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As formas do concreto: intelectuais e tradição política (autoritária) no Brasil, por Marcelo Diana | Revista Estudos Políticos

Revista Estudos Políticos

As formas do concreto: intelectuais e tradição política (autoritária) no Brasil, por Marcelo Diana

Posted in Nº 3 (2011/2) by Revista Estudos Políticos on novembro 1st, 2011

Este artigo em PDF

Marcelo Diana é doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ)

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Resumo

Este artigo aborda a temática dos intelectuais da Primeira República e do Estado Novo que ao longo do processo de reinterpretação das suas ideias receberam o qualitativo de autoritários. Por meio da leitura dos seus principais ensaios, procuro demonstrar como Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral interagiram, no plano das ideias, com as necessidades do seu tempo, criando, em contrapartida, uma interpretação tida como realista acerca do que se conhecia sobre o Brasil. Por fim, apresento que a variar de acordo com a apropriação que se faça de determinadas ideias, essa tradição autoritária pode ser lida por outros vieses sem, com isso, ter que recorrer aos seus postulados primeiros autoritários.

Palavras-chave

Realismo; tradição política autoritária; sociologia dos intelectuais

Abstract

This article examines the intellectuality’s matter of the First Republic and the Estado Novo that throughout the process of re-interpretation of their ideas has received the qualitative as authoritarian. Reading some main essays of the period, it demonstrates that Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral had interacted between them and with their political moment to forge an interpretation act as a realistic view about Brazil. By this way the article points out the context of these ideas and the necessities of their times. Finally it presents that depending on the perspective which each one might have about the authoritarian tradition, it is also possible to read this tradition by other distinct perspectives than the historically consolidated as authoritarian.

Key words

Realism; authoritarian political tradition; sociology of intellectuals.

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A questão das minorias apresenta dupla configuração: tem vigência na história (do Ocidente e, em particular, do Brasil) e é atual (reivindicação de direitos e de liberdade por parte de grupos sociais, autenticados pelas reflexões modernas no campo das ciências humanas). Ela é histórica no momento em que se ativam as forças neutralizadoras ou recalcadas pela sociedade branca e patriarcal brasileira; é atual, quando deixa vir à tona os temas ligados às microestruturas de repressão moderna. Em suma, a questão das minorias é o reverso da medalha do autoritarismo. [...] Deixando de ser a origem presunçosa de todos os discursos do saber, o intelectual é a figura mais questionada pela prosa dos últimos anos.

Silviano Santiago. “Prosa literária atual no Brasil” (1984).

Para o início, faço um comentário e uma interpretação a respeito da epígrafe que abre este trabalho. Afinal de contas, poderia levantar suspeita do leitor, por que um trabalho que se dedica a estudar o pensamento político autoritário que se formou a partir da década de 1910, com Alberto Torres, e teve uma certa continuidade durante as décadas seguintes, com diferentes autores e desdobramentos, conhecendo a sua decadência na década de 1940, com o crise da ditadura estadonovista, aposta como epígrafe uma análise feita sobre o papel do intelectual de ciências humanas em tempos bem mais recentes? O leitor poderia ser mais incisivo e indagar por qual motivo o adjetivo autoritário diferencia-se entre parênteses do restante do título.

Ainda que essas suspeitas tenham seu fundamento mais em uma convenção de leitura que se arrasta por normas e conceitos prévios do que em uma abertura irrestrita na manipulação da linguagem, de maneira alguma elas passam distantes do que pretendo abordar neste trabalho: a marca do intelectual que migra, dentro de um espectro de ideias, de uma nomenclatura a outra, de um posicionamento político a outro, que não necessariamente o divide ou o incompatibiliza, já que o seu papel é a própria interpretação sobre o papel. Isto é, a despeito do adjetivo entre parênteses, o que pretendo destacar com essa reserva é a ligação mais direta que pode ser acionada entre o papel do intelectual hoje, como ontem, autoritário ou não, e o sentido que a interpretação de uma tradição política no Brasil ainda reserva para ele. Minha aposta é que ambos os sentidos, do intelectual e da tradição, estão diretamente relacionados com a perspectiva de uma interpretação e de uma ação que não necessariamente tenham que tomar um único viés mais consolidado, como no caso das décadas de 1910 a 1930 veio a ser o autoritário, para se fazer tradição.

Antes, é preciso dar melhor destaque a este ponto: a interpretação do Brasil é obra eminentemente tomada por intelectuais como intérpretes de cultura[1]. Sugestão um tanto óbvia, mas que nem sempre vem acompanhada do termo de adesão das tradições que qualificam o intelectual na suas divergências de papel. Considero que o que define o intelectual contemporâneo ao seu tempo é menos o gosto pelas letras ou por um certo (e de algum modo salutar) diletantismo, mas exatamente o contrário: ele tem como marca singular a capacidade de interpelar a tradição, o movimento de ideias, a cultura de seu tempo, para registrá-las em uma escritura, em uma interpretação que se coloca contemporânea ao seu agir. Nem antes nem depois, o tempo de escritura da tradição do intelectual é a própria marca do contemporâneo, de uma ruptura que demarca os tempos sobrepostos, justapostos, intercalados, interpelados, interpretados[2]. Ainda assim, quais seriam os motivos que ligam um registro presente que questiona, hoje, o papel do intelectual, com um outro registro autoritário, por exemplo, inscrito em um outro contexto político, histórico ou literário? Poderiam ser a cultura e a política horizontes possíveis de atração do olhar intelectual, com as suas questões, para neles se deslocar e tramar um ponto crítico? Como horizonte, toda contemporaneidade é uma abertura e um fechamento, marca limites e possibilidades, impõe uma clausura e permite transgressões. Por esta abertura, pretendo puxar alguns fios de sentido junto à interpretação do Brasil que o pensamento autoritário forjou na primeira República até o fim do Estado Novo. A questão principal que pretendo, de alguma forma, responder, diz respeito ao modo como os intérpretes desse período criaram uma forma concreta de ler o real. Esta forma, contudo, como procuro demonstrar, preenche o real no seu ato de interpretação, ou seja, o realismo político reconhece no papel, menos que na realidade, o seu lugar de intervenção[3]. Essa associação entre o intelectual e uma cronologia política corresponde, de certa maneira, à aposta que fiz logo acima, entre o intelectual e o seu papel, no que diz respeito à tradição. Seria ele o mago das tradições, alquimista que transforma um hábito, um traço, uma linha, em cultura, livro e texto, solicitando sentidos de uma realidade que não se apresenta pelo imediato, em escritura de tradições?

