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Lua Nova: Revista de Cultura e Política - Representation, popular sovereingnty, and accountability

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Lua Nova: Revista de Cultura e Política

Print version ISSN 0102-6445

Lua Nova  no.55-56 São Paulo  2002

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452002000100004 

Representação, soberania popular, e accountability*

 

Representation, popular sovereingnty, and accountability

 

 

Andrew Arato

Professor na New School for Social Research (New York)

 

 


RESUMO

São examinados cinco conjuntos normativos de demandas que têm a chance de reduzir o imenso hiato entre os representados e os representantes nas democracias modernas. Como um desses conjuntos, a accountability é mais facilmente entendida em relação aos outros.


ABSTRACT

Five normative sets of claim complexes that have a chance of reducing the immense gap between represented and representative in modern democracy are examined. Accountability, one of these sets, is best understood in relation to them.


 

 

O governo representativo é uma invenção ocidental medieval. Se preferimos a condenação de Rousseau ou o elogio de Hegel quanto ao sentido dessas origens medievais, em qualquer caso devemos certamente notar que a representação medieval não enfrentava problemas de legitimação. As assembléias dos Estados eram simplesmente apresentadas ao príncipe, diretamente ou através de mandatos imperativos das ordens so ciais que já eram poderosas e que mantinham ou aumentavam seu poder através da representatividade. Todos aqueles que eram considerados como parte da nação política estavam incluídos e não havia separação entre re presentados e representantes. Mas quando os herdeiros desses Estados, o Parlamento no século XVII e as Convenções Constitucionais ou Assembléias Constituintes no século XVIII, passaram a demandar que exercessem atividades constituintes ou legislativas baseadas na idéia de que representavam a soberania do povo, surgiu um problema de legitimação que não foi resolvido naquele período, nem desde então e que nunca será plenamente resolvido. Muitas das lutas em torno da elaboração da constituição revolucionária na Revolução Francesa tratavam do problema de como representar a soberania popular e, considerando que nenhum dispositivo institucional (veto real, apelos às assembléias populares) ou extra-institucional (insurreição popular, presença do povo nas galerias) pode resolver o problema, os resultados foram desastrosos tanto em termos de representatividade como quanto à possibilidade de um governo popular (Baker). A questão não é simplesmente, como afirma Bernard Manin, que as novas assembléias representativas teriam criado um governo aristocrático em nome de uma legitimidade democrática. Como ele próprio menciona, a teoria normativa do século XVIII (Rousseau, Kant ou Madison) fazia uma distinção entre forma de soberania e forma de governo.1 A soberania popular poderia funcionar nesta concepção com (e geralmente "apenas com") um governo não democrático e era relativamente fácil estender (de forma diversa ao que dizia Rousseau) o conceito de governo para incluir a legislatura. Dito isso, ademais, quanto ao que se deu ante riormente (se Manin me permite), ou seja, a sociedade de ordens e o absolutismo, o governo representativo moderno representava de fato a causa da democratização, mesmo que pelo seu critério seja irrelevante que as elei ções da democracia antiga sejam corretamente consideradas aristocráticas.

A inversão que se deu com a representação da soberania popular foi mais séria (como mostrou Edmund Morgan): os representantes que apelaram para a autoridade do povo constituíam de fato o povo e seu significado (como eleitores com qualificações específicas, como assembléias de ratificação eleitas de formas específicas, como poderes reparadores em governos poderosos). Dessa forma, parecia que sua autoridade advinha em última instância apenas de si próprios, no sentido mesmo de uma autocracia. Esta tensão (entre a exigência democrática e a autorização autocrática) levou a tentativas de expandir continuamente o sentido de povo postulado pelas legislaturas de modo que serviam a elas próprias, e assim levou a ló gica de inclusão, que Manin também reconhece como a dimensão democrática do governo representativo moderno. Se afirmamos que a autoridade vem do povo como um todo e não apenas daquele legalmente constituído, e obviamente parcial, então a legitimidade democrática supõe que o hiato entre o povo nesses dois sentidos seja constantemente reduzido. Da Constituição de 1793, da era de Jackson e da declaração de direitos da Reforma Inglesa ao sufrágio das mulheres e dos jovens e ao estabele cimento de direitos de voto para grupos étnicos excluídos e para residentes que moram há muito tempo no país, a história da democracia representativa tem sido a história da inclusão política.

Entretanto, a inclusão abre novos hiatos: quanto maior for o número de indivíduos econômica e socialmente frágeis incluídos nas eleições, maior será a diferença de poder entre os eleitores e o corpo dos re presentantes, entre os "dois corpos do povo" como se diz. A questão não é simplesmente que a eleição enquanto tal é um princípio de distinção, mas sim que um eleitorado sem educação formal, relativamente pobre e traba lhador tem muito mais dificuldades de observar, criticar e controlar os re presentantes eleitos do que os estratos sociais mais privilegiados de regimes re presentativos pré-democráticos. Os partidos políticos de massa, as insti tuições mais importantes das democracias representativas, não podem me diar a distância entre eleitores e representantes sem reproduzir internamente uma dualidade idêntica. Em outras palavras, somente se a distância entre re presentantes e representados puder ser relativizada os partidos políticos de massa poderão atuar de forma mediadora, o que depende ainda da solução interna que tenham dado ao problema da representação.

