It is the cache of ${baseHref}. It is a snapshot of the page. The current page could have changed in the meantime.
Tip: To quickly find your search term on this page, press Ctrl+F or ⌘-F (Mac) and use the find bar.

Psicologia USP - The masquerade and femininity

SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue2Parallelism between history and psychogenesis of the writing of musical rhythmCulture and coeducation between generations author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia USP

Print version ISSN 0103-6564

Psicol. USP vol.9 n.2 São Paulo  1998

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641998000200010 

A MASCARADA E A FEMINILIDADE

 

Walkiria Helena Grant
Instituto de Psicologia - USP

 

 

Marcada por produções freudianas, a literatura analítica e, mais especificamente, aquela influenciada pelo ensino lacaniano, não pára de mostrar que as considerações anatômicas não são índices para falar da diferença de identidade sexual entre homens e mulheres. Diante do fato de que características masculinas continuavam presentes em mulheres adultas normais, Freud responde que ser mulher é ser mãe. A vacilação da verdade desta equação pode ser observada nas situações mais diversas nas quais podemos nos defrontar com mulheres, mães, desempenhando papéis de homens. Como pensar esta constatação? Este trabalho permitir-nos-á mostrar a imbricação do feminino e do masculino num caso de uma mulher com todas as características de uma feminilidade considerada normal, e também discutir a questão do gozo fálico e do Outro gozo - propostos por Lacan como índices de diferenciação da posição masculina e da feminina.
Descritores: Feminilidade. Diferenças sexuais humanas. Castração. Freud, Sigmund, 1856-1939. Lacan, Jacques, 1901-1981.

 

 

Marcada por produções freudianas, a literatura analítica e, mais especificamente, aquela influenciada pelo ensino lacaniano, não pára de mostrar que as considerações anatômicas não são índices para falar da diferença de identidade sexual entre homens e mulheres. Aquilo que vai responder à questão do "que é um homem", bem como do "que é uma mulher", isto é, à diferença de sexos, é algo que está para além da materialidade do corpo enquanto portando ou não um pênis. O fator preponderante que determinará a questão da diferença sexual será o resultado de uma leitura do corpo marcado por um órgão sexual, a que uma família e um determinado sujeito, em certas condições sociais, podem proceder. Em outras palavras, o órgão sexual externo de um sujeito deverá ser interpretado pelo significante, num circuito de desejo que necessariamente percorrerá o sujeito e a família. Para que tenhamos uma chave importante desta interpretação significante feita pelo Outro, relativa ao sexo do bebê, vale retomar do texto de Freud (1923) A Organização Infantil, o conceito de primazia fálica. Este conceito indica que só há um sexo: o fálico, e duas maneiras de inscrição inconsciente: ter ou não ter o falo, dito de outra maneira, não castrado ou castrado. Assim, nomear um bebê como menino, já implica em atribuir-lhe atributos do lado do "ter o falo": virilidade, potência, racionalidade ... Do lado das meninas, os atributos seriam do lado do "não ter o falo" ou do serem "castradas", e poderiam ser nomeados como capacidade de doação, sentimentalismo, privação ... Vale ressaltar que, se as considerações anatômicas não são sem conseqüência na determinação do sentido da leitura feita pelo Outro quanto ao sexo de um bebê, sabemos que tais considerações anatômicas podem ser totalmente negadas, em prol da vertente do desejo.

