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Love’s Old Sweet Song: A pesada herança do Modernismo (XVIII International James Joyce Symposium, Trieste, 16-22 de Junho de 2002)
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Noticiário

Love’s Old Sweet Song: A pesada herança do Modernismo (XVIII International James Joyce Symposium, Trieste, 16-22 de Junho de 2002)

Inês Lage Pinto Basto
p. 155-158

Texto integral

Just a song at twilight
When the lights are low,
And the flick’ring shadows
Softly come and go
Though the heart be weary
Sad the day and long,
Still to us at twilight comes Love’s old song
Comes Love’s old sweet song

1“Love’s Old Sweet Song” de J. L. Molloy foi o tema de abertura do Concerto para James Joyce que se realizou em Junho do ano passado no teatro Cristallo em Trieste no âmbito do 18º Congresso da James Joyce Foundation. E para quem duvidasse fica aqui a certeza de que os joycianos também choram – e cantam e tudo – desde que seja ao lusco-fusco e ao abrigo de uma cobertura cultural condigna.

2Ao fim de cinco longos dias de cotejo textual, despidos de modernismo e vestidos de gala, era vê-los crepusculares e românticos, de coração nas mãos, lágrima pronta e sobrancelha murcha a entoar ao som da orquestra da Opera Giocosa de Friuli-Venezia Giulia – sob a direcção do anfitrião, John McCourt, que por um tema usurpara o lugar do maestro Severino Zannerini – a canção que inunda o coração de Ulysses e por extensão o de todo o joyciano: Love’s Old Sweet Song. De resto, a matéria glosada – velha como o mundo, doce como as sereias, elementar como os homens – repetia-se com variações nas muitas áreas de Ópera, também ali celebradas, com que James Joyce impregnou toda a sua vida e obra.

3O que é que acontecera à Trieste de história sangrenta, confusa e mundana, à Trieste encruzilhada de impérios, à labiríntica e escandalosa Trieste a fervilhar de radicais apátridas ou de acérrimos patriotas? Era a mesma, esta que agora ali comodamente se espreguiçava junto ao Adriático, reformada, convencional, previsível, nostálgica? O que é que acontecera aos joycianos? Onde estavam, neste Congresso, as feministas? E os nacionalistas? E os progressistas? E os culturalistas crédulos? E os incrédulos? Que era feito do cepticismo cortante e isento dos estruturalistas? Alguém vira os pós-coloniais? Seria possível que Fritz Senn, crítico fino, hábil leitor de Joyce, intelectual de incontestáveis méritos e presidente da Zurich James Joyce Foundation se dedicasse agora, though the heart be weary, quase exclusivamente à fotografia, tomando por objecto preferencial as sereias da Universidade de Trieste que, renegando toda uma jornada de luta feminista, aceitavam posar a pedido frente ao zoom indiscreto do circunspecto patriarca – que, quem sabe, talvez só lhes perscrutasse as habilitações literárias ou apenas lhes tentasse captar a argúcia argumentativa ou medir a erudição ou sondar o grau de intimidade com o autor irlandês...?

4A prolongada doença de Edward Said impedira-o de comparecer, ficando a palestra final a cargo do marxismo inteligente e virtuoso do sempre elegante Terry Eagleton. Mas talvez até mesmo Edward Said, caso comparecesse, acabasse por se juntar ao coro e por “cantar” just a song at twilight, a julgar pelo seu belíssimo livro de memórias Out of Place, onde finalmente se acomodava ao incomodativo não-lugar que sempre ocupara, reconciliando-se com o pai e comovendo-se à média luz com um passado marcado por uma (des)ordem imperial já extinta num mundo “essencialmente perdido ou esquecido”. Filho de um árabe cristão de casual nacionalidade americana e temperamento vitoriano que detinha o monopólio da importação, para o Médio Oriente, das canetas Parker e das máquinas de escrever Royal (entre outras utilidades britânicas), o jovem Edward Said decorara nos bancos de escola de Jerusalém e do Cairo os rios e o relevo britânicos, iniciara-se na Palestina na Ópera e nos grandes compositores e escritores ocidentais, aprendera no Egipto a tocar piano e a falar francês e nos clubes do Líbano a jogar ténis. Sediara-se, por fim, em solo norte-americano para ser o revolucionário autor de Orientalism e de Culture and Imperialism, intelectual interveniente na causa palestiniana, crítico literário e cultural de rara inteligência e brilho que agora, when the lights were low, parecia querer acomodar-se ao lugar que encontrara.