Neste artigo, enfatizo apenas o hiato entre cidadão e governo. De forma geral, considero cinco conjuntos normativos de demandas que têm chance de reduzir o imenso hiato entre os representados e os representantes nas democracias modernas. Como um desses conjuntos, a accoun tability é mais facilmente entendida em relação aos outros.

 

DIREITOS E CONSTITUCIONALISMO

Talvez a razão mais importante para que o hiato das democracias modernas entre representantes e representados não constitua uma nova forma de autocracia seja o fato de que o próprio governo tenha se tornado uma relação mais fraca e mais limitada do que na maioria dos regimes previamente existentes (Sartori). O cidadão moderno reposiciona o governante potencial das repúblicas passadas não apenas por ser a fonte de sua legitimidade,2 mas também por ser portador dos mesmos direitos. Quando garantidos, esses direitos dão poder ao cidadão e limitam os governantes, mas apenas se são realmente respeitados, geralmente mediante procedimentos jurídicos. Assim, o constitucionalismo junto com seus instrumentos mais importantes, a constituição escrita, formulada como regras legalmente aplicáveis, emendas e revisão constitucional, ajudam a legitimar a democracia representativa ao reservar certos poderes aos cidadãos e ao garantir que as regras do jogo não estejam à disposição dos representantes eleitos. O constitucionalismo é o mecanismo moderno mais importante para garantir a soberania popular, no sentido de ampliar para além dos re presentantes o círculo de participantes que são responsáveis pela elaboração e revisão das leis fundamentais.

Entretanto, o constitucionalismo não resolve todos os problemas relevantes. Em primeiro lugar, mesmo que nem todos os poderes sejam dados à legislatura, aqueles poderes que ela mantém podem ser usados de maneira injusta e podem tornar-se opressivos. Nenhum constitucionalismo pode antecipar e prevenir todas as fontes de injustiça. Em segundo lugar, as emendas à Constituição podem ser desrespeitadas pela legislação que resulta freqüentemente da elaboração da lei constitucional, na melhor das hipóteses de forma disfarçada. Em terceiro lugar, a revisão constitucional que pode evitar os dois primeiros tipos de abusos deve ser especialmente forte e ativa, e precisamente este tipo de revisão tem também problemas sérios de legitimação. Quando um tipo de aristocracia (a legislativa) é enfrentada por outra (a judiciária) é pouco provável que a legitimidade democrática seja incrementada. De fato, uma legislatura eleita tem mais possibilidades democráticas do que juízes não eleitos (especialmente se tiverem cargos vitalícios).

 

DELIBERACAO VS. IDENTIDADE

Diversamente da visão de Carl Schmitt, a democracia moderna de sociedades complexas e de grande escala não pode se basear numa identidade entre governantes e governados, mesmo no sentido dado por Aristóteles, alternância entre governar e ser governado. A democracia de referendo e mandato imperativo poderia definir o eleitorado como a verdadeira legislatura, mas somente ao custo de criar um processo de tomada de decisões incoerente e irracional e, ainda pior, com a impossibi lidade de que aqueles que tomam as decisões tenham a oportunidade e a capacidade de interagir e persuadir uns aos outros. Certamente, em princípio, a identidade na sociedade moderna pode ser vista em última instância em termos hobbesianos: o povo é constituído e ganha existência corporativa apenas através da emergência e da existência contínua de um poder soberano le gislativo. A vontade dessa pessoa ou desse corpo é portanto a vontade do povo, por definição. Ao passo que nos Estados Unidos, desde antes da Revolução, esta visão que reaparece como demanda de soberania parlamentar foi considerada como uma brecha para a tirania le gislativa, demorou algum tempo para que ela fosse totalmente desacreditada na França (segundo a visão de Sieyes), e ela mantém uma presença de licada em seu lar histórico, a Grã-Bretanha, como apenas a forma legal mas não política de soberania.3 O conceito de deliberação representa uma versão mais aberta e reconhecidamente incompleta desse segundo esforço de garantir a identidade. É a idéia de que uma vontade geral genuína pode ser alcançada apenas através da deliberação e persuasão mútuas que levam a uma "representação livre" e à rejeição da rigidez da democracia direta. No entanto, quando o corpo legislativo se oferece como o único solo de deli beração pública, as objeções permanecem as mesmas que no caso da versão doutrinária da soberania parlamentar: em nome do povo, a legislatura pode reproduzir pela discussão apenas sua própria vontade corporativa e, provavelmente, apenas a vontade parcial da facção mais forte. Mesmo que a deliberação legislativa seja monitorada e influenciada por processos so ciais de deliberação, não há, dentro de um modelo puramente deliberativo de democracia, garantias institucionais de que os interesses públicos não sejam usados de modo meramente retórico e que as contribuições da opinião pública sejam seriamente consideradas pela legislatura.

