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Revista Estudos Feministas - Making difference: theories on gender, body, and behaviour

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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026X

Rev. Estud. Fem. vol.9 no.1 Florianópolis  2001

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2001000100007 

Ensaio

 

Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento1

MARIA TERESA CITELI

 

 

Resumo: Desde o final do século XIX, quando Darwin publicou suas obras sobre evolução, muitas cientistas têm reagido adotando basicamente duas perspectivas: enquanto algumas negam o potencial das ciências biológicas para explicar arranjos sociais, outras reinterpretam estudos da Biologia sobre diferenças sexuais, admitindo que estes podem explicar comportamentos humanos e desigualdades sociais. Procurando entender de que maneira as diferenças sociais são atribuídas ao corpo humano, o presente trabalho discute vertentes teóricas da recente produção das ciências biológicas e das sociais que buscam afirmar ou negar a plausibilidade de teorias que invocam diferenças sexuais presumidamente localizadas no corpo (cérebro, genes e fisiologias masculina e feminina) para explicar possíveis variações das habilidades, capacidades, padrões cognitivos e sexualidade humanos. Registra ainda a repercussão de perspectivas essencialistas na agenda da mídia nacional e internacional.
Palavras chave:
ciência e gênero, determinismo biológico, mídia, sociologia do conhecimento científico.

 

 

Os estudos sobre mulheres, gênero e ciências desenvolvidos especialmente nos países anglófonos nos últimos trinta anos podem ser classificados, de maneira simplificada, em três grandes linhas: (1) os que se dedicam a dar visibilidade, interpretar e analisar a presença (ou a ausência) das mulheres nas atividades científicas; (2) as investigações epistemológicas que levantam perguntas relativas às implicações do que se entende por empreendimento científico (incluindo aí a autoridade epistêmica e cognitiva atribuída aos cientistas) para as clivagens de gênero vigentes, sugerindo dúvidas quanto à possibilidade e às capacidades explicativas das ciências em relação à natureza; e (3) os estudos que focalizam os contextos sociais em que se estrutura o conhecimento científico, procurando identificar os vieses e as metáforas de gênero presentes no conteúdo do conhecimento produzido por diversas disciplinas, especialmente a Biologia.2

Após examinar as armadilhas enfrentadas pela teoria feminista ao procurar estabelecer distinções entre sexo e gênero, o presente trabalho discute algumas das mais eloqüentes contribuições feministas, principalmente as da terceira linha de estudos acima. Essas contribuições apontam vieses, pressupostos e metáforas de gênero encontradas no conteúdo do conhecimento produzido pelas ciências biológicas no passado e no presente; esses pressupostos, por sua vez, permitem tanto ampliar as diferenças entre os sexos quanto apresentar essa clivagem como sendo da natureza (e do corpo), quando de fato são parte dos arranjos sociais vigentes em diferentes épocas. Em seguida o artigo discute vertentes teóricas da recente produção das ciências biológicas e sociais que buscam afirmar ou negar a plausibilidade de se invocar diferenças sexuais, presumidamente localizadas no corpo, para explicar variações nas habilidades, capacidades, padrões cognitivos e sexualidade humanos. Dada a influência atualmente exercida pelas ciências biológicas articuladas com os meios de comunicação para a formação de nossas idéias acerca de masculino e feminino — e sobre nosso corpo e seu funcionamento —, este estudo recorre a exemplos da repercussão de perspectivas essencialistas na agenda da mídia nacional e internacional.

Ainda na segunda metade do século XIX, logo depois de Charles Darwin publicar seus livros contendo os principais conceitos sobre evolução animal e humana, algumas das poucas mulheres cientistas atuantes naquela época contestaram sua teoria a partir de pontos de vista muito diferentes.3 Em 1875, Antoinette B. Blackwell publicou The Sexes Troughout Nature, adotando uma visão que afirmava a igualdade entre os sexos, refutando observações de Darwin, argumentando que ele havia deixado de considerar que, para cada característica desenvolvida pelos homens no processo evolutivo, as mulheres haviam desenvolvido outras, complementares. Em outras palavras, segundo essa autora, Darwin atribuíra indevida proeminência à evolução masculina.

Duas décadas mais tarde, em 1893, outra mulher, Elisa Gamble, publicou An Inquiry Into the Dogma of her Inferiority to Man, defendendo a superioridade feminina. Ao reinterpretar as observações de Darwin (que ela considerava um excelente observador), alegava que a divisão sexual do trabalho conduziu (mulheres e homens) por linhas evolutivas divergentes, que resultaram no desenvolvimento, por parte das mulheres, das mais altas qualidades sobre as quais repousa o destino da humanidade. Apenas os preconceitos masculinos poderiam ter impedido o cientista de constatar essa superioridade feminina, expressa na superioridade moral e de inteligência.

