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DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada - Which censorship are we referring to?

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DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada

Print version ISSN 0102-4450

DELTA vol.19 no.spe São Paulo  2003

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502003000300007 

ARTIGOS ARTICLES

 

Que censura?

 

Which censorship are we referring to?

 

 

Lia Wyler*

PUC-RJ

 

 


RESUMO

Os pesquisadores na área de História da Tradução podem se beneficiar do conhecimento de História do Brasil e sua metodologia, bem como dos autores que comentam o período de seu interesse. No que tange a Era Vargas (1930-53), marco fundador da tradução industrial brasileira, esse conhecimento lhes permitirá perceber com maior facilidade os efeitos da censura e seus desdobramentos nas traduções produzidas à época e mesmo em outras épocas.

Palavras-chave: Historiografia; Tradução; Era Vargas; Brasil.


ABSTRACT

Those who do research in the area of Translation History can profit from a knowledge of Brazilian History and its methodology as well as from the authors who comment on different periods of their special interest. This knowledge can help them identify the effects of censorship and the development of translations produced during the Vargas Era (1939-53) which marks the industrialization of translation in Brazil.

Key-words: Historiography; Translation; Vargas Era; Brazil.


 

 

A historiografia da tradução é uma área do conhecimento híbrida, dado que não aborda apenas as traduções em si, mas as circunstâncias que cercaram sua produção em cada período e em cada país, todas muito diferentes entre si. Disso decorre que, se quisermos realizar pesquisas confiáveis, teremos de nos voltar para o conhecimento da história de nosso país e para a aquisição da metodologia que é própria dessa ciência. Sem esse instrumental, corremos o risco de ficar nos repetindo uns aos outros ou de cairmos em ciladas evitáveis.

Considero que a nossa historiografia teve início com a publicação de "A tradução literária no Brasil", um artigo de José Paulo Paes para o número especial do "Folhetim", Folha de São Paulo, datado de 18 de setembro de 1983 e hoje parte da coletânea Tradução: a ponte necessária. Além de pioneiro na área, Paes teve o grande mérito de citar em seus escritos todas as suas fontes primárias e secundárias, o que permite a quem quiser seguir seus passos, pisar mais firme, cruzar informações e ampliar o conhecimento geral sobre a tradução em nosso país.

Através dele chegamos a Hallewell (1985), autor de extensa bibliografia a que têm recorrido pesquisadores brasileiros e estrangeiros de várias áreas. Sua obra, no entanto, contém incorreções já percebidas e comentadas por estudiosos da Fundação Getúlio Vargas. Uma vez que foi nesse período que começou a se expandir a tradução industrial no Brasil, tudo que a ele se refere, inclusive a censura e suas conseqüências, tem grande pertinência para se entender o que foi, que transformações sofreu e o que é hoje a tradução em nosso país. Até 1930, vivemos quase exclusivamente de livros impressos no exterior e traduções importadas de Portugal e França. Aqui existiam apenas pequenas editoras que enfrentavam grandes dificuldades para a aquisição de máquinas e papel importado e concentravam seus recursos na produção de uns poucos livros didáticos.

Há duas afirmações de Hallewell sobre o pós-1930 particularmente importantes para a historiografia da tradução: a primeira, que na Era Vargas a censura estatal interferiu na produção de livros; a segunda, que foi intensa a atividade tradutória, principalmente de escritores perseguidos ou cerceados pelo governo, pois muitos recorreram à tradução como fonte alternativa de rendimentos e veículo de suas idéias. Tal informação é corroborada por vários autores, entre os quais Martins (1977/78: 148) ao dizer que "Esse volume de traduções dava consistência à vida literária e, além da receptividade psicológica para os livros brasileiros, assegurava a consolidação econômica da indústria editorial."

Mas, Silva (1992:57) contesta a afirmação de Hallewell que

"o Instituto Nacional do Livro havia sido contemplado com as funções de instrumento do controle direto do governo sobre quais livros poderiam ser legalmente publicados ou importados(...), e passados dois anos sem que o Instituto tomasse qualquer medida concreta para desempenhar suas atribuições nesse âmbito, elas foram transferidas para o serviço de censura especialmente criado para isso, o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP" (Hallewell, 1985, p.315).

Argumenta a pesquisadora que, em primeiro lugar, o decreto-lei que criou o INL não lhe atribuiu poderes para decidir que obras poderiam ser importadas ou publicadas, exceto no que diz respeito a "obras raras e preciosas", ao "interesse", e "cultura nacional". E em segundo lugar, que era ao Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP que cabia fazer a censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e esportivas de qualquer natureza, da radiodifusão, da literatura social e política e da imprensa. Cabia-lhe, ainda, proibir a entrada no Brasil de publicações estrangeiras nocivas aos interesses brasileiros e interditar, dentro do território nacional, a edição de quaisquer publicações que ofendessem ou prejudicassem o crédito do país e suas instituições ou a moral. Tal informação já se encontrava em Carone (1976:48), que cita o decreto na íntegra – o que enfatiza a necessidade de darmos preferência a consultar fontes primárias.

