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EURE (Santiago) - Império norte-americano e território no Brasil dos 80’s e 90’s: Uma leitura inspirada em Maria da Conceição Tavares

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EURE (Santiago)

versión impresa ISSN 0250-7161

EURE (Santiago) v.28 n.84 Santiago sep. 2002

http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612002008400007 

Império norte-americano e território no
Brasil dos 80’s e 90’s. Uma leitura inspirada 
em Maria da Conceição Tavares

Jorge L. A. Natal1

Abstract

Two articles of Maria da Conceição Tavares ("The North American Hegemonic Returns" and "Empire, Territory and Money") have inspired this article. Based on them, this paper focuses on the return of north-american hegemony of the last 80’s and 90’s, showing their main spatials expressions in Brazil. It is argued that in the present conditions, the "commitment deals" are being broken up between the Empire’s interest (North-America) and some social actors (regional oligarchies, urban and country landowners). This process is taking place on a social tissue which is becoming more complex, due to the strengthens -in the city an country places- of some forces oriented against the secular domination game, that prevails over the country. In conclusion, the new dependence, that interlaces -in the country- local and worldwide money both internal and problematically, besides public finances, not only erodes the secular domination pact, but also promotes a new encounter between Brazilian nation and it’s own territory.

Keywords: North American imperialism, Spacial Changes, Brazil, Domination Pact.

Resumen

Dos artículos de Maria da Conceição Tavares ("La recuperación de la hegemonía norteamericana" e "Imperio, territorio y dinero") inspiran este trabajo. Se analiza la recuperación de la hegemonía norteamericana de las décadas 80’s y 90’s, mostrando sus principales expresiones macroespaciales en Brasil. En las condiciones actuales están siendo fracturados los acuerdos de compromiso entre los intereses del Imperio (norteamericano) y los de una serie de actores sociales (oligarquías regionales, propietarios de tierras urbanas y rurales, etc.) en un tejido social cada vez más complejo, dado el fortalecimiento, en el campo y en la ciudad, de fuerzas alejadas del secular juego de dominación prevaleciente en el país. Se concluye que la nueva dependencia, al entrelazar interna y problemáticamente en el país el dinero local y el mundial y las finanzas públicas, apenas erosiona el secular juego de dominación, promoviendo incluso el reencuentro de la nación brasileña con su territorio.

Palabras clave: Imperialismo norteamericano, Cambios espaciales, Brasil, Pacto de dominación.

1. Apresentação

Poucos intelectuais são longa e permanentemente referências seminais. Este é o caso de Maria da Conceição Tavares. Ler, ouvir e discutir suas reflexões sobre o Brasil e o Mundo têm se mostrado imprescindível para as sucessivas gerações que se aventuram nos caminhos do pensamento social críticoe nos últimos quase quarenta anos. Neste sentido, denominá-la economista não faz inteira justiça à força e à amplitude do seu pensamento, dado que suas ‘leituras’ transcendem sobejamente o campo disciplinar da economia, inclusive o da crítica da economia política. Afinal, ela é formada na melhor tradição estrutural do pensamento social latino-americano, sendo assim herdeira de gigantes intelectuais que tornaram a vida societária dos últimos duzentos e cinqüenta anos mais inteligível. Deriva daí também porque essa verdadeira mestra nunca fez concessão aos que se inebriam com os recorrentes modismos, posto ter sempre sabido separar o essencial do perfunctório. E tudo isso manifesto com as marcas inequívocas da indignação com as desigualdades sociais, enquanto ‘frutos’ do seu compromisso político e ideológico com os deserdados desta terra e, portanto, enquanto expressões viscerais da sua trajetória intelectual...da trajetória dessa intelectual tão brasileira! 2

Mais do que homenageá-la, este ensaio pretende mostrar a atualidade e a força intelectual do seu pensamento; mesmo para um ‘campo’ tão particular como é o do chamado planejamento urbano e regional (PUR). O artigo intitulado "Império, território e dinheiro", de 1999, é prova cabal, como expresso pela emprego do termo território, do que foi apontado. Mas não apenas: também é possível refletir sobre ele em vista de um outro artigo seu, aparentemente estranho aos debates do mencionado campo, a saber: "A retomada da hegemonia norte-americana" (1985).

Mencione-se que desses dois artigos deriva uma reflexão (no presente ensaio) que considera algumas das principais mudanças expressas no território brasileiro nos anos oitenta e noventa recentes à luz das grandes transformações procedidas nos EUA, notadamente as de natureza econômica. E mais: que essas mudanças apenas se desvelam por inteiro quando a formação social brasileira, em sua estruturação mais contemporânea (aproximados últimos cem anos), é colocada em tela de juízo; em conformidade com a autora em questão, ‘iluminado’ o caráter profundamente conservador e aderente aos ditames do grande capital internacional das burguesias mais cosmopolitas e a ele associadas. Frente a esse quadro, de um lado, se é mister enfraquecer os "anéis" que reiteram a dependência brasileira aos grandes interesses do capitalismo internacional, sob pena das lutas pela superação das brutais desigualdades da renda e da riqueza jamais se mostrarem vitoriosas, de outro, a atual globalização financeira, ao avultar a importância das burguesias acima apontadas, vêm explodindo a partir de dentro os ‘acordos de compromisso’ que dão conteúdo à formação social brasileira3 em todos os quadrantes do território nacional. É a este conjunto de questões e preocupações que o presente trabalho se dedica, todas elas inspiradas, insista-se, nos dois artigos supramencionados de Maria da Conceição Tavares.

