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Educação e Pesquisa - The wealth of the wasted time

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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702

Educ. Pesqui. vol.25 no.2 São Paulo July/Dec. 1999

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97021999000200009 

A riqueza do tempo perdido*

 

Tânia Maria F. Braga Garcia
Universidade Federal do Paraná

Correspondência para:
Rua José de Mello Braga Junior, 675
81540-280 - Curitiba - PR
e-mail: taniabraga@netpar.com.br

 

 

Resumo

Este artigo apresenta análises produzidas a partir de investigação etnográfica realizada em uma escola pública de ensino fundamental, localizada na periferia de Curitiba (PR).

O material empírico foi obtido a partir de observações realizadas durante um período de treze meses em uma sala de aula de terceira série, de entrevistas realizadas com a professora e com os alunos, e pelo exame de documentos. O foco recai sobre as práticas de uma professora bem sucedida e sobre a organização do tempo na sala de aula. As análises foram desenvolvidas a partir de três categorias: distribuição do tempo, momento oportuno e ritmo.

Os resultados do estudo permitiram ampliar a compreensão sobre as relações entre o tempo escolar, o ensino e a avaliação. Indicam a necessidade de se pensar a temporalidade da sala de aula a partir de duas dimensões - chronos e kairós - que, no caso em estudo, se coordenam e se ajustam na situação de ensino, abrindo espaço para uma estratégia de trabalho que privilegia o atendimento individual aos alunos; e mostram, também, formas de uso do tempo que se apresentam como significativos espaços de produção de relações no cotidiano escolar.

Palavras-chave

Tempo escolar - Etnografia - Práticas escolares - Ensino fundamental.

 

The wealth of the wasted time

Abstract

This article presents analyses based on an ethnographic investigation carried out at an elementary state school in the outskirts of Curitiba, PR (Brazil).

The field material was obtained from observations of a third year class made along thirteen months, interviews with pupils and teacher, and from the exam of documentation. The focus is directed to the practices of a successful teacher and to the organization of time in the classroom. Three categories are at the root of the analyses conducted here: distribution of time, right moment, and rhythm.

The results of this study advance the understanding of the relationships between time in school, teaching, and evaluation. They indicate the need to reflect upon the temporality of the classroom in terms of two dimensions – chronos and kairós – which in the case under study coordinate and adjust themselves in the teaching environment, making room for a work strategy that privileges the individual attention to pupils. These dimensions also reveal forms of employing time that establish important settings for the production of relationships in the school everyday life.

Key words

School time – Ethnography – School practices – Elementary school.

 

 

Compreender a sala de aula significa não apenas discuti-la do ponto de vista da constituição e da transmissão de conteúdos cognitivos e simbólicos, isto é, da cultura escolar, como também do ponto de vista das suas características próprias, seus modos, seus ritmos e ritos, sua linguagem, seu imaginário, elementos que compõem, na perspectiva de Forquim (1993), uma cultura da escola.

Nessa direção é que se orientou a investigação etnográfica cujos resultados são parcialmente apresentados a seguir (Garcia,1996). Partindo-se do pressuposto de que a cultura da escola não existe de forma independente, e que se constitui a partir de relações sociais mais amplas, pode-se discutir as práticas que são construídas e reconstruídas no cotidiano da escola, pela ação de professores, pais, alunos e também das pessoas que compõem a hierarquia do sistema escolar.

A investigação foi desenvolvida em uma escola pública onde se realizou o trabalho de campo, particularmente com a observação das atividades em uma sala de terceira série do ensino fundamental, cuja professora - Laura - foi identificada como bem sucedida, tanto pela escola quanto pelas famílias e pelos próprios alunos, porque ensina bem e porque suas turmas costumam ter altos índices de aprovação.1

Os processos de análise etnográfica (Rockwell, 1985; Ezpeleta; Rockwell, 1989; Erickson, 1984) contribuíram para que, entre os diversos aspectos observados na rotina daquela sala de aula, a forma como o tempo era distribuído e organizado se constituísse em objeto de estudo, buscando-se explicitar suas relações com as práticas de avaliação e com as formas de interação estabelecidas entre a professora e os alunos.

No âmbito deste artigo estarão sendo privilegiadas apenas algumas análises sobre a forma de distribuição do tempo no interior da sala de aula observada e suas relações com os resultados de ensino que a professora obtém.

 

Tecendo o “fio das horas”: a rotina na sala de aula

No início da investigação, as observações resultaram em registros que descreviam a sala de aula sem dar-lhe uma face específica, fazendo-a semelhante a qualquer outra sala, de qualquer outra escola, do ponto de vista dos rituais.

A progressão do trabalho de campo e das análises permitiu ajustar o foco de atenção para uma forma de trabalho segundo a qual Laura alterna o atendimento coletivo com o individual, com predominância absoluta deste último. Este aspecto da rotina não corresponde aos quadros gerais usados para descrever as salas de aula tradicionais, nas quais o que se ouve é fundamentalmente a voz do professor em aulas expositivas, posicionando-se este, física e psicologicamente, à frente de seus alunos.

As aulas de Laura são, na sua maior parte, dedicadas à atividade de percorrer as carteiras dos alunos apontando falhas no trabalho que está sendo desenvolvido, sugerindo alterações, esclarecendo dúvidas e chamando a atenção sobre erros e aspectos negativos, seja do ponto de vista do conteúdo ou da forma. Proporcionalmente a essa atenção individualizada, são poucos os momentos de explicação ou exposição registrados, como forma de atendimento coletivo à classe, durante todo o período de observação.

De forma geral, as aulas começam com um momento em que a professora encaminha a atividade a ser realizada, que pode ser uma leitura de texto, um exercício ou a complementação de uma tarefa iniciada em outro dia. Parece haver um entendimento, por parte de Laura, de que deve dar algumas informações aos alunos ao início de trabalho. No entanto, não foi possível observá-la, durante o trabalho de campo, em aulas expositivas convencionais.

Suas exposições são breves e as aulas são mais centradas nas atividades do próprio aluno, que podem ser caracterizadas mais como exercícios. Nem sempre há indicações claras de como a tarefa deve ser executada, a lápis ou caneta, por exemplo, ou mesmo sobre o tipo de resposta que a professora espera de seus alunos.

