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Educação em Revista - Collective history and subjective constructions: a plot of narratives in a daycare center community

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Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698

Educ. rev. vol.29 no.1 Belo Horizonte Mar. 2013 Epub Jan 24, 2013

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982013005000001 

História coletiva e construções subjetivas: uma trama de narrativas em uma creche comunitária1

 

Collective history and subjective constructions: a plot of narratives in a daycare center community

 

 

Vanessa Ferraz Almeida Neves2

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Professora Adjunta do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino (DMTE/FaE/UFMG); Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil (NEPEI/FaE/UFMG) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Histórico-Cultural na Sala de Aula, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (GEPSA/FaE/UFMG). E-mail: vfaneves@gmail.com

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo entrelaçar as narrativas de educadoras e fundadoras de uma instituição de educação infantil e suas práticas de educação e cuidado de crianças em uma periferia economicamente empobrecida de Belo Horizonte. Através de uma abordagem etnográfica, reconstruímos algumas lembranças da construção desta creche comunitária e alguns momentos da própria infância das educadoras, consideradas como elementos centrais para a análise de algumas práticas institucionais. A análise das narrativas das educadoras e das suas práticas cotidianas demonstra que a forma de rememorar implica e está implicada na maneira de reconstruir tais práticas, muitas vezes garantindo os direitos sociais das crianças atendidas e, outras vezes, impedindo esses mesmos direitos.

Palavras-chave: Narrativa; Construções Subjetivas; Educação Infantil.


ABSTRACT

This article aims to entwine the narratives of teachers and founders of an early childhood education institution and their practices with children in the poor outskirts of Belo Horizonte. Memories of the foundation of this daycare center community and moments from the childhood of some of its teachers were gathered through ethnographic approach. These memories were considered as central elements for the analysis of some institutional practices. The analysis of the teachers' narratives and their daily practices shows that the way of remembering implies on the way these practices are reconstructed in the everyday life of the institution, either ensuring or hindering children's social rights.

Keywords: Narrative; Subjective Constructions; Early Childhood Education


 

 

O presente trabalho tem por objetivo entrelaçar as narrativas de educadoras e fundadoras de uma instituição de educação infantil e suas práticas cotidianas com as crianças em uma periferia economicamente empobrecida de Belo Horizonte. Por um lado, reconstruímos algumas lembranças da construção da creche comunitária3 e alguns momentos da própria infância das educadoras. São lembranças contraditórias, sofridas, contadas em meio a lágrimas e sorrisos, marcadas pela saudade, (re)construídas a partir da possibilidade de serem escutadas e colocadas em uma narrativa. Por outro lado, tais memórias e narrativas foram consideradas como elementos centrais na análise de algumas práticas institucionais.

Algumas reflexões desenvolvidas por Kramer (1998, 2004), que traz para um primeiro plano as narrativas de profissionais da educação infantil do Estado do Rio de Janeiro, foram importantes referências para o presente trabalho. Kramer, baseando-se em Bakhtin, defende que as histórias de vida e formação dos sujeitos são "[...] memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operativa do futuro." (KRAMER, 2004, p. 498). Nesse mesmo sentido, Cunha enfatiza a importância das narrativas de professores como "[...] alternativas pedagógicas na pesquisa e no ensino." (CUNHA, 1997, p. 185). Para essa autora, a construção de narrativas provoca mudanças nas maneiras como os sujeitos compreendem a si próprios e aos outros, abrindo possibilidades para a formação de consciências em uma perspectiva emancipadora.

No presente estudo, tal perspectiva é adotada. Entendemos que as ações das educadoras com as crianças são mais bem compreendidas a partir da narração das suas histórias de vida, em particular a reconstrução de momentos vivenciados na infância. Mais ainda, a análise das narrativas construídas revela que a forma de rememorar implica e está implicada na maneira de reconstruir as práticas no cotidiano, muitas vezes garantindo os direitos das crianças atendidas. Outras vezes, esses mesmos direitos são negados em momentos que interpelam algumas dificuldades ligadas a sofrimentos das próprias profissionais. Ou seja, não são apenas as histórias de vida das educadoras, mas também a narrativa construída a partir das experiências vividas de cada uma delas. Portanto, partimos do pressuposto de que não se recupera a história tal qual ela foi vivida, mas a memória reconstrói o que se pensa ter sentido/vivido.

As histórias dos sujeitos, suas memórias e narrativas, se entrelaçam com histórias outras: a história da constituição da instituição pesquisada; a história da educação infantil em nosso país; as histórias das crianças e de suas famílias. Essa tessitura particular nos permite articular uma memória que é socialmente construída. Aquilo que é possível lembrar ou esquecer não se refere apenas aos sujeitos de maneira particular, mas se refere também às possibilidades de narrar e significar a experiência em um contexto social específico. Narra-se um texto que é escrito coletivamente; lembra-se, muitas vezes, aquilo que é contado e recontado várias vezes pelos outros (BOSI, 1994, NASCIMENTO; MEDRANDO, 2005). Ao contarmos e escutarmos os outros, construímos um solo comum, uma tradição, no qual a experiência pode ser compartilhada (RICOEUR, 1976). Lembra-se também aquilo sobre o qual o presente nos interroga: a partir de nossas ações cotidianas, memórias são (re)construídas.

Assim, esse trabalho explora as relações entre narrativa, memória e experiência em busca de um melhor entendimento das práticas das educadoras na construção de um contexto de cuidado e educação de crianças em uma instituição de educação infantil. Dois temas, comida/fome e brincar/trabalhar, são organizadores das narrativas e das práticas das educadoras na instituição e serão analisados nas próximas seções.