Para facilitar o(a) leitor(a), assinale-se que o artigo encontra-se estruturado em três seções: na primeira, é analisada a retomada da hegemonia norte-americana nos anos oitenta e seus principais e imediatos ‘macro’ desdobramentos espaciais no Brasil; na segunda seção, é analisada a hegemonia norte-americana nos anos noventa, tendo em vista algumas das suas novas expressões, e seus principais e imediatos ‘macro’ desdobramentos espaciais no Brasil; e, na terceira seção, discute-se "a idéia de que os determinantes do desenvolvimento brasileiro são exógenos" (Tavares 1999: 452), mas que ela, ao entrelaçar interna, e estruturalmente no país o dinheiro local, o dinheiro mundial e as finanças públicas, vem fraturando nas condições atuais os ‘acordos de compromisso’ estabelecidos entre os interesses do Império (hoje, norte-americanos), de um lado, e, de outro, de uma série de atores sociais (oligarquias regionais, proprietários de terra, etc.) e, tudo isso, num tecido social tornado cada vez mais complexo, dado o posicionamento em crescendo, no campo e nas cidades, de forças alheias a esse secular jogo de dominação.

2. Da hegemonia dos eua à crise metropolitana e ao ‘milagre’ exportador do ‘interior’ brasileiro O artigo "A retomada da hegemonia norte-americana" por parecer um trabalho muito de economista e sobre economia, como anotado, parece ser mesmo estranho ao campo do PUR. Mas não o é...como se mostrará nesta seção.

Para efeito deste ensaio, desde logo, é mister considerar o que foi chamado de diplomacia do dólar forte, qual seja, a valorização do dólar frente às demais moedas nacionais (processo encetado a partir da entrada dos anos oitenta - governo Reagan). Explicando: tal valorização teve como ponto de partida a elevação das taxas de juros pagas na compra de títulos da dívida pública norte-americana de sorte que os grandes detentores de riqueza, ao buscarem reconfigurar suas carteiras de aplicação, valorizaram o então combalido dólar (como os referidos títulos). Guardar dólares ou gastá-los na compra de títulos norte-americanos era o que importava.

Logo, a diplomacia do dólar forte resultou de maneira mais visível e imediata da troca de sinais tanto da política monetária (Banco Central, elevando juros) quanto da política financeira (Tesouro, oferecimento de títulos com elevada rentabilidade). É à luz deste quadro que se pode compreender o porquê da ‘nova corrida pelo ouro’ dos anos oitenta, em escala planetária e pelo dólar. Em síntese: os Estados Unidos da América (EUA), de maneira deliberada e articulada (Banco Central e Tesouro), ligaram uma espécie de aspirador que sugou para eles parcela significativa dos recursos que se encontravam dispersos pelo mundo, inclusive participando nos processos de crescimento econômico de seus principais concorrentes, como ocorria no Japão e na Alemanha, e até nos denominados NIC’s (new industrialized countries).

Neste sentido, a diplomacia do dólar forte pretendia à primeira vista conter o crescimento econômico dos seus principais concorrentes: a migração de recursos para os EUA contribuiu decisivamente para tal. Ademais, a valorização do dólar colocou em situação de fragilidade tanto as importações quanto as exportações desses países. Como isso se deu? Do seguinte modo: encarecendo suas importações (em dólar) e, dada a importância do mercado norte-americano, tornando as exportações desses seus ‘parceiros’ dele -EUA- dependentes. De outra forma: os EUA passaram a poder determinar em certa medida, através da sua política cambial e financeira, o preço em dólar a ser pago por seus ‘parceiros’; e, em simultâneo, a constranger a venda desses seus principais concorrentes, dado ser a principal praça consumidora/compradora mundial, via mecanismos os mais variados e próprios do comércio internacional (tarifas, etc.)4.

Todavia o desiderato norte-americano não era apenas conter o crescimento dos seus principais concorrentes, era também o de promover sua própria expansão econômica. Para tal, retomando o aspecto inicial do parágrafo anterior, vale destacar que os capitais migrantes, ao envolverem recursos em geral, também carrearam para os EUA padrões tecnológicos consentâneos com os padrões de competição vigentes em parte da Europa e da Ásia, modernizando assim sua própria estrutura econômica e, é trivial, posicionando-se sobre novas bases ao nível da competição internacional. Em complemento, assinale-se que o governo do Tio Sam implementou importante política de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente nos segmentos que pudessem vir a conquistar nichos significativos no mercado mundial. Enfim, a contrapartida da contenção do crescimento do Japão e da Alemanha foi a expressão, invertida portanto, da recuperação da economia norte-americana (Coutinho, 1992).

Por outro lado, o processo anterior não se resumiu à contenção do crescimento daqueles seus competidores e à promoção da expansão econômica norte-americana. Em plano bem mais substantivo, a diplomacia do dólar foi o ‘instrumento’ nuclear da retomada da hegemonia norte-americana5. Mas para tal, ao lado da apontada coordenação política e da marcada inovação econômicas (elevação de taxas de juros, estourando orçamento, e aumento de importações, estourando a Balança Comercial), havia que mover uma outra e decisiva ‘peça’ neste xadrez: a da reafirmação das virtudes do mercado sobre o chamado intervencionismo estatal6.

E talvez tenha sido exatamente ela a que mais embaralhou a cabeça dos analistas educados (!?) na doutrina fundamentalista neoclássica. Afinal, como conjugar aquele discurso com coordenação política e com políticas governamentais de desenvolvimento científico e tecnológico, por exemplo? A verdade é que o discurso do virtuosismo do mercado sempre foi a pedra de toque das sociedades burguesas. Assim se apresentando sempre lhes resta a alternativa de atribuir ao outro, no caso, o Estado, a culpa por problemas que em verdade ‘nascem’ da natureza da dinâmica capitalista, como o desemprego, a inflação, a recessão econômica, etc.; e, ainda, contar com ele para efeito do exercício da sua capacidade de controle ou mesmo de repressão social, bem como da apropriação de recursos públicos diversos para fins da valorização privada de seus capitais. A teoria neoclássica, formulada a partir do último quartel do século XIX, em um mundo dominado por oligopólios e sociedades anônimas, e com marcadas barreiras à entrada e firmas ditadoras de preços, etc. é prova definitiva deste aparente nonsense (Heilbroner 1973; Labini 1980; Hilferding 1985). Nestes termos, o fato do aporte neoclássico continuar sendo o mainstream do ensino de economia, aqui e no mundo anglo-saxão, apenas confirma que determinadas elaborações discursivas (teóricas ou não) não tem necessariamente o sentido de orientar as práticas econômicas governamentais de todos os países.