Logo a seguir, ela encaminha a tarefa para a solução, muitas vezes resolvendo as questões propostas em conjunto com os alunos, oralmente. A ordem de “podem começar” ou “podem fazer” tem, algumas vezes, o significado de “podem escrever as respostas que já elaboramos oralmente”.

O início do trabalho pelos alunos, na maioria das vezes, é marcado por indagações sobre a data, sobre o uso de lápis ou caneta nas respostas, sobre a necessidade ou não de cabeçalho. Na evolução do trabalho, as perguntas se ampliam para questões mais específicas que um ou outro aluno levanta, na intenção de esclarecer perguntas ou enunciados que não estão claros ou são ambíguos, ou ainda outros aspectos de conteúdo que não foram perfeitamente compreendidos.

A dúvida de um aluno, ao ser esclarecida, em boa parte das vezes parece produzir a compreensão para outros alunos, hipótese que se pode levantar a partir dos olhares que dirigem ao colega que questionou, e mesmo à professora que responde, atitude seguida pelos atos de apagar com a borracha algo que foi escrito e, depois, novamente escrever.

Tal atitude, observada com bastante freqüência, foi mostrando que, embora não se manifestassem, outros alunos também necessitavam daquele esclarecimento, aproveitando-o para efetuar alterações na tarefa em desenvolvimento. É possível supor que os alunos reconheçam esse momento como importante no sentido de tomar contato com a tarefa e entender o que deve ser feito: quase sempre, ficam atentos.

Em geral, as atividades continuam sendo feitas pelos alunos, acompanhados por Laura em suas carteiras, até a hora do lanche. Esse tempo, que se segue à etapa inicial do trabalho diário e que se prolonga até o recreio, revelou à pesquisadora, logo a princípio, uma das faces intrigantes da ação docente nesta sala de aula: Laura, considerada professora responsável e bem sucedida pelos resultados que obtém com seus alunos em termos de aprovação, parecia estranhamente deixar as tarefas - mesmo aquelas aparentemente de rápida e simples solução - estenderem-se por um tempo excessivamente longo.

A impressão de um tempo desperdiçado, de um tempo pouco aproveitado para o trabalho, além de conflitar com a imagem de professora exigente e organizada, deixava exposta uma intrigante questão: se Laura perde tanto tempo, como é que seus alunos aprendem? Se o tempo para ensinar já é considerado tão pequeno, como é que ela dá conta dos conteúdos?

Algumas questões foram se colocando a partir dos registros e anotações feitas em campo: o que faz a professora durante o longo tempo que transcorre na execução das atividades, mesmo as mais simples? Com o que se ocupam os alunos? Sobra tempo? Se sim, como é usado? O tempo gasto é necessário à realização do tipo de tarefa proposta? Quanto tempo ela dedica aos diferentes tipos de tarefa que deve realizar, inclusive à avaliação? Ela usa aproximadamente o mesmo tempo para atender cada um dos alunos? Ou, ainda: do ponto de vista pedagógico, que significados a temporalidade tem na sala de aula?

 

O tempo: perguntando por seu papel

Os ritmos cíclicos e biológicos têm intrigado a mente humana há muito tempo. A razão tem buscado, por diferentes vias, respostas para a pergunta: o tempo teve um início?

Na mitologia grega, por exemplo, Cronos (Tempo) nasce de Gaia (Terra) e Urano (Céu), e gera Zeus, a maior divindade do Olimpo. É interessante relembrar que Cronos mutila seu pai a pedido de Gaia, toma seu lugar no trono do Universo e devora seus filhos ao nascerem para evitar que algum deles o destronasse, cumprindo a previsão de um oráculo. Zeus sobreviveu porque Cronos foi enganado.

Gerd Bornheim, no texto intitulado A invenção do Novo, chama a atenção para a riqueza das experiências e das interpretações do tempo através do curso da história, afirmando que “são raros os conceitos que podem ostentar uma prodigalidade tão grande de abordagens, todas como que a mostrar a inesgotabilidade do tema” (1994, p.103).

Buscando as fontes dessa discussão no pensamento ocidental, encontra-se na Física de Aristóteles a afirmação de que o tempo é eterno e é a medida do movimento, porém na perspectiva do antes e do depois. Para o filósofo, tal perspectiva - o antes e o depois - poderia ser explicada, talvez, pela ação da alma humana a contar, o que colocava a existência da irreversibilidade do mundo sob a responsabilidade do homem.

A tradição bíblica levou alguns filósofos à defesa da idéia de que o tempo foi criado em dado momento. Contrariamente, pensadores como Giordano Bruno ou Einstein defendiam a idéia de um tempo eterno. A ciência contemporânea continua polemizando sobre a possibilidade de se compreender o tempo como uma ilusão ou como uma propriedade fundamental do Universo.

Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica do não-equilíbrio, ao discutir o nascimento do tempo chama a atenção para o fato de que esta quaestio disputata pode ser retomada sob uma nova perspectiva. Para ele, a idéia de evolução num mundo estático e determinista - como aquele que a ciência clássica descrevia - tornou-se difícil de aceitar, assim como o tempo eterno é incompatível com o universo evolutivo.

Diante do Universo transformado pela idéia de evolução contínua trazida pela teoria darwiniana, a Física não pode deixar de considerar o importante conceito da irreversibilidade, que é uma das condições de existência das estruturas encontradas nos processos afastados do equilíbrio. Nessa nova forma de compreender o universo, o par ordem/desordem torna-se indispensável para a interpretação das realidades que se apresentam. Isto é particularmente interessante quando se considera que um “sistema em equilíbrio não tem e nem pode ter história: apenas pode persistir em seu estado, em que as flutuações são nulas” (Prigogine, 1991, p.42).

Prigogine insiste que a irreversibilidade é uma propriedade comum a todo Universo e afirma a existência sempre relacionada de dois elementos dialéticos, um elemento criador de ordem e outro - também criador - de desordem. Se isso acontece, já não se pode acreditar que, como pensava Aristóteles, somos os responsáveis pelo aparecimento do antes e do depois.

Parece existir, para aquele autor, uma flecha do tempo comum a todo Universo, tempo potencial que “está sempre já aqui, em estado latente, que não exige senão um fenômeno de flutuação para actualizar-se” (1991, p.60), afirmando que a existência dessa flecha do tempo, comum aos sistemas físicos e ao homem, talvez seja o fato que melhor exprime a unidade do Universo.