Falo de escritura porque, particularmente, na sua abertura temática encontro criptografada alguma mensagem que não se perdeu no tempo, uma tábula passada e sagrada que, no entanto, ressurge sob a forma de um espectro[4]. Uma realidade presente-ausente que comunica as passagens. Nela podem-se explorar alguns signos mortos que, na leveza do espírito, alcançam um outro sentido, menos pré-determinado, aberto a outra contemporaneidade. Códigos, rótulos, significados, passagens e horizonte, todos esses planos podem ser lidos, então, na realidade espectral da escritura, partindo do endereço póstumo da sua mensagem. Assim o espectro de uma tradição, sua escritura, repousa em uma dimensão em que os laços de sentido são mais frouxos e assentados, e não nos é preciso entendê-los completamente; por isso se pode falar abertamente sobre o que se lê. Uma leitura que marca a ausência presente de outras[5].

Mário de Andrade, personagem importante do enredo cultural e político tecido na década de 1930, alerta que aos brasileiros “falta passado, falta norma e tradição de grandeza por detrás, funcionando como fatalidade (…) os da Europa tinham já por trás uma cerca farpada de mortos fazendo bem pra eles, dizendo pra eles: – O caminho é por aqui gente!”[6]

Fica logo evidente a ênfase dada por Mário de Andrade à ausência de uma tradição bem fundada no Brasil, sobretudo se levarmos em conta a trajetória política europeia, nacionalista e enraizada em uma história de conflitos. Diferentemente da Europa, que teria no seu corpo de memória o registro doloroso que aponta para o caminho a seguir, isto é, a presença de uma tradição política naquele continente orientaria o conjunto das suas nações para uma conduta comum e compartilhada, de modo integrado e ordenador, no Brasil, em contracorrente, o que Mário de Andrade destaca é a preponderante ausência de cerca, de passado autêntico e cristalizado em costumes e cultura, uma falta de norma e tradição que se sente na própria ausência de caráter do seu herói, Macunaíma.

Atenho-me um pouco a esse ponto. O herói sem nenhum caráter fundamenta-se precisamente na sua ausência de caráter, pois adere nesse momento, no seu intervalo vazio, à história da falta de uma nação, da ausência de uma tradição. Por aí, Mário alega a falta de uma tradição e apresenta, como caráter de contrapartida, o aspecto rapsódico da nossa formação. Este estado de indefinição caracterizaria o herói sem nenhum caráter brasileiro. Pela ausência de caráter, o movimento macunaímaco não busca estabelecer nenhum traço fixo ou predeterminado com os novos tempos, pois ainda flerta e divaga em meio aos contratempos da modernidade. Ele acena para um ethos cultural que manifesta sua presença em sua ausência, como espectro de uma vontade não geminada em ser alguma coisa a tempo.

Dessa feita, como Mário já expressara a respeito, o que predomina no Brasil, no sentimento dessa ausência, revela-se numa “dor miúda do acaso pela frente”[7]. Somente pelo trabalho incessante de acerto e erro, de imaginação, de encaixes e exclusões, o intelectual poderia arriscar e apresentar um autêntico sentido sobre o que distinguiria e identificaria o Brasil diante das outras nações. Todos esses sentidos, contraditórios e coexistentes, dariam densidade histórica para o nosso herói brasileiro: um sentimento de incompletude, de distensão, de transitoriedade, que definitivamente reclamaria pela premência de sentido latente, pela urgência de presente; ou a imersão em um presente dilatado, sem história ou tradição, a não ser aquela que deva ser montada como as peças de um quebra-cabeça. Esta ambigüidade seria específica, portanto, do nosso caráter sem um nada, nenhum.

A representação do presente como tempo de adensamentos, profundamente marcado por um espaço aberto e cheio de oscilações, uma fronteira porosa vazada em vários caminhos, foi captada por Gilda de Mello e Souza e apresentada em sua brilhante interpretação da construção de Macunaíma. Nas palavras da autora:

A indeterminação temporal da rapsódia brasileira [...] substitui o conceito de vir-a-ser pela categoria temporal da coexistência. Todos coexistem no mesmo tempo homogêneo, sem passado ou futuro, sem divisão de horas separando o trabalho do ócio, sem períodos de apogeu que contrastem com as épocas de decadência.[8]

Com acerto, outra metáfora marioandradina recorrente na intelectualidade brasileira da sua época diz respeito à “embrulhada geográfica proposital”. Em Macunaíma habita um sentido de narrativa, sintética e híbrida, desordenada e linear, na qual Mário apresenta uma espécie de fauna, flora e geografia lendárias que funcionam como um elemento unificador da grande “pátria tão despatriada”. A coexistência de opostos não anula, no seu esquema imaginário, a dimensão e a densidade do presente. Lidar com este espectro de imagens, com a extensão do presente como contorno próprio do tempo histórico, seria reclamar a necessidade de uma interpretação que caminhasse lado a lado com a ação política.

Por essa composição insólita, arma-se uma visão de Brasil e de história que inaugura uma outra tradição política brasileira. Um compromisso de interpretação e de ação que, em certa medida, aproximaria Mário de Andrade de outros intelectuais de seu tempo. Juntos, eles desenhariam o compromisso de uma geração, com todos os embustes e exclusões que este termo já pode comprometer[9]. Esse compromisso de geração rogou-se como missão trazer à tona o dado oculto, invisível, intuitivo, que resguardaria a nação brasileira como uma cultura específica e especial. Diante do presente denso e de tempo curto, a ação de leitura se confundiria com a interpretação histórica. Trabalhos de investigação e estudos da realidade política, da psicologia social, dos costumes, da arquitetura, dos hábitos, das formas de religiosidade, do folclore, da comida, da dança, da sexualidade etc, foram, assim, a ponta da vez – na vanguarda – para os artistas e intelectuais do período, no descobrimento da realidade nacional.