 

IDENTIFICAÇÃO E CONFIANÇA

A confiança nos representantes significa que acreditamos que o uso do interesse público e a consideração das contribuições públicas disponíveis sejam autênticos. Mas porque confiaríamos ou deveríamos confiar em pessoas que não conhecemos pessoalmente? A condição normal da democracia representativa moderna é a desconfiança e não a confiança. Ainda assim, é um truísmo empírico que exista realmente confiança nos líderes carismáticos e plebiscitários de partidos e governos. Carl Schmitt refere-se a isso como identidade, mas seria melhor falar de identificação. Trata-se na verdade de um processo através do qual os líderes eleitos superam a sensação de distanciamento entre eles, o regime representativo e os representados. A identificação funciona porque em contextos de mobilização as motivações do povo são influenciadas pelos líderes e porque o desejo de ser liderado torna-se uma motivação importante. Entretanto, como todos sabemos desde Weber, sob condições mo dernas a liderança carismática e a mobilização popular têm curta duração. A suspeita justificada de que o líder seja diferente do que parece ser está sempre presente, lado a lado com a identificação, e a democracia populista quase sempre torna-se autoritária, pois nas condições modernas uma parte da população não se identifica tão facilmente. Como se deu com freqüência na Argentina, as medidas autoritárias contra uma parte da população afetam inevitavelmente o resto, resultando numa crescente alienação política. A democracia enquanto identificação pode manter-se democrática apenas como um meio de ampliar a democracia, como aconteceu com alguns exemplos de política populista em nome da inclusão, mas nunca é um subs tituto de longo prazo para uma democracia institucionalizada.

 

SIMILITUDE E REPRESENTATIVIDADE DESCRITIVA

É inegável que é mais fácil confiar nos representantes se eles nos lembram, numa sociedade plural, todos os variados sentidos de "nós". Uma representatividade descritiva ou pictórica dos grupos sociais pode talvez ser considerada como um substituto à participação direta, sendo que a assembléia seria uma espécie de microcosmo do macrocosmo social.4 A afirmação de Manin de que as eleições se baseiam no princípio de distinção, e que portanto essa semelhança é impossível, não é capaz de derrubar a posição daqueles que advogam a favor da representação descritiva.5 Cada grupo pode e deve escolher aqueles que melhor o representam, e estes "me lhores" representantes podem no entanto assemelhar-se a seus grupos ori ginais em tudo exceto pelo poder que assumem. Ademais, um corpo representativo constituído de forma descritiva não precisa ser tão hostil a deli berações como numa assembléia de delegados com mandato imperativo, precisamente porque nesse caso os representantes devem deliberar em nome daqueles que representam. No entanto, a representação pictórica no sentido estrito tem um déficit democrático muito grave. Se os eleitos devem representar os grupos sociais de forma estrita, teria que haver uma preparação como na tradição dos sovietes supremos, que dificilmente podem ser vistos como paradigmas ideais da representação democrática. Se os grupos devem votar em seus próprios representantes (e quem determina quais grupos podem votar?) o resultado leva a uma representação pictórica somente se o eleitores forem obrigados a votar em um representante de seu próprio grupo – uma regra incompatível com a liberdade de se candidatar ou de votar de forma livre. Se grupos grandes e pequenos têm representação garantida, o princípio de uma pessoa um voto terá provavelmente que ser abandonado. Por fim, a representação proporcional, um dos métodos compatíveis com a liberdade eleitoral que pode gerar representatividade mesmo para pequenos grupos de identidade ou de interesse, não pode garantir que se produza uma representatividade descritiva.

 

ACCOUNTABILITY E AVALIAÇÃO RETROSPECTIVA

A deliberação, a identificação e a similitude fornecem apenas as ligações sociologicamente plausíveis entre representantes e os representados. Não há nada na representatividade pictórica ou descritiva per se que impeça legalmente os representantes escolhidos entre os membros de um grupo de violar os interesses daquele mesmo grupo. O mesmo pode ser dito a respeito de um parlamento deliberativo e de um líder com o qual as massas se identificam. Sem dúvida, a única conexão que a lei positiva (ou seja, criando sanções) pode oferecer é accountability baseada na capacidade dos eleitores, individuais ou grupais, de exigir que os representantes expliquem o que fazem (respondam por, sejam responsabilizados, sejam punidos ou mesmo recompensados pelo que fazem).6 Manin tem razão: accountability é uma avaliação retrospectiva, especialmente quando se trata de representantes eleitos que não podem ser forçados a cumprir as promessas e programas enquanto estiverem no cargo, mas que podem ser punidos por seus atos e omissões nas eleições subseqüentes.

Se os eleitores não podem (e não devem) obrigar os representantes a implementar políticas específicas, eles podem entretanto tornar tais atitudes do interesse do próprio representante – especialmente (como mostram estudos empíricos) se levarem em conta as atitudes de seus re presentantes nas eleições seguintes.7 Accountability não confina os mandatos como Pitkin parece indicar,8 mas limita e restringe o comportamento dos representantes se eles têm interesse em se reeleger. Representantes, de forma diversa de delegados e embaixadores, não têm instruções restritas e podem realmente violar as promessas e programas e ainda assim serem reeleitos. O que se avalia é seu desempenho geral, e se o distanciamento do ponto de vista dos eleitores levar ao sucesso, eles podem ser facilmente perdoados. Mas eleições regulares significa que haverá uma avaliação popular das ações passadas e que os representantes não podem, sem sérias conseqüências, afastar-se dos interesses e opiniões daqueles que constituem a suposta soberania das democracias. Accountability não é uma questão meramente formal por este motivo, como argumenta Pitkin, mas ela tem razão ao afirmar que não é em si mesma uma norma ou uma justificativa normativa de qualquer questão. No entanto, no seu fundamento encontra-se um "imperativo hipotético" no sentido kantiano. Se valorizamos a conexão entre representantes e representados, então é accountability um meio importante de reforçar esta norma democrática. Portanto, se estamos ou não convencidos dos poten ciais democráticos da deliberação, identificação e/ou similitude, seria absurdo negar que accountability política teria que ser, no mínimo, uma dimensão crucial de qualquer democracia moderna, onde não há mais identidade entre governantes e governados.