Do ponto de vista da ciência, então, qual é o papel do tempo? Para Prigogine, não é ilusão - como pensava Einstein - nem dissipação: o tempo é criação. O conceito de irreversibilidade e a existência dessa flecha do tempo comum a todo o universo, que trazem consigo a discussão sobre a instabilidade, a mudança, o aperfeiçoamento, a evolução, a história, também são acompanhados pela idéia de que não se pode prever o futuro da vida ou da sociedade ou do Universo, já que, dentro dessa perspectiva, o futuro permanece aberto.

Do ponto de vista sociológico e tomando-se como referência o trabalho de Agnes Heller (1991), a irreversibilidade dos acontecimentos e dos fatos como conceito não aparece no pensamento cotidiano. Contudo, a irreversibilidade como fato está presente de forma orgânica na consciência temporal cotidiana, que reconhece a passagem do tempo numa existência em que o passado é fixo e o futuro, aberto. O emprego freqüente de expressões como “o que passou, passou”, ou “o que não tem remédio, remediado está”, denota a dificuldade que se tem para aceitar a irreversibilidade.

O tempo da vida cotidiana, para Heller, é antropocêntrico e, portanto, refere-se a um “agora” particular. A experiência temporal, nessa esfera, só é influenciada pelo desenvolvimento da ciência quando esta produz possibilidades de ação. Dessa forma, os conceitos científicos relacionados ao tempo acabam não interferindo na forma como se opera com a temporalidade na vida cotidiana, mesmo para quem adquiriu conhecimentos sobre a teoria da relatividade ou sobre os fenômenos irreversíveis.

Do ponto de vista da vida social, a organização e a distribuição do tempo são, para Heller, cada vez mais importantes. Ainda que o tempo não passe nem mais veloz nem mais lentamente, é possível afirmar que o ritmo muda em diferentes períodos ou épocas. Para a autora, com freqüência a vida cotidiana necessita ser reordenada ou reestruturada em virtude da aceleração no ritmo dos acontecimentos históricos.

Outra categoria utilizada por Heller na análise do tempo cotidiano é o momento. Para ela, “cuanto más rápido es el ritmo de la historia, tanto más importante es aprovechar el momento” (1991, p. 392). Nos contatos cotidianos e também no plano da atividade política, a escolha do momento apropriado para a ação é de extrema importância. A definição do tempo de conclusão de uma tarefa, ou do horário que se marca para um encontro, é expressão do momento apropriado - ou oportuno - presente na vida cotidiana e que possibilita a convivência social, assumindo diferentes características em diferentes contextos.

Além das três categorias temporais consideradas objetivas - distribuição do tempo, ritmo e momento -, Heller aponta outra, subjetiva: o tempo vivido. As experiências temporais interiores, particulares de cada indivíduo não podem ser expressas em correspondência absoluta com o tempo efetivamente transcorrido.

Ao explorar aspectos de superposição entre o tempo vivido e o tempo pensado, Gaston Bachelard (1988) cita Minkowski:

Por vezes o tempo do eu parece passar mais depressa que o tempo do mundo; temos a impressão de que o tempo transcorre rapidamente, a vida nos sorri e somos felizes; por vezes, ao contrário, o tempo do eu parece retardar-se em comparação com o do mundo; o tempo então se eterniza, sentimo-nos acabrunhados e o tédio toma conta de nós. (p.89)

Para Bachelard, esta é uma realidade psicológica que não pode ser compreendida como uma “análise banal da impressão de langor que nos faz achar o tempo comprido”. Ainda do ponto de vista psicológico, a idéia de extensão no tempo é, para o autor, “secundária e só existe quando o julgamos longo demais”. Há mesmo uma relação inversa entre a extensão psicológica de tempo e a sua plenitude: “Quanto mais um tempo é ocupado, mais ele parece curto”. Essa observação poderia ser o fundamento de um conceito essencial: “Veríamos então a vantagem que há em falar de riqueza e densidade mais do que de duração” (1988, p.41).

Nessa perspectiva, afirma-se que o tempo vivido é subjetivo, já que cada um tem o seu próprio tempo, influenciado pela fantasia, pela memória, pela imaginação, e também pelos contatos sociais. A relação entre a experiência interior de temporalidade e o grau das experiências interiores não é uma relação que varia na proporção direta: é o conteúdo do acontecimento que determina se a experiência interior representa um curto ou um grande espaço de tempo (Heller, 1991, p.393).

Essa questão é central quando se volta a atenção para as formas usuais de organização do trabalho escolar que, por exemplo, privilegiam o cumprimento sincronizado de tarefas idênticas, definem padrões de aprendizagem ao final de dados períodos - meses, bimestres , semestres - e submetem os tempos individuais à temporalidade das tarefas em curso, e ignorando, de certa forma, a existência das experiências relacionadas a essa dimensão subjetiva da temporalidade.

A análise das formas como se distribui e organiza o tempo na escola de hoje torna-se mais fecunda quando se buscam compreender também suas raízes. Que relações a temporalidade escolar guarda com a evolução da noção geral de tempo? Em que momento se estabelece a seriação, o ritmo, a sucessão de atividades, a rotina, elementos temporais que marcam a cultura da escola e que são encontrados nas mais diferentes salas de aula?

Ao realizar uma “análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos na evolução escolar no ocidente”, pela análise particular da situação na França e em Genebra, André Petitat (1993) afirma que é possível estabelecer uma relação entre a temporalidade específica dos Colégios, criados e multiplicados no período que vai da Renascença às vésperas da Revolução Industrial (séculos XIV a XVIII), e as profundas modificações nas noções de tempo que ocorreram nesse período.

Criados originalmente para facilitar o atendimento a estudantes sem recursos, agrupando-os em locais onde havia alojamento e alimentação, os Colégios transformaram-se progressivamente em estabelecimentos de ensino, substituindo o costume de os estudantes ir individualmente até os professores pela imposição de um mestre aos alunos agrupados. Essa mudança foi acompanhada por transformações em relação ao controle dos mestres sobre os alunos e às matérias ensinadas. Os cursos livres da Idade Média perdem o espaço, e a graduação sistemática nos estudos marca, a partir da segunda metade do século XV, as relações pedagógicas com a rígida ordenação em graus e classes.