Ambas as autoras aceitavam a premissa da divisão do trabalho entre homens e mulheres. Blackwell, para afirmar igualdade, reclamava que Darwin havia ignorado as mulheres, enquanto Gamble moralizava a discussão para afirmar a superioridade feminina e denunciar preconceitos masculinos no conteúdo da obra de Darwin.

Quase um século depois, desnaturalizar hierarquias de poder baseadas em diferenças de sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de gênero. Estabelecer a distinção entre os componentes — natural/biológico em relação a sexo e social/cultural em relação a gênero — foi, e continua sendo, um recurso utilizado pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de toda ordem que há séculos sustentam argumentos biologizantes para desqualificar as mulheres, corporal, intelectual e moralmente.

Desde 1970 muitos estudos lidaram com o binômio sexo/gênero, entendendo que sexo representaria a anatomia e a fisiologia (natureza), enquanto gênero representaria as forças sociais, políticas e institucionais que moldam os comportamentos e as constelações simbólicas sobre o feminino e o masculino. Assim, questionavam os significados psicológicos e culturais das diferenças, não o domínio do sexo físico. No entanto, novas abordagens, hoje identificadas com as correntes pós-modernas, passaram cada vez mais a desconfiar de oposições binárias como natureza/cultura e sexo/gênero. Muitos estudos foram progressivamente desmantelando a idéia que sustentava o lado supostamente natural-biológico do par sexo/gênero.

A idéia inicial de que sexo se referia a anatomia e fisiologia dos corpos deixava o caminho aberto para interpretações de que as diferenças entre mulheres e homens no domínio cognitivo e comportamental, bem como as desigualdades sociais, poderiam decorrer de diferenças sexuais localizadas no cérebro, nos genes ou provocadas por hormônios etc. Para fazer frente a esse problema, muitos estudos feministas foram assinalando que as afirmações das ciências biológicas sobre os corpos femininos e masculinos (tanto no passado quanto no presente) não podem ser tomadas como espelho da natureza porque as ciências, como qualquer outro empreendimento humano, estão impregnadas pelos valores de seu tempo.

Na literatura sobre ciência e gênero, um importante anátema recai sobre o modo como se processa a produção de conhecimento. Parte dos cientistas naturais sustentam a idéia de que as coisas podem ser conhecidas em si mesmas, pois seu método de investigação não deixaria marcas, enquanto estudiosos de gênero e da sociologia do conhecimento científico, filiados a diferentes tradições teóricas e disciplinares, perfilam-se contra os pressupostos de objetividade, neutralidade, transparência, verdade e universalidade que sustentam o método científico. Contestam crenças arraigadas como aquela segundo a qual esse método permite controlar todas as variáveis de um experimento, produzindo um conhecimento progressivo e cumulativo, através de uma pesquisa "objetiva", que elimina todos os vieses dos pesquisadores; em suma, contestam a suposição de que o método científico seja neutro em relação ao social, ao cultural, ao político, ao econômico, ao ético e ao emocional. Ao contrário, Bruno Latour sugere mesmo que produzir literatura e fatos científicos (técnicos) é, entre os empreendimentos humanos, "mais social do que os vínculos sociais considerados normais".4

Esses estudiosos de gênero e da sociologia do conhecimento científico questionam assim as credenciais de imunidade — nos três sentidos da palavra; isenção de ônus, resistência à infecção e desfrute de privilégios em função do cargo exercido — conferidas aos cientistas naturais por nossa sociedade, extensivas às práticas que eles empregam e ao conhecimento que produzem. É exatamente aquele modo de conceber o conhecimento científico que nos leva a conceder-lhes tais credenciais. A imunidade adviria do mandato cumprido pelo cientista para falar em nome da natureza, no sentido que Bruno Latour atribui à prática científica,5 depois da aparente separação ocorrida no início da modernidade para constituir, de um lado, o sujeito de direito e, de outro, o objeto da ciência. Assim, os políticos representam os cidadãos e falam em nome deles, enquanto os cientistas vão representar e ser porta-vozes da multidão muda e material dos objetos.

Utilizando-se desses instrumentos, muitos estudos de gênero dedicaram-se cuidadosamente a refutar as bases do determinismo biológico verificado em obras de cientistas proeminentes, tanto dos séculos passados quanto do presente, para demonstrar que preconceitos sociais baseados em gênero são tomados como imagens do corpo que se pretendem objetivas e "científicas".