A partir dessa interpretação arrisco uma hipótese: menos que uma ausência de sentido fechado, o que foi proposto pela geração de intérpretes dos primeiros 40 anos do século XX consistia na urgência de se indagar sobre a realidade brasileira em seus últimos e concretos fundamentos, de torná-la, com base no imaginário político ocidental, uma autêntica nação no presente. O conhecimento da sua cultura deixaria, entre outras conseqüências, o espírito alerta quanto à invasão ou à adoção sem-crítica de estrangeirismos no interior da nossa formação. A interpretação do Brasil, então, se tornaria uma ação de forte compromisso político. “Dentro dessa norma arte-ação é que estamos construindo a nossa obra”[10], como disse Mário em artigo de balanço da Semana de Arte Moderna, publicado em 1925.

Todavia, a afirmação do autor paulista merece uma dúvida: quando essa geração de intelectuais reclamava por uma obra, uma realidade do Brasil, a que se referiam propriamente? Quando saíam em busca do povo e da nação, da história e da cidade, para onde eles se dirigiam? Acredito que alguns indícios para responder a essas perguntas possam ser encontrados na interpretação realista que se tentava imprimir à realidade. Ao realismo foi colocada a tarefa de imaginar uma nação em tempo contemporâneo à crítica de uma história ausente, para acionar, da trama que se cruza daí, as autênticas instituições nacionais. Daniel Pécaut sugere que, no espectro dessa intervenção sobre o presente, “o realista e o teórico consistiam numa mesma pessoa”, e prossegue:

Sob duas manifestações, o intelectual perseguia o mesmo objetivo: buscar uma definição do fenômeno político que escapasse às concepções comuns da política. Apaixonado pelo realismo, desejava descobrir esta mistura de uniões e desuniões sociais anteriores a toda instituição política. Arquiteto infatigável do ‘bom modelo’ de organização social, buscava em um outro plano, o sonho de um controle político que equivalia a negar a dimensão própria do político. A ambivalência em relação à realidade se encontra no princípio de todas as construções propostas por intelectuais de sensibilidades diversas – construções que também se colocam sob o signo do realismo. As instituições a serem criadas deveriam valer apenas por sua ‘adequação’ à realidade, cabendo-lhes traduzir em termos políticos a unidade pré-política desta. [11]

A invisibilidade do real que reclama por ser explorado e o artificialismo das instituições políticas implantadas no Brasil, na primeira República, constituiriam dois dos principais dilemas a serem enfrentados pela geração de Mário de Andrade. Numa solução do tempo, o realismo foi a arma que alguns deles se valeram, não apenas para descaracterizar o presente político que eles rivalizavam, como para descartá-lo como dimensão autêntica da nação brasileira, atitude que faz ressaltar, enfim, o seu esforço de reconhecimento de uma tradição feito em conjunto com a sedimentação dessa tradição sobre um solo comum. O político, nesse caso, subscrevia o social, caracterizando aquilo que Werneck Vianna designou como revolução passiva brasileira. “A mudança social teria sua sorte, então, hipotecada aos fatos, em particular aqueles originários da vontade política”[12] encarnada no Estado.

Em torno dessa submissão dos fatos ao intérprete, pode-se subtrair uma série de temas para dar corpo e forma concreta a essa cultura que, paradoxalmente, encontrava-se difusa e pouco conhecida na realidade brasileira. O Estado e a Nação são apresentados no espectro do visível junto daquilo que se busca reconhecer em ambos: a realidade histórica brasileira, invisível. Uma realidade, como indiquei acima, que era expansiva e desenraizada de uma tradição positivamente presente, por isso o realismo como forma de intervenção concreta. Pela cultura, pela imaginação, essa geração forjou o traço de uma cultura, inventou uma tradição, caracterizando-a pelo informe concreto. Essa é a linha de força da escrita dos autores de 1920. Por isso o meu profundo interesse, não apenas político, mas também de linguagem e formas possíveis de expressão a respeito das suas escrituras. Porque é possível com elas, tanto em sua crítica literária ou nomeadamente política, quanto no caráter que, aos poucos, foi sendo impresso junto à invenção dessa tradição, caminhar por esses diferentes modos de descobrir e entender o Brasil.

Italo Calvino narra, no romance As cidades invisíveis, que olhar a cidade constitui um ato fundamentalmente discursivo, subjetivo, dependente primordialmente da imaginação humana. Não seria certo entender, por isso, que Calvino considerasse o aspecto visível, concreto, material com que se constroem as cidades irrelevantes. Entretanto, se querem ser visíveis, as cidades devem ser sustentadas, de igual modo, por imagens, tal qual ele mesmo destacou em seu romance:

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra./ – Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan/ – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam./ Kublai khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:/ – Por que falar das pedras? Só o arco me interessa./ Polo responde:/ – Sem pedras, o arco não existe.[13]

Neste encaixe, entre pedra e arco, é que existe a ponte. A primeira vista é a ponte, não as pedras, o que existe de concreto nessa imagem. Assim também sucede com a invenção da tradição. Apenas por um gesto criativo, fundador, que inclua experiência e imaginação, poderia se tornar visível o fundamento da nação, ligando a sua dimensão abstrata metafísica à sua situação concreta material. Estabelece-se aqui uma sugestiva ligação entre legibilidade e política, que situa a tradição como elo fundamental dessa união. A tradução do realismo se daria neste termo, no ponto de reconhecimento das formas do concreto. A ponte que permitiria ligar o real ao social seria a principal obra política de uma tradição, erguida pelo realismo.

Uma pausa, e puxando de outro ponto, o que se pode reter da ensaística das décadas de 1920 e 1930 resume-se em um amplo espectro de precipitação de crises, de onde derivaria o apelo pelo real, pelo autêntico, pelo verdadeiro por parte do intelectual. De algum modo, a imagem da crise é o que definiria, em linhas densas e curtas, a necessidade de intervenção na história, no presente brasileiro, na empreitada de coleção das suas tradições, da sua história, do que brasileiramente é.