É interessante destacar que a divisão do dia em horários é proposta por Melanchton, segundo Petitat, em 1528, juntamente com a sugestão de separação dos alunos em graus e a definição de uma certa ordem na escolha dos textos para estudo. A graduação, que também introduz uma maior ordem, se justificava pela preocupação dos pedagogos protestantes e jesuítas do século XVI em atender ao grau de desenvolvimento da criança e do adolescente, entendidos agora como diferentes dos adultos, de cuja vida começam a não mais partilhar. Na escola, a vida dos alunos se submete a uma nova temporalidade, diferente da existente no ambiente familiar ou na rua.

Se na escola, antes, o tempo do aluno era dado pelo seu próprio ritmo, agora é definido em horários e períodos, marcados por relógios e sinetas presentes desde o século XV. O tempo do relógio, que se tornará o tempo da ciência, infiltra-se nas atividades sociais para medir, regular, fixar, sincronizar: “Os alunos dispõem de um tempo limitado para assimilar determinadas matérias, para entregar os temas e para apresentar-se aos exames” (Petitat,1993, p.79).

Essa expropriação do tempo do aluno é, para Mariano Enguita, correspondente à expropriação do tempo do trabalhador assalariado em relação ao processo de trabalho. O objetivo da escola é então, segundo esse autor, “dispor do tempo e da capacidade efetiva dos alunos, em lugar de permitir que o façam eles mesmos” (1989, p.175). E isto, para ele, se manifesta no controle que o professor faz sobre os horários, na sua angústia em organizar as atividades de forma que o tempo esteja sempre ocupado.

Esse tipo de organização, além de não permitir que se perca tempo, pois “o tempo é ouro”, tem por finalidade evitar desordens na sala de aula, caracterizando-se pois como disciplinador. No entanto, para Enguita, o resultado dessa ação do professor acaba sendo mais do que isso: ela é a antecipação da “jornada de trabalho sem poros”. A conseqüência desse privilegiamento da organização burocrática do tempo, para o autor, é a fragmentação, a normalização e a recomposição do tempo do aluno “na forma de um quebra-cabeça de atividades que ele não planejou nem é capaz de compreender” (p.175).

Admitindo como adequada tal interpretação de Enguita, poder-se-ia questionar, contudo, se na sala de aula não haveria outras faces dessa questão que precisariam ser investigadas: reconhecendo o professor como presença organizadora, não existiriam ações efetivas dos alunos capazes de interferir na organização do tempo escolar?

André Petitat chama a atenção para o fato de que a essa nova noção de tempo escolar - subdividida e controlada - que foi introduzida pelos colégios, associa-se uma outra que fornece as bases institucionais para a seleção: a de rentabilidade e de intensidade do trabalho escolar, de avaliação do rendimento escolar: “na base das classificações de alunos e de todo o sistema de competição posto para funcionar, encontramos essa nova relação com o tempo” (1993, p.92).

Dessa forma, as transformações ocorridas nas noções de tempo têm uma correspondência com as transformações observadas nas formas de trabalho escolar e, ainda, criam espaço para o surgimento de uma concepção de avaliação fundamentada no julgamento das habilidades dos alunos em cumprir rapidamente suas tarefas e de se manter em atividade constante, num tempo sem vazios, “sem poros”.

Esses elementos relacionados à organização do tempo escolar estão presentes ainda hoje na cultura da escola, seja na forma como as atividades são seqüenciadas, seriadas e distribuídas nas grades de horários, seja na forma como se estabelecem critérios de julgamento quanto aos resultados dos trabalhos que os alunos realizam.

Encerrar ou cumprir um programa de ensino, classificar os alunos em lentos ou rápidos, identificar os alunos atrasados ou adiantados, definir quem vai ser aprovado ou vai retornar para cumprir novamente o mesmo programa - estas e outras questões são cotidianamente reafirmadas pelo professor e pela escola, constituindo-se em convicções que, embora eventualmente postas em discussão, permanecem marcando o trabalho em sala de aula.

Quando genericamente descritas, as escolas de fato organizam o tempo levando em consideração os aspectos até aqui apontados. No entanto, as abordagens críticas sobre a escola têm colocado ênfase na idéia de que o espaço escolar não é apenas um espaço de reprodução social, mas também de produção. Portanto, é preciso indagar sobre as possibilidades de surgimento de outros elementos que compõem a cultura da escola e que podem definir outras relações entre a temporalidade e a organização do trabalho escolar.

É necessário reafirmar, com Petitat, que não existe aqui um esquema binário em que a ação da escola se resume à reprodução da dominação de uma classe social, esquema que apenas simplifica ao extremo as relações da escola com o poder social e político, e que é “(...) impróprio para explicar as relações que a escola mantém com todas as esferas sociais, com todos os ‘patamares em profundidade’ cuja evolução no tempo segue ritmos divergentes, que se entrecruzam e se influenciam reciprocamente” (1993, p.262).

Ainda, para o mesmo autor, a escola, reprodutora em um certo nível, contribui em outro nível para a mudança social, por ser também um espaço de produção:

Sua ação explícita no que se refere a certos valores ou normas culturais definidas se fará implícita, para não dizer totalmente inconsciente, em outros níveis. Sempre parecendo exclusivamente voltada para a veneração à ordem estabelecida, ela participa, a despeito de si mesma e de maneira indireta, para ultrapassar esta ordem. (1993, p.263)

Pode-se retomar, agora, a idéia de Ilya Prigogine (1991, p. 74) relacionada à irreversibilidade, quando afirma que “os sistemas instáveis avançam para um futuro que não pode ser determinado, porque tenderão a cobrir tantas possibilidades (...) quanto estiver à sua disposição”. As discussões sobre os efeitos criativos do tempo podem contribuir para que se entendam alguns aspectos da temporalidade na sala de aula de Laura e de seus alunos de uma forma menos cristalizada, estável e pobre.

 

A distribuição do tempo e o ensino

Do ponto de vista do desenvolvimento do seu trabalho, Laura revela-se uma profissional extremamente organizada, que enfatiza, em diferentes conversas e entrevistas, a necessidade de planejar a sua ação: “Não gosto de fazer tudo de qualquer jeito... Eu gosto de planejar, de organizar, de corrigir”.

Sabendo do tempo que necessita para atender seus alunos em sala, ela não admite chegar para o trabalho sem um planejamento rigoroso do que precisa ser feito, a cada dia. Para Laura, distribuir bem o seu tempo é, de fato, fundamental. Ao dar sua opinião sobre o que é um professor competente, destaca a organização como qualidade indispensável, além do estudo:

Eu vejo assim o professor competente: organizado. Eu acho o ponto essencial a organização, porque quando você não é organizada, é duro. Mesmo que o professor tenha preparo, culturalmente..., mas não se organiza, na hora de trabalhar faz uma confusão! Então eu acho que a competência vai mesmo por aí, do professor se organizar, procurar saber, estudar,...