No âmbito do presente trabalho, entende-se por determinismo biológico o conjunto de teorias segundo as quais a posição ocupada por diferentes grupos nas sociedades — ou comportamentos e variações das habilidades, capacidades, padrões cognitivos e sexualidade humanos — derivam de limites ou privilégios inscritos na constituição biológica. Muitos dos cientistas sociais e dos biólogos que discutem as limitações das diversas vertentes do determinismo biológico não estão apenas preocupados com os "deslizes" propriamente científicos do determinismo, mas com as conseqüências sociais e políticas que advêm dessas afirmações. Stephen Jay Gould, um biólogo evolutivo que dedicou muitos de seus estudos acadêmicos e ensaios a combater os abusos do determinismo, afirma: "Poucas tragédias podem ser maiores que a atrofia da vida; poucas injustiças podem ser mais profundas do que o ser privado da oportunidade de competir, ou mesmo de ter esperança, devido à imposição de um limite externo, que se tenta fazer passar por interno".6

Exemplos clássicos desse tipo de redutivismo são os muitos estudos sobre o tamanho do cérebro, realizados há mais de dois séculos, geralmente influenciados por, e ao mesmo tempo subsidiando, argumentos racistas, classistas e sexistas (segundo vários autores, intercambiáveis entre essas três categorias), buscando provar que quanto maior o cérebro, maior a inteligência de uma pessoa. Tais estudos foram contestados, em suas próprias disciplinas e em outras, em seu próprio tempo e atualmente.

 

Produzindo uma "história natural" das diferenças

É difícil ver como nossas idéias científicas atuais são inspiradas por pressupostos culturais; é mais fácil ver como idéias científicas do passado (...) podem ter sido afetadas por idéias culturais mais antigas ainda.

Emily Martin

No mesmo caminho sugerido por Emily Martin nessa epígrafe, inúmeras pesquisas passaram a argumentar que o próprio corpo humano tem uma história. Thomas Laqueur fez sucessivas investigações para mostrar que, entre o final do século XVIII e o começo do século XIX, as significativas mudanças sócio-políticas ocorridas no Ocidente produziram um contexto favorável (senão imperativo) à emergência de um novo modelo médico para interpretar as diferenças de sexo, modelo esse que não pode ser considerado resultado apenas dos avanços tecnológicos da época. O autor está convencido de que, mesmo portadora de contradições, essa reinterpretação da biologia reprodutiva feminina foi convocada para resolver também problemas ideológicos. Constatando que não se tratava apenas de utilizar a biologia para subestimar as mulheres, o autor conclui que partes do corpo e das fisiologias masculina e feminina passaram a ser desenhadas e vistas através da lente ideológica que lhes dava a forma. Assim, apesar da crença que leva alguns cientistas naturais a acreditar que suas proposições são um "espelho da natureza", elas na verdade refletem, e muito, sua cultura; não são produzidas num vácuo.

Outra historiadora, Londa Schiebinger, no artigo "Esqueletos no armário: as primeiras representações do esqueleto feminino na anatomia do século XVIII", desvenda quão profundamente a perspectiva de desigualdade entre os sexos atingiu os estudos de anatomia (chegando ao desenho dos ossos femininos), no sentido de desmerecer mulheres em relação ao homem (branco e europeu).7 Em sua análise, ela faz emergir a imagem clara dos conteúdos culturais nos quais a "verdade" científica está embebida.

Em outro livro, Nature's Body: Gender in the Making of Modern Science, Schiebinger rastreia outras histórias, às vezes risíveis e quase sempre vergonhosas para nossas sensibilidades atuais.8 Talvez a mais chocante delas esteja no capítulo desse livro dedicado às teorias sobre raça e gênero: a autora refere-se especialmente à mais famosa integrante do povo hotentote (que habitava o sul da África, perto do Cabo da Boa Esperança), uma mulher que, depois de trazida para a Europa por volta de 1800, veio a se chamar Sarah Bartmann.

Sobre o mesmo assunto versa a contundente argumentação de Anne Fausto-Sterling em Gender, Race and Nation: the Comparative Anatomy of "Hottentot" Women in Europe, 1815-1817. Esse estudo, retomando as contribuições de Schiebinger, relata como o cientista Georges Curvier (1769-1832), um dos "pais" da anatomia comparada, construiu a útil imagem de mulher — africana, selvagem e primitiva — adequada ao momento histórico em que o capitalismo europeu em expansão, além de conquistar e fazer negócios, coletava espécimes que enchiam museus, e passava a demandar projetos classificatórios que simultaneamente estabeleciam as bases para diversas disciplinas científicas e se prestavam à justificação do colonialismo e da escravidão.9

Segundo Fausto-Sterling, ao descrever o que considerava ser deformações anatômicas de uma mulher negra do povo hotentote (Sarah Bartmann), Curvier teria procurado representá-la como uma macaca para distingui-la das brancas européias, utilizando os paradigmas sociais e científicos disponíveis em seu tempo:

As diferenças corporais de Sarah Bartmann foram construídas utilizando os paradigmas sociais e científicos disponíveis naquele tempo. (...) Só podemos saber como os europeus a representaram e enquadraram. Se ela magicamente estivesse viva hoje, os antropólogos e biólogos contemporâneos poderiam representá-la e enquadrá-la diferentemente, mas isso seria, mesmo assim, apenas representação e enquadramento. Uma diferença é que, na atualidade, talvez, um dos inúmeros movimentos de liberação poderia oferecer a ela um contexto para rechaçar as construções da ciência euro-americana. Na verdade, vemos regularmente tal contestação em debates sobre tamanho do cérebro, raça, QI (...), forma do cérebro e gênero, ou sobre genética e homossexualidade. 10