Estou discutindo aqui apenas a accountability política, que em si tem relevância direta na ligação entre representantes e representados. Sem dúvida, elementos que vi acima como o constitucionalismo, ou, de forma mais geral, como o governo da lei (pública) podem ser apresentados paralelamente à accountability legal dos representantes eleitos que, se infringirem a lei, devem responder por e assumir a responsabilidade por seus atos. Entretanto, esta forma de accountability não pertence ao povo, e não aproxima a distância entre governantes e governados exceto na medida em que constitui um dos instrumentos do constitucionalismo.

 

MODELO INSTITUCIONAL

Accountability política por si só pode garantir uma relação democrática entre representantes e representados, a existência efetiva de soberania popular num regime representativo moderno? Aqueles que elaboram a Constituição devem em qualquer situação conceber regimes de modo a reforçar accountability dos cargos políticos? Accountability pode ser estabilizada sem outros sistemas democráticos (que não sofrem o mesmo tipo de avaliação)? Para responder a estas questões, apresentarei o tipo ideal de regime de accountability pura, o qual em princípio pode ser o objetivo de todos os esforços em termos de modelo institucional. De modo não surpreendente, talvez, o modelo abstrato revela-se muito semelhante ao modelo de democracia parlamentar de Westminster, com algumas "melhorias".

Em primeiro lugar, um regime de accountability política pura deveria ser (como argumenta Juan Linz) parlamentar e, acrescentaria eu, baseado em uma única câmara legislativa. Accountability assume características de "identificabilidade" (Linz) ou de "designabilidade" (Manin), e a separação dos poderes sob um regime presidencialista (e mesmo o bicamaralismo) permite em princípio a atribuição de culpa a um outro poder com o qual é necessário fazer um acordo para alcançar certos objetivos. Note-se que, além do bicamaralismo, estaríamos rejeitando uma versão forte do federalismo, no qual as unidades estão presentes na legislação nacional através de uma câmara alta.

De modo semelhante, em segundo lugar, tal regime é incompatível com um governo de coalizão no qual a culpa pode se dissipar entre os parceiros. Dado que não apenas a representação proporcional mas mesmo as eleições em que a maioria simples de um partido o faz vencedor deixam espaço para se fazer coalizões, a regra eleitoral teria que ser de uma lógica de maioria mais forte do que o sistema inglês de maioria simples. Dado que, pelos motivos que explico a seguir, um regime de accountability precisa de uma oposição parlamentar que tenha voz, e não precisaria ser supermajoritária como a famosa lei de Saenz Peña na Argentina, por exemplo, seria suficiente que o partido mais votado recebesse, digamos, 51% das cadeiras. A disciplina interna de tal partido poderia ser então reforçada pela exigência de que, depois das deliberações, ele votasse em bloco. Ao se adotar accountability como único objetivo, com a adoção de regras de eleições por maioria, estaríamos certamente abandonando qualquer ênfase na similitude entre representantes e representados, que seria reforçada pela representação proporcional, e seria pelo menos possível (assumindo que não houvesse homogeneidade geográfica) pela regra de eleições individuais dos membros por maioria simples.

Em terceiro lugar, um regime de accountability política pura precisaria de prazos eleitorais curtos, de modos relativamente fáceis de dissolver a legislatura, e não poderia admitir limites de nenhum tipo a reeleições. Accountability se dá em função do tempo, pois dado tempo suficiente, as ações pelas quais um indivíduo pode ser responsabilizado podem ser esquecidas ou compensadas. O tempo de mandato deveria ser provavelmente de dois ou três anos. Certamente que um regime parlamentar torna o chefe do Executivo mais sujeito a avaliações do que um presidente, porque os votos de desagravo (e perda do cargo por motivos políticos) podem ocorrer a qualquer momento e não apenas ao final de um prazo rigidamente determinado. Portanto, trata-se de um regime de dupla accountability: o Executivo deve responder para o Parlamento, e o Parlamento para os eleitores. Podemos considerar que esta última accountability pode também, em princípio, ser reforçada se houver uma possibilidade institucional de destituição do cargo dos parlamentares. Esta possibilidade deve ser rejeitada apenas porque é incompatível com a atividade de controlar um governo parlamentar que poderia não funcionar se os membros estivessem constantemente em campanhas para reeleição. No meu esquema esta destituição do cargo é também potencialmente incompatível com a lógica de maioria (um governo poderia perder sua maioria e ser forçado a fazer coa lizões por estas destituições) e tornaria os representantes avaliáveis individualmente ao possível custo de que os partidos não o fossem. Mas a me lhor proposta que se aproxima da destituição seriam eleições parlamentares relativamente freqüentes e uma dissolução relativamente simples do Exe cutivo ou da maioria do Parlamento, que certamente melhorariam o sistema de accountability. Considerando que os eleitos não podem ser forçados a concorrer novamente (ou a viver eternamente), não há como garantir que todos serão avaliados. Entretanto, é evidente que limites nas possibilidades de reeleição ou de reassumir um cargo deveriam ser proibidos para membros do executivo e da legislatura. Um político que não se candidata a novas eleições torna-se politicamente (ainda que não legalmente) livre de ser avaliado por seu último mandato.