 

NARRATIVAS DE UM COMEÇO: A INSTITUIÇÃO PESQUISADA, SEUS SUJEITOS E SUAS MEMÓRIAS

Os dados da pesquisa foram construídos através do diário de campo acerca das quase 240 horas de observações feitas ao longo de seis meses no cotidiano institucional, entrevistas com crianças e educadoras, fotografias (tiradas por mim, pelas crianças e pelas educadoras) e filmagens (realizadas por mim e pelas educadoras)4. Através de uma pesquisa realizada em 2004, buscamos as crianças e suas relações com a cultura e traçamos alguns sentidos e significados construídos pelos diferentes sujeitos acerca da instituição5.

Foi uma descrição densa (GEERTZ, 1989), em busca da produção de sentidos no grupo social investigado, que esta pesquisa teve como um dos seus objetivos principais. Por uma aproximação com o método etnográfico, foi possível entender a comunidade através do ponto de vista de seus membros e descobrir as interpretações que eles dão aos acontecimentos que os cercam. Aliou-se a essa perspectiva a relação entre os pontos de vista dos sujeitos pesquisados (as teias de significado e a sua análise, nos termos de Geertz (1989)) e o contexto sócio-histórico no qual esses grupos se inserem. De fato, o objetivo é entender os significados construídos pelos sujeitos em um contexto de educação e cuidado de crianças por suas educadoras e, igualmente, entender o mundo social no qual esses sentidos são possíveis.

Portanto, pesquisar com e sobre as crianças implicou necessariamente o encontro com as mulheres que delas cuidam e educam, bem como o entendimento do contexto contemporâneo no qual a educação infantil se insere. Essa perspectiva teórica se impôs durante o trabalho investigativo, uma vez que algumas cenas e situações observadas só puderam ser compreendidas a partir da inclusão das falas das educadoras. Dessa maneira, neste texto, focalizamos principalmente as educadoras, suas narrativas e memórias.

A instituição pesquisada foi construída pela comunidade a partir de 1976, diante dos vários problemas encontrados pelos seus moradores. Esse foi o momento em que o jardim de infância da região parou de funcionar. Nina6, atual cozinheira do berçário, fez parte do grupo fundador desta instituição e narra7 como foi esse começo:

Aí depois as professoras, as professoras lecionavam no jardim, manhã e tarde... As professoras desistiram e desanimaram... [pausa] Eu não sei bem o quê que houve. Nessa época eu não era muito ligada, não, que tinha só criança lá mesmo, né? Eu era mãe do jardim... [...] Então, fechou o jardim. Aí a diretoria, aí a comunidade falou assim: de repente, a necessidade do povo é grande de creche, de repente você transforma esse jardim em creche. As crianças vêm o dia todo... As mães sempre perguntando, né? Aí surgiu, aí formamos uma diretoria... (Nina, uma das fundadoras da instituição. Grifos meus).

A partir desta fala, podemos inferir que a fundação da creche engendrou um processo de mudança e conscientização de todos os envolvidos. É com a perspectiva de uma ruptura que Nina reconstrói a sua história. Um desligamento individual do que estava acontecendo no jardim transforma-se em uma mobilização de um nós coletivo: mesmo quem não estava muito envolvido com o jardim e com seu funcionamento "forma uma diretoria" para conseguir outro local para as crianças enquanto suas mães trabalhavam.

A mobilização da comunidade, inicialmente para a fundação e manutenção da creche, foi essencial posteriormente, em 1990, quando a Administração Municipal anuncia a construção do metrô, desapropriando as moradias da região. Alguns moradores se unem, Nina inclusive, e resistem no local, mudando-se com suas famílias para uma Igreja próxima até conseguirem transferência para casas consideradas por eles como adequadas, o que aconteceu quase um ano depois.

Uma mobilização inicial, então, possibilita novas lutas, mais organizadas em busca de direitos claramente percebidos. Cria-se assim um solo comum, no partilhar de ações e discursos que, por sua vez, transformam-se em experiência significativa passível de ser narrada na construção de uma memória coletiva.

O estar junto, enquanto condição existencial da possibilidade de qualquer estrutura dialógica do discurso, surge como um modo de ultrapassar ou de superar a solidão fundamental de cada ser humano. [...] A minha experiência não pode tornar-se a vossa experiência. [...] E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação. Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se pública. (RICOEUR, 1976, p. 27. Grifos meus).

Um ponto essencial no conceito de experiência de Ricoeur é o caráter coletivo da significação, a construção social dos sentidos, que acontece através da narrativa e torna possível o estar junto no mundo. No caso particular das mulheres que trabalharam naquela instituição, muitas ainda trabalham, a luta diária pela sua construção e manutenção funda laços de pertencimento e cria significados compartilhados: a pobreza material das famílias e o direito à educação das crianças justificam a existência da creche, combinando-se e delineando as práticas educativas no cotidiano institucional. A articulação necessária entre cuidar e educar, bem como entre assistência social e educação, acontece de forma ambígua, como veremos em algumas situações.

As reuniões da diretoria responsável pela fundação da creche aconteciam à medida que os problemas surgiam, sem um planejamento prévio. Os assuntos eram decididos por todos de maneira coletiva, havendo uma expressiva participação dos moradores da comunidade, ainda de acordo com Nina:

Aí as reuniões pra tratar de assuntos, por exemplo, quando estava em construção, tratava daquilo naquele momento, da construção... Depois passou a ser, a funcionar, aí tratava das coisas que estavam preocupando, né? As coisas, os lados positivos e os lados negativos, e aí decidir. Aí cada um dava uma opinião prá decidir, né? Como encontrar... Se tivesse um ponto negativo, cada um dava opinião de como fazer pr'aquilo ali melhorar... [...] Funcionava graças a Deus, funcionava bem, (por)que todo mundo participava, né? Os moradores tudo! Nó, era o maior orgulho lá, a creche!