 

Novas tecnologias, novas metáforas

Se as sensibilidades de nossa época trazem um certo desconforto diante dos pressupostos sexistas e racistas presentes na obra de cientistas de dois séculos atrás, não podemos nos deixar levar pela idéia de que, nos anos recentes, o "avanço inevitável da ciência" tenha banido de seus conteúdos os pressupostos que levam à exagerada e seletiva atenção dedicada a identificar diferenças sexuais, que são projetadas como naturais e servem de base a metáforas poderosas. Em Myths of Gender, Fausto-Sterling conta que em 1991 um relatório de pesquisa (de apenas três páginas, sem apresentar qualquer confirmação confiável), argumentando que homens homossexuais e heterossexuais tinham estruturas cerebrais diferentes, publicado pela revista Science em 1991, teve imediata repercussão sobre a mídia, desencadeando manchetes como:

Uma biologia do que significa ser gay ( New York Times);
Zona do cérebro é ligada à orientação sexual dos homens ( New York Times);
O que torna as pessoas homossexuais? Um estudo aponta diferença no cérebro (Newsweek);
Os gays nascem gays? ( Time).

Para debater esse assunto, a autora procedeu a uma impressionante revisão de pesquisas científicas anteriores que promoveram diversas regiões do cérebro como indicadoras de diferenças entre os sexos, mostrando a inconsistência de muitas delas e os vieses sexistas e homofóbicos aí presentes. Mostrou ainda que a discussão pública não se limitava à homossexualidade, mas abrangia também diferenças de sexo e gênero no tocante a cognição, competências e eqüidade. Segundo ela, "há muito poucas diferenças sexuais absolutas e, sem uma plena eqüidade social, jamais poderemos saber quais são". Ela sugere que enfrentemos dois desafios, um científico, outro social, profundamente interconectados. 11

Outro bom exemplo de metáfora determinista é apresentado por Martin, que examinando textos utilizados em cursos de medicina, aponta o contraste presente na linguagem científica para descrever a relação entre o espermatozóide — invariavelmente ativo, ágil, com caudas rápidas e fortes — e o óvulo — passivo, à espera do espermatozóide, e depois de fecundado transportado, varrido, arrebatado, seguindo à deriva pela trompa de Falópio, quase uma bela adormecida, "uma noiva dormente acordada pelo beijo mágico do companheiro, que lhe insufla o espírito que a traz para a vida".12 Essa imagem literária baseava-se em pesquisas segundo as quais parte do revestimento interno do óvulo, chamada "zona", formaria uma barreira quase impenetrável, levando o espermatozóide a utilizar meios mecânicos (a força propulsora da cauda) e químicos (uma enzima) para superá-la.

Em três estudos dos anos 80, Martin localizou novos achados de pesquisas que à primeira vista permitiriam inverter o imaginário sexista sobre o óvulo; no entanto, a tenacidade dos estereótipos de gênero e o poder de suas metáforas parecem não ter consentido a inversão. Pesquisas para o desenvolvimento de anticoncepcionais demonstraram que a propulsão da cauda do espermatozóide é muito fraca e que a superfície do óvulo é preparada para pegá-lo antes que escape. Os mesmos pesquisadores concluíram também que ambos contêm moléculas adesivas que facilitam o encontro. No entanto, a única diferença relatada nos respectivos papers é que a função de atacar e penetrar, atribuída ao esperma, aparece sendo desempenhada mais fracamente — provavelmente pelo fato de essa nova versão contrariar as expectativas culturais. Posteriormente, os mesmos cientistas reconceituaram o papel do óvulo, que então passou a ser visto como mais ativo: a "zona" é apresentada como uma agressiva e implacável caçadora de espermatozóides, com detalhes que associam o óvulo agora a uma aranha viúva negra.

A autora usa esse exemplo para mostrar como novos dados de pesquisa nem sempre levam os cientistas a superar os estereótipos de gênero que espreitam suas descrições da natureza. Ao contrário, permitem levar os estereótipos para o nível das células, o que os faz parecer ainda mais naturais, além de qualquer possibilidade de mudança.

De efeito igualmente naturalizador foram algumas descrições promovidas pela sociobiologia (que se define como o estudo sistemático das bases biológicas de todos os comportamentos sociais), desde o lançamento em 1975 de Sociobiology: The New Synthesis, de E. O. Wilson, biólogo da Universidade de Harvard. Seu ambicioso esquema argumentativo, sempre baseado na bologia e na teoria da evolução, pretende explicar desde os atuais sistemas legais, econômicos e de parentesco até supostas bases biológicas da discriminação sexual. Amplamente criticados por notórias autoridades em seu próprio campo (como é o caso de Gould), Wilson e seus seguidores inspiraram e continuam a promover explicações para violência e abuso sexual, agressividade e promiscuidade masculina.