No texto Sobre a Sexualidade Feminina, Freud (1931) indica três caminhos evolutivos possíveis, para os seres nascidos com a marca de um real de órgão sexual que os coloca como "mulheres", cada caminho sendo a resposta possível à repercussão que o complexo de castração pode ter num determinado sujeito: afastamento geral da sexualidade, tenaz auto-afirmação da masculinidade e, finalmente, a atitude feminina normal. Este último é o resultado de um processo prolongado no qual a castração surge como condição necessária de acesso à feminilidade. Para tanto, a menina que só conhecia na relação pré-edipiana a posição de ser o falo para a figura materna, como o menino, deverá, num giro para a fase edipiana, desprender-se da mãe e tomar o pai como objeto de amor. Esta mudança de objeto de amor, da mãe para o pai, implicará também em deixar de ocupar a posição de ser o falo materno para a de não ter o falo, caminho por excelência para a feminilidade. Um desdobramento importante correlativo à mudança de posição ocupada em relação ao desejo materno é a necessária mudança de sexo que a menina no seu rumo à conquista da feminilidade deverá viver: deverá abandonar o gozo clitorídeo, considerado por Freud tipicamente masculino, e aceder ao gozo vaginal, de caráter tipicamente feminino. Além da mudança de área de gozo sexual, podemos também apontar a problemática relativa ao modo de gozo no destino feminino: ativo ou passivo. A menina, que ocupava uma posição passiva diante da figura materna, deverá abandonar a passividade no seu movimento de desprendimento da mãe em direção à figura paterna mas, ao mesmo tempo deverá permanecer com a capacidade para gozar desta posição, ao "tornar-se mulher" para o pai. A conseqüência imediata do que acabamos de trazer e que não escapou a Freud, é que o gozo vaginal não substitui o clitorídeo: acrescenta-se a ele. Da mesma maneira, o modo passivo de gozo coexiste com o ativo, lembrando que este desempenha um papel importante no desenho do destino de uma mulher, como por exemplo a atividade necessária para que uma mãe possa cuidar do seu bebê.

Freud tenta dar conta da problemática relativa ao acesso à feminilidade hipotetizando que o pai funcionasse como uma verdadeira metáfora, remetendo a figura materna aos baús da pré-história individual. No entanto, a sua própria clínica não parou de demonstrar que traços típicos da fase pré-edipiana continuavam atuantes na vida adulta de uma mulher e passavam a coexistir com os da fase edipiana. Em outras palavras, poderíamos dizer que a problemática feminina gira em torno de um nó inarredável relativo à relação antiga com a mãe. "Tudo se passa na realidade, como se, para a menina, o pai nunca substituísse completamente a mãe, como se fosse esta última que continuasse a agir na figura do primeiro." (André, 1987, p.179). Nesta passagem, podemos marcar a fase edípica da menina primordialmente como desdobramento da pré-edípica e não como substituição: o desejo do pênis, o gozo clitorídeo, bem como o amor pela figura materna mantêm-se atuantes na vida de uma mulher adulta.

Em decorrência dos impasses apresentados pela teoria freudiana que, ao buscar um universal que desse conta do "que é uma mulher", deparava-se todo o tempo com características masculinas que continuavam ativas na vida da mulher adulta normal, Freud responde: ser mulher é ser mãe. A solução proposta por Freud para as mulheres parece não ter sido outra senão a elaborada na vertente do ter o falo - aqui entendida como ter filhos. A vacilação de verdade da equação ser mulher = ser mãe acreditamos ser bastante difundida na literatura e poder ser observada em situações diversas. Mais e mais mulheres nos dias atuais optam por não serem mães e, no entanto, em nada delas poderíamos suspeitar não serem femininas.

Miller (1993, p.88), em De Mujeres y Semblantes, marca outra solução possível para as mulheres que é a solução do lado do ser. Esta solução consiste em não tamponar a falta e sim trabalhar com ela, dialetizá-la, ser a própria falta. É nesse contexto que o autor caracteriza toda uma clínica "feminina" que seria a da falta de identidade, muito mais intensa entre as mulheres do que entre os homens. "Ser um nada", "não ser", seriam possíveis escritas de formas fantasmáticas que expressariam esta falta de identidade, marcante do lado daquelas que se inscrevem como mulheres.