Evidentemente que esse imaginário de crises não poderia ser apartado do tipo de ambição política que animava uma elite desiludida com o futuro prometido pela República. Muito pelo contrário. Precisamente por ter colocado em debate a ação comprometida da primeira República, que não se encaixava nos padrões de civilização moderna que estavam sendo erguidos no Ocidente, que essa elite intelectual dedicava-se, então, a revirar a história do Brasil com os pés fincados no rastro e no alargamento de uma realidade nacional presente[14]. Enfrentavam, pois, uma trapaça do tempo, visto que remexiam o passado histórico brasileiro, com seus costumes, hábitos, populações, etnias, raças, culturas, regiões, climas, porém com os olhos voltados para a necessidade presente de intervenção nessa história, no apelo urgente de fundação de uma tradição. Visto o seu grau de ruptura, a geração de intérpretes dos decênios de 1920 e 30 transformaram aquilo que poderia ter sido um mero exercício diletante de historicismo acadêmico e infértil em uma ação política de interpretação sem precedentes no Brasil.

Interpretação e ação são, de fato, para essa geração, dois termos que se colocaram um ao lado do outro. Com a bandeira de conhecimento da realidade política da nação, os intelectuais da década de 1920 se dedicaram a um estudo exaustivo dos dilemas do Brasil. Seus estudos já alertavam para a ausência de uma história sob o signo da nação, ao que imprimiam a necessidade de se criar essa tradição nacional com base na nossa geografia, todavia emprestando sempre um sentido fortemente econômico ao termo, e na descoberta de um lugar para o Brasil no mapa das nações. Quanto a tudo esse ponto, Alberto Torres se referia, em 1914:

O destino de um país é função de sua história e de sua geografia. O Brasil não tem história, que tal nome não merece a série cronológica dos fastos das colônias dispersas, e a sucessão, meramente política, de episódios militares e governamentais: sua história étnica, econômica e social, só começará a formar-se quando mais estreita solidariedade entre os habitantes das várias zonas lhe der consciência de uma unidade moral, vínculo íntimo e profundo, que a unidade política está longe de realizar. É em sua geografia e no quadro da sociedade contemporânea que está a base do conhecimento de sua sorte.[15]

Destaco da citação um elemento importante na obra de Alberto Torres: a geografia tomada como uma visão concreta e materialista das riquezas naturais do país. O agrarismo de Torres poderia ser expresso na crença de que a terra é a base da solidariedade nacional, mais que qualquer outro elemento. Sobretudo porque nas assim chamadas “nações jovens”, “modernas”, a terra poderia assumir um aspecto fundamental para manter arranjado o laço de solidariedade social[16]. Nas “nações jovens”, filhas da colonização e da modernidade, os elementos comumente formadores das nacionalidades – como a língua, a religião, a raça – agem como “dissolventes”, termo do autor, isto é, não se combinam de forma harmônica no sentido de organização de uma nacionalidade, de modo que “onde o nosso caso mostra as causas futuras da dissolução, é nos contatos da vida urbana com a do campo, na interpenetração da civilização, que íamos fazendo, com a economia que possuíamos: na fusão dos costumes das cidades, com os costumes da roça.”[17]

Do encontro entre os costumes da cidade, identificados como predatórios, com os do campo, admitidos como desavisados, porém laboriosos, Torres elabora a sua crítica a um tipo de modernidade que, então, anunciava a crise agrícola brasileira. Crítica que vem acompanhada, como visão de solução do autor, da revisão constitucional que incluiria um governo forte e centralizado, capaz de reconhecer os reais problemas da nação e intervir para a sua boa solução.

A precipitação de uma crise epocal nos anos 1910 – uma crise de valores no Brasil e no mundo, de revoluções e rupturas cada vez mais velozes e contundentes no Ocidente e no Oriente, como captará Azevedo Amaral – é vivida por Alberto Torres de maneira peculiar. No paradigma das crises, o autor se volta para os estudos sobre a realidade brasileira como modo de resgate da interpretação que já vinha sendo feita esparsamente desde a sua juventude, interditada, esta atividade, por conta dos compromissos administrativos e políticos da primeira República. A volta ao seu passado, com seus estudos sobre a nação brasileira, passaria a ser percebida como um chamamento  intempestivo do presente enquanto lugar de intervenção política necessária. E, de fato, essa intervenção deve ter seu lugar, precisamente, no presente, segundo o autor.

A vida dos homens que atravessam crises revolucionárias é toda feita [...] de revoluções pessoais. Só quem haja acompanhado, dos primeiros movimentos a seus últimos refluxos, os torvelinhos de uma época crítica, poderá conhecer e avaliar os abalos que a desordem geral vem produzindo em nossos destinos. [...] Dos meus serviços, prestados com desprendimento que resgata seus erros prováveis, nem todos aproveitaram, porque a república foi sempre volúvel, e não fundou glórias e reputações senão sobre as ruínas de suas obras. Não foi sem certo contentamento que aceitei, assim, com a inatividade na última das minhas funções públicas, a liberdade de trabalhar, para repor minha carreira no ponto em que a deixara, quando entrei em atividade política.[18]

O problema nacional aparece para Torres como um chamado do tempo, uma intervenção na história que se apoia, assim, entre os anos de juventude de experiência intelectual passada, reconhecida como equivocada pelo autor, e como uma vontade que deve se dar no presente para o futuro, na busca de um sentido social e uma orientação política para o Brasil. Torres se opõe ao romantismo político, por perceber nele uma ingenuidade do sentido pragmático da intervenção política, uma vez que “a unidade e a continuidade da política resultam da existência de um caráter nacional”[19].