A narrativa construída por Nina nos permite interrogar as possibilidades do esquecer e do lembrar. Qual é a memória narrada? O "maior orgulho" da comunidade funda a narrativa e a (re)construção da experiência. São elementos da participação em um projeto coletivo com outros sujeitos, criando laços de identificação naquele grupo. A narrativa de Nina coloca em cena as vozes do seu grupo e constitui-se, então, em um dos elos da cadeia dos atos de fala deste mesmo grupo (BAKHTIN, 1986). Nina constrói sua enunciação igualmente a partir do trabalho cotidiano em um espaço concreto que ajudou a construir, na creche, que agora está bem estruturada: o presente autoriza a memória de orgulho do passado (BOSI, 1994). A vivência atual, portanto, ordena e significa os fatos selecionados pelas memórias de Nina. Assim, afirma-se que a reconstrução da memória se constitui como um elemento fundamental para a possibilidade de inserção do sujeito em uma história e na sua continuidade.

Salientamos que o próprio momento da entrevista se constitui como possibilidade de recriação da história da instituição: a narrativa de Nina permite-nos ter acesso a uma perspectiva dos fatos que deram início ao funcionamento da instituição. Em sua narrativa, a luta coletiva pela creche tem destaque especial, uma luta em que não aparecem contradições internas uma vez que a participação de todos os moradores da comunidade garantia a solução dos problemas enfrentados.

Houve, no momento de fundação da creche, uma passagem de necessidades percebidas e sentidas para uma ação coletiva de resolução desses mesmos problemas. Tal fato não se constitui em uma particularidade dessa creche, mas faz parte de uma história de mobilização social em um contexto específico da história brasileira (SILVA, 2004). O que permitiu essa passagem? Filgueiras reflete que:

A construção das creches comunitárias só foi possível pela conjunção de diversos fatores: o crescimento da participação feminina na população economicamente ativa; a crise econômica que piorou condições de vida já precárias; as mudanças demográficas e na estrutura das famílias; o aumento da sensibilidade em relação aos problemas da criança pobre e maltratada; as mudanças políticas em curso no país e particularmente a emergência de novas organizações populares. (FILGUEIRAS, 1994, p. 22).

A narrativa sobre a história da creche pesquisada relaciona-se, portanto, com o contexto mais amplo em que muitas outras creches comunitárias se constituíram: ela tem seu início com um grupo de mães que se reúne no intuito de conseguir um lugar para colocar os filhos para que elas pudessem trabalhar. Entretanto, de acordo com Rita (cofundadora da instituição e sua atual presidente), havia também uma preocupação em "procurar atividades para as crianças fazerem". Tais atividades eram aprendidas em trocas de experiências com outras creches comunitárias, unindo o "pedagógico" ao seu cuidado essencial. Tal cuidado se materializa, principalmente, nos momentos de alimentação das crianças, como veremos a seguir.

 

A CRECHE: UM LUGAR PARA SE ALIMENTAR

Ter um lugar onde seus filhos tivessem garantido o direito básico à alimentação é um traço que permanece na memória de algumas famílias, sendo repetidamente narrado tanto por mães quanto pelas profissionais que atuam na creche. Vânia, atual faxineira da creche, é mãe de três crianças que frequentaram a creche logo no início de seu funcionamento. Posteriormente seus outros filhos, quatro, também frequentaram a creche. Ela relembra, com lágrimas nos olhos, como foi seu primeiro contato com a instituição:

Nossa, essa creche, viu?! E oh, eu vim, né? Tranquila, porque eu lutava com aquele negócio de ter comida dentro de casa. [pausa] Eles (seus filhos) vinham de manhã, chegavam à tarde. Era o quê, né? (Tinha que fazer só) Uma sopinha, um mingau... Eu tinha que preocupar só com (a comida) do final de semana.

A experiência da fome, com toda a degradação e sofrimento que acarreta, marca profundamente os sujeitos pesquisados. Vânia relembra em sua narrativa a própria história de vida, como ex-moradora de rua e a fome que sentiu em várias situações, bem como os momentos em que só tinha "angu pra dar pros meninos".

É necessário analisarmos diferentes dimensões da experiência da fome que se cruzam no cotidiano institucional. Inicialmente, há a experiência da própria fome sentida enquanto criança, relatada por Vânia e por algumas educadoras ao relembrarem suas infâncias:

A gente passava muita dificuldade, a ponto de chorar, sabe? [...] Fome, é. [pausa] O pessoal ajudava muito a gente. Eu, quando vejo a Antônia (mãe que tem quatro filhas na creche) com as meninas, eu lembro muito da gente. Só que a gente tinha muito, era mais pessoas em casa (treze irmãos). O pessoal sempre ajudava a gente, ajudava a mamãe, dando leite, sabe? Roupa... A gente recebia muita doação. (Daniela, educadora).

Em conversas entre as educadoras, essas experiências são reconstruídas coletivamente, sustentando laços de solidariedade e identidade no grupo. "A gente não podia repetir carne na hora do almoço", comenta a educadora Catarina durante o almoço. "Era só um pedaço para cada um, e só no domingo", concorda a educadora Amélia, rindo.

Outra dimensão é a fome relatada pelas próprias crianças que atualmente frequentam a creche. Consideramos aqui as falas das crianças como tentativas de construção de significados acerca das experiências que compartilham com outros sujeitos em diversos contextos, tais como as falas das profissionais da creche. Há que se ponderar que as narrativas infantis são especialmente marcadas pela proximidade com os acontecimentos imediatos, o que não diminui, contudo, a sua importância.