Ainda tendo como parâmetro a saída para a feminilidade pelo lado do ter o falo, gostaríamos de abordar a Feminilidade como Mascarada, trabalho apresentado por Joan Rivière em 1929 e estranhamente não comentado por Freud em seus artigos sobre a questão da feminilidade. Esse trabalho permitir-nos-á mostrar a imbricação do feminino e do masculino num caso de uma mulher com todas as características de uma feminilidade considerada normal, e também podermos discutir a questão do gozo fálico e do Outro gozo - propostos por Lacan como índices de diferenciação da posição masculina e da feminina. Esses índices foram formalizados buscando um desvio da questão do "tornar-se mulher" pela via da estrutura edípica: a feminilidade fala de um ser que não se sujeita totalmente à castração. Decorrente deste fato, Lacan (1982), no Seminário "Mais, Ainda", acentuará menos a castração do que a divisão que o primado do falo impõe a um sujeito. Assim, um sujeito pode estar por inteiro na função fálica - logo, ser homem - ou, estar não-toda inscrita na função fálica - logo, ser mulher. É importante ressaltar que esta divisão proposta, ser homem ou mulher, é determinada pela escolha de uma posição subjetiva que será determinada pelo escuta do discurso de um sujeito, escolha esta que pode ser antitética à sua anatomia.

Como entender a afirmação feita logo acima, de que a mulher é não-toda inscrita na função fálica? Um dos aspectos que ressalta neste "não-toda", é o de uma divisão: parte está inscrita na função fálica, aquela que permite a um ser estar inserido no mundo simbólico, poder falar, comunicar-se numa dada ordem cultural. Outra parte, está fora da ordem fálica, fora do simbólico e com isto queremos ressaltar o que é da ordem do impossível de se dizer, do buraco, da falta. Esta partição feminina relativa ao gozo, aponta pois, um gozo dual: gozo fálico, da ordem do possível de ser dito; Outro gozo, aquele que a mulher guarda consigo por efeito de estrutura, uma vez que é da ordem do não dito.

 

Feminilidade Como Mascarada

Retomemos o trabalho de Rivière e sua proposta básica da feminilidade como mascarada. Nesse trabalho, a autora apoia-se num tipo particular de mulher intelectual e nos diz que tal tipo de profissão era associado quase exclusivamente, tempos atrás, com um perfil de mulher tipicamente masculino e, em alguns casos, tal desejo era assumido abertamente. Com o passar do tempo podemos constatar que a associação mulher intelectual-masculinidade não é necessáriamente sustentável.

De todas as mulheres engajadas no trabalho hoje, é difícil dizer se a maioria delas é mais feminina ou masculina no seu modo de vida e caráter. Na vida universitária, em profissões científicas e nos negócios, constantemente encontramos mulheres que preenchem critérios de desenvolvimento feminino completo. (Rivière, 1929, p.304).

Refere aquelas serem excelentes esposas e mães, cultivarem vida social e cultural, mostrarem cuidados com a aparência pessoal e, quando solicitadas, desempenharem o papel de mãe-substituta no círculo de parentes e amigos. Ao lado dessas características, apresentam um desempenho profissional no mínimo equivalente à média dos homens. Como pensar essas mulheres-homens? A autora apresenta-nos, logo no início, o fio condutor do seu pensamento: "as mulheres que aspiram a uma certa masculinidade podem se revestir de uma máscara de feminilidade para afastar a angústia e evitar a vingança que temem da parte do homem." (Rivière, 1929, p.303). Fazer semblante de mulher, revestir-se de suas aparências, seria então uma maneira tortuosa de poder dizer da masculinidade inerente a elas.