Em vista desses comentários, as políticas ativas do governo norte-americano foram, ao fim e ao cabo, escamoteadas pela força ideológica do discurso liberal, de consagração das virtudes do mercado. E aí o Fundo Monetário Internacional desempenhou papel decisivo: ele inscreveu mais uma vez no debate internacional a tese de que a anterior intervenção estatal seria a vilã da história7. Estagnação econômica combinada com elevação dos níveis de inflação seriam seus ‘subprodutos’ mais flagrantes. Como formularam este diagnóstico? Com base nos cânones neoclássicos. Explicando: a intervenção estatal, ao pressionar a demanda, impediria que os preços fossem determinados livremente (como se o mecanismo de oferta e demanda ainda possuísse alguma capacidade explicativa ao nível das atuais estruturas de mercado), constrangendo assim a melhor alocação dos recursos (desperdícios) e ceifando a possibilidade de investimentos e, por conseguinte, obstando o próprio crescimento econômico. Em resumo: firmaram a nível mundial a tese de que a saída para a retomada do crescimento econômico, que antes se dera com o poderoso concurso do Estado, agora dar-se-ia via mercado...mas antes, sublinhe-se, era mister que a inflação, através da recessão (corte de demanda), fosse debelada.

Tal inflexão discursiva marcou o início de uma vitória teórica e ideológica sem precedentes dos EUA, em especial na periferia do sistema capitalista, e tudo isso sob o manto das virtudes do mercado como instrumento de controle do dragão da inflação. O que se sucedeu nestas plagas, brasileiras, tornou-se sobejamente ilustrativo da adesão às políticas derivadas deste ideário. Como segue.

No que tange especificamente ao combate à inflação, como apontado, a recessão foi ‘eleita’ como o eixo da política econômica a ser seguida (corte de gastos públicos, arrocho salarial, enxugamento da base monetária, aumento da carga tributária). Tal orientação foi evidentemente cruel para o avanço do desenvolvimento econômico brasileiro, sendo a chamada década econômica perdida expressão síntese desse processo. O ‘gancho’ com a chamada questão espacial estabelece-se neste momento (analítico). Como? No sentido de que a recessão que se seguiu mostrou-se fundamentalmente urbana e industrial. Vale dizer: ela alcançou dramática e privilegiadamente as principais regiões metropolitanas do país (Belo Horizonte, Río de Janeiro e São Paulo), quais sejam, as mais industrializadas e, por conseguinte, as que concentravam renda, emprego e população.

Azar dos azares!? A recessão da década de oitenta, dados os cortes dos gastos públicos, e o recuo nas decisões empresariais de investimento e de produção (Possas, 1987), ocorre poucos anos depois da criação legal das regiões metropolitanas nacionais (RMNs) (1973 e 1974). Assim sendo, não foi suficiente o reconhecimento da agigantada conurbação paulista, mineira e fluminense, dentre outras, e os variados problemas carentes de tratamento concertado entre diversos níveis governamentais. Tampouco o foi o reconhecimento da relativa centralidade da classe trabalhadora como agente político, força de trabalho e mercado de consumo que constituíra, em larga medida, a razão de fundo da criação das RMNs ( ). A recessão econômica contraditou tudo...sem contar que a crise do padrão fordista e a ulterior mudança tecnológica também acabaram, em certo grau, contribuindo para fazer crescente "tabula rasa" da mencionada centralidade. Neste sentido, como diz Cano (s./d.), o país passou rapidamente de um urbano crítico para um urbano caótico.

Mas a recessão brasileira e sua ‘funcionalidade ‘ aos interesses norte-americanos não encerram o debate. Isto porque o anteriormente exposto constituiu apenas a ante-sala da subserviência expressa nos "anéis" que articulavam os interesses então estabelecidos no país com os grandes capitais internacionais e o Império. Em vista desses delineamentos gerais, embora a orientação recessiva contribua para o entendimento da crise urbana e industrial, manifesta com destaque nas maiores metrópoles brasileiras, esses mesmos delineamentos gerais contribuem ainda para a reflexão sobre uma outra e importantíssima mudança espacial verificada nos anos oitenta no país: a significativa incorporação do ‘interior’ brasileiro à dinâmica do capitalismo nacional, através da exportação de mercadorias comercializáveis no mercado internacional (soja, suco, etc.) ("tradeables").

Explicando. É comum os economistas dizerem que as importações são função da renda; assim sendo, a recessão levada à cabo nos últimos anos oitenta, ao cortar as referidas importações, dentre outras expressões, também jogou lenha no moinho da crise urbana e industrial na medida em que obstaculizou a realização de diversos projetos empresariais (não esquecer que o dólar se encontrava muito caro, não apenas para japoneses e alemães, mas também para brasileiros e quejandos). Mais importante (em vista da "rationale" da política econômica): o corte nas importações ‘somou’ para a obtenção de saldos na Balança Comercial. Restava então ‘tratar’ o outro lado da mencionada balança, o da exportação. E o que foi feito? Como acontece sempre que se faz necessário as chamadas virtudes do mercado foram olvidadas, estabelecendo-se então políticas governamentais de incentivo à produção de "tradeables" que, por sua vez resultaram no aumento das exportações, mas também, por conta da dada a contenção das importações, na obtenção de importantes saldos positivos (superávits) na balança comercial. E mais: na apontada valorização do ‘interior’ brasileiro como lugar privilegiado dessa produção/exportação.

É evidente que se poderia dizer que a crise supramencionada exigia outras formas de geração de renda em lugares que não as metrópoles brasileiras, como se fora apenas uma decorrência geográfica; mas essa argumentação apreende apenas a espuma das ondas. Também é evidente que todo o processo histórico marcado pela construção de Brasília dos 50’s, pela ação territorial castrense da segunda metade dos anos setenta (Lessa, 1978), etc. estimulou o avanço da economia brasileira do sudeste no sentido de Rondônia; mas ele é, pensa-se, insuficiente para o melhor entendimento da incorporação e integração do ‘interior’ brasileiro à economia mundial.