Rute, quatro anos, rotineiramente chegava à instituição com dor de cabeça e/ou dor de barriga. Quando perguntei sobre o que tinha feito pela manhã antes de vir para a creche, Rute explica suas dores: "Não tomei café. Meu pai falou que era para eu tomar aqui (aponta o refeitório)". Laura, menina de cinco anos que tem outros dois irmãos mais novos na creche, também fala sobre sua família em um momento de entrevista coletiva8 com um grupo de quatro crianças da sua turma:

O meu pai, ele é trabalhador. Ele traz um tantão de comida pra gente. Quando acaba a comida, e... [pausa] Ele traz, ele fica só trazendo pão pra nós comer.

As outras crianças que estavam presentes durante essa fala, se calam e escutam atentamente a colega, muitas vezes balançando a cabeça afirmativamente, como se já tivessem, elas mesmas, vivenciado essas situações. Apreende-se que esse relato procura dar sentido à vida cotidiana em que a carência material se faz presente, bem como as resistências dos sujeitos a essa precariedade: "Meu pai é trabalhador". Outras crianças, assim como Laura, referem-se ao fato dos pais estarem ou não empregados, bem como às consequências advindas da falta de trabalho. A categoria trabalho é associada diretamente à possibilidade da alimentação. É possível entrever, por essa e outras falas, que as crianças se apropriam dos significados que circulam na sua família, vivendo e fazendo parte da história coletiva construída com seus avós, pais e irmãos. Nesse sentido, é fundamental compreendermos as falas das crianças, não em sua literalidade, mas considerando que nelas há a incorporação da palavra do outro, em um jogo de alteridade em que múltiplas vozes se fazem presentes no discurso do sujeito (BAKHTIN, 1986).

A construção de uma história coletiva daquele grupo de crianças se faz também através das ações que realizam, reproduzindo e, ao mesmo tempo, criativamente interpretando e modificando a cultura da qual fazem parte (CORSARO, 1992). Nesse sentido, as crianças de todas as turmas frequentemente dão comida para os colegas, como mostra a Figura 1.

 

 

As duas crianças, de três anos, mostram-se muito envolvidas com o fato de uma dar comida para a outra. Mariana já terminou seu almoço e agora se concentra em não deixar a comida cair na mesa e levar a colher na boca da colega. Cinara inclina-se para frente, querendo receber a comida oferecida. É um momento importante para as duas crianças, em que há um jogo simbólico acontecendo e a comida deixa de ser apenas alimento, revestindo-se de vários sentidos. Mariana assume um papel ativo de cuidar de alguém, em complemento ao papel passivo de ser cuidada. Para Cinara, ser alimentada por alguém da sua idade traz a possibilidade de uma reinvenção das interações entre os sujeitos na creche: não é apenas a educadora que alimenta as crianças, as crianças também se cuidam e se educam.

As duas dimensões da fome, a memória da carência do alimento na infância das educadoras e a fome atual das crianças da creche e de suas famílias se entrelaçam de maneira muitas vezes dramática no cotidiano institucional, afastando e, simultaneamente, aproximando os sujeitos: "Eu insisto com as crianças para comer... Eu sei que tem dia, em algumas casas, que não tem comida..." (Amélia, educadora). Essa insistência assume diversas formas, muitas vezes carinhosas, outras nem tanto:

Por volta de 11h40, as crianças de todas as turmas já almoçaram e se preparavam para dormir. Daniela, educadora, senta-se com Gustavo (quatro anos), ajudando-o a comer. Gustavo é novato, sendo esta sua primeira semana na creche. Inicialmente, a educadora conversa com Gustavo de forma carinhosa: "É para comer tudo... Você vai ficar forte..." Mas ele não come, deixando a comida na boca sem engolir. Diz que não gosta da verdura, ao que a educadora replica suavemente: "Tem que comer tudo... Aqui na creche a gente come tudo..." A educadora tenta repetidas vezes dar a comida para Gustavo, conversando com ele sobre outros assuntos. Depois de aproximadamente 10 minutos, sem que tenha tido muito sucesso em alimentar Gustavo, Daniela começa a enfiar rudemente a colher em sua boca: "Vai comer, sim!" Gustavo chora, e a educadora insiste: "Pode engolir tudo! Agora chega de conversa!" Amélia, educadora, chega ao refeitório e ajuda a conter Gustavo, sentando-se atrás dele e segurando seus braços, para que ele coma. As educadoras comentam entre si que a mãe de Gustavo havia dito que ele não comia nada em casa. A verdura é separada de seu prato, mas ainda assim ele se recusa a comer. Depois de certo tempo, às 12h, Amélia o coloca para dormir. Já é o horário do almoço das educadoras, que passam pelo refeitório, mas não interferem na cena. (Diário de Campo, 3/2/2005).

Nessa cena percebe-se uma identificação das educadoras com a fome que as crianças passam, talvez por já terem vivenciado essa situação. As educadoras Daniela e Amélia estão imbuídas das melhores intenções, reconhecendo que Gustavo precisa se alimentar para não sentir fome mais tarde, experiência já sentida por elas. A memória dessa experiência é atualizada e (re)construída no cotidiano institucional. Assim, o cuidar da alimentação assume grandes proporções em todos os sentidos na instituição: a comida é preparada na hora, é servida quentinha, é sempre variada e bem balanceada. Paralelamente, há uma imposição em relação às crianças. Rapidamente elas aprendem a se alimentar sozinhas, como Mariana e Cinara, e a não recusar o alimento oferecido. Esse é um dos traços de permanência que podemos localizar em várias instituições e identificar como fundante do contexto contemporâneo em que a educação infantil se insere, sendo a pobreza das famílias, crianças e educadoras materializada na fome. Tal materialização da pobreza está intimamente relacionada à institucionalização da alimentação, ritualizada como um momento de disciplinamento e controle das crianças pobres9.