Que conseqüências tem essa sua forma de pensar sobre o desenvolvimento das suas tarefas? A partir de uma previsão inicialmente feita com outras professoras da mesma série, para cada bimestre, Laura distribui os conteúdos em planejamentos semanais que vão sendo atualizados no decorrer do trabalho. Isto permite que não se acumulem conteúdos que não foram trabalhados, evitando que, ao finalizar um período, ela precise concluir assuntos apressadamente, problema usualmente apontado por professores em pesquisas e no cotidiano da escola.

A organização detalhada de seus planos consome um tempo significativo. Por isso, além dos horários de permanência na escola para estudo, preparo e correção de tarefas, Laura reserva horas das suas noites, em casa, para atividades tais como conferir os cadernos dos alunos: “(corrigir) me toma um bom tempo... Porque o meu horário pra escola, em casa, é das oito até a meia-noite, meia-noite e pouco. Nesse horário que eu faço (as coisas) pra escola. Então, é um trabalho constante e diário,...”

Além da discussão sobre a distribuição do tempo no sentido de cumprir todas as tarefas decorrentes de sua profissão, aqui está em questão a jornada de trabalho da professora, que não garante a ela horas pagas para executar tais tarefas, na forma como ela entende ser adequada. No caso do sistema municipal a que pertence a escola de Laura, são garantidas quatro horas de permanência semanal que, no entanto, se mostram insuficientes diante da quantidade de coisas a realizar e que Perrenoud (1993) caracteriza como “dispersão”.

Também do ponto de vista da distribuição do tempo de trabalho com os alunos, Perrenoud aponta a multiplicidade de tarefas próprias da ação docente, mesmo quando se trata de atividade que apresenta certa unidade temática e de tempo: administrar o tempo que resta, a atenção dos alunos, a indisciplina, a progressão no trabalho, a distribuição do material, o registro de questões a serem retomadas mais tarde; observações a anotar; dar respostas pontuais às perguntas dos alunos; corrigir trabalhos em curso ou já concluídos.

Para caracterizar tal multiplicidade de tarefas do professor, Perrenoud usa a metáfora do maestro que dirige uma orquestra na qual alguns músicos não dominam totalmente a partitura ou não a querem respeitar, e que se aplica ao observado na sala em estudo. A cada momento da atividade de atendimento individual, a atenção de Laura se concentra sobre o trabalho de um dos alunos em particular - quando ela verifica e corrige muitos aspectos ao mesmo tempo - mas também se desloca rapidamente para vários outros alunos: mesmo estando de costas para a classe, freqüentemente se dirige a alguns deles fazendo indagações do tipo “Já acabou?” ou ainda “Como é que vai aí?”

Na perspectiva de Perrenoud, essa dispersão, que implica a execução simultânea de múltiplas tarefas, pode ser entendida como um aspecto positivo do trabalho de ensinar que “dá sentido ou interesse à prática de lutar contra a angústia ou contra o aborrecimento”, mas também pode ser caracterizada “como uma necessidade funcional, respondendo à solicitação de tomar muitas pequenas decisões em curto espaço de tempo e pode manifestar também uma dificuldade de organização” (1993, p.69).

Mergulhada nas atividades de acompanhamento e correção dos trabalhos dos alunos, Laura se mantém em atividade durante todo o tempo em sua sala de aula. É interessante apontar aqui a idéia desenvolvida por Bachelard (1988) de que, em relação ao tempo, “é preciso nos defendermos dele ou utilizá-lo, conforme nos localizemos na duração vazia ou no instante realizador” (p.37). Desse ponto de vista, o tempo é fundamentalmente descontínuo e a duração tem um caráter de conduta, de obra: “(...) diante de uma ação bem estudada num projeto bem explícito, a ordem dos atos constituintes domina tudo. A idéia de extensão do tempo é secundária” (p.41).

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que Laura ocupa seu tempo em sala de aula de forma densa. Essa densidade em relação ao que se realiza num dado intervalo parece, de fato, tornar secundária a extensão do tempo para a professora. Isso poderia explicar porque ela não apressa seus alunos na conclusão das tarefas e porque gasta uma parte significativa do tempo atendendo os alunos em suas carteiras.

Por outro lado, os alunos se dedicam por um longo tempo em cada atividade, não tendo sido possível observar, durante o trabalho de campo, momentos em que um curto espaço de tempo dos alunos estivesse sendo distribuído - ou fragmentado - na execução de várias tarefas. Isso poderia ser entendido como um dos fatores que determina um clima de calma, de pouca agitação, nessa sala de aula. Parece haver tempo para tudo que se necessita fazer.

Mas esta não parece ser uma situação generalizada. Andrade (1990), num estudo etnográfico voltado à compreensão do fracasso escolar, aponta que a distribuição do tempo não prioriza o ensino. Além disso, chama a atenção para o fato de que o rigor no controle do tempo parece existir, na escola por ele pesquisada, apenas com relação à pontualidade na chegada dos alunos, punindo-se e expondo à humilhação aqueles que se atrasam. Após o início da aula, o rigor em relação ao tempo de ensino não se configura: “A organização do grupo, na forma de advertências, imposição da ordem e disciplina, absorve a maior parte do tempo e da energia da professora” (p.31).

As atividades de Laura, em sala, não definem um tempo pequeno para o ensino, tal como Andrade identificou em seu estudo. Pelo contrário, esta se revelou no decorrer do trabalho de campo a atividade mais freqüente e que ocupa o maior tempo dentro da sala em estudo. Essa priorização do ensino também não confirma os resultados de pesquisas sobre o tempo dos estudantes referidos por Enguita, que mostram que “só se aproveita entre um quarto e um terço do tempo escolar para a instrução” (1989, p.179).

Talvez uma observação apressada das atividades na sala de aula de Laura pudesse conduzir à concordância com Enguita e com a pesquisa de Andrade. Contudo, a permanência prolongada nesse espaço mostrou que o tempo aparentemente perdido, de fato não o era. A professora ocupava a maior parte de seu tempo ensinando e atendendo, de forma individualizada, seus alunos.