Tantas são as objeções apresentadas pelos estudos feministas de ciência à sociobiologia que esses podem compor até uma bibliografia específica.13 Mas a saraivada de críticas não impede o reconhecimento de que a sociobiologia, desde os anos 70, inspirou estudos cuidadosos e úteis. E também não impede a ira feminista ante o sucesso de mídia que esse ramo das ciências naturais alcançou ao inspirar manchetes sensacionalistas como as selecionadas por Nelkin:14

Machismo tem bases biológicas e diz: "Eu tenho bons genes, deixe-me reproduzir" ( Time);
Se pegarem você dando suas voltinhas, não diga que é culpa do diabo. É seu DNA ( Playboy);
Estupro: geneticamente programado no comportamento masculino ( Science Digest);
Os homens são geneticamente mais agressivos porque são mais indispensáveis ( Newsweek).
A leitura dos principais jornais brasileiros nos últimos anos também permite identificar manchetes similares:
Química cerebral estimula monogamia ( Folha de São Paulo, 25 de fevereiro de 1998);
A monogamia entre animais ( Folha de São Paulo, 27 de junho de 1999);
Gene favorece monogamia entre roedores ( O Estado de São Paulo, 19 de agosto de 1999);
Gene pode explicar diferenças entre os sexos ( O Globo, 1° de outubro de 1999);
Além de atraentes, homens altos produzem mais filhos ( Folha de São Paulo, 13 de janeiro de 2000);
A violência nos genes ( Folha de São Paulo, 12 de março de 2000).

A própria atração que o assunto das diferenças sexuais abordado pelas ciências biológicas (apresentado, geralmente, com ênfase exagerada nas diferenças, promovendo uma clivagem entre os dois sexos) exerce sobre a mídia vem atraindo por sua vez a atenção de muitos pesquisadores.

Enquanto cientistas ainda não se interessam por descobrir a parte do cérebro ou o gene que determina essa obsessão jornalística, a literatura que aborda as estreitas, tensas e conturbadas relações entre ciência e mídia tem documentado eloqüentes exemplos da imunidade que protege as declarações de cientistas — o que os diferenciaria dos políticos. Essa imunidade garante a autoridade dos cientistas perante os jornalistas e concorre para manter nossas crenças sobre verdade, objetividade, neutralidade e rigor científicos. Ao discutir o alto preço da prática jornalística denominada hype (palavra inglesa ainda sem tradução para o português, que se aplica à mídia significando "tentativa de atrair muita atenção pública, especialmente mais que a merecida, para coisas ou pessoas, alegando e reiterando que são muito boas ou melhores do que realmente são"15), Dorothy Nelkin ajuda a refletir sobre a atribuição de evidência aos achados científicos pelos jornalistas: enquanto o repórter, antes de publicar, deve conferir cuidadosamente afirmações do político ou outro informante, o repórter de ciência tende a basear-se na autoridade de pesquisadores, conferências ou revistas especializadas. Assim, enquanto política e economia são objeto de notícia, crítica e investigação, os jornalistas de ciência buscam muito mais elucidar para os leigos o que encontraram no Olimpo.16

Justamente por envolverem tantos interesses, as relações entre cientistas e mídia são, de um modo geral, tensas. Para comprovar os atritos entre ambas as partes, basta percorrer os editoriais e artigos publicados sobre o assunto ao longo de cada ano nas páginas das mais reconhecidas vozes das ciências no mundo contemporâneo: as revistas Science e Nature.

É precisamente num editorial da revista inglesa Nature que se encontra um dos melhores exemplos envolvendo, em 1997, editores da revista científica e jornais diários numa controvérsia que abrange ao mesmo tempo três questões que atravessam as que se discutem aqui: (1) pressupostos de gênero presentes no determinismo biológico-genético divulgado por publicações científicas de grande credibilidade; (2) decorrências funestas das pesquisas que atribuem à genética explicação para comportamentos femininos e masculinos; e (3) o papel da mídia (no caso da inglesa) ao "promover" a divulgação de trabalhos científicos.17