A questão da censura em si é um verdadeiro cipoal face às formas, concomitantes ou não, que pode assumir, e assumiu, não só na Era Vargas, como em toda a história do Brasil, sob os pretextos de defender a moral, os bons costumes, a justiça, a ordem e a segurança nacional. Foi exercida pela Coroa, e pela Igreja contra os autores hereges, suspeitos, defesos, danados, durante todo o período colonial e contra os filósofos pervertidos do Iluminismo após o século XVIII. Apesar de sua abolição oficial em 1821, tanto o Estado quanto a Igreja continuaram a exercer a censura: o primeiro contra os jornais e autores que defendiam as idéias libertárias da Revolução Francesa; a segunda mediante o direcionamento da leitura para os jovens. Em pleno século XX, o Pe. Serafim Leite, S.J. exigia um auto-de-fé contra Gilberto Freyre, a quem chamava de O Pornógrafo de Recife, por sua obra Casa Grande e Senzala (1931, 1933).

Por isso, quando Getúlio Vargas assumiu o poder, a sociedade brasileira acreditou que a extinção da censura fizesse parte do seu projeto maior. Mas já em 1933, proibiam-se críticas ao governo em termos acrimoniosos; expressões e referências pejorativas aos seus membros, notícias que pudessem prejudicar a ordem pública e estimular subversões, agressões pessoais a quem quer que fosse, críticas a governos estrangeiros e seus representantes, informações que pudessem produzir alarmes ou apreensões e, finalmente, boatos de manifesta tendenciosidade (Silva, 1997: p.26).

Tornou-se tão disseminada a prática de queimar livros ditos perniciosos ou subversivos, que uma livraria na praça da Sé, 250 anunciava em 1945 "100 mil volumes. A maior queima de livros que São Paulo já assistiu até hoje", folheto de publicidade que ilustra a obra de Carneiro (1997).

Ora, em princípio qualquer censura seja do Estado seja da Igreja traz em seu bojo desdobramentos que podem se manifestar como censura editorial, autocensura ou negação da censura, bem como variados artifícios para enganar as restrições que ela impõe. Todas essas manifestações podem interferir direta, indireta, negativa e positivamente nas circunstâncias em que foi produzida uma tradução e, portanto, na avaliação e na história que sobre ela escrevemos.

As maneiras com que a censura editorial pode afetar o resultado final de uma tradução, aquela que vai ser avaliada pelo público e pelos acadêmicos, são destacadas por Milton (1996: 47-57, 2001: 195-245, 2002) que se deteve a analisar as edições do Clube do Livro. Nelas há uma constância de pés-de-página que alertam os leitores para os malefícios da bebida e da pouca comida e são sumariamente suprimidos os trechos escatológicos, políticos e religiosos. Havia na década de 1940 um projeto político nacional orientando o comportamento dos editores do Clube do Livro. Mas a censura editorial pode existir sem uma razão nacional, pode se caracterizar como um vezo do revisor ou até como uma diretriz orientada por grupos de pressão do país de onde importamos a obra, portanto inteiramente divorciada das preocupações da sociedade brasileira.

Os escrúpulos morais e religiosos parecem ser a principal motivação das ocorrências de autocensura e de censura nas revisões de responsabilidade das editoras. O conto da autora inglesa Katherine Mansfield (1920) foi traduzido por Julieta Cupertino (1992), Ana Cristina César (1988), Edla van Steen (1984) e Erico Veríssimo (1937). É curioso verificar, abaixo, o tratamento que cada um deles deu à passagem em que a personagem principal diz:"No, no. I'm getting hysterical."

Por que Veríssimo não traduziu a passagem? Por que Steen traduziu a palavra "hysterical por "maluca"? Em inglês, "hysterical", figurativamente ou por transferência do uso médico, significa "morbidamente emotiva ou excitada", e é usada para desaprovar ou salientar o exagero de uma reação desde 1704 (Oxford, 1959). É muito provável, se atentarmos para as datas das traduções, que Veríssimo e Steen tenham evitado usar a palavra "histérica" por acharem que o uso popular a tornava "grosseira", o que pode ser verificado numa consulta aos vários dicionários brasileiros.

"Histérica" – mulher caprichosa ou desequilibrada (Figueiredo: 1940); quem padece de desarranjos do útero, moléstia especial de mulheres (Nascentes: 1955); mulher desequilibrada de caprichos insensatos, (Pop) Ninfomaníaca (Aulete: 1964); quem tem histeria (Pop) irritadiço, zangadiço, nervoso (Aurélio: 1968). A referência a distúrbios ligados à sexualidade poderia ser razão suficiente para o tradutor tê-la traduzido por outra mais geral, como fez Steen, ou tê-la excluído como fez Veríssimo. O significado "comportamento caracterizado por excessiva emotividade ou por terror pânico", tal como em inglês, encontra-se dicionarizado em Houaiss (2000), consagrando a acepção hoje corrente talvez até por influência do inglês.