De outra maneira: a retomada do crescimento econômico norte-americano contribuiu decisivamente para a geração desses saldos (mercado amplo e em recuperação) e para a incorporação do ‘interior’. Nesta perspectiva, o vigor exportador brasileiro resultou principalmente da própria diplomacia do dólar forte. Vale dizer, o liberalismo norte-americano ao estimular a contenção das importações e o esforço exportador brasileiro (como também de outros países periféricos), viabilizou a incorporação daquela fração do território nacional, mais do que à dinâmica do capitalismo brasileiro, à própria dinâmica do capitalismo mundial, como ainda, através do pagamento das suas dívidas via saldos de exportação, da recuperação do seu próprio sistema bancário. Por conseguinte, não foi por magia que o conjunto da América Latina se tornou exportador líquido de capitais para os países centrais na década de oitenta, com destaque para o EUA (Natal, 1988).

Em resumo, se o dólar forte levou os EUA a retomarem seu crescimento econômico e hegemonia, no Brasil ele pesou decisivamente na desestruturação da sua economia e sociedade urbana e industrial, ‘vendendo’ além disso, para muitos, a tese de que o nirvana ou o oásis estava no novo ‘interior’. Uma atípica, para dizer o mínimo, marcha para o oeste, fora de tempo e lugar, estabeleceu-se então no país! (este aspecto será retomado na seção seguinte).

3. Diplomacia do dólar fraco e a generalização das crises sócio-espaciais no Brasil Os anos noventa expressaram significativas mudanças no Império, sublinhando-se, para efeito da presente análise, a passagem da diplomacia do dólar forte para a do dólar fraco. Ora, se nos 80’s interessava aos EUA ligar os aspirador sorvendo recursos de toda ordem para seu território, nos anos noventa, dado que experimentaram então espetacular retomada das suas atividades econômicas, importante fortalecimento da sua estrutura produtiva, notável avanço tecnológico, significativo aumento da sua capacidade de concorrência no mercado internacional e inquestionável retomada da sua hegemonia (em boa parcela do mundo), a extroversão da sua economia tornava-se então não apenas possível como imprescindível.

Vale lembrar que a diplomacia do dólar forte, ao lado desses aspectos, implicou no estabelecimento de dois gravosos problemas (não obstante os EUA emitirem a moeda por excelência do comércio mundial, o dólar), a saber: déficits cavalares em suas contas públicas e em sua balança comercial. Afinal, ao tornarem-se os importadores por excelência do mundo não havia como não estourarem sua balança comercial e, de outro, ao elevarem as taxas de juros pagas por seus títulos não explodirem suas contas internas. É evidente que dentro de certos limites e por algum tempo a manutenção desses ‘rombos’ pode ser mantida, mas não infinitamente. Nestes termos, os EUA trataram de enfrentar esses constrangimentos: (i) pela desvalorização do dólar, que diminuiria suas importações, e pelo aumento das exportações, dado o fortalecimento competitivo das suas firmas no comércio internacional, de modo a pelo menos diminuir os recorrentes saldos negativos comerciais que geravam; e (ii) pela redução das taxas de juros pagas por seus títulos, afugentando assim parte dos capitais voláteis (especulativos) da praça dos EUA, de modo a reduzir o montante da sua dívida mobiliária.

Mas exportar mercadorias e afugentar capitais especulativos exigia mais do que políticas monetárias e financeiras para a praça norte-americana; exigia mudanças profundas na ordem econômica mundial. Para tal era preciso construir a ‘adequação’ das mais variadas economias e sociedades aos novos interesses norte-americanos; vale dizer, aos seus interesses de extroversão de parte dos constrangimentos que a diplomacia do dólar forte gerara para efeito do seu crescimento econômico e retomada da sua hegemonia. Assim foi feito: o ideário e as ‘recomendações’ do chamado Consenso de Washington foram os ‘instrumentos’ (Fiori, 1998).

De novo colocou-se na ordem do dia o combate à inflação; pois, como bem sabem os que se debruçam sobre o aporte teórico neoclássico, os preços em equilíbrio definiriam situações ótimas (emprego, renda, minimização de custos, maximização de resultados, etc.). Mas como obtê-los? Como lograr a estabilização econômica (leia-se, preços ‘equilibrados’)?

Começando pela âncora cambial. A adoção do câmbio fixo (um real por um dólar, aproximadamente e por exemplo), ao estimular as importações e conter as exportações, desencorajava a produção doméstica (via aumento das importações e diminuição das exportações) e consequentemente a geração de renda, pressionando para baixo a demanda e, em alguma medida, os preços (em especial, sublinhe-se, os agrícolas internos8). Neste sentido, em algum grau, ela incidia sobre a inflação, revitalizando assim, ainda que falsamente, a tese de que o problema dos preços (leia-se, inflação) derivaria exclusivamente da pressão de demanda, além de obstar a expansão ‘interiorana’ da década anterior...

Sublinhe-se que além da taxa de câmbio baixa (real valorizado em relação ao dólar) ser óbice ao crescimento econômico, ela produzia mais um perverso desdobramento: saldos deficitários na chamada Balança Comercial. Mais precisamente: a âncora cambial contribuiu decisivamente para a situação deficitária recorrente da balança comercial brasileira, em especial no período 1994-99. De outra forma: importar era barato (um real comprava um dólar, reitere-se, aproximadamente) e, contrariamente, exportar pouco atrativo.

Portanto, chegaria a ser cômica não fosse trágica a inflexão ocorrida na passagem de decênio em exame: na década de oitenta, a política econômica levada à cabo perseguiu a geração de superávits comerciais a todo custo, ao passo que na década de noventa ela perseguiu, é verdade, déficits!!!? Mas esse aparente paradoxo só se esclarece, e todo o aparente paroxismo deixa de existir, quando se considera que os desideratos comerciais do Brasil e dos EUA, nessas duas décadas, ocorreram com sinais trocados, a saber: nos anos oitenta, esforço por geração de superávit comercial aqui, e de déficit lá; e, na década de noventa, orientação pelo déficit comercial no Brasil e esforço por redução do déficit nos EUA. Isto é: na década de 80 o superávit brasileiro cumpriu à risca o papel de estabilizador do sistema bancário norte-americano, ao passo que na década seguinte (90’s) o déficit brasileiro garantia mercado para as empresas dos EUA, agora refortalecidas.