Em um mesmo número a Nature publicou dois artigos que sustentavam a discussão sobre a predominância de fatores biológicos ou sociais na base de comportamentos femininos e masculinos. O primeiro era um relatório de pesquisa intitulado "Evidence from Turner's Syndrome of an Imprinted X-Linked Locus Affecting Cognitive Function," seguido de um comentário sobre essa pesquisa, justamente na seção "News and Views" (que segundo a Nature destina-se a informar leitores não-especialistas sobre os novos avanços científicos), intitulado "A Father's Imprint on His Daughter's Thinking" ("A marca do pai no pensamento da filha"), no qual os autores apontam, para o público leigo, importantes questões controversas encontradas no estudo, entre as quais as "diferenças humanas de gênero". Consideram ainda que tais diferenças podem ser adquiridas e refletir papéis sociais diferenciados entre homens e mulheres, mas podem também ser parte do dimorfismo biológico embutido que resulta da diferença genética entre machos e fêmeas. Ainda segundo esses autores, devido à ênfase na igualdade sexual tem havido uma crescente tendência de relegar o possível papel da biologia na consideração de diferenças psicológicas entre mulheres e homens. Agora, pela primeira vez os autores do referido relatório teriam encontrado evidências da localização do gene que atua sobre parte do dimorfismo comportamental sexual, desafiando a crença prevalecente de que as diferenças sexuais são amplamente determinadas culturalmente.

Na mesma semana, alguns jornais ingleses trouxeram manchetes como "Por que meninos serão meninos?" ou "Meninas podem herdar gene da intuição do pai". No número seguinte, os editores da revista não hesitaram em atribuir culpa aos jornalistas. No editorial "Not Everything is in the Genes" ("Nem tudo está nos genes") — relegando o fato de que os próprios autores do comentário publicado em sua revista, na semana anterior, haviam afirmado haver "evidências da localização do gene que atua sobre parte do dimorfismo comportamental sexual, desafiando a crença prevalecente de que as diferenças sexuais são amplamente determinadas culturalmente" — os editores censuram duramente os jornalistas, apontando que aquelas manchetes e os respectivos textos poderiam sugerir que a pesquisa produziu claro exemplo de que a genética moderna pode fornecer instrumentos úteis para entender o comportamento social. Alertam ainda que, embora os resultados sejam cientificamente estimulantes, deve-se estar prevenido contra exageros: há uma inevitável tentação de usá-los para justificar uma forma de determinismo genético que — apesar de nossa consciência dos movimentos eugênicos e outros abusos da genética no passado — permanece com força poderosa na sociedade moderna. Segundo os editores, narrar a busca por ou a descoberta de "um gene" da homossexualidade, da violência, do alcoolismo, da doença mental tem se tornado uma característica comum nos jornais. O grande êxito da pesquisa genética pode, mesmo sem desejar, contribuir para fortalecer esse tipo de argumento determinista. Os editores concluem que poucos ainda acreditam no mito do determinismo biológico grosseiro; de formas mais sofisticadas, porém, ele se mantém como forte influência em certas tendências do moderno pensamento político e social.

Esses dados, oferecidos pelas mais autorizadas vozes dos cientistas, além de confirmar o grande apreço que as ciências naturais consagram à mídia — a qual, acreditam, virá a ter um poder ainda maior no futuro — permitem esboçar a imagem que os cientistas naturais lhe atribuem: exagerada, apelativa, sensacionalista (o "mais novo" tratamento, a "mais excitante" descoberta, o milagre, a "mais nova" cura), promovendo interesses comerciais, atraindo o controle governamental, assustando a opinião pública, decepcionando os leitores e, o que é mais grave, colocando em risco a credibilidade científica.

De grande importância para entender a animosidade contida nas relações entre cientistas e mídia são os estudos que não concedem precedência aos processos de produção do conhecimento e de divulgação desses processos pela mídia.

Stephen Hilgartner, um sociólogo interessado em sociologia do conhecimento científico, afirma que a visão culturalmente dominante de popularização da ciência repousa num modelo simplificado que separa o processo em dois estágios: há primeiro a produção do conhecimento pelos cientistas (idealizado como puro, genuíno) e depois a disseminação em versões simplificadas, de acordo com as limitações do público. A popularização, segundo essa visão, seria, na melhor das hipóteses, simplificação adequada e, na pior, distorção ou degradação da verdade original, por outsiders da ciência.18 Segundo esse autor, tal visão dominante tem parecido cada vez mais inadequada por diversas razões: (1) o conhecimento científico popularizado realimenta o processo de pesquisa científica; (2) o conhecimento é constituído através de transformações coletivas, e portanto a popularização deve ser vista mais como extensão do processo do que como outro processo inteiramente diferente; e (3) a simplificação é parte integrante do trabalho científico. O grau de simplificação depende do contexto em que o conhecimento é comunicado em seminários acadêmicos ou laboratórios, para estudantes, fontes de financiamento ou especialistas em campos adjacentes. Há muitas evidências de que especialistas freqüentemente simplificam a fim de persuadir seu público e obter apoio para seus programas de pesquisa, motivar as pessoas a seguir recomendações médicas, convencer investidores e principalmente defender sua posição numa controvérsia científica.19