Em quarto lugar, seria necessário acabar com contribuições eleitorais privadas e manter um sistema público de financiamento das eleições. Uma pessoa ou um partido não podem ser realmente avaliados pelos eleitores se antes respondem a fontes especiais de financiamento. Pode não ser suficiente, como no Reino Unido, controlar apenas as despesas de campanha. As influências também deveriam ser limitadas a contribuições privadas muito pequenas.

Em quinto lugar, é fácil demonstrar que um regime de accountability pura é incompatível com o constitucionalismo como o conhecemos. Os modelos constitucionais que buscam reforçar ao máximo accountability não permitiriam emendas constitucionais aprovadas apenas por maioria absoluta e, ainda mais, nem revisões constitucionais jurídicas que fossem contra a maioria. Claro que maiorias absolutas não seriam problema se o partido vencedor tivesse assentos suficientes. Mais qualquer maioria quali ficada que necessitasse da participação de um grupo minoritário para aprovação de uma emenda constitucional diminuiria as possibilidades de accountability do partido majoritário, que poderia culpar a oposição pela não aprovação de determinada emenda e poderia inclusive permitir uma atuação falsa por parte dessa maioria ao votar a favor de mudanças constitucionais que já sabe que não serão aprovadas de qualquer modo. O mesmo pode se dar no caso da legislação que não seria proposta, ou seria proposta de modo puramente retórico, pela expectativa real ou simulada de que um tribunal constitucional a declare inconstitucional. Mesmo a possibilidade de adiamento pelos tribunais interfere na accountability pura, especialmente se os próprios juízes não são avaliados pelo eleitorado. Da mesma forma, juízes dos tribunais superiores deveriam ser eleitos por períodos curtos e com possibilidade de reeleição. Portanto, nota-se que o tipo ideal teria que excluir as duas mais importantes garantias legalmente definidas do constitucionalismo moderno, ainda que seja compatível com uma constituição escrita.

Um regime de accountability política pura poderia parecer-se com o seguinte. Seria diferente do parlamentarismo de Westminster apenas por ter uma única câmara, uma regra eleitoral que exigisse mais maioria, talvez uma constituição escrita, mandatos mais curtos e regras ainda mais estritas de financiamento partidário. Os críticos que retiram sua munição da longa história de funcionamento e das críticas dirigidas ao Parlamento britânico poderiam imediatamente destacar as óbvias deficiências deste modelo. Mas seus defensores podem também insistir no modelo de Westminster como uma prova da grande possibilidade de estabilidade democrática e de uma tradição de constitucionalismo informal num regime de accountability pura. Para mim o modelo de Westminster revela uma importante pré-condição de um regime que funcione baseado em processos de accountability: a existência de uma oposição leal no Parlamento. Esta característica altamente desejável, ainda que infelizmente não planejada, da lógica de governo britânica é importante, pois sem o monitoramento crítico — colocação do tema em pauta e exposi ção das propostas, ações e omissões de uma maioria governamental — o processo de accountability não poderia existir: os eleitores precisam saber por quais atitudes o partido majoritário deve responder à luz da gama de alternativas políticas que poderiam ter sido escolhidas. A existência de uma oposição leal coloca em destaque tanto as palavras como as ações do governo e personifica a existência de alternativas. Mas certamente uma oposição parlamentar leal só pode atuar desta maneira, como a maioria dos teóricos do século XIX e mesmo os críticos da democracia parlamentar perceberam,9 se houver debate livre, discussão e críticas que ultrapassem os limites do Parlamento e alcancem a esfera pública civil. Um regime de accountability só pode funcionar em consonância com a sociedade civil e a esfera pública.

 

SOCIEDADE CIVIL E ESFERA PÚBLICA

A necessidade de discutir a esfera pública para completar nosso modelo envolve inevitavelmente que o regime de accountability não pode ser algo puro, e que ele precisa (no mínimo) de uma dimensão de demo cracia deliberativa para que funcione. Na minha concepção esfera pública e a sociedade civil existem conjuntamente: o primeiro conceito aponta para os processos parcialmente institucionalizados de comunicação que são tão importantes na política democrática, ao passo que o segundo conceito trata do substrato organizacional dos grupos, associações e movimentos que são necessários tanto para a generalização da experiência de comunicação como para sua influência política. Enquanto o público atua no importante papel de monitorar as ações que serão posteriormente re compensadas ou sancionadas, as associações civis preparam os eleitores para participação coletiva e para reagir de modo que façam diferença nos destinos eleitorais de seus representantes. Atualmente, todos sabem que os que detêm cargos eletivos devem, acima de tudo, temer o julgamento retrospectivo dos grupos organizados.