Se, em toda parte, as sociedades não receberam organizações próprias, senão simples construções provisórias, com materiais em ruína; se o Estado não é, ainda, mais que mera corporação política, e o órgão de comando, por violência ou por sugestão; no Brasil, onde a sociedade não chegou a reunir sequer os elementos agregantes da tradição – nem a sociedade existe, nem o Estado; e Estado e sociedade hão de organizar-se, reciprocamente, por um processo mútuo de formação e de educação pela consciência e pelo exercício, o que vale dizer, por um programa, isto é, por uma política: eis o meio de transubstanciar este gigante desagregado em uma nacionalidade.[20]

Neste trecho já é possível registrar a crítica a partir da qual Alberto Torres combaterá a formação de um tipo de elite ligada à corte, ao diletantismo e ao colonialismo que foi praticado no Brasil e em nada foi auxiliar na fundação de uma nacionalidade forte. Ideia bastante recorrente na sua obra, a crítica ao artificialismo das soluções historicamente adotadas no Brasil, como cópias de modelos e teorias estrangeiras e, assim, distanciadas das questões reais da nossa realidade, constituiu o ponto principal pelo qual a permanência da tradição herdada da Corte no domínio da direção política republicana no Brasil criou obstáculos difíceis de se desviar.

Essa sistemática alienação da elite dirigente diante da realidade nacional, como expressa Torres, impediu que se formasse no país uma verdadeira consciência nacional, que fosse capaz de reconhecer e intervir nos seus autênticos problemas, lutando pela sua organização. Na sua conclusão, para constituir essa nação, aponta ainda o autor, é preciso afastar-se das abstrações inférteis, voltando-se para a realidade nacional, estudando-a detidamente, empiricamente, objetivamente, em sua forma concreta, através do censo de dados.

Resulta desse tipo de encadeamento, do sentido político nacional em Torres, um forte espírito nacionalista, presente sobretudo nas denúncias dirigidas contra o imperialismo das grandes potências e na defesa do trabalhador nacional, considerado apto e eficiente, porém sistematicamente ignorado pela elite dirigente. Segundo a crítica do autor, essa elite exótica preferia dirigir seus cuidados e recursos aos imigrantes, numa atitude de rechaço quanto aos problemas mais urgentes do elemento nacional na nossa organização. Por isso, na defesa do brasileiro, Torres expressava uma oposição às teorias raciais importadas da Europa, numa época em que essas exerciam aqui, no Brasil, fortíssima influência. Por negar a existência de raças superiores e inferiores e reconhecendo que os fatores ambientais, mesológicos e sociais são, na verdade, os critérios importantes para a explicação das sociedades, Torres escapou da falácia de um projeto civilizador para o Brasil com base na raça, por perceber que na nossa geografia poderia ser ensaiado um outro tipo de intervenção política que não tomasse como rota, necessariamente, a modernização ao modo europeu.

Oliveira Vianna aponta também, como Alberto Torres, para a tendência das elites de se concentrarem nas capitais, nos centros urbanos, o que lhes imprimiria ares de expatriados. Logo em Pequenos Estudos de Psicologia Social, o autor apresenta seus julgamentos a respeito da soberania nacional e da sua dependência ao patamar econômico, da ausência efetiva de partidos políticos no Brasil, que pudessem representar os interesses econômicos e sociais de grupos organizados, reclamando a necessidade de um governo forte, central, porém não-despótico, na organização política da nação. Dentre todos esses tópicos, no entanto, apresenta, também, as suas impressões sociológicas a respeito da raça mestiça, a raça brasileira.

Ao longo da sua obra, Oliveira Vianna buscou traçar o diagnóstico sociológico dos males brasileiros, identificando na história do Brasil fatores de ordem psicossocial e político-social que teriam impedido a evolução do povo brasileiro rumo a uma nação moderna. Por essa entrada, a sua interpretação da história do Brasil se baseia em uma urgente ação social e política, de modo a traçar um contorno no difuso histórico da nossa evolução. Acredito que, dentre os livros de Oliveira Vianna, Evolução do Povo Brasileiro foi um dos que mais se destacou nessa interpretação pela sua ação como modalidades conjuntas de invenção da nação. O que torna Evolução… um texto particularmente interessante, já que a lógica interna do seu discurso histórico articula eventos e durações em uma totalidade que, no entanto, revelam a lente de visão de onde emerge, é a sua escritura sobre o Brasil: suas permanências e rupturas com o passado e a projeção, segundo o autor, para o futuro. Cria-se não apenas uma história, mas uma teleologia para essa história.

A inexistência de uma opinião pública educada e organizada, democrática e enraizada em valores da melhor tradição, não da politicagem, seria uma das razões pela qual Oliveira Vianna apontava a necessidade de intervenção do Estado na criação desse espaço público. Nesta ótica, o indivíduo é reconhecido no interior da organização estatal, assumindo direitos e liberdades na sua integração de uma revolução passiva republicana. Interpelando contra a tendência social privatista, própria do espírito clânico que teria orientado a nossa evolução, Oliveira Vianna apresenta o Estado como ator fundamental para a fundação de uma esfera pública autônoma. Estabelece o primado do executivo como poder moderador capaz de ponderar e dobrar a corrente de fuga da associação política, republicana, em um personalismo desagregador.

Por isso, não seria por acaso que um dos temas escolhidos por Oliveira Vianna, ao falar da decadência do Império, tanto em O Ocaso do Império quanto em Problemas de Política Objetiva, seria a importante função do poder moderador no balanceamento da mão pública contra o espírito clânico. Para o autor, ideias estrangeiras como federalismo e poderes municipais pouco ou nada vingariam no Brasil – ao que as descartariam como opção política adequada às nossas instituições. Isto porque, nesses núcleos mínimos de poderes, na verdade, de poderes secundários e locais, apenas seriam reproduzidas a lógica centrífuga de escape de poder central rumo às mãos dos poderosos locais; e justificava, por essa ótica, a necessidade de um poder central que moderasse estas mesmas tendências individualistas. A este respeito, secunda o autor:

Havia [no Império] – como ainda há hoje – uma opinião informe, difusa, inorgânica, que era a que se formava nos centros universitários, nos clubes políticos, nas sociedades maçônicas e principalmente na Imprensa. Essa opinião, aliás, tinha sempre um caráter artificial, era quase sempre reflexo americano das agitações européias. Só exprimia realmente o pensamento de uma pequena parcela das classes cultas do país. [Por isso] essa opinião, de origem exótica, em regra, nunca aparecia pura e estreme; sempre se mostrava, ao contrário, muito impregnada das animosidades do partidarismo, muito comprometida com o espírito de facção, para que se pudesse considerá-la sempre como um índice sadio da opinião nacional.[21]

Podemos averiguar, na interpretação que foi feita até agora, um percurso de estreitamento e de encontro de algumas ideias que se tinha a respeito das elites urbanas, intelectualizadas, qualificadas com o adjetivo de exóticas e alienadas da realidade do país, contra o verdadeiro sentido da nação brasileira que deveria passar suspeito por aí, pelo espaço da cidade. Esse estreitamento aproxima ambas as imagens, as elites ilustradas e o seu caráter exótico, para fazer crítica à importação de teorias e modelos políticos que espontaneamente não se naturalizariam como tradição e cultura nacional no Brasil.