E a âncora monetária? Esta foi uma espécie de corolário inevitável da política de valorização da moeda nacional vis-à-vis o dólar, posto que a situação deficitária da balança comercial pressionava o balanço de pagamentos, embora não apenas (como se mostrará), e consequentemente as reservas cambiais. Ou seja, a economia que não gerava divisas internacionais através das exportações buscava, neste novo momento, capturá-las pela elevação das taxas de juros oferecidas por títulos da dívida pública nacional. Nestes termos, a política econômica foi orientada para a atração de capitais através da emissão de títulos da dívida mobiliária, indo, por conseguinte, ao encontro dos interesses do grande capital especulativo que os EUA buscavam, em algum grau, afugentar da sua praça.

Também aqui seria cômica não fosse trágica a inflexão ocorrida na passagem de década em pauta, a saber: enquanto nos anos oitenta os EUA perseguiram déficits orçamentários, o Brasil os possuía, embora eles fossem relativamente irrisórios em relação à renda nacional; ao passo que nos anos noventa, enquanto os EUA tentava minimizá-los, aqui eles foram elevados exponencialmente em relação à mesma renda nacional, ameaçando a própria solvência da economia nacional9.

Esta política de juros altos ‘matou um segundo coelho’; isto porque ela, ao desencorajar uma série de projetos de investimento e de produção, também acabou comprimindo a demanda interna (inclusive pela quebra de estruturas produtivas com passivos financeiros pesados) e, portanto, ‘certas’ pressões exercidas sobre os preços.

Foi assim e enfim, como se mágica existisse, que a inflação desapareceu do debate, aqui e alhures, por bom tempo, em todos os países que seguiram o receituário preconizado pelo Consenso de Washington (âncora cambial e âncora monetária, amparadas em marcada liberalização comercial e financeira).

Isto posto, pode-se dizer o siguiente, tendo em vista a realidade manifesta no território brasileiro, o seguinte:

(i) em primeiro lugar, que a utilização da recessão, supostamente como política de combate a inflação, pela segunda década consecutiva, dada a chamada década econômica perdida dos anos oitenta, minou definitivamente a ‘saúde’ das maiores aglomerações urbanas do país. De outra maneira: a crise metropolitana mostrou toda a sua gravidade, até porque a política de estabilização dos anos noventa, sob o argumento de que os recursos para a área social não seriam poucos, mas mal utilizados, se em parte pode até expressar algum grau de verdade, nem de longe reflete com exatidão a realidade nacional do país, subsistindo, na realidade, a ampliação dos compromissos e de recursos crescentes para a agiotagem financeira internacional em detrimento das ações governamentais na mencionada área social; e,

(ii) em segundo lugar, que a valorização do real frente ao dólar (taxa de câmbio baixa, no entorno de um para um), ao prejudicar o exportador, resultou não apenas em valores deficitários na balança comercial e em óbice à produção doméstica para fins de exportação, mas na retirada do comércio internacional de inúmeros produtores que muitas vezes, a duras penas, nele obtiveram presença10. A conseqüência mais visível desse processo foi a inflexão do crescimento econômico do vasto ‘interior’ brasileiro, antes guindado à condição de novo eldorado, como expresso pela redução da oferta de emprego em seus núcleos urbanos, notadamente no setor de serviços, sabidamente tributário da atividade agro-industrial. Diante deste quadro, de prosseguimento das mudanças espaciais, seguiu adiante a discussão sobre a regionalização brasileira e pulularam artigos discutindo os chamados "regional states", as ilhas de excelência, quais sejam, aquelas frações do território brasileiro redefinidas (novas atividades econômicas dinâmicas) em vista do mercado internacional, mas que colocaram na ordem do dia, simultaneamente, o que se poderia denominar de fragmentação sócio-espacial (uma espécie de fratura do território nacional, a expressão territorial da exegese do mercado).

Resumo da ópera: nem a crise metropolitana foi efetivamente enfrentada, senão o contrário, ela foi agravada; nem o razoável dinamismo econômico de algumas vastas regiões brasileiros, propiciado pelo avanço notável pelo desenvolvimento de atividades agro-industriais exportadoras, foi mantido, como o próprio desenvolvimento urbano de seus ‘pólos regionais’, desde o início, pouco inclusivo, mostrou-se também definitivamente excludente ( Andrade e Serra, 2001). Neste sentido, a política de estabilização econômica assentada nas âncoras cambial e monetária conseguiu concretamente apenas aprofundar a dimensão social crítica da economia e sociedade brasileira, e em praticamente todos os quadrantes do território nacional. 4. O reencontro do território com a nação: obra da novíssima dependência em tempos de globalização financeira!? Esta seção encontra-se ancorada no trabalho de Conceição Tavares de 1999: "Império, território e dinheiro", notadamente em sua primeira e quarta partes. Na primeira, ela discute o que denomina de "Política e economia na formação social brasileira" e, na quarta, de "Liberalização e globalização financeira".

Começando pelo fim (do trabalho mencionado)11. Tendo em vista esta última parte, a da liberalização e globalização financeira, é sabido que ela marca inquestionavelmente a década de noventa. Mais precisamente: o momento no qual as liberalizações comercial e financeira mostraram-se imprescindíveis para a extroversão da economia dos EUA, seja para o aumento das suas exportações (de tangíveis), seja para a valorização dos seus capitais através de aplicações produtivas (privatizações) ou de aplicações estritamente financeiras (através de títulos da dívida pública), notadamente nos países ‘signatários’ do Consenso de Washington.

E tudo isso sob o manto discursivo, principalmente para a periferia do sistema capitalista mundial (Brasil incluso), da perfeição do mercado para efeito do combate à inflação que, uma vez estabilizada, através das reformas orientadas pelo desiderato da privatização, da flexibilização das relações trabalhistas e da desmontagem dos anteriores mecanismos de regulamentação, permitiria a esses países finalmente ingressarem em nova fase de desenvolvimento .