Tanto a esfera pública como a sociedade civil vão além do mo delo de accountability pura. Ainda que não possa funcionar sem elas, já não se trata mais de um modelo puro. Isso se dá não apenas devido ao papel normativo da democracia deliberativa. Estamos corretos em considerar a esfera pública e a sociedade civil como mediações entre representados e representantes, como se reduzissem a distância e a tensão entre eles. Esta mediação não se dá apenas na direção de informar os representados e prepará-los para atos de avaliação retrospectiva. A discussão e a crítica também informa os representantes sobre o estado de espírito do eleitorado. Assim, eles são capazes de responder rapidamente à opinião pública, testar as conseqüências do abandono de certos programas e promessas, reverter o curso da ação quando necessário, e tentar persuadir o público através de palavras e atos. Nesta interação, os setores do eleitorado que se preocupam com determinados temas conseguem influenciar de modo antecipado e prospectivo o curso político. Através da sociedade civil e da esfera pública a democracia recupera parte do seu caráter participativo que havia se perdido. No entanto, quando a influência da sociedade civil e de seus movimentos chega bem perto da desobediência civil, alcançamos o limite da democracia representativa, além do qual ela está ameaçada por uma forma de poder ilegítimo.10 Enquanto órgãos de representação, as associações e movimentos da sociedade civil podem representar apenas uma parte menor dos cidadãos do que as assembléias representativas. Qualquer tentativa de exercer poder nestas bases reverteria o trabalho de inclusão sem o qual nenhuma política atual pode ser considerada como possuidora de legitimidade democrática. A esfera pública e a sociedade civil devem completar e complementar, ao invés de substituir, os processos de accountability dirigidos à representação.

Diferentemente das estruturas do governo democrático, as práticas muito desejáveis de uma esfera pública e uma sociedade civil vibrantes e influentes são apenas parcialmente planejáveis, e dependem em grande parte da capacidade de se constituir, organizar e atuar de forma autônoma.11 Neste ponto, minha preocupação é com aquilo que pode ser planejado. Podemos e devemos estabelecer de modo legal as estruturas a partir das quais a interação civil e pública são possíveis, e podemos fazer muito se garantirmos as liberdades fundamentais de associação e comunicação (de pensamento, de imprensa, de reunião, e mesmo de privacidade – a liberdade de retirar-se da comunicação e da exposição pública sem a qual as outras não são possíveis). Na era da mídia eletrônica, um recurso ainda escasso, a regulação pode e deve ampliar seu trabalho de dar acesso e vi sibilidade para toda a pluralidade de grupos e de opiniões, algo que pode ser melhor cumprido por uma variedade de formas institucionais (de Estado, privadas e públicas) assim como regras que garantam a eqüidade de oportunidade política.

Finalmente, dado que as organizações e iniciativas da sociedade civil têm um papel social, pode ser possível e desejável garantir-lhes os recursos sociais necessários. Considerando que uma sociedade democrática não precisa incrementar a influência de organizações não democráticas, a democracia interna deveria talvez ser a pré-condição para financiamento público. Não há dúvida de que direitos de comunicação, de democracia da mídia e de financiamento público garantidos constitucionalmente são contribuições importantes ao desenvolvimento de uma cultura na qual a sociedade civil e a esfera pública possam reforçar um regime de accountability. Ainda assim, muitos exemplos históricos indicam que nem um sistema de accountability genuína nem uma esfera pública forte podem existir em sociedades nas quais formalmente tudo isso se cumpre.12

 

VOLTANDO AO MODELO INSTITUCIONAL

É preciso notar dois aspectos. Em primeiro lugar, não basta de cretar as normas mais relevantes: para que sejam institucionalizadas, elas precisam também ser cumpridas. E em segundo, assumindo que todos os direitos relevantes estejam institucionalizados, e portanto sejam garantidos, ainda assim é óbvio que nenhum modelo institucional pode garantir que os atores sociais realmente se organizem, participem da discussão pública e envolvam-se com a política. Estes aspectos remontam a outras formas pelas quais um regime de accountability é por si só incompleto.

 

MAIS CONSTITUCIONALISMO

O regime típico ideal descrito aqui como aquele de accountability política pura é talvez o tipo de regime democrático mais poderoso que se possa imaginar. Os mesmos fatores que tornam suas ações identificáveis e designáveis sem ambigüidade, e portanto suscetíveis de sofrer uma avaliação posterior, são aqueles que tornam o governo neste regime tão unificado, poderoso e capaz de ações decisivas e até mesmo unilaterais. Tal go verno pode usar seu poder para reforçar continuamente a possibilidade de um regime sofrer constantes avaliações eleitorais. Em certa medida, foi o que se deu no Reino Unido no século XX mesmo antes do surgimento de instituições européias. Mas esse tipo de governo também pode usar seu poder para reforçar a administração e tornar inviáveis as atividades das oposições, especialmente as extraparlamentares. Evidentemente, foi isso que o Parlamento de Westminster fez ao longo dos séculos XVII e XVIII. Os poderes que serviam aos propósitos daqueles que dominavam o governo são muito bem simbolizados por alguns dos termos que se tornaram a marca da história do regime de Westminster: "Long Parliament" e "Septennial Law". Certamente não se considera hoje a possibilidade de que o Parlamento estenda seu próprio mandato por simples estatuto. Estes resultados foram gerados por fatores específicos da história britânica, e têm pouca relevância geral. Evidentemente, são os aprendizados negativos do período inicial de formação do governo parlamentar que se tornam instrutivos pelo menos para as novas democracias, se não quisermos esperar cem anos ou mais para alcançarmos a forma de regime democrático a que aspiramos. No Reino Unido é o poder da sociedade civil que previne que o Parlamento aprove uma versão moderna da lei septenal, que não seria ilegal ou inconstitucional mesmo nos dias de hoje. Em muitas democracias recentes, poderes legais deste tipo inibiriam drasticamente iniciativas civis e públicas que no Reino Unido controlam o abuso destes poderes. Portanto, devemos tornar ilegal o abuso de poder: um sistema de accountability legal é em quase todas as situações uma condição sine qua non para efetivar accountability política.