Como é perceptível na cena relatada, a educadora tentou por todos os meios convencer a criança a comer. Como não foi bem sucedida, recorreu à imposição reconstruída a partir de suas experiências "Tem que comer", rememorando a própria fome e esquecendo-se de que Gustavo era novato na creche, que não estava habituado a se alimentar bem, e que ele poderia comer melhor na hora do jantar na própria instituição. A memória da própria fome se sobrepôs à criança, sujeito com vontades e desejos outros que iam além do alimento em si. Nesse momento, a educação/cuidado das crianças assumiu os contornos de uma pedagogia da submissão (KUHLMANN JUNIOR, 1998).

Portanto, de maneira sutil, algumas educadoras se veem na história das crianças e de suas famílias, ocorrendo uma identificação com os problemas vivenciados por esses sujeitos. Em alguns momentos, não há uma apropriação de novos sentidos, mas sim uma sobreposição imaginária de situações e uma repetição de sentidos - alienação do sujeito em relação à própria história de vida. Na situação relatada, não há uma memória racional da infância, mas tal memória impõe-se ao vivido, irrompendo ao mediar a relação da professora/criança que vivenciou a fome e a criança/sujeito que se recusa a comer. A situação do momento remeteu as educadoras diretamente para o que já foi vivenciado por elas anteriormente e, nessa direção, suas ações são relativas a um passado, não havendo uma diferença clara entre aquilo já vivenciado e a vivência do presente com as crianças.

Nessas situações, não há um distanciamento necessário frente a algo que vem do outro, uma relação com a alteridade da infância que possibilitaria uma reinvenção de significados. Ao desconsiderar a criança como sujeito em um momento de cuidado e educação, Daniela e Amélia também desconsideram a si mesmas como sujeitos e educadoras. Assim, identificar e acolher o 'novo' requer mais do que uma remissão a repertórios próprios já cheios de significações e constatações; é essencial tomar o ponto de vista do outro, considerando-o como um interlocutor com o qual se pode dialogar (RICOEUR, 1981). Nesse sentido, torna-se imprescindível uma (re) apropriação da própria história, tomando-a como objeto de reflexão, ponto essencial para a formação dos profissionais da educação (CUNHA, 1997).

 

BRINCADEIRAS E TRABALHO

Igualmente emergem das narrativas das educadoras o tema das brincadeiras e a relação com o trabalho. As educadoras se lembram da própria infância como uma fase marcada pelas brincadeiras com os irmãos. As brincadeiras são relatadas com muito saudosismo, em meio a risos: as brincadeiras na rua, soltar papagaio, bolinha de gude, finca, o primeiro, e às vezes único, brinquedo... "Se pudesse voltar, eu voltaria!" é uma fala recorrente nas entrevistas. Percebe-se que a maioria das educadoras estabeleceu, a partir de suas histórias de vida, uma relação prazerosa com o brincar e atualizam essa relação no cotidiano com as crianças:

Outro dia eu vi lá na rua, os meninos, as meninas da minha rua brincando de casinha... Voltei lá atrás na minha infância [risos]. Cheguei e perguntei, eles até sabem, porque eu cheguei e contei pra eles o quê que tinha acontecido, e que eu ia fazer isso com eles naquele dia... Me deu aquela vontade de fazer... [pausa] Deixei brincar com barro, com água, fazer comidinha... Nossa, mas foi uma festa! [risos]. (Juliana, educadora).

O encontro com crianças brincando na rua desperta na educadora uma proximidade ainda maior com sua turma: a festa com as crianças é significada por Juliana como um momento de reconstrução da própria memória da infância.

Benjamin (1984) analisa o brincar como uma experiência com o novo: nessa experiência há o espaço para que o sujeito dialogue com a cultura e se inscreva em seu grupo. Assim, o brincar torna-se essencial para a criança, no momento mesmo em que brinca e repete indefinidamente a sua brincadeira. É a imagem de desaparecimento do mundo e seu recomeço. Da mesma forma, o brincar é essencial também para o adulto, quando este reconstrói em uma narrativa a lembrança da brincadeira experimentada.

Assim como Vygotsky (2002), Benjamin propõe a superação de um "[...] erro básico segundo o qual o conteúdo ideacional do brinquedo determina a brincadeira da criança, quando na realidade é o contrário que se verifica." (BENJAMIN, 1994, p. 247). A imaginação e a criação presentes no ato de brincar, segundo o autor russo, propiciam à criança uma nova relação com o mundo, e consequentemente com ela mesma. A ação da criança não se restringe apenas aos objetos concretos e seus significados já definidos. É o brincar enquanto movimento de constituição do sujeito, rumo à sua apropriação do mundo.

Desta maneira, não se trata apenas de uma repetição de situações limitadas pelo contexto imediato, mas há uma invenção, e, com ela, surge a possibilidade de uma transcendência da criança em relação às restrições do ambiente em si. A criança brinca, subordinando os objetos a significados criados por ela mesma, em um movimento de reprodução interpretativa da cultura (CORSARO, 1992).

A essência do brincar é, então, a operação realizada pela criança sobre os objetos através da linguagem. Significados são sobrepostos aos objetos concretos, e é com tais significados que a criança brinca. E é essa brincadeira, como forma de apropriação do mundo e inscrição do ser, que constitui a memória do sujeito e que faz com que Juliana atualize, ou reproduza interpretativamente, a brincadeira de fazer comidinhas em sua prática educativa.