O caso clínico abordado por Rivière fala de uma mulher casada, relatando excelentes relações afetivas com o marido e com as pessoas com as quais convive. No plano profissional, engajada num trabalho relativo à propaganda que envolvia principalmente palestras e produção escrita, tinha como retorno uma carreira marcada pelo êxito. Esse quadro de aparente estabilidade era estremecido por um sintoma: a despeito de sua habilidade para lidar com performances públicas, ficava excitada e apreensiva toda a noite que se seguia à sua exposição com temores de ter feito algo inapropriado e apresentava uma necessidade obsessiva de reasseguramento. Tal necessidade de reasseguramento levava-a compulsivamente, em cada situação, a procurar a atenção de homens logo ao término de suas conferências. Mais do que cumprimentos relativos à sua performance, ela esperava desses homens a manifestação de um desejo sexual. O denominador comum a essas figuras masculinas procuradas é o de representarem a figura-paterna, que era literato e político. Podemos apontar a capacidade de ter uma produção escrita bem como de falar em público como traços identificatórios entre a paciente em questão e o pai. Coexistindo com a identificação paterna, havia uma marcante rivalidade com esta figura. Sua adolescência fora marcada por revolta para com ele, rivalidade e desprezo. Adulta, durante o trabalho de análise, produzia sonhos freqüentes onde castrava o marido. A rivalidade e o sentimento de ser superior a essas figuras paternas, particularmente durante suas performances públicas, eram um tanto conscientes, e era nesse contexto que precisava de seus favores após o término de suas apresentações.

A análise revelou que esse sintoma compulsivo de ser coquete e olhar de maneira cobiçosa para as figuras de homem-pai era uma maneira inconsciente de conter a angústia que adviria da represália proferida por aquela figura, após suas performances. Como entender essa represália da figura paterna, imaginada após um trabalho bem sucedido? Rivière nos relata que sua proficiência intelectual, apresentada públicamente, significava a exibição do falo que teria roubado do pai. Temendo sua represália, oferecia-se sexualmente para conter sua ira. Depois de ter exibido públicamente o falo, assumia a posição de mulher castrada. Fantasias de juventude bem como sonhos relatados, revelavam uma estrutura semelhante: após ter executado um ato com todas as características de ser denominado fálico, defendia-se das possíveis investidas daquele que poderia revidar tal ação, assumindo um papel passivo, mascarando-se de inocente.

Uma cena em dois atos: ter o falo, não ter o falo; em outras palavras, assumir a posição masculina, assumir a posição feminina como uma máscara. Eterno drama da mulher não-toda submetida à ordem fálica ... Feminilidade como máscara para dissimular a masculinidade que lhe é inerente é esta a grande contribuição de Rivière neste artigo. Não haveria, portanto, diferença entre feminilidade verdadeira e a que se reveste da máscara. Feminilidade é da ordem do uso de uma máscara - máscara de aparência feminina.

Retomando o sintoma apresentado pela paciente, seria interessante marcarmos sua necessidade de num primeiro tempo precisar exibir o falo, roubado do pai, para, só depois, poder se separar dele. A estrutura parece recobrir a demanda que emana da posição feminina enquanto tal. É como se fosse necessário primeiro haver o reconhecimento da posse do falo para, depois, o sujeito dar aquilo que não tem e, neste movimento, ser reconhecida como mulher.

A divisão que a mascarada põe em evidência nestes dois tempos: não-castrada/fálica, castrada/na devolução do falo, nos leva à designação que Lacan faz da mulher como não-toda no gozo fálico. Uma parte está fora, fora da linguagem e é esta, talvez, a função da máscara: recobrir esta inconsistência, este vazio que está para além do gozo fálico. A mulher não existe, nos diz Lacan (1982) no Seminário "Mais, Ainda". Uma das maneiras de entendermos esta afirmação é dizer que o lugar da mulher permanece vazio. Algumas vezes, nos deparamos com verdadeiros vazios, mas podemos encontrar máscaras que recobrem estes vazios. Decorrente deste fato é que tão freqüentemente vemos a associação entre mulheres e semblantes. "Ela finge, finge que ama ..." O semblante é algo cujo objetivo é o de velar o vazio, vazio presentificado no real do corpo em parte dos seres humanos e que aponta para a castração.