Considerando essa flexibilidade, segundo Hilgartner, as acusações mais freqüentes voltam-se contra atores de fora do âmbito científico (jornalistas, sociólogos, estudiosos das ciências, policy-makers, ou mesmo o público leitor) porque esses ataques são fáceis de montar, conduzem à solidariedade entre os cientistas e deixam os não-especialistas em posição vulnerável. Ao mesmo tempo, os cientistas garantem o direito de demarcar as fronteiras apropriadas entre simplificação e distorção, assegurando-lhes o "equivalente epistêmico ao direito de imprimir dinheiro. Conhecimento genuíno é sua exclusividade".20

Apesar de todas as tensões enfrentadas, os jornais diários e as revistas — atores privilegiados não apenas da divulgação, mas da própria constituição da atividade científica, além de veículos de nosso entendimento do que é ciência e de para que ela serve — ganham legitimidade ao recorrer à autoridade das ciências para atrair seu público, usuários finais (neste caso) dos fatos produzidos pelos cientistas.

Pensando nesse momento como cientista social, não me lembro de ter ouvido falar de um único programa no âmbito das ciências humanas voltado para a formação de sociólogos, cientistas políticos ou antropólogos especializados em divulgar humanidades para a mídia. Tampouco se tem notícia de formação específica, para graduandos em jornalismo, voltada para a relação com os cientistas sociais.

 

Invertendo metáforas

É especialmente no âmbito da primatologia, uma disciplina que numericamente é cada vez mais dominada por mulheres,21 que a contestação das metáforas científicas de gênero encontra seu ponto mais alto — embora alguns estudos da primatologia tenham sido paradoxalmente debatidos no próprio âmbito feminista, justamente por causa de sua filiação teórica à sociobiologia.22

Algumas autoras,23 usando suporte sociobiológico, alteraram os instrumentos de observação e o conteúdo dos estudos sobre primatas, trazendo uma sonora resposta à idéia de que as fêmeas foram meras espectadoras da evolução, idéia supostamente promovida pelos atributos de machos caçadores, agressivos e sexualmente mais ativos do que as mulheres.

De grande impacto no interior da biologia evolutiva e da antropologia física foram os estudos que permitiram contrapor a versão "mulher coletora" à idéia de "homem caçador", consagrada por essas disciplinas para explicar a evolução dos primatas. Fedigan assinala que os modelos da vida social humana primitiva não são apenas inferências plausíveis de evidências materiais, mas funcionam como afirmações da natureza humana, baseando-se em especulações culturalmente informadas — o que permite duvidar de seu valor explicativo.24

Segundo Fausto-Sterling, num período em que as mulheres não eram reconhecidas como capazes de produzir conhecimento científico, feministas e biólogos evolutivos só podiam ser antagonistas. Nos últimos anos, a situação tornou-se mais complexa: ao praticar biologia evolutiva ou antropologia física, feministas tornaram o campo mais justo e menos androcêntrico, mesmo adotando diferentes posições em relação ao poder explicativo da biologia. Fausto-Sterling revisa e se propõe classificar as recentes variantes intelectuais encontradas entre feministas e biólogas/os evolutivas/os da seguinte forma:25

Grupo I: A biologia não pode explicar arranjos sociais humanos
Tipo 1. A biologia evolutiva pode ser cuidadosamente aplicada aos estudos do comportamento animal, com especial atenção para evitar aplicações androcêntricas, e corrigir concepções errôneas provocadas pelo androcentrismo.
Tipo 3. As afirmações biológicas sobre diferenças sociais são cientificamente inválidas (Hubbard, Fausto-Sterling e outras); o conhecimento científico é socialmente construído, portanto será sempre parte de uma luta de poder que é fundamentalmente social e não biológica (Fox-Keller, Fausto-Sterling, Hubbard, Harding, entre outras).
Grupo II: A biologia pode explicar os arranjos sociais humanos
Tipo 2. Biólogos evolutivos/comportamentais ignoraram o comportamento feminino. Adicionar considerações sobre as fêmeas ajuda a legitimar reivindicações por igualdade social (Blackwell e algumas primatologistas). E ainda, biólogos evolutivos ou comportamentais interpretaram mal suas observações: somente os preconceitos masculinos podem tornar alguém cego à superioridade feminina (algumas eco-feministas contemporâneas).

Ainda segundo Fausto-Sterling, "críticas apresentadas pelas feministas do tipo 3 aplicam-se àquelas dos tipos 1 e 2, pelas quais nunca tiveram muita simpatia. As do tipo 3 vão continuar elaborando novas teorias sobre o conhecimento científico, esperando assim poder contribuir para que a prática científica seja mais ideologicamente autoconsciente e mais objetiva".26

Essa tipologia esconde uma grande diversidade de abordagens teóricas e disciplinares, mas é útil para levantar inquietações atuais diante do sucesso obtido por explicações feministas do comportamento humano derivadas de matrizes deterministas, com ampla repercussão na mídia e, por decorrência, em nosso imaginário sobre a natureza essencial do que são o masculino e o feminino.