O brincar permanece no universo infantil de maneira marcante como forma de significação e apropriação do mundo. E, mesmo quando chega ao fim, o brincar "[...] permanece como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição." (HUIZINGA, 1980, p. 12-13). A criação nova do espírito refere-se não apenas a novas brincadeiras e objetos, mas principalmente remete à apropriação de sentidos para o mundo. São os sentidos criados no ato de brincar que se transformam em um tesouro individual e também coletivo. Criação e memória, então, em uma dimensão individual do sujeito, seja criança ou adulto, que constantemente relembra os momentos de brincadeira. E, simultaneamente, criação e memória coletivas que se tornam tradição, reconhecíveis pelo próprio grupo e que o identificam frente a outros grupos.

Intimamente relacionado ao brincar, emergem as situações de trabalho decorrente de situações de vida precárias. As dificuldades enfrentadas pelas famílias das educadoras enquanto eram crianças são narradas, na maioria das vezes, em meio a lágrimas: a família numerosa, com muitos filhos, a falta de comida em momentos críticos, a ausência do pai ou da mãe, a morte de irmãos... Muitas educadoras começaram a trabalhar em casa, ajudando nas tarefas domésticas e cuidando dos irmãos mais novos ou dos filhos dos vizinhos. Outras ajudavam os pais em seus empregos, como Camila:

Da minha infância? Tem muito tempo, mas porque da minha infância foi uma mistura, né? De... [pausa] Foi muito mais alegria e menos luta. Na infância, das minhas pequenas lembranças, eu tenho assim tipo nove, dez anos, que eu brincava muito nas crateras lá em cima, que a enxurrada fazia... Onde é a avenida hoje, é, vinha muita, descia cada enxurrada grossa, e eu gostava de brincar naquelas crateras fundas, eu gostava de ir pros lugares assim, muito, que tinha muito verde, que é aonde é o metrô. [...] Vendia [pastel e amendoim com o pai] na cidade, é, correndo de fiscal no centro... Era muito difícil. E quando eu tinha perto de dez anos já me sentia com dezoito. Você... [pausa] Porque a carga era muito grande, então assim... [pausa] Eu vim duma vida muito sofrida, viu? E como! E hoje eu encaro tudo. Continuo encarando, porque eu já fui preparada pra aquilo. Desde a infância, né? Brincava muito de pipa, de jogar bola, de soltar papagaio, entendeu? (Camila, educadora).

Apreende-se que a infância das educadoras é percebida com ambiguidade, como fica claro na narrativa construída por Camila: brincadeiras/alegria e trabalho/tristeza se alternando em um preparo para uma vida sofrida e difícil. Essas memórias reconstruídas a partir desses polos se presentificam nas relações que as educadoras estabelecem com as crianças dentro da instituição, desde as brincadeiras escolhidas para compartilhar com elas - como a brincadeira com água e barro - até a forma de discipliná-las - como no momento de alimentação em que a educadora segura uma criança, forçando-a a comer. São contradições que se relacionam com as histórias de vida, tanto das próprias educadoras quanto das famílias das crianças, atualizadas no cotidiano institucional.

A família das crianças, pra mim, no meu ver é o seguinte. Geralmente são só as mães, como é também a minha vida... [pausa] É uma vida difícil. É uma vida de renúncias, é uma vida de sacrifícios, porque a gente trabalha pra cuidar daquela criança que a gente trouxe ao mundo, quando se é responsável né? Então as mães que são, que pra mim todas tem batalhado pra dar uma vida legal e feliz pra essas crianças. Eu vejo essas mães assim, pessoas carentes de tudo. (Camila, educadora. Grifos meus).

A narrativa de Camila nos permite entrever uma aproximação, e mesmo uma projeção, da memória da própria infância no encontro cotidiano com as crianças e suas famílias, da mesma maneira que percebemos uma sobreposição imaginária de situações no momento de alimentação de Gustavo. A origem social da maioria das educadoras é a mesma das crianças, ou seja, a grande maioria dos sujeitos presentes na instituição é proveniente das camadas populares da nossa sociedade e de descendência negra, o que possibilita a identificação das educadoras com as famílias das crianças. Assim, as educadoras representam a si mesmas, bem como as mães dessas famílias, ora como "[...] pobres mães trabalhadoras [...]", ora como "[...] mães trabalhadoras pobres que reivindicam o direito à creche [...]" (AFONSO; ALVES; SCOTTI, 1994, p. 54). As práticas estabelecidas com as crianças e suas famílias oscilam, então, entre esses dois polos e marcam a cultura institucional dessa creche. Portanto, explorar as relações entre memória, experiência e linguagem pode nos ajudar a compreender melhor o contexto de educação e cuidado na instituição pesquisada.

 

MEMÓRIA, EXPERIÊNCIA E LINGUAGEM

Em seu livro Infância e História (2005), Agamben articula os conceitos de experiência e linguagem, referindo-se à obra de Walter Benjamin. O fato de não ser desde sempre falante coloca para o homem uma experiência com a língua que pode ser traduzida como um descompasso, um desencontro entre a língua enquanto estrutura e a fala, o discurso. Essa distinção também aparece nas análises de Ricoeur (1976, 1981) e Bakhtin (1986). Porém, Agamben alude a uma experiência infantil com a linguagem, ponto particularmente importante.

A infância como experiência, para Agamben, vai além daquilo que pode ser expresso por meio das palavras. Esse autor não menciona os momentos de aprendizagem da linguagem pelo sujeito, mas reflete que

"[...] aquilo que se tem experiência não é simplesmente uma impossibilidade de dizer, mas uma impossibilidade de falar a partir de uma língua, isto é, de uma experiência da infância da própria faculdade ou potência de falar." (AGAMBEN, 2005, p. 14).