Em qualquer lugar com história recente de ditadura, excetuando certas minorias a maioria das pessoas têm memórias infelizes quanto a se opor ou criticar os governos. A não ser em períodos de grande mobilização, apenas um regime de observância formal dos direitos constitucionais e das regulações estatutárias da sociedade civil e da esfera pública pode dar a seu povo (e não apenas aos heróis) a confiança de exercer seus direitos mais importantes. Garantia de direitos significa que aqueles que mantêm cargos políticos estão eles próprios sujeitos às sanções legais: eles são legalmente responsabilizados por seus atos quer pretendam se reeleger ou não. Tal observância formal requer um sistema judiciário independente e não-político e um tribunal constitucional. Certamente há sempre o perigo de que este tribunal retire muito das atribuições dos políticos que são sujeitos a avalia ções, ao passo que ele próprio coloca-se como isento de avaliações. No meu ponto de vista, uma formulação mais precisa dos direitos, da jurisdição e da forma de ser membro do tribunal pode ajudar a evitar o resultado final de uma "proteção especial" ao tribunal constitucional mas o que realmente ajudaria seria a formulação de emendas que de forma diversa aos extremos norte-americanos e britânicos evitasse tanto dificuldades extremas como um procedimento puramente parlamentar. Quando há uma chance razoável de criar emendas constitucionais que revertam decisões judiciais, o Tribunal Constitucional não é mais totalmente isento de avalia ção – para os juizes, ver suas apelações anuladas representa uma sanção importante. Como na accountability política, a possibilidade de ver suas decisões anuladas pelo povo (aqui como emendas ao invés de poder eleitoral) é parte da accountability política de juizes que podem também ser sujeitos a processo de accountability legal através de impeachment. Ao passo que ambas as formas de accountability interferem na estrutura da decisão judicial de juizes não eleitos, neste caso apenas o julgamento político que possa reverter suas decisões é capaz realmente de criar um impedimento.

 

MAIS SIMILITUDE

Ninguém se dispõe a participar politicamente ou fazer pressão se não tiver nenhuma chance de gerar certa influência. Um governo de accountability pura pode ser poderoso demais para ouvir. A avaliação posterior do povo pode ser rebatida algum tempo depois quando for possível reinterpretar e justificar o passado. Dadas as vantagens políticas e financeiras, seria difícil conceber alguma estrutura intermediária que neutra lizasse completamente as vantagens daqueles que estão no poder, que podem, no entanto, manter suas vantagens de modo completamente legal. Portanto, é improvável, a não ser mais uma vez em contextos de grande mobilização, que as pessoas se organizem e façam demandas se não tiverem nenhuma chance de serem ouvidas. Ou as pessoas podem provavelmente organizar movimentos anti-sistêmicos que tenham a capacidade de desestabilizar a sociedade civil e o governo democrático. Mas se os cidadãos não verbalizarem suas demandas e não se organizarem em iniciativas e fóruns políticos, o papel da opinião pública de monitoramento e de geração de informação pode ser danificado, tornando accountability uma promessa vazia. Considerando que atualmente, em particular nos Estados Unidos, lobbies importantes e, acima de tudo, fontes de financiamento político têm acesso garantido, a estrutura política de influências da sociedade civil é imensamente desigual e deturpada. É evidente que todo o sistema de lobbies deveria ser reformado em um novo sistema de financiamento de campanhas, incluindo não apenas o financiamento público dos partidos, mas também das associações civis e das iniciativas que assumem o papel público de monitoramento.

Em nosso trabalho, Civil Society and Political Theory, seguindo a sugestão de Habermas, falamos em sensores do sistema político sujeitos à influência da sociedade civil. Argumentamos especialmente que a presença do público no Parlamento representa esta sensibilidade às discussões da esfera pública civil. Esta afirmação, correta até certo ponto, exigiria que muitos dos parlamentos atuais tomassem atitudes decisivas para restaurar a integridade do processo de deliberação. Certamente é fundamental que se trate sempre de uma questão aberta à qual grupos de interesse, identidade e opinião tenham força suficiente para atingir alguma representatividade descritiva. A auto-organização que atua através de representatividade proporcional e de pressão sobre os partidos que têm capacidade de fazer nomeações pode resolver a questão na maioria dos casos. Atualmente, eu desenvolveria mais longamente esta concepção, originalmente sob forte influência de uma idéia de discurso racional, argumentando que os debatedores parlamentares poderiam ser particularmente sensíveis às demandas sociais, na medida em que pelo menos alguns deles se identificassem com as condições de vida específicas que dão sentido a essas demandas. De modo semelhante, aqueles que portam as demandas sociais terão mais certeza de que serão ouvidos se os representantes que partilham suas expe riências de vida estiverem ali para compreender, retransmitir e ampliar sua mensagem.