Podemos pontuar com mais clareza esta cisão observada na mascarada, se recorrermos ao grafo das fórmulas quânticas de sexuação que Lacan (1975, p.73)1 nos apresenta no Seminário XX e, que reproduziremos a seguir:

Fórmulas de Sexuação

n2a09f1.gif (2873 bytes)

 

Do lado Mulher deste grafo, observamos que saem duas flechas a partir de f9la2.gif (83 bytes), ou seja, do matema que representa f9a.gif (62 bytes) Mulher (f9la.gif (72 bytes) Femme). Essas duas flechas representam a partição do gozo feminino: de um lado ela goza no campo do lado homem, onde busca um significante fálico; de outro lado, observamos um gozo dentro do próprio lado mulher, o Outro gozo, um gozo suplementar ao fálico.

Quanto às fórmulas proposicionais apresentadas por Lacan neste grafo, ainda focando o lado mulher, temos na primeira fórmula, a escrita : f9x.gif (126 bytes) que indica a não existência de seres falantes que se posicionem deste lado que não estejam submetidos à ordem fálica, ou seja, não existe mulher que não esteja submetida à castração. Neste sentido, é que podemos entender a mulher enquanto ser falante, mergulhada na cultura, tendo um nome, uma identidade. No caso relatado, ser fulana, casada, publicitária ... Com estes dados, podemos entender quando Lacan (1975) nos diz:

... se a libido é apenas masculina, a querida mulher, não é senão de lá onde ela é toda, quer dizer, lá de onde o homem a vê, não é senão de lá que a querida mulher pode ter um inconsciente. E de que lhe serve isto? (...) para fazer falar o ser falante, aqui reduzido ao homem, quer dizer- não sei se vocês chegaram a notar na teoria analítica- a só existir como mãe. (p.233).

Ou seja, nossa mascarada , enquanto capaz de falar, ser uma profissional, reconhecer seu lugar como filha, esposa, eventualmente mãe, está reduzida a ser homem, e isto porque é com esta estrutura que podemos falar da existência de um inconsciente, de conteúdos recalcados que buscam se fazer dizer e dão consistência a uma noção de identidade para o sujeito. Neste sentido, a tão velha identidade ligada ao ser mãe localiza um sujeito, oferece-lhe uma consistência de ser. Ocorre que "ser mãe", coloca-se como uma resposta de ordem fálica, que não obtura a questão sobre o que é ser mulher. Uma mulher, como ser falante, está cindida da feminilidade que encarna. Se valoriza sua identidade e seu nome - gozo fálico -, perde o que lhe é próprio: o que aponta o vazio, o Outro gozo.

A segunda fórmula proposicional mencionada acima, f9x2.gif (137 bytes), nos diz que não-toda mulher está submetida à função fálica. Parte dela está fora da linguagem, é da ordem do indizível, do inconsistente. Neste contexto vale lembrar que usamos o significante Mulher para denominar a especificidade daquilo que está fora do significante ... como falar daquilo que não se pode falar? Esta ausência de um termo para dizer A Mulher deixa indeterminada uma identificação especificamente feminina. Ela escapa às palavras e está sempre em outro lugar que não aquele em que se diz estar. Perde a identidade e o nome, no caminho em direção ao gozo que lhe é próprio. Este gozo para além do falo, Lacan o denominou Outro gozo.

No caso relatado por Joan Rivière, a apreensão desse não-todo é feita de maneira sintomática, marcada por sofrimento, angústia, necessidade de reasseguramento, concessão de um favor sexual a uma figura do homem-pai. Numa alternância a exibir o falo, precisa fingir-se de mulher. Fingir-se de mulher, usar a máscara de feminilidade não demarcaria a passagem do gozo fálico ao gozo propriamente feminino? Neste sentido, a máscara da feminilidade, seus adornos, teria uma função de tela para recobrir aquilo que está para além do gozo fálico- a vacuidade, o nada.