Nessa impossibilidade, nesse hiato que se instaura entre a voz do sujeito e a linguagem, coloca-se um possível espaço para a ética e para a comunidade: o homem fala, e pode escolher se calar. É nessa experiência com a língua, o 'experimentum linguae', que o homem se lança. A tarefa infantil da humanidade é, nesse sentido, a experiência da língua como revelação, descobrimento, inscrição do ser. Marcas são inscritas e constituem os sujeitos e suas memórias. No caso das profissionais pesquisadas, considerando que "[...] só fica o que significa [...]" (BOSI, 1994, p. 466), tais marcas referem-se aos temas comida/fome e brincar/trabalhar.

Outra marca, que inscreve a possibilidade de um projeto para a instituição, relaciona-se com um olhar, experiência essencial na história de vida de Rita, cofundadora da instituição. Rita é italiana e veio para o Brasil na década de 70, após viver sua infância e adolescência no período após a II Guerra Mundial, em que a precariedade material se fez muito presente. Ela relata, emocionada, um encontro com o padre de sua Igreja:

Então através dele [Dom Luiz, padre italiano], a maneira dele me olhar de... Como se ele, a maneira dele tratar as coisas e as pessoas, como se não tivesse... [pausa] Difícil explicar porque te olhando, amando como se... [pausa] Como se tivesse resgatado todo o passado que eu tinha olhado de uma forma negativa, a morte do meu pai, enfim... (Grifos meus).

A marca do olhar de um outro ajuda Rita a ressignificar um passado, dando-lhe novos contornos. As pausas em seu discurso e as repetições da expressão "como se" indicam a reconstrução não apenas do seu passado, mas também a recriação da sua memória. No Brasil, ela tenta dar continuidade a esse olhar, que constitui sua experiência. Rita torna-se, então, uma parceira da comunidade que consegue dinheiro para a fundação da creche, ajudando a organizar os moradores. A experiência de um olhar em sua adolescência e a mobilização da comunidade se encontram de alguma forma, em um espaço em que as vozes dos sujeitos se inscrevem: o olhar reconstruído por Rita e o processo de ruptura recriado por Nina. As palavras de Rita sugerem uma forma de dar continuidade à história da creche: "Acontece que eu tinha que educar como que a si mesmo. Então, olhar para cada criança..." (Grifos meus).

O olhar para cada criança, como um sujeito singular, em um movimento em que todos educam a si mesmos e juntos aprendem, começa a ser incorporado no cotidiano institucional aos poucos. A expressão usada por Rita, elaborada em sua narrativa, repete-se no discurso das educadoras, incluindo nesse olhar as crianças e suas famílias: "[...] não tem como a gente olhar para essa criança e esquecer a família que está por trás... Tem que olhar a família..." (Helenice, coordenadora). É importante destacar que, buscando o outro, há um encontro consigo mesmo, uma vez que o olhar faz um circuito que envolve o outro e retorna ao próprio sujeito, criando e recriando significados. Neste sentido, o olhar se constitui também como linguagem e experiência.

Agamben reflete que "[...] a ausência de via (a aporia) é a única experiência possível ao homem [...]" (AGAMBEN, 2005, p. 39), em oposição à experiência científica cujo objetivo é a construção de uma via certa e de um método. Podemos entender a aporia como o movimento necessário para a constituição do sujeito enquanto sujeito da linguagem. Ali onde não há caminho, no hiato entre língua e discurso, há a possibilidade de um espaço vazio para que o sujeito se instale na cultura, para que ele (re)construa sua narrativa, e a do seu grupo.

É essa a experiência do ser humano: de muda, tornar-se falante. Falar a partir do outro, de um acolhimento e de um olhar é o que possibilita a Rita, agora com quase 70 anos, prosseguir em sua experiência acompanhada pelo grupo fundador da creche, bem como por suas profissionais. As palavras de Rita tornam-se conselho, no sentido que traz Benjamin:

[...] o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. [...] Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. (BENJAMIN, 1984, p. 200).

Portanto, a experiência do sujeito possui diferentes dimensões entrelaçadas no tempo. Uma primeira dimensão seria o momento no passado, momento da vida em que algo marca o sujeito. A segunda seria o momento presente em que o sujeito rememora, traz para uma narrativa aquilo que o marcou e faz com que ele projete um futuro. Há uma reconstrução e atualização da experiência via linguagem, via narrativa e memória valorizadas e possíveis em um grupo que insere o sujeito em sua história, grupo no qual o sujeito se reconhece e é reconhecido. O olhar que marcou Rita torna-se conselho a partir mesmo da sua narrativa para o outro. Sem a possibilidade de narrá-lo, esse olhar e seu significado poderiam se perder. A experiência necessita da narrativa e da memória para se constituir enquanto tal. De maneira inversa, a memória e a narrativa recorrem à experiência. Nesse movimento, entre a história de construção da creche e as próprias histórias de vida, os sujeitos constituem suas práticas no cotidiano institucional.

 

MEMÓRIAS: HORIZONTES DE UM MUNDO

Pudemos perceber que as histórias das educadoras, a reconstrução de suas memórias e narrativas, se constituem em relação à história da constituição da creche e também em relação às histórias das famílias e das crianças. Portanto, uma aproximação com a história de cada uma delas, suas origens sociais, as concepções construídas em torno de si mesmas e da sua profissão, assim como as concepções em torno das famílias e das crianças, é fundamental para uma maior compreensão das práticas institucionais cotidianas. Torna-se possível, então, uma aproximação com os horizontes de um mundo para o qual essas histórias apontam (RICOEUR, 1981) e uma melhor compreensão da maneira como vimos educando nossa infância.