A negação da censura é algo um pouco mais complexo na medida que não envolve apenas mecanismos de rejeição, como também de fuga e racionalização (Carneiro, 1997:13):

"A rejeição que fazemos às leituras sistematizadas sobre as formas de controle político mostra como desenvolvemos mecanismos de fuga que, em última análise, reforçam a presença limitadora do poder em nossas vidas. Como desdobramento da censura, uma auto-censura acomete nossos olhares fazendo-nos supor que temos domesticada a noção do controle exercido pelo Estado sobre nós (Meyhi: 1997)."

Ou seja, quanto mais nos sentimos incomodados por uma situação de repressão, tanto maior a nossa tendência de buscar explicações racionais, como se quiséssemos justificar nossa cumplicidade. Martins (1976:122 ), um autor que dá particular destaque às traduções, repetidamente procura provar que houve liberdade de criação durante a ditadura Vargas.

Afirma ele: "Vê-se que, se o Estado Novo estava "oprimindo" (as aspas são do autor) a vida intelectual, não era certamente no campo da historiografia, nem ao que parece em outras modalidades de ensaios e estudos científicos." Mas sua racionalização não encontra respaldo nem na história nem no seu próprio texto pois sabe-se que os booms historiográficos são normais em Estados nacionalistas, como o de Vargas, que se voltam para o passado, buscando construir seu lugar na história e, dessa forma, reler e reescrever os fatos e as interpretações do calendário cívico do país Gomes (1996: 18).

No Brasil as obras historiográficas que abordavam determinados episódios e personagens identificáveis com o projeto estadonovista não somente eram bem vistas como também subsidiadas pelos órgãos encarregados de uma consistente política cultural. E o próprio Martins confirma que havia uma "Missão e profissão do intelectual", título que dá a uma seção de sua obra na qual, coincidentemente, ele arrola um grande número de traduções (1977-8: 23). Ainda na mesma seção ele registra, como "singularidade bibliográfica do ano de 1939, o grande número de escritores conhecidos em outros gêneros que publicaram livros de literatura infantil". Para ele nada disso parece apontar para as conclusões a que chegaram outros autores que consideraram as traduções e livros infantis atividades alternativas a que se dedicavam alguns escritores da época para continuar a ganhar e a publicar sem se indispor com os órgãos encarregados de zelar pela cultura nacional.

Havia, no entanto, escritores que além de traduções e livros infantis lançavam mão de outros artifícios para divulgar suas críticas ao governo Em sua adaptação de Peter Pan, Monteiro Lobato colocou na boca dos personagens do Sítio suas opiniões sobre determinadas questões. "Há no Brasil uma peste chamada governo que vai botando impostos e selos em tudo... " ou "na Inglaterra os brinquedos não custam os olhos da cara como aqui...". Monteiro Lobato foi acusado de ser comunista, o conteúdo deste livro, pernicioso e a edição confiscada em sua totalidade (Carneiro: 74-5).

Mas outras traduções tiveram melhor sorte, talvez porque à altura de sua publicação, 1943-44, a União Soviética já tivesse deixado de ser um inimigo prioritário. Gustavo Nonnenberg, tradutor de Luta Incerta, obra em que John Steinbeck, denuncia a situação injusta dos bóias-frias norte-americanos1, intercalou em várias partes do texto frases de esclarecimento e doutrinação comunista.

A censura tem, portanto, extrema relevância para avaliarmos a produção editorial da Era Vargas, mas sua relevância não se encerra aí. A censura já existia antes de Vargas e continua a existir, donde o comentário de Saraiva (1976), mutatis mutandi, me parece curiosamente atual: "desde a metade do século XVI até a reforma pombalina da censura não podemos afirmar que conhecemos o texto original de uma impressão, mas somente um texto ao qual os censores anuíram".

Por isso, se ao analisar uma tradução brasileira encontramos um pequeno ou um grande número de discrepâncias no cotejo dos textos de chegada e partida, seria interessante nos cercarmos de alguns cuidados. O primeiro seria verificar se a edição de partida que temos é a mesma com que o tradutor trabalhou, pois podem existir muitas diferenças de uma edição para outra: há saltos e erros de até na melhor edição impressa no exterior. O segundo seria obter a apostila contendo as recomendações que as editoras distribuem para revisores e tradutores visando a padronizar suas edições, embora aí não se encontrem incluídas as implicâncias do revisor com determinadas palavras nem seu interesse em "mostrar serviço", o que pode levá-lo a trocar palavras por seus sinônimos - mesmo que sinônimos exatos não existam e, na troca, possa se perder exatamente o significado que o tradutor queria ressaltar.

Cremos que respaldado pelo conhecimento dos contextos histórico, literário e editorial que ambientaram uma dada tradução, o pesquisador poderá traçar um retrato mais preciso do seu objeto de estudo. Assim fazendo ele estará contribuindo não apenas para enriquecer o conhecimento geral sobre as traduções brasileiras como também, em médio prazo, para a formulação de teorias brasileiras sobre o conjunto de nossa produção.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em agosto de 2002

 

 

E-mail: lia.wyler@terra.com.br
* Professora Curso de Especialização em Tradução, pós-graduação lato sensu, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
1 Informação divulgada por Guy de Holanda, aluno de pós-graduação da UNESP, no VIII Encontro Nacional de Tradutores, Belo Horizonte, 2001.