Segundo Oliveira Vianna, preexiste uma “história silenciosa”, que corre ao largo dos valores cosmopolitas das elites, que poderia ser resgatada enquanto essência do povo brasileiro. Contra esse bovarismo político, pelo qual identifica, como exemplo, a ascensão do movimento republicano e federalista no Brasil, Oliveira Vianna retorna e fecha a interpretação de Alberto Torres sobre aquilo que seria a tarefa urgente da intelectualidade: a fundação de uma sociologia brasileira, de um pensar e um agir sobre o problema nacional, por uma vocação autônoma e soberana. Tema que seria, de fato, abordado enfaticamente na constituição do Estado Novo, em 1937.

Por fim, outro autor importante na composição do contexto intelectual do período, Azevedo Amaral tem uma entrada especial neste trabalho. Isto se deve ao destaque que o autor dá, na sua escrita, aos problemas teóricos da sua época. Na recusa de um determinismo histórico, o autor toma como fio narrativo da sua pretendida historiografia o voluntarismo político e a narrativa de rupturas. Transitando entre a Inconfidência Mineira de 1789, a Independência Colonial de 1822 e os rastros de Revolução que se iniciaram em 1922, culminando, na década de 1930, com a criação de uma ordem autoritária, Azevedo Amaral estabelece como fio de sentido da história a ação política voluntarista, a autêntica tradição ordenadora da genealogia histórica da nossa realidade nacional. Assim, um constante revolucionismo animaria a história moderna, inclusive a nossa. A sua interpretação apresenta a Nação e o Estado em uma única e mesma figura: o legislador, enquanto viga mestra da interpretação e da ação, como o ator diante dos fatos.

… o legislador constituinte manteve o seu ponto de vista tradicionalista evitando o erro a que aludimos. Em tudo que no texto da lei básica do novo regime exprime o pensamento de fidelidade à tradição nacional, não há margem para controvérsia. Foi evitado um excesso de passadismo que teria redundado na confusão de realidades históricas com ficções e lendas sem ponto de apoio profundo em fatos concretos da evolução nacional. A harmonia entre as novas instituições e a situação atual da sociedade brasileira veio a ser alcançada por forma a dar-nos a impressão de um ajustamento naturalmente obtido na aplicação da ideologia do regime aos aspectos peculiares dos diferentes casos em apreço.[22]

A nação é entrevista então pelo espectro de ações passadas que tem na iniciativa política do Estado, adequada ao presente, a marca fundamental da sua fundação. Tomando por base essa genealogia, podemos compreender a defesa do corporativismo, expressada pelo autor, se pela finalidade do desenvolvimento econômico e político da sociedade. Nas palavras do autor:

Nada, talvez, caracterize melhor o pensamento novo, cuja elaboração se tem ativado principalmente depois da grande guerra, do que a tendência a deslocar a solução dos problemas sociais, políticos e econômicos do plano de um determinismo inexorável para o campo onde o fator representado pela vontade humana aparece como elemento de incalculável relevância. Esse sentido voluntarista, que se reflete em todos os aspectos da vida contemporânea, pode ser apontado como traço mais característico da idéia central do corporativismo.[23]

Nesse aspecto, Azevedo Amaral pode ser colocado neste trabalho como o intelectual que converge todo o esforço anterior, de investigação social e histórica da realidade nacional, com vistas a identificar o critério que deve reger a ação presente da vontade política. Interpretação e ação acertam os ponteiros não apenas com o desenvolvimento das ideias universais no Ocidente, como também se cristalizam no Brasil por uma vontade política imperativa de ordenação do mundo social. O Estado legislador assume, então, o seu papel de intérprete da realidade, rompendo com os laços do atraso e intervindo a favor do moderno, por meio da vontade política. A tradição republicana subtrai das instituições um espectro de realidade, conforme destaca o autor, em suas “Condições Preliminares” de leitura, por onde se intervém.

Realmente, o desenvolvimento histórico não é, em última análise, mais que a correção sucessiva de erros, o reajustamento de situações desarmoniosas, uma série de mutações visando sempre maior adaptação das formas estruturais da sociedade e do seu organismo político às condições traçadas pela inexorável pressão da realidade.[24]

Nessa jogada, o autor inscreve a sociologia em uma certa teoria política que tem, por orientação, duas matrizes: o realismo político, que alimenta a configuração de um quadro de crise e, por conseguinte, da necessidade de intervenção que será obra, já da segunda matriz constitutiva dessa teoria política, da intuição enquanto linha mestra do “gênio político” de ação de interpretação. Podemos pensar aqui na sociologia política de Amaral como uma retórica da mímesis, que inscreve a realidade sob a forma de uma teoria do Estado, ou teoria política, ao sintetizar nessa teoria a recriação do real sob as formas do concreto.

Contra o excesso de racionalismo, presente nas explicações da ciência experimental, Azevedo Amaral alegará que o Estado autoritário surge não como ideologia política, mas como resposta “aos imperativos do instinto de conservação nacional”. Por isso, o autor descarta a crítica que identifica nessa ordenação política do Estado Novo traços totalitários, optando, antes, por representá-lo como “uma democracia autêntica, que se alicerça nas bases supridas pela nossa fisionomia coletiva peculiar, sincronizando-se ao mesmo tempo com o ritmo do pensamento democrático nas suas mais puras e elevadas expressões”[25]. Em Azevedo Amaral temos formulada a ideia de uma democracia autoritária, ou autoritarismo instrumental, como sugerido por Wanderley Guilherme dos Santos[26], já que o Estado cria a sua vocação como ator do processo de desenvolvimento econômico e diretor político da nação, a despeito dos fatos. Sendo o Estado uma caixa de percepção dos fatos, Azevedo Amaral associa conhecimento intuitivo e autoritarismo político e conclui que a Nação e o Estado são um só e indivisível instinto. A tradição republicana é reagrupada em torno dessa matriz de interpretação estatista, autoritária, ancorando, junto à sua intervenção política “essencialmente realística”, a sociologia nacional, onde estaria repousado o espírito democrático. Estado, Nação e Sociedade são, portanto, peças que se desdobram de uma mesma e única realidade intuitiva que é dada a conhecer, tanto com base na nossa historia, na nossa cultura, quanto nas nossas memórias e tradições.