Em um contexto em que, lentamente, a educação alia-se ao cuidado, as educadoras se sentem impelidas a se compreenderem a partir da criança (SILVA, 2004). O movimento de apropriação desses novos discursos, tornando próprio algo alheio, remete a uma modificação do que já estava sedimentado, sendo necessário, então, o abandono de algo do sujeito que se permite ser modificado pelo novo (RICOEUR, 1981). Consequentemente, o contato com novos discursos, e sua paulatina apropriação, coloca enormes desafios para a prática cotidiana dessas profissionais. Raíssa, educadora, se expressa dessa maneira:

Tem muito falar que... Pois é, [falam que] a gente tem que ficar perto dos meninos, e não sei o quê, não sei o quê! Na verdade tudo isso! Mas e nós?! Tem, tem que abrir pra nós também, porque a gente é o... É a coisa mais importante, que a gente que tá ali com eles... Eu acho que a gente é a coisa mais importante. [...] A gente é muito cobrada e a gente se cobra. [...] Eu tô assim, tô assado... Eu não tô dando conta, ou... Se tem alguém pra falar, ou se não tem... [Raíssa dá de ombros] O importante é que tem que fazer o trabalho direito! (Raíssa, educadora).

É a elaboração de diferentes lógicas e discursos em uma instituição que historicamente se constituiu a partir de um campo de disputas, e também a articulação de diferentes formas de perceber as questões em jogo a partir de sua história de vida, que provocam angústia em Raíssa e também em outras educadoras.

A angústia que aparece nessa fala revela a importância de uma escuta atenta para as educadoras e suas histórias, aproximando-nos da maneira como elas significam os diversos discursos que circulam na instituição em busca da criação de sentidos para o cotidiano. É uma busca de articulação entre uma cobrança interna, da própria educadora, e uma cobrança externa, a partir dos discursos que começam a circular dentro da creche. Raíssa reclama a autoria da própria história, reivindicando uma escuta atenta à sua voz.

Reiteramos, portanto, que a reconstrução das histórias de vida das educadoras por elas próprias e também pela instituição coloca-se como extremamente relevante para a formação de profissionais na área da educação. Assim, coloca-se "[...] a possibilidade de eleger a experiência das educadoras como dotada de sentidos, e não apenas como prática a ser transformada [...]" (SILVA, 2004, p. 18). As educadoras, assim como as crianças, não são "papel em branco". Suas memórias, experiências, narrativas as constituem enquanto sujeitos, profissionais que educam e se educam em um processo contínuo.

A creche pesquisada, orgulho da comunidade, cujo cotidiano é rico e contraditório, faz um movimento reflexivo de reconstruir o passado, reorganizar o presente e colocar-se um projeto de futuro, em busca de compreender-se e desenvolver novas relações com as crianças, mantendo a marca constitutiva de um olhar sempre presente.

Neste trabalho, a reconstrução da história de uma instituição de educação infantil relaciona-se diretamente com histórias de vida dos sujeitos e suas memórias. Evidenciaram-se elementos que lançam luz sobre seu cotidiano: a origem comunitária da instituição, a busca da superação da dicotomia entre o assistencialismo e a educação, as origens sociais comuns entre educadoras e crianças, a proximidade com as famílias, o olhar são marcas que constroem a maneira como a infância é ali acolhida e educada. Assim, caminhamos junto com as nossas lembranças, construindo um caminho, levando à frente muitas coisas a superar, às vezes tropeçando em nossas intenções ou angústias. A história coletiva e as construções subjetivas das profissionais pesquisadas encerram-se nesse prato cheio de fome e comida, brincadeiras e trabalho, memória e esquecimento.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Vanessa Ferraz Almeida Neves
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Educação
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino
Av. Antônio Carlos, 6627 Pampulha
CEP 31270-901 Belo Horizonte, MG Brasil

Recebido: 28/04/2011
Aprovado: 16/05/2012

 

 

NOTAS

1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na 31ª Reunião Anual da ANPEd (NEVES, 2008).
2 A autora agradece os valiosos comentários das professoras Lúcia Afonso, Maria Cristina Soares de Gouvêa e Maria Lúcia Castanheira na elaboração deste artigo.
3 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/96), em seu artigo 30, incisos I e II, define que a Educação Infantil será oferecida em creches para crianças de até 3 anos de idade. Entretanto, a partir da sua própria história, a instituição pesquisada, bem como outras, mesmo atendendo a uma faixa etária de 0 a 5 anos, se autodenominam creches, uma vez que"[...] a denominação creche comunitária tem um significado importante enquanto mobilizador para a luta, enquanto delimitador de interesses, enquanto forma de trabalhar, etc." (DIAS; FARIA FILHO, 1990, p. 31).
4 Todos os procedimentos metodológicos foram autorizados pelas profissionais da instituição, bem como pelas famílias das crianças.
5 Esta pesquisa resultou na dissertação de mestrado intitulada "Encontros e desencontros: a creche como lugar de apropriação da cultura pela criança como sujeito social" (NEVES, 2005), orientada pela Prof.ª Lúcia Afonso.
6 Todos os nomes utilizados nesse trabalho são fictícios.
7 Estamos trabalhando com o pressuposto de que as memórias dos sujeitos são afetivas, sendo (re)construídas em narrativas. Assim, é fundamental a preservação da linguagem oral, com sua entonação, interrupções e maneirismos.
8 Baseando-me nas observações em salas, realizei as entrevistas com grupos de três ou quatro crianças de cada vez. A opção por fazer entrevistas coletivas com as crianças ocorreu em função de se envolver as crianças em situações de diálogo com outras crianças, no sentido de Bakhtin (1986), sendo possível a elas completar o pensamento dos colegas e/ou divergir do que eles estavam falando, à medida que falaram e escutaram uns aos outros. Houve, então, uma valorização simultânea da própria fala e da fala do outro, sendo posta em evidência a questão da alteridade do outro.
9 Debortoli (2004), Reis (2002), Batista (1998), Prado (1998), Filgueiras (2007), entre outros, referem-se também aos momentos ritualizados de alimentação nas instituições de educação infantil pesquisadas por eles.