Outro aspecto apontado pelo estudo de Andrade (1990) foi a arbitrariedade no controle do tempo, que se revela na forma como as professoras “estendem certas atividades que lhe são prazerosas” (p.31), mesmo quando as crianças já estão manifestando seu tédio. Essa situação não encontrou correspondência na sala de Laura, na qual o tempo é organizado segundo outros critérios que não o prazer da professora: as atividades parecem se estender muito mais em função da ação intencional de atender os alunos durante a realização da tarefa.

A forma de controle do tempo usada por Laura não inclui a prática habitualmente apontada de acelerar tarefas ou apressar a conclusão das mesmas, “pondo-se fim ao trabalho antes que tenha terminado” (Jackson,1968, p.16, citado por Enguita, 1989, p.175). Ainda que Laura permaneça atenta ao transcurso do tempo e ao ritmo do trabalho, parece haver, também nesse aspecto, um rompimento com as formas de distribuição do tempo descritas em alguns estudos que se referem ao fato de que as atividades são interrompidas pelo professor sem considerar o interesse ou a evolução do trabalho dos alunos. Em certo sentido, na sala de aula observada, os alunos também contribuem para dimensionar o tempo das atividades propostas pela professora.

Apesar de Laura afirmar que distribui o tempo disponível de forma a atender todos os alunos, alguns deles percebem que, nessa distribuição, o tempo que cabe a cada um não é necessariamente o mesmo. A observação confirmou que isso de fato ocorre, ainda que não tivesse sido possível identificar os critérios que a professora utiliza para fazer a divisão do tempo de atendimento. As observações mostraram, no entanto, que em determinados momentos ela se concentrou mais tempo sobre o trabalho de alguns dos alunos apontados como os que teriam mais dificuldades.

Do ponto de vista, portanto, da distribuição do tempo de trabalho, tanto seu quanto dos alunos, Laura parece dar prioridade ao ensino, conseguindo contemplar os conteúdos previstos e propor as tarefas definidas pela escola para a série em que atua. Pode-se afirmar que, embora se admita que a decisão sobre as tarefas a realizar e o modo de realizá-las esteja centrada na professora, esta decisão parece contemplar também algumas necessidades dos alunos: além de trabalhar sobre os conteúdos de ensino e de serem atendidos nas tarefas, eles conversam, brincam e riem, o que pode ser um indicativo de que o tempo também pertence a eles.2

 

O momento oportuno

Passar de carteira em carteira, conferindo as lições, é uma das atividades mais constantes que Laura desenvolve enquanto seus alunos realizam tarefas indicadas. Ao distribuir seu tempo de trabalho, ela privilegia o contato com os alunos, um a um. É nesses momentos que olha as lições de casa, aponta e assinala erros, sugere correções, faz com que cada aluno modifique suas respostas que não estão adequadas. Chama a atenção para o traçado das letras, sobre o capricho no caderno, sobre o conteúdo que está sendo trabalhado. Atenta, pede tarefas aos que faltaram ou esqueceram os cadernos.

As entrevistas realizadas com os alunos mostraram que a maioria deles atribui um papel importante a essa forma de atendimento que Laura utiliza predominantemente em suas aulas, para que possam se sair bem na aprendizagem dos conteúdos. Na concepção da professora, talvez o melhor momento para ensinar seja este, em que o erro, ou o equívoco, ou a falha acabaram de acontecer. Percebidos pela professora, podem ser imediatamente revistos pelo aluno. A interferência de Laura no trabalho recentemente desenvolvido, ou em desenvolvimento, permite que a discussão do erro ou sua correção ocorram num momento muito próximo ao da sua produção pelo aluno.

À medida que a professora vai se deslocando de carteira em carteira, também as dúvidas vão sendo esclarecidas, havendo ainda a possibilidade de que os alunos que estão mais distantes, naquele momento, se aproximem e peçam explicações. Dessa forma, a correção dos cadernos que Laura faz, em sua casa, transforma-se muitas vezes em atividade de conferir o efeito final das suas observações e interferências ocorridas durante a realização dos trabalhos na sala de aula.

Essa estratégia de atendimento individual, que poderia ser vista como um controle exacerbado sobre a produção do aluno, em outra perspectiva parece permitir que este desenvolva suas atividades com uma margem reduzida de erros ou equívocos e com uma grande margem de segurança, já que Laura permanece atenta durante muito tempo a essas realizações individuais.

Entende-se que seja possível estabelecer uma estreita relação desse procedimento com os bons resultados que seus alunos obtêm. Produzir trabalhos mais corretos ou, em outras palavras, com menos erros, deve estimular o aluno positivamente. Além disso, a correção imediata do erro e especialmente o esclarecimento da dúvida, no momento em que ela surge, podem ser mais efetivos no sentido da aprendizagem do que a execução de tarefas com erros, corrigidas num tempo distante e sem a presença do autor do trabalho.

A escolha do momento certo, nos contatos cotidianos, é de grande importância e revela uma das faces da irreversibilidade do tempo, sentida precisamente “cuando se ha perdido el momento justo y se sabe que ya no volverᔠ(Heller, 1991, p.391). E isto parece ser compreendido por Laura: ela acredita nos bons resultados dessa forma de trabalho que prioriza o atendimento individual, permitindo que acompanhe muito de perto a produção de seus alunos e que nela interfira apresentando sugestões e também efetuando correções. A relação dinâmica tempo/espaço/movimento é expressa nas palavras da professora em uma das entrevistas: “É perto deles que você consegue perceber. Como é que eu ia descobrir que ela fazia isto daqui se eu não conversasse com ela?”

É interessante, aqui, relembrar que a palavra grega kairós - tempo estratégico, momento oportuno - na sua origem “indica a abertura triangular na tecelagem de fios e a corrente de fios ora elevada ora reclinada ou ainda atravessada por um repuxo mais forte. Quando se dá uma tal abertura inesperada, ocasional na triangulação dos fios, ocorrem mudanças nas triangulações”, como explica Olgária Matos (1994, p.253). Posteriormente é que passou a significar um ponto exato no tempo. Para Walter Benjamin, segundo a autora:

kairós é o momento da legibilidade e da visibilidade de um acontecer: é o instante de seu reconhecimento, de sua conhecibilidade (...) não como a passividade da reminiscência platônica (...) mas como apreensão de um presente que se constrói com os fios e motivos de um bordado (como no sentido etimológico de kairós). (p.253)

Para Laura, a atividade de ensino está centrada na possibilidade de atender, no momento oportuno, cada aluno em suas necessidades. Essa preocupação se revela em vários momentos da fala da professora, e é concretizada pela forma de trabalho que caracteriza essencialmente a sua ação na sala de aula. Ela costuma se referir ao aluno no singular, mesmo quando fala genericamente. Nas conversas e entrevistas, as explicações que ela dá são muito mais de natureza particular, específica de cada caso, do que sobre sua turma como um todo, o que pode ser extremamente revelador de sua atenção sobre os alunos individualmente.