Há duas versões indesejáveis e até perigosas desta idéia. As pessoas podem muito bem acreditar que os líderes plebiscitários as escutam e que vale a pena mobilizar-se por eles. Mas este projeto não complementa a noção de accountability, ao contrário a substitui, e não reforça a demo cracia, mas sim a expõe à manipulação autoritária. Ao invés de termos pessoas que controlam seus líderes, estes ganham formas não democráticas de controle sobre as pessoas. Ao passo que as pessoas podem crer erroneamente que o líder é igual a elas, a representatividade pictórica ou descritiva pode em princípio reproduzir uma semelhança até mesmo estatística com a sociedade como um todo. Mas, excetuando uma forma não democrática de escolher estes representantes (ou o perigo de escolher incompetentes, como numa amostra científica) a representação exata de identidades violaria o princípio moderno de representatividade. Os representantes se tornariam substitutos de identidades específicas, e baseariam suas tomadas de decisões em interesses particulares ao invés de interesses públicos. Mesmo que não houvesse mandato imperativo, e os representantes pudessem ser persuadidos se lhes fosse mostrado que seus eleitores sairiam ganhando com uma política à qual eles originalmente se opunham, a deliberação genuína, que deve se basear em pelo menos um projeto público comum, não poderia se dar.

A liderança plebiscitária, que normalmente inclui a eleição direta de presidentes, não pode se tornar compatível com um regime de accountability. O mesmo não é verdade quanto a alguns elementos da re presentatividade descritiva. A representatividade proporcional é um método competitivo democrático de eleições e tem a tendência, lógica e empiricamente demonstrável, de gerar pelo menos alguma representatividade descritiva. Para ampliar accountability dos representantes individuais pe rante os eleitores, pode-se planejar um sistema proporcional que consista apenas de representantes com mandatos em distritos eleitorais.14 Neste tipo de sistema haverá alguns representantes que representam pelo menos minorias discretas e isoladas, e certamente as mulheres. Se não acontecer de modo espontâneo, a legislação (como recentemente na França) pode garantir que seja compensador aos partidos representar aqueles que foram sistematicamente excluídos até então.

Certamente será sempre uma questão em aberto determinar em que medida os grupos de interesse, identidade e opinião são suficientemente notáveis para conseguir certa medida de representatividade descritiva. Espero que a auto-organização que atua através de representatividade proporcional e de pressão sobre os partidos que podem nomear possa resolver a questão na maioria dos casos. Apenas nos casos mais gritantes de exclusão, como as mulheres na França, a intervenção legislativa deveria apontar grupos específicos que necessitem de mais representatividade descritiva. Seja lá como for feito, é importante evitar o essencialismo demográfico ou, em outras palavras, o sistema de cotas. De forma restrita, a representatividade descritiva pode ter um papel importante dentro de uma estrutura geral de accountability democrática.

 

CONCLUSÃO

Accountability política é um princípio importante que pode ajudar a dar sentido à noção de soberania popular num regime de democracia representativa. Mas, se a consideramos como o único princípio importante, colocamos em risco a própria accountability. No nível do modelo institucional accountability deve ser complementada por instituições de delibe ração, constitucionalismo e representatividade descritiva. Mas a pré-condição mais importante para que um sistema de accountability realmente funcione é a atividade dos cidadãos nos fóruns públicos democráticos e na sociedade civil.

 

 

*A versão original deste texto foi apresentada na conferência "Políticas de Control Ciudadano en América Latina", Buenos Aires, Universidad Torcuato di Tella, em maio de 2000. Publicado em Enrique Peruzzotti e Catalina Smulovitz (org.) Controlando la política. Ciudadanos y medios en las nuevas democracias. Buenos Aires, Editorial Temas, 2002. Também em Peruzzotti and Smulovitz (eds.) Enforcing the rule of law. The politics of societal accountability in Latin America. Pittsburgh University Press. Tradução de Heloísa Buarque de Almeida.
1 Bernard Manin, The Principles of Representative Government. Cambridge University Press, 1997.
2 Bernard Manin, The Principles of Representative Government, op. cit.
3 Cf. A. V. Dicey, Introduction to the Study of the Law of the Constitution, NY,St. Martin's, 1961.
4 Hanna Fenichel Pitkin, The Concept of Representation. Berkeley, University of California Press, 1967.
5 Cf. Anne Philips, The Politics of Presence, Oxford, Oxford University Press, 1995.
6 Cf. Pitkin, op. cit., p. 55.
7 Bernard Manin, op. cit., pp. 179-180.
8 Pitkin, op. cit., p. 55.
9 Cf. Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, Moscou, Progress Publishers, 1977.
10 Cf. Jean Cohen e Andrew Arato, Civil Society and Political Theory, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1992.
11 Cohen e Arato, Civil Society and Political Theory, op. cit.
12 Como o caso da Hungria contemporânea, 10 anos depois de uma democracia recente.
13 Carl Schmitt, Der Hüter der Verfassung, Tübingen, Ger.:J.C.B. Mohr, 193.
14 Cf. meu artigo "The New Democracies and American Constitutional Design" Constellations. An International Journal of Critical and Democratic Theory, Vol. 7 , n. 3