Acreditamos poder focalizar "este nada", com um pequeno recorte de um caso clínico: uma professora universitária, bem sucedida profissionalmente, apresenta vários critérios de uma feminilidade normal, tal como proposto por Rivière no trabalho em questão. Logo após o término de uma palestra cujo retorno fora altamente favorável, cai, logo depois de se despedir do último aluno que a acompanhara até o estacionamento do prédio. Queda pura. Ao se levantar, percebe o ocorrido e lê as seguintes palavras num texto projetado perante seus olhos: "Não se pode apenas subir, tem que cair". Mais do que relacionar a capacidade de performance verbal, o subir, com o fálico, queremos focalizar a alternância com a queda e o relatado à despeito desta: "Queda pura ... é como se não tivesse vivido, não posso dizer se passou tempo, quanto tempo, se havia possibilidade de ver ... era vazio, nada ..."

Uma experiência única, difícil de ser relatada. Esta queda é acompanhada de um estado depressivo onde sente necessidade de apoio por parte do marido. Depois da subida, o desabamento do falo é condição para o esboço do Outro gozo.

"É para ser o falo, ou seja, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parte essencial da feminilidade, concretamente todos os seus atributos na mascarada", nos diz Lacan (1989, p.674).

Em decorrência do material relatado, acreditamos poder pontuar que a rejeição de uma parte essencial da feminilidade na relação com o parceiro, o Outro gozo, tem sua via de acesso reaberta pelo fracasso da continuidade da sustentação fálica, e a máscara da feminilidade é o véu que recobre o horror do vazio situado para seu mais além.

 

 

GRANT,W.H. The Masquerade and Femininity. Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.2, p.249-260, 1998.

Abstract: Marked by Freudian productions, the analytic literature and yet, more specifically those influenced by lacanian teachings, do not cease to demonstrate that the anatomic considerations are not indexes to speak of the differences of sexual identity between men and women. Given the fact that the male characteristics remain in normal female adults, Freud responds that being a woman is the same as being a mother. The oscillation of the truth regarding this equation can be observed in a variety of situations in which we can see women, mothers, carrying out the roles normally charged to men. How can one understand such a fact? This study allows us to show the male-female link in considering the case of one woman with all female characteristics considered to be normal, and also to discuss the questions related to phalic-bliss (jouissance phallique) and the question of the Other bliss (jouissance de l'Autre), proposed by Lacan as indexes of differentiation of the masculine and feminine positions.
Index terms: Femininity. Human sex differences. Castration. Freud, Sigmund, 1856-1939. Lacan, Jacques, 1901-1981.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987. Tradução de: Que veut unne femme?        [ Links ]

FREUD, S. (1923). La organización infantil. In: Obras completas. Trad. Lopes-Ballesteros y de L. Torres. 3.ed. Madrid, Biblioteca Nueva, 1972. p.2698-2700.        [ Links ]

FREUD, S. (1931). Sobre la sexualidad femenina. In: Obras completas. Trad. Lopes-Ballesteros y de L. Torres. 3.ed. Madrid, Biblioteca Nueva, 1972. p. 3077-89.        [ Links ]

LACAN, J. (1966). La significación del falo. In: Escritos. Trad. Tomás Segóvia. 15.ed. México, Siglo Veintiuno, 1989. p.665-75.        [ Links ]

LACAN, J. Le seminaire XX: encore. Paris, Seuil, 1975.        [ Links ]

LACAN, J. Seminário XX: mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1982. Tradução de: Le seminaire XX: encore.        [ Links ]

MILLER, J.A. De mujeres y semblantes. Buenos Aires, Cuadernos del Pasador, 1993.        [ Links ]

RIVIÈRE, J. Womanliness as a masquerade. The International Journal of Psychoanalysis, v.10, p.303-13, 1929.        [ Links ]

 

 

 

1Optamos por trazer a versão destas fórmulas de sexuação a partir do texto original, uma vez que existe equívoco na versão da edição brasileira.