Mas se a efetiva implantação das políticas neoliberais no país foi tardia, talvez até por isso ela tenha sido extremamente célere no período 1994-9912 . Diversas reformas liberais então se seguiram, a saber: privatização de estatais e desnacionalização de bancos; brutal abertura comercial; desmonte do Estado, com aprofundamento crítico da problemática federativa relativa às relações entre União, estados e municípios (descentralização x recentralização de poderes e de recursos)13; liquidação de direitos sociais e trabalhistas, e toda a sorte de liberalizações, como a comercial, a cambial e a financeira14.

Entretanto, havia uma ‘reforma’ prioritária e primeira a fazer, a da estabilização econômica (leia-se, controle da inflação). É neste ponto que entra em cena o Real. Como? No sentido de que a inflação brasileira precisava ser debelada para que os grandes detentores de riqueza internacionais pudessem preservar ou expandir suas riquezas. Eles exigiam "hedge" (proteção). Em resumo: que os contratos internacionais e os preços aqui praticados, dadas as muitas operações econômicas que realizavam ‘nas terras brasileiras’, e que pretendiam ampliar, fossem indexados ao dólar, daí o ‘invento’ Real ancorado no dólar; qual seja, esse ‘invento’ visava também (ou seria antes de tudo?) garantir a conservação ou a valorização das riquezas forâneas aplicadas e a aplicar no Brasil.

Por isso o professor Fiori (1998), com carradas de razão, diz que o então Ministro Fernando Henrique Cardoso não criou o Real; isto porque sendo a nova moeda uma exigência da expansividade do Império norte-americano, o intelectual da dependência, fiel ao seu objeto de estudo, apenas a patrocinou em coro com as receitas formuladas no âmbito do encontro de Washington antes referido.

Tirando a estabilização dos preços, não surpreende que tudo o mais tenha se agudizado, dos fundamentos da economia brasileira à questão social, e nas mais variadas frações do território nacional.

Enfim, como volta a ensinar mestra Conceição: "Numa economia mundial em que o cassino se tornou global, a ‘eutanásia do rentista’ (...) é impraticável e os desequilíbrios patrimoniais dos agentes econômicos são muito mais relevantes do que os desequilíbrios de renda e emprego (...)" (Tavares, 1999: 483) de qualquer país, até mesmo, ainda que dentro de certos limites, dos EUA. Neste sentido, é instabilidade após instabilidade, com todas as suas mazelas e seqüelas...e sem qualquer sinal de regulação supranacional capaz de deter ou repor o capitalismo mundial numa nova senda de anos dourados. Ou, como outra vez observa o professor Fiori (1997), com sua análise arguta, aqui expressa em versão livre: o Brasil entrou na globalização tão somente pela bolha financeira especulativa, estando dependurado nela, correndo o risco inclusive de, em algum momento de pânico, a rede mundial de proteção não se armar!?

Logo, aceitar a crescente dolarização, vide o caso conspícuo da Argentina, significa perder o controle do dinheiro público, posto que para acessá-lo é preciso vender o estoque de estatais (que acaba) e levar a dívida mobiliária à estratosfera (engolindo até mesmo a riqueza nacional) num jogo evidentemente impossível de ser empurrado sempre para diante. Enfim, aceitar o dólar como moeda de livre curso no país "significa aceitar a desintegração do espaço econômico nacional" e "portanto" abrir mão da capacidade de "regulação futura do nosso espaço econômico regional e continental" (Tavares, 1999: 486)15.

Nestes termos, dada a globalização financeira, e suas repercussões terríveis nas contas públicas (e gastos), as discussões travadas na academia brasileira nos últimos dez a quinze anos sobre a dimensão espacial do capitalismo no país –como sucintamente se comentou- confirmam a tese de Conceição. Diniz (1991), por exemplo, alude a definição de um polígono regional, como a área territorial nacional não alijada da nova dinâmica capitalista; o mesmo Diniz, em outro trabalho, destaca a importância das estratégias microeconômicas empresariais para fins locacionais; analistas e técnicos declaram que a antiga regionalização do país seria coisa do passado; Araújo (1995), aponta o fim da tradicional questão regional (nordestina, inclusive), como as mazelas do que ela denomina de desintegração competitiva (dada a ausência de um projeto de desenvolvimento de cunho nacional que opere como referência para o conjunto dos espaços nacionais); etc. Neste sentido, o trabalho desta autora é por demais preciso e precioso, como também o é o de Carlos Américo Pacheco (1998) que confirmou as significativas mudanças sócio-espaciais brasileiras dos anos oitenta e noventa e, principalmente, chamou a atenção para o significado mais profundo da mencionada ausência de um projeto nacional de desenvolvimento, qual seja, a fragmentação da nação, que o território nacional, enquanto categoria síntese, passou a crescentemente a expressar.

Nestes termos, tendo em conta a primeira parte do texto em pauta (Tavares,1999), Política e economia na formação social do Brasil contemporâneo, o que veio de ser discutido mostra-se mais evidente, e também bem mais complexo. Assim sendo, faz-se mister considerar preliminarmente "a idéia de que os determinantes do desenvolvimento capitalista brasileiro são exógenos [e que mesmo] sem aceitar esta ‘determinação em última instância’ como motor central da história econômica brasileira, [é inequívoco] que essa recorrência tem marcado os nossos períodos de ruptura de acumulação de capital e da forma de inserção da economia brasileira na economia internacional" (452). Mas também que esses determinantes da formação social brasileira, em suas expressões contemporâneas, aproximadamente desde o último quartel do século retrasado, e as "‘taras’ do seu passado colonial não explicam (...) de forma satisfatória, sua evolução social e política como país independente" (452).