Portanto, a essência da atividade de ensino, para Laura, parece implicar a busca de diferentes caminhos para ensinar a cada um, como revela neste fragmento em que explica o sentido de sua atividade profissional:

Porque você só vai ficar... eu mesmo só fico satisfeita quando eu vejo realmente que ele entendeu. Dessa forma, daquela outra, daquela outra, mas que os resultados são os mesmos (...) tentando (...) por vários caminhos.

Nessa perspectiva, a professora rompe com a idéia pedagógica de que todos os alunos são ensinados da mesma forma. Essa busca de caminhos diferenciados para conseguir a aprendizagem de cada aluno está associada, na ação de Laura, à forma como ela distribui seu tempo de trabalho na sala se aula, aproveitando cada momento de contato para conhecer o trabalho do aluno e para ensinar-lhe. Além disso, o uso de estratégias diferenciadas para diferentes alunos e em diferentes situações está associada a uma outra questão de extrema relevância: a professora não admite a possibilidade de que algum dos alunos não aprenda. E isso, concordando com estudos como o de Rosenthal e Jacobson (1968) sobre as profecias auto-realizadoras, pode ser um outro elemento explicativo dos bons resultados que ela obtém com seus alunos.

 

O ritmo: chronos e kairós

A escola tem sido apontada como uma organização que, do ponto de vista do uso do tempo, provoca uma anulação do ritmo individual, quando apresenta como expectativa homogeneizar a duração das tarefas propostas. A descrição detalhada das operações a serem feitas por todos, simultânea e sincronizadamente ao soar um sinal, uma batida de pé ou de mão, revelam um controle pela homogeneização, que permaneceu - permanece? - como marca da cultura da escola: “é mais que um ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior; é um programa” (Foucault, 1993, p.138).

Entretanto, na sala de Laura esta questão parece ter outras faces. Embora não se possa negar, como já foi afirmado, que a professora é a presença organizadora do tempo e das atividades que nele acontecem, também é possível perceber uma ação dos alunos, nem sempre explícita, sobre tal organização. Parece haver, como indicou Quiroz (1989), uma negociação que pode se manifestar na pergunta bastante usual da professora - “Já acabaram?” - mas que também se revela por indícios ou sinais que os alunos dão: movimentação no espaço, deslocando-se entre as carteiras, conversa que assume um tom mais alto do que durante a realização das tarefas, preocupação com o que os outros estão fazendo, alguns tipos de brincadeira, entre outros.

No sentido de compreender melhor alguns elementos que constituem a negociação sobre o tempo da tarefa, é também oportuno recorrer a Erickson (1982). Ele aponta a necessidade de que os envolvidos na ação interativa - como nas situações de ensino - sejam capazes de coordenar, entre si, suas ações, levando em consideração a simultaneidade e a seqüência. O ritmo é dado pelo ajuste entre kairós - o tempo estratégico, apropriado para determinada ação - e chronos - o tempo dos relógios, mecanicamente mensurável. Esse ajuste exige que sejam observados alguns indícios, alguns sinais de contextualização que contribuem para a coordenação das ações na interação.

Laura dispende a maior parte do tempo em sala de aula atendendo individualmente seus alunos, e essa forma de interação poderia implicar uma dificuldade de ajuste entre os inúmeros ritmos individuais diferentes. Seria esperado, talvez, que o tempo dos alunos fosse, como aponta Enguita, “consumido principalmente em esperas, lapsos mortos e rotinas não instrucionais” (1989, p. 79). Contudo, não é o que as observações indicaram.

Há um limite que Laura define e que parece corresponder tanto ao tempo da professora para atender os alunos, quanto ao tempo dos alunos para concluir suas tarefas de forma bastante solta, com pouca rigidez no estabelecimento do momento de conclusão. Como já apontado, Laura vai pontuando todo o tempo de trabalho com expressões verbais dirigidas aos alunos, individualmente ou a grupos, procurando mantê-los de certa forma coordenados ao ritmo global da sala, que poderia ser qualificado como lento.

Tal característica pode ser discutida a partir de diferenciações nas séries iniciais e nas séries finais do ensino fundamental, e mesmo entre uma série e outra imediatamente subseqüente (Quiroz, 1989; Lüdke; Mediano, 1992; Carvalho, 1993), explicadas, por exemplo, pela existência de um professor único ou de vários professores, entre outros elementos que, combinados, parecem imprimir um ritmo mais acelerado, à medida que o aluno vai percorrendo a trajetória seriada que caracteriza o trabalho escolar. Esse é um ritmo desconhecido pelos alunos antes de chegarem à escola.

Considerando-se o trabalho de Laura, pode-se afirmar que o ritmo, além de lento, é de certa forma estável. Heller (1991, p.391) chama atenção para o fato de que, apesar de a aceleração do ritmo ser uma tendência geral da história, “al menos desde la aparición del capitalismo”, o trabalho e a economia da vida cotidiana requerem uma estabilidade relativa.

Laura foi acompanhada ao longo de nove meses na sala de terceira série, onde ela era a única professora; e as observações foram prolongadas por mais quatro meses em turmas de quarta série, nas quais os conteúdos eram divididos entre várias professoras, o que estabelecia um horário distribuído rigidamente entre os conteúdos. Ainda assim, apesar de algumas adequações que precisou fazer em sua forma de atender os alunos, suas aulas continuaram tendo praticamente as mesmas características em relação à temporalidade.

Talvez se possa afirmar, do ponto de vista do ritmo de trabalho na sala de aula em questão, que Laura permite que os alunos recuperem, em parte, o controle sobre o seu próprio tempo, abrindo-se, aqui, a possibilidade de discutir as análises de Enguita quanto às formas de controle do tempo e suas relações com a organização do processo de trabalho assalariado (1989, p.176).