Refere-se Azevedo Amaral, quando comenta a função do intelectual no que diz respeito ao Estado e à realidade nacional, que o papel do intelectual não seria impor “à coletividade nacional certo número de doutrinas e de tendências ideológicas”, mas “retransmitir às massas, sob forma clara e compreensível, o que nelas é apenas uma idéia indecisa e uma aspiração mal definida. Assim, a elite cultural do país torna-se, com o golpe de 10 de novembro e a Constituição do Estado Novo, um órgão necessariamente associado ao poder público, como centro de elaboração ideológica e núcleo de irradiação do pensamento nacional que ela sublima e coordena.”[27] Comparece  plasmada em uma só realidade a figura do intelectual e a do povo, do Estado e da Nação, numa ligação imediata entre os fatos políticos e a interpretação que deles se pode derivar. O realismo teria, por fim, criado o seu produto final, juntando a forma do real à realidade. Tradição e república parecem se fundir a uma só realidade – tanto em sua análise quanto na sua descrição – ao fim da escrita de Azevedo Amaral.

Vários intelectuais e produtores de cultura que participaram na formação e na instituição do paradigma moderno como rota para o futuro do país encontravam-se, ao fim do Estado Novo, desiludidos com a ideologia política autoritária que integraram, em algum momento, no seu passado recente. Um desses produtores foi o próprio Mário de Andrade, que desabafou ao poeta mineiro Pedro Nava, em 1944: “Basta, não quero viver mais. Já estou meio desiludido dos homens e sinto que vivi demais.”[28] Mario de Andrade viria a morrer em fevereiro de 1945, ano também de crise e fim do Estado Novo. Em “Lira Paulistana” Mário deixa registrado o olhar distópico que se abateu sobre a sua visão em relação ao ensaio de modernidade tentado no Brasil. Este olhar seria um perfeito exemplo da força da revolução passiva brasileira, na qual o processo se sobrepõe aos atores, criando autonomia e esmagando-os posteriormente. Para seguir com as palavras de Werneck Vianna, tanto como intérprete como comentador já em 1996:

Se a revolução passiva das elites territorialistas traduziu o seu programa de criar uma nação para o seu Estado, a nação que vem emergindo do processo de conquista de direitos e da cidadania por parte das grandes maiorias ainda não concebeu o seu Estado. [...] A democracia, como palavra-chave do ‘critério de interpretação’, [...] para que se converta na base de um transformismo ativo, suportado pela ação do ator, ainda está aguardando que essa nova força emergente do social se encontre com a política, incluída aí sua história no país e as suas melhores tradições[29].

Na fala do autor, uma brecha de contemporaneidade ainda permanece em jogo, especialmente no que se refere aos intelectuais e ao sinal da tradição no Brasil. o parêntese sobre a evolução da nossa tradição política permanece como tal, suspenso. O alerta, no entanto, continuaria dado? Uma pausa e um recuo: avançamos rapidamente para o ano de 1996, agora voltemos para a epígrafe que abre o trabalho.

A questão das minorias apresenta dupla configuração: tem vigência na história (do Ocidente e, em particular, do Brasil) e é atual (reivindicação de direitos e de liberdade por parte de grupos sociais, autenticados pelas reflexões modernas no campo das ciências humanas). Ela é histórica no momento em que se ativam as forças neutralizadoras ou recalcadas pela sociedade branca e patriarcal brasileira; é atual, quando deixa vir à tona os temas ligados às microestruturas de repressão moderna. Em suma, a questão das minorias é o reverso da medalha do autoritarismo. [...] Deixando de ser a origem presunçosa de todos os discursos do saber, o intelectual é a figura mais questionada pela prosa dos últimos anos.

Ressaltaria, agora, a relação que se pode firmar entre sociedade e tradição política. É necessário abordar as fissuras da cidade e vislumbrar, nas margens da história, a possibilidade de uma construção republicana inclusiva. Todavia, essa conversa somente pela aparência guardaria alguma semelhança com a discussão, tão cara aos modernistas brasileiros, acerca dos princípios de fundação nacional e dos problemas de organização (e solução) política do Brasil. O vocabulário pode permanecer idêntico, porém os sentidos, como tentei ao demonstrar, são distintos.

Neste trabalho pretendi indicar, com Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, uma variação sensível no tema da visibilidade da política, sobretudo quanto às suas margens. Acredito que será com relação a essa periferia, às minorias, à “força emergente do social” que o intelectual ainda – este um advérbio de sincronicidade, registro de dois tempos que engata passado e presente em uma contemporaneidade – se justificaria diante da sociedade e do político. Mais do que um Estado, a vocação política de quem lê pode ser a de saber ajustar os tempos, de se fazer contemporâneo mesmo quando o que se busque seja a o foco da tradição. Este procedimento é possível, pois lidamos, sempre, com o parênteses que suspende as denominações históricas de uma posição cerrada e conclusiva. É nessa aposta que amplio a convicção de que partindo de uma mesma medalha, podem-se desdobrar vários vieses, com distintos sentidos. Seria tarefa política da ação na interpretação que não nos encerraremos sobre eles, permitindo-lhes, sempre, quando necessário, um parênteses para os desabrigar.


[1] Para a ideia de cultura como repertório a partir do qual os movimentos intelectuais, bem como os seus círculos, pares e gerações, apropriam-se, conferir SWINDLER, A. “Culture in Action: symbols and strategies”. American Sociological Review, vol. 51, n. 2, pp. 273-286.