Vale dizer: a formação social brasileira nos últimos pouco mais de cem anos apenas se explica na medida em que se considera a tríplice aliança estabelecida entre: as elites cosmopolitas, mais ou menos associadas ao capitalismo internacional, em busca da validação dos seus recursos; as elites fundiárias, em busca pela apropriação privada do território, enquanto forma patrimonial de existência da riqueza, de controle social e de exploração dos muitos deserdados da terra; e as elites oligárquico-regionais, proprietárias ou não de terras, em busca de fundos públicos a serem apropriados privadamente em ‘troca’ de ‘pactos de compromisso’ (expressos em termos federativos) (452-53)16.

Por conseguinte, resulta daí o caráter autoritário, patrimonial e rentista da burguesia nacional: autoritário, porque apenas ele pode explicar tanta e longeva desigualdade social; patrimonial, porque apenas ele pode explicar tanta e longeva apropriação de recursos públicos, como a terra, por exemplo, por parte de segmentos privados (e, portanto, as expressões territoriais das mencionadas desigualdades sociais)17; e rentista, porque apenas ele pode explicar tanta e longeva apropriação de recursos fiscais e financeiros para o setor privado (no que diz respeito a esse último aspecto, à guisa de ilustração, vide a política de manejo cambial favorecedora dos interesses da burguesia cafeeira paulista do final do século XIX e do início do passado claramente favorecedora dos interesses da burguesia cafeeira paulista). Também por conseguinte resulta ainda o porquê da relevância, frente aos conflitos verticais, dos embates horizontais "entre as cúpulas políticas territoriais e as cúpulas de poder ligadas ao Império e ao dinheiro" (453). Em outro plano analítico, o porquê da prevalência da manutenção do movimento do dinheiro, da preservação da propriedade territorial e da alocação de parcelas significativas dos fundos públicos para as oligarquias e as frações cosmopolitas brasileiras, e tudo sob o império da ordem (controle dos de baixo) e ‘sobretudo’ sob os interesses do Império18.

Acontece que a reiteração dos compromissos entre ‘os do andar de cima’, além de não ser de engenharia política trivial, vez por outra parece situar-se à beira da fratura. E é exatamente isto que vem acontecendo no atual momento brasileiro, dada a adesão radical das primeiras elites, quais sejam, aquelas mais estreitamente relacionadas ao capitalismo internacional, aos interesses do Império e de suas empresas globais, e dessa maneira, mesmo que com algumas contradições, aos ditames do dólar. De outra forma: a agudização dos conflitos estabelecidos nesta quadra da vida nacional entre o dinheiro local, o dinheiro mundial e os fundos públicos (476). Ou ainda: é à luz deste quadro que se pode entender mais apropriadamente parte significativa do porquê da cizânia em curso ao nível ‘dos que habitam o andar de cima’.

Afinal, nem todos os agentes econômicos integrantes do bloco no poder possuem patrimônios facilmente conversíveis (dinheiro local) em dinheiro internacional, e a custos negligíveis (sem perdas patrimoniais), incluindo-se aí tanto donos de terras urbanas como rurais. O atrelamento do país à bolha financeira especulativa internacional, dados os pesados serviços da dívida, tornou mais conflitante a disputa de acesso aos fundos públicos, notadamente os de natureza fiscal, que ‘forjaram’ os "anéis" que reiteraram ao longo do tempo a presença no bloco no poder das chamadas oligarquias regionais.

Além disso, o rentismo, que alcançou dramaticamente os de baixo, também avançou expressivamente sobre outros segmentos sociais, como as chamadas classes médias, penalizando-as com baixos salários ou com o desemprego, mencionando-se ainda os aumentos sistemáticos de uma série de preços e tarifas de serviços públicos, que, evidentemente, reduz seu poder aquisitivo. Esse mesmo rentismo também alcançou dramaticamente as chamadas forças produtivas nacionais, quer pela desnacionalização quer pelo estreitamento de seus mercados internos e externos, ou ainda pelas taxas de juros cavalares que lhe são impostas, que, evidentemente, os penaliza via custos financeiros de produção e/ou os obstaculiza em suas decisões de produção e de investimento.

É verdade, por outro lado, que novos processos encontram-se em curso suscitando o aparecimento de novas ‘fronteiras de acumulação’, empurrando para diante, no plano territorial, a eclosão de uma luta de classes aberta, e não apenas do tipo vertical (capital x trabalho). Mas nem a guerra fiscal, as desconcentrações econômicas provocadas pelas fugas às pressões dos movimentos ambientalistas e sindicais, a terceirização e a segmentação da produção com deslocamentos geográficos, o estímulo à formação de metrópoles periféricas, etc., enfim, nada disso, parece ser capaz de reverter a situação atual. As ‘coisas’ parecem ter ido longe demais...

Em que sentido? No sentido de que a metropolização da sociedade e do território são realidades, nada indicando que as novas ‘fronteiras de acumulação’ serão capazes de levar as gigantescas populações concentradas nas grandes metrópoles ‘globais’ e nacionais, e que portanto vivem em suas temporalidades próprias dinâmicas e processos metropolitanos, a alguma ‘interiorizarão’ espacial e vivencial (Santos, 1993). Acrescente-se na composição deste quadro também o crescente desvelamento da natureza do dinheiro que, no quadro da globalização financeira em que foi colocado o país, enquanto dinheiro global (Kurtz, 1997), ao colidir estruturalmente com o dinheiro local e as finanças públicas, vem tornando frágeis velhas alianças, reforçando assim o inequívoco processo de superação da alienação política de parcelas importantes da população, em especial nos espaços antes apontados.

Ironia da história (!?): toda esta possibilidade de passagem a um estágio mais civilizado de capitalismo em solo brasileiro resultou em larga medida da radicalização financista da sua fração burguesa mais cosmopolita e associada que, como se sabe, ascendeu ao poder ao final da primeira metade da década passada atualizando a dependência nacional ao interesses do Império. Neste sentido, a negação dialética ‘produzida’ pelo atual modelo de anti-crescimento econômico (Delfim,1998) e de desenvolvimento parece a cada dia que passa ser fato inamovível, sem ponto de retorno. Por conseguinte, depois de pouco mais de um século de regimes políticos que reiteraram o autoritarismo, o rentismo e o patrimonialismo, levados ao paroxismo nos anos noventa, a sociedade brasileira parece finalmente encontra-se às portas da afirmação de uma nova hegemonia, aquela que consagrará políticas institucionais e sócio-espaciais orientadas para o reencontro da nação brasileira com seu território. Que assim seja...