5Um lugar deslocado ou ambíguo, mas corpóreo, como o da escritora Jan Morris que nos garantira na sua comunicação “Trieste and the Meaning of Nowhere” ter chegado à cidade ainda James Morris, oficial e cavalheiro da Marinha Britânica, ainda homem mas já escritor e já fascinado pela “ideia estética de Império”, tendo já encontrado em James Joyce um dos seus autores de eleição e na Trieste cosmopolita e indefinida a sua casa – por sempre ter preferido uma mancha imprecisa a um mapa detalhado, uma névoa a um sol a pique.

6Fora também essa a casa que Joyce adoptara para poder traçar à distância um mapa preciso e detalhado da enublada Dublin a que renunciara. Em Trieste, para onde fugira com Nora Barnacle, a mulher com quem viveria a vida inteira mas com quem só casaria “no fim” – muito depois da felicidade e dos filhos, porque nos contos de fadas modernistas a história também se repetia, mas com uma diferença – James Joyce fora mudando de casa por insistente sugestão dos senhorios, fora escrevendo para os jornais locais, fora proferindo conferências sobre a Irlanda e fora dando aulas particulares de inglês enquanto escrevia, procriava, bebia, cantava e... ia à Ópera. “Oito vezes seguidas, sempre a mesma música e o mesmo enredo”, protestava a mulher que não ia em cantigas ou o irmão Stanislau que o financiava: “Como professor deixa muito a desejar, como escritor é um fracasso, estão quase à fome, a criança não tem sapatos e ele... vai à Ópera!”

7Também os joycianos deste James Joyce Symposium, aparentemente esquecidos de agendas sociais, tinham preferido “ir à Ópera” por paixão, por conveniência, por devoção, por hábito, por presunção ou por desistência e o Congresso parecia mergulhado numa atmosfera de gala tardia, ora extremamente institucional – numa “continuação da matéria dada” para progressão na carreira académica com comunicações competentes mas, no geral, pouco inovadoras e pouco empenhadas – ora delirantemente passional, com a acção a desenrolar-se num palco onde quase só brilhavam, seguras, despreocupadas e caóticas, as incontestáveis estrelas de um mundo em vias de extinção: J. Hillis Miller, Hugh Kenner, Zack Bowen, que discutiam de forma livre, viva e descomplicada a comicidade, a simplicidade, a serenidade, o desassossego e a sublime estranheza de James Joyce. Ou ainda o já difamado Fritz Senn e, numa linha mais erótica, o provecto Austin Briggs que sob a condigna cobertura cultural providenciada pela ocasião – e por Joyce, o ladrão – salientavam, especificavam e recordavam “O Escândalo de Ulysses”, título de uma das mesas redondas e coisa que, pelos vistos, já vai tendo que ser salientada, especificada e recordada.

8Para Michael Groden, a música era indubitavelmente outra mas não menos arrebatadora. Ainda em êxtase, apresentou alguns dos livros de notas de Ulysses e de Finnegan’s Wake “que faltavam” e que foram recentemente doados à Biblioteca de Dublin pelos Léon, amigos parisienses do escritor modernista: um verdadeiro graal para muitos joycianos, autêntico banquete para os adeptos do Genetic Criticism. O material, ainda por organizar mas já certificado pelo próprio Michael Groden – que na noite da boa-nova nem dormira antes de responder ao chamamento e de atravessar o Atlântico para sopesar o tesouro –, não está, no entanto, disponível para consulta imediata e só poderá ser depois utilizado mediante autorização expressa do Joyce Estate, que é como quem diz do temível Stephen Joyce, o ganancioso e cioso Adamastor que, insone, guarda o cobiçado espólio do avô.

9Tal como a Ópera, excessiva, totalizante, passional, mundana e de origens pouco mais que humildes, também Joyce era agora “música erudita”, material valioso e prestigiante, com uma reputação quase imaculada de coisa distinta, distante, asséptica e highbrow – o intocável St. James, campeão da vanguarda, da ironia e da “ilegibilidade” que no cartoon de F. Scott Fitzgerald, aparecia etéreo e de auréola a presidir em Paris a uma categorizada congregação de fiéis, longe das lower intellectual orders, o ciclo do Inferno a que Pound condenara todos os que se não juntassem ao coro de acção de graças a Joyce e de louvor a Ulysses.