[2] Tratando do tema da escritura e da letra que a anima, o filósofo argelino Jacques Derrida tem algo a nos dizer: “A letra é separação e limite no qual o sentido se liberta de ser aprisionado na solidão aforística. Pois toda a escritura é aforística. Nenhuma ‘lógica’, nenhuma proliferação de lianas conjuntivas pode acabar com a sua descontinuidade e com a sua inatualidade essenciais, com a generalidade dos seus silêncios subentendidos. O outro  colabora originariamente no sentido. Há um lapsus essencial entre as significações, que não é a simples e positiva impostura de uma palavra, nem mesmo a memória noturna de toda a linguagem. Pretender reduzi-lo pela narrativa, pelo discurso filosófico, pela ordem das razões ou pela dedução, é desconhecer a linguagem, e que ela é a própria ruptura da totalidade.” DERRIDA, Jacques. “Edmond Jabès e a questão do livro:. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 62-63.

[3] Interessante, neste sentido, é a sugestão de Derrida sobre a estrutura da escrita: “A forma fascina quando já não se tem força de compreender a força no seu interior. Isto é, a força de criar.” DERRIDA, Jacques. “Força e significação”. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 14.

[4] Valho-me para a discussão acerca da escritura e da lógica dos espectros, ou espectrologia, diretamente dos estudos de Jacques Derrida. Cf. DERRIDA, Jacques. Limited Inc. São Paulo: Papirus, 1991. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Também trabalhei este mesmo tema, jogado em outro contexto, na minha dissertação de mestrado defendida no IUPERJ. Cf. DIANA, Marcelo Nogueira. Imaginação política pós-ditadura: uma leitura de A fúria do corpo, de João Gilberto Noll e Em liberdade, de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: dissertação de mestrado, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2006.

[5] Citando o poeta Edmond Jabès, Derrida é quem destaca: “Onde está o caminho? O caminho está sempre por encontrar. Uma folha branca está cheia de caminhos… Voltaremos a fazer o mesmo caminho dez vezes, cem vezes… E todos estes caminhos têm os seus caminhos próprios. – De outro modo não seriam caminhos.” DERRIDA, Jacques. “Edmond Jabès e a questão do livro”. In: Op. cit., p.60.

[6] “Discurso de Mário de Andrade” apud SANDRONI, Carlos. Mário contra Macunaíma. Cultura e política em Mário de Andrade. São Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1998, p.23.

[7] “Discurso de Mário de Andrade” apud SANDRONI, Carlos. op.cit. p.20.

[8] SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p.33.

[9] Uma discussão mais aprofundada sobre o tema das gerações na sociologia dos intelectuais pode ser buscada em GLUCK, Mary. Georg Lukács and his generation 1900-1918. Cambridge and London: Harvard University Press, 1985. JANIK, Allan e TOULMIN, Stephen. A Vienna de Wittgenstein. Rio de Janeiro: Campus, 1988. SCHORSKE, Carl. Viena fin-de-siècle. Política e Cultura. Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp, Companhia das Letras, 1988. ALONSO, Angela. Ideias em Movimento. A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. BOMENY, Helena. Guardiões da Razão. Modernistas Mineiros. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Tempo Brasileiro. PONTES, Heloisa. Destinos Mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Parafraseando a sugestão de Gluck sobre o retrato intelectual do Sunday Circle de Lukacs, Mário de Andrade atua, no meu trabalho, como uma espécie de foco a partir do qual este retrato geracional das décadas de 1920 e 1930 é flagrado. Especialmente interessante, também, é o ponto de vista desenvolvido por Bomeny e Pontes, a partir da sugestão de um “círculo de intelectuais” que compartilham ideias e interesses comuns que movimentam, tanto no plano intelectual como na vida pública, os debates sobre questões sociais, políticas e culturais. No entanto, inicialmente, reservo-me neste trabalho a empregar o termo “geração” sem maiores implicações do que a de caracterizar um contexto histórico de ideias e de obras de interpretação. Futuramente, uma boa indicação de pesquisa seria investir na suspeita e no detalhamento do que caracterizaria uma obra e o seu autor como “obra de interpretação” (como se toda obra não fosse, de alguma, trabalho de interpretação).

[10] ANDRADE, Mário de. “Jornal do Commercio, 24/05/1925”. [grifo meu] In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-Americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EdUSP/Iluminuras, 1995, p. 477.

[11] PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990, p.49.

[12] WERNECK VIANNA, Luiz. “Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira”. In: A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p.19.

[13] CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.79.

[14] Neste sentido, até mesmo a experiência da Primeira Guerra Mundial parece imprimir certas noções de história para a interpretação do passado brasileiro. Não raras são as referências a ausência de conflitos, a falta de cercas, a negociação e a contemporização do elemento nacional como descompasso ou isolamento que teria marcado, ou melhor, desmarcado, a evolução política e cultural brasileiro diante dos grandes movimentos internacionais.

[15] TORRES, Alberto. A organização nacional. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1914 (?), p. 64.

[16] Recomendo, para o assunto, os estimulantes estudos que João Marcelo Ehlert Maia tem trazido a público, a respeito do papel desempenhado pela terra nos discursos sobre fundação nacional do Brasil. Cf. especialmente de Maia A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

[17] TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.32.

[18] TORRES, Alberto. Op. cit. p.10.

[19]TORRES, Alberto. A organização nacional. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1914, p. 61.

[20]TORRES, Alberto. Op. cit. p. 37.

[21] VIANNA, Oliveira. O Ocaso do Império. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1990, p.31.

[22] AMARAL, Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p. 150.

[23] AMARAL, Azevedo. Op. cit. p. 290.

[24] AMARAL, Azevedo. Op. cit. p. 9.

[25] AMARAL, Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p.185.

[26] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

[27] AMARAL, Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p.303

[28] ANDRADE, Mário de. Apud NETTO, José Antônio Orlando. In: SOUZA, Eneida Maria de (org). Cartas a Mário. Cadernos de Pesquisa, Belo Horizonte, NAPq/FALE/UFMG, n.11 (nov), 2ª parte, 1993, p.80.

[29] WERNECK VIANNA, Luiz. “Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira”. In: A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p.24.

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