolução e Cidadania é, sem dúvida, um bom estudo que contribui com informação nova e reflexão, um trabalho que deverá ser tido em conta nas futuras revisões sobre a história política do primeiro liberalismo português.

 

DIEGO PALACIOS CEREZALES