Ao tomar como referência as teorias críticas de educação, é possível supor que se esteja, aqui, diante de uma das inúmeras formas que a ruptura nas relações de reprodução pode assumir no cotidiano da sala de aula, constituindo-o como um espaço de produção e, por conseqüência, de transformação. A ação de Laura contesta parte das afirmações de Enguita (1989) sobre o uso do tempo escolar:

A sucessão de períodos muito breves - sempre menos de uma hora - dedicados a matérias muito diferentes entre si, (...) e sem prestar nenhuma atenção à cadência do interesse e do trabalho dos estudantes; em suma, a organização habitual do horário escolar, ensina ao estudante que o importante não é a qualidade precisa de seu trabalho, a que o dedica, mas sua duração. A escola é o primeiro cenário em que a criança e o jovem presenciam, aceitam e sofrem a redução de seu trabalho a trabalho abstrato. (p.180, grifos nossos)

Na verdade, a organização do tempo nesta sala de aula ensina aos estudantes exatamente o contrário: o importante é a qualidade precisa do seu trabalho, subordinando-a à sua duração. A exigência de tarefas bem feitas, na sala de Laura, corresponde a um respeito pelo tempo que é necessário para que, de fato, isso seja possível. A professora, ainda que por vezes expressando uma certa irritação, não abre mão de pedir ao aluno que refaça seu trabalho quando não está adequado aos padrões de qualidade que ela considera aceitáveis. Pode-se afirmar que ela não reduz o trabalho escolar ao tempo abstrato, o que faz de sua sala de aula um espaço diferenciado em relação às salas de aula genericamente descritas, e aponta para outras possibilidades de se compreender o sucesso escolar. (Bueno; Garcia, 1996)

Laura de fato organiza seu tempo para ensinar, mas sua organização se submete, de certa forma, às necessidades de seus alunos. Ela gasta o tempo maior em sala de aula para fazer o que cabe à escola fazer, ou seja, ensinar. E, para ela, a forma mais eficiente de fazer isso é atendê-los o maior tempo possível, um a um.

O que se pode concluir é que, neste caso particular, o ritmo do tempo se subordina à ação e à interação de Laura com seus alunos. McLaren (1991) aponta um aspecto que contribui para confirmar que a estratégia de trabalho usada pela professora Laura pode ser, também, uma explicação plausível para os bons resultados que ela obtém:

Parece que faria mais sentido se o ensino individualizado fosse mais enfatizado, juntamente com um monitoramento mais crítico dos valores associados com a cultura expressiva da escola (as atividades, procedimentos e avaliações envolvidas na transmissão de valores e suas formas derivadas). O controle da sala seria modificado no sentido de maior flexibilidade e interpessoalidade ao permitir maior número de rituais gerados pelos estudantes. (p.314)

 

Comentários finais

Os elementos apresentados permitiriam afirmar que Laura, pela forma como distribui e usa seu tempo com os alunos, e particularmente pelo ritmo que caracteriza esse trabalho, rompe com o modelo pedagógico segundo o qual todos são ensinados da mesma forma e ao mesmo tempo. Ela abre um espaço para a ação dos alunos.

Ainda que, ao serem planejadas, as atividades estejam centradas em grande parte na pessoa da professora, ao serem desenvolvidas elas assumem mais o ritmo de cada aluno e da turma como um todo do que um ritmo temporal previamente definido - ou, como diz Enguita, arbitrária e burocraticamente organizado.

Retornando-se à questão posta inicialmente - como é que Laura, tão organizada, perde tanto tempo? - pode-se dizer que dentro de uma rotina extremamente organizada, ela é capaz de permitir a desorganização. Assim, é apenas aparentemente que a professora é contraditória em relação à organização do trabalho em sala de aula. Na verdade, ao tecer rotineiramente sua ação, ela se despreocupa do tempo do relógio. Para Laura, o tempo não é chronos, é kairós.

A estratégia de atendimento que marca sua forma de trabalhar pode ser um indício de outros caminhos para se entender o tipo de relação ética que ela estabelece com seus alunos, na perspectiva do “desvelo” (Bueno; Garcia,1994). Estar próxima de cada um deles parece ser a forma que Laura escolheu para mostrar que aprender é importante e que ela está ali, ao lado, para que cada um deles faça o melhor que pode.

Ainda que ela saiba a dificuldade que cada um deles apresenta, isso não diminui a expectativa que tem, de forma geral, com seus alunos. O fato de conviver com esses meninos e meninas diariamente dá a ela, de certa forma, o direito de querer que caminhem, que evoluam, que progridam nos conhecimentos e também em relação a valores de convivência social, direito este que determina a exigência permanente sobre o trabalho escolar, dela e deles. E essa intenção é compreendida pela maioria dos alunos, que reconhecem Laura como uma professora que ensina bem e que está certa na sua forma exigente de ensinar - avaliação que aparece claramente formulada nas entrevistas realizadas.

O contato individual que Laura estabelece com cada aluno e com a classe como um todo pode ser entendido na perspectiva do que afirmou Walter Benjamin sobre kairós, como o momento de visibilidade de um acontecimento. Naquele momento de contato, a professora é reconhecida e esse reconhecimento assume as características de uma relação positiva, apesar da severidade com que ela se dirige aos alunos na correção de seus erros e das contradições presentes no cotidiano de sua sala de aula.

Tal relação toma os alunos como sujeitos e legitima a existência de um poder sobre eles. E se materializa na responsabilidade que é entendida - pela professora e pelos alunos - como própria e adequada a essa situação, ou seja, a responsabilidade de ensinar.

 

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Recebido em 17 abr. 2000
Aprovado em 16 ago. 2000

 

Tânia Maria F. Braga Garcia é professora de Didática do Departamento de Teoria e Prática de Ensino do Setor de Educação e professora em treinamento no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. É mestre em Educação pela Universidade de São Paulo e doutoranda, na mesma universidade. É autora de obras didáticas para a escola fundamental.

 

 

* As análises apresentadas neste artigo foram extraídas da dissertação de mestrado “Esculpindo geodos, tecendo redes: estudo etnográfico sobre tempo e avaliação na sala de aula” (Garcia, 1996), defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da USP.

1. Usou-se nome fictício, preservando assim a identidade da professora.

2. Ver, a esse respeito, análise desenvolvida em trabalho anterior, no qual foi explorada a questão do domínio de regras da interação em sala de aula, por parte dos alunos. (Bueno e Garcia, 1994).