10Talvez por isso o expoente máximo da nova versão revista e actualizada das higher intellectual orders nos chegasse do exclusivo – e norte-americano – Pomona College e desse pelo nome inverosímil de Paul Saint--Amour. Embrulhado em cuidadosas roupagens pós-modernas o jovem portento, branco-lírio de negro vestido, consagrara a sua curta vida e vasto QI a ensinar, já não Ulysses, que entretanto se vulgarizara, mas Finnegan’s Wake, à nata ainda imberbe da sociedade e da academia norte--americanas. E o facto era que os jovens universitários de elevado potencial, conhecidos amantes de desportos radicais, se amontoavam, se acotovelavam e se esgatanhavam por uma vaga no curso de Saint-Amour, assegurava-nos o próprio, já que Finnegan’s Wake era, na definição do mesmo, “o Everest dos estudos literários” gerando toda uma dinâmica de “I’m gonna climb that mountain”. Isto apesar de Saint-Amour os ter avisado logo à partida, para o caso de virem ao engano, que o facto de se dedicarem à escalada de Finnegans Wake, embora conferisse um certo charme, podia não contribuir garantida ou directamente para o aumento do sucesso e para a melhoria da performance sentimental dos candidatos... Love’s Old Sweet Song.

11Afinal, Viriginia Woolf tinha tocado num ponto sensível (apesar de a vitalidade da escrita de Joyce lhe ter passado ao lado – e por cima) quando se referira ao escritor irlandês como “a queasy undergraduate scratching his pimples” e a Ulysses como “underbred” ou “the book of a self taught working man”. Por alguma razão, que não a óbvia hegemonia norte-americana e a indiscutível genialidade de Joyce, os estudos joycianos se tinham transformado, segundo Terry Eagleton, numa “colónia dos Estados Unidos da América” – a borbulhenta nação eternamente emigrante, adolescente, underbred e self taught; esse absorvente e inviolável não-lugar no cimo de um monte que, com o passar dos anos e o cair das torres, acabara por acomodar‑se ao canónico lugar no mapa que a ameaça de invasão ou de extinção tornava agora mais saudoso, mais solene, mais descarado e mais concreto.

12Os últimos manuscritos doados pelos últimos amigos; Edward Said a convalescer nos Estados Unidos; a frescura e o brilho de Zack Bowen e de Hugh Kenner (que tão bem conhecera Pound) condenados pelo passar dos anos; o mundo de Fritz Senn, de Austin Briggs e de tantos outros, em vias de extinção; o “escândalo de Ulysses” transformado em antiguidade modernista e explicado como quem explica a quem ainda lá não estava o 25 de Abril; a venerável Myra Russel a recordar as suas aventuras pioneiras de “musical and literary detective” num mundo de homens, atrás de pistas já esquecidas e de pessoas já mortas; o previsível painel “Joyce and Ground Zero” a lembrar também o fim de uma certa América e de uma certa modernidade: a já pesada herança do modernismo.

13Imersos na erudita feira do livro e da t-shirt alusiva (porque onde quer que estejam dois ou mais americanos reunidos em nome do que quer que seja, aí estará uma banca de merchandising e um theme park), às voltas num carrossel de comunicações, óperas, recepções e representações, prostrados perante uma fartura de bibliografia secundária, dis-traídos pelas desvairadas gentes e pelo brilho de palestrantes de todas as proveniências, sexos e idades, mal reparáramos que Hugh Kenner, deixando Stephen para trás a coçar as metafísicas borbulhas, abrira o Ulysses no capítulo 4 e começara a ler em voz alta. E Bloom, o dia e a surpreendente novidade da escrita entraram pela sala, como novos – still to us at twilight...

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Inês Lage Pinto Basto, « Love’s Old Sweet Song: A pesada herança do Modernismo (XVIII International James Joyce Symposium, Trieste, 16-22 de Junho de 2002) », Revista Crítica de Ciências Sociais, 64 | 2002, 155-158.

Referência eletrónica

Inês Lage Pinto Basto, « Love’s Old Sweet Song: A pesada herança do Modernismo (XVIII International James Joyce Symposium, Trieste, 16-22 de Junho de 2002) », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 64 | 2002, colocado online no dia 01 Outubro 2012, criado a 07 Março 2014. URL : http://rccs.revues.org/1247

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Autor/a

Inês Lage Pinto Basto

Tradutora e bolseira de doutoramento da FCT (“Primitivismo como Modernidade: Alberto Caeiro, Leopold Bloom e Jay Gatsby”). Integra o projecto “Memória, Violência e Identidade – Novas Perspectivas Comparativas sobre o Modernismo” do Centro de Estudos Sociais.
pintobasto@netcabo.pt

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