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1 O autor é Professor-Adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro/RJ e Doutor em Política Econômica pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas/SP, Brasil. natal@ippur.ufrj.br

2 Sobre a expressão "gigantes intelectuais" têm-se em mente a Minsky (1986) quando, referindo-se a Keynes, aponta a Teoria Geral do Emprego como os ombros de um gigante que permitiria ver mais longe; e sobre a expressão "deserdados da terra", ela foi recolhida da epígrafe de um antigo texto de Amim, de autoria de Fanon. Ainda sobre a boa tradição estrutural do pensamento de Conceição Tavares, tenha-se em conta autores como o próprio Keynes, além de Marx, Ricardo e Schumpeter, dentre outros.

3 Quando anotou-se que as mudanças expressas no território brasileiro nos anos 80 e 90 serão apreendidas à luz da retomada da hegemomia norte-americana, não se está asseverando que as mencionadas mudanças se explicam tão somente por aquela retomada, de outra maneira, pela sobredeterminação do tipo ‘fatores externos’ sobre ‘fatores internos’.

4 A esse respeito veja-se o caso do Japão, país largamente importador que, por sua vez, tem no mercado de consumo norte-americano seu principal fornecedor, tendo que reunir dólares e mais dólares para acessar bens e serviços fornecidos por aquele país, e, por outro lado, dependendo desse mesmo EUA para poder exportar suas mercadorias, dado que esta economia é sua maior compradora/consumidora.

5 O entendimento mais detido do processo de crise de hegemonia requer a consideração do seguinte fato: o da generalização entre analistas da cena internacional de que os EUA seriam ao final dos anos setenta uma potência decadente. Enfim: eram recorrentes as análises que se referiam a um mundo no qual os EUA, então, compartilharia com a Alemanha e o Japão o comando da economia mundial, ao passo que junto com a Inglaterra e a França, o ordenamento da política mundial ocidental. Vale dizer: havia certo consenso de que o mundo do final dos 70’s estaria multipolarizado, tanto no âmbito da economia quanto no da política internacional.

6 A Balança Comercial, uma das contas do Balanço de Pagamentos, registra as transações de um país com o restante do mundo no que tange às exportações (+) e importações (-) de bens tangíveis. Seu saldo, quando positivo, diz-se superávit, no caso inverso, déficit. E, sobre a coordenação política e a inovação econômica, vide o mesmo Coutinho (1992, 69-71.

7 Essa intervenção, à época, poderia ser sintetizada pela consideração das políticas keynesianas e do welfare states.

8 Este fato foi dos mais importantes para o entendimento da inflexão econômica experimentada pela economia agro-exportadora brasileira, na realidade já a partir do final dos anos oitenta (Governo Collor), mas, principalmente, durante o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso; observando-se, no entanto, que nem mesmo o ajuste cambial do início do segundo mandato tem conseguido recuperar a boa situação exportadora construída nos 80’s.

9 Para os não especialistas, e apenas para se ter uma idéia de grandeza: a dívida mobiliária federal encontra-se hoje em cerca de R$ 600 bilhões; significa dizer: ela representa atualmente mais de 50% da renda nacional do país (que é de um trilhão de reais). É bem verdade que nem toda a dívida mobiliária tem a mesma temporalidade, mas que esses valores assustam, lá isso assustam.

10 Tanto isso é verdade que nem mesmo a desvalorização cambial de fevereiro de 1999, fez o Brasil voltar a obter saldos positivos regulares em sua balança comercial.

11 Razão da inversão: para fins deste ensaio a seção inicial do artigo da autora ‘captura’ o que há, pensa-se, de mais profundamente explicativo da demarche em exame, tendo, assim, sido deixado para o final do presente ensaio.

12 É verdade que as políticas decorrentes desta nova utopia (!?) começaram a ser implantadas no governo Collor, ou seja, no início da década passada; mas, como apontado, sua adoção efetiva só ocorreu mesmo no governo Fernando Henrique Cardoso.

13 Sem falar na reiteração de medidas anticonstitucionais que com certa recorrência posiciona outro problema de natureza federativa, qual seja, o da crise entre as Organizações dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).

14 Evidente que tudo isso favoreceu os grandes capitais internacionais, em especial os norte-americanos, seja no que tange a custo de produção (redução dos custos inerentes à mão-de-obra), seja em termos de mercados para seus produtos de exportação (às vezes, até de badulaques inteiramente ociosos), seja em termos de estatais para aplicar parcela de seus capitais voláteis, seja em termos de ganhos especulativos nos mercados de títulos e de moedas nacionais.

15 Como exemplificado pela debate acerca da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que, como apontam diversas analistas, significaria o coroamento da dolarização do continente latinoamericano.

16 Assim se explica porque as idéias reformistas ou revolucionárias sempre pareceram estar fora de lugar ou porque as reformas burguesas sempre ficaram confinadas entre o medo do Império e o medo do povo. (Afinal, o) autoritarismo ligado à terra e ao dinheiro sempre rejeitou pactos democráticos com "os de baixo". Embora, como se sabe, outros países, com elites tão tardias ou colonialistas, tenham feito tanto a reforma agrária como a universalização do ensino fundamental, por exemplo (Taveres, 1999).

17 Para melhor compreensão deste processo, leia-se Cano (2000) que, amparado em Furtado, demonstra de maneira definitiva a centralidade do controle da terra não apenas como base para a realização da atividade econômica como para a reiteração do controle e da excludência sociais.

18 Apenas à guisa de ilustração, sobre o rentismo, vale registrar que nestes anos anti-dourados o país paga só com o serviço da dívida, constante da Conta Serviços do Balanço de Pagamentos, praticamente o mesmo que tem sido registrado no Orçamento da União com saúde e educação nos últimos anos.