Ativistas homossexuais também têm acolhido e divulgado pesquisas que sugerem a existência de bases biológicas/genéticas para a homossexualidade, por considerar que estas podem contribuir para superar preconceitos, ao retirar do indivíduo a "culpa" ou a responsabilidade por sua conduta, quando esta não é aceita, por exemplo, entre familiares.

Nos últimos cinco anos, estudos produzidos no âmbito da biologia física e da antropologia visando inverter as metáforas de gênero que desvalorizavam as mulheres passaram progressivamente a alcançar sucesso na mídia. Um bom exemplo disso aconteceu em março de 1999: a matéria de capa da Time, "A verdade sobre o corpo da mulher"27 trazia uma chamada enfatizando que, segundo novas pesquisas, as mulheres são mais fortes, mais resistentes e mais ativas sexualmente do que se imaginava. Logo de início, a matéria apregoava o livro Woman: An Intimate Geography, de Natalie Angier, como a bíblia da nova revolução feminina contra os cânones sagrados da biologia e da psicologia evolutiva que, por muito tempo, desvalorizaram sistematicamente o corpo, as atividades e o comportamento femininos. Dois meses depois, em maio de 1999, o livro de Angier, jornalista especializada em biologia, entrou para a lista de best sellers publicada semanalmente pelo suplemento New York Times Book Review.

O sucesso de vendas alcançado pelo mais novo livro da renomada jornalista, ganhadora de um prêmio Pulitzer, não deveria surpreender quem acompanha o crescente sucesso encontrado nos Estados Unidos por essa literatura de auto-ajuda que recorre simultaneamente aos estudos de gênero e às ciências biológicas para exaltar a superioridade da "natureza" feminina, constatada pelos "incríveis avanços progressivos da ciência", para encontrar a "nova", "poderosa" e "superior" natureza feminina inscrita também no corpo da mulher, portanto cientifica e naturalmente dada. Também não é a primeira vez que elaborações acadêmicas feministas alcançam sucesso de venda depois de retraduzidas e transformadas em literatura de auto-ajuda: todos nos lembramos do Complexo de Cinderela.

Em menos de um ano o livro de Angier foi lançado no Brasil28 e logo encontrou o entusiasmo do jornalista Elio Gaspari, em sua coluna publicada na UOL, em 1° de agosto de 2000. Segundo ele, "uma cantata para o corpo da mulher... que associou conhecimentos científicos (tudo indica que o homem deriva da mulher e não o contrário) e gosto pela vida (...) é um livro para as mulheres se orgulharem de seu corpo".

A ascensão de novos essencialismos apregoando agora a superioridade feminina instiga perguntas. Os estudos de gênero perseguiram obstinadamente a idéia de que os padrões de gênero, por serem uma construção social, poderiam ser alterados. Será que os novos tempos estão mostrando que seria mais fácil mudar as traduções da natureza apresentadas pela voz autorizada de cientistas, para assim superar os preconceitos vigentes?

As elaborações feministas (a ordem do conhecimento é a ordem da sociedade) são corroboradas a partir da demonstração de que as novas vozes e atrizes sociais em nossa cultura têm influência sobre parte da produção científica e jornalística recente. Ao mesmo tempo, porém, apontam para um problema com o qual teremos de nos defrontar: Como será possível lidar com os diferentes determinismos em voga atualmente?

Há, sem dúvida, um contexto que permite, em diversos âmbitos, duvidar da utilidade científica de teorias que pretendem explicar o comportamento humano a partir de fatores exclusivamente biológicos. No entanto, argumentos deterministas de base biológica, resultados de seus respectivos contextos históricos e políticos, identificados por muitos estudos, têm demonstrado vigorosa tenacidade nos dois sentidos que essa palavra carrega, obstinação e constância.

A natureza dos argumentos expressos por alguns cientistas e feministas permite identificar ainda a obstinação do apego ao mito empirista ainda operante. Mito, sim, pois os estudos da ciência (feministas ou não) insistem em demonstrar como a ciência projeta o universo cultural, moral e político de seu tempo como natural e, por isso mesmo, ajuda a legitimá-lo.

A palavra tenacidade, porém, admite também o sentido de constância ao longo do tempo, quase como perseverança. E nesse outro sentido não se pode deixar de perceber que os estereótipos constituídos com base em metáforas de ordem biológica têm demonstrado uma grande capacidade de se manter, apesar das inconsistências que vão acumulando perante mudanças culturais, tecnológicas e políticas. Isso acontece até mesmo com aquelas vertentes que insistem, como vimos, no recurso de exagerar diferenças para encontrar, nos corpos, argumentos que garantam a continuidade de interpretações deterministas para comportamentos humanos e para a superioridade feminina ou masculina.

 

Referências bibliográficas

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[Recebido para publicação em novembro de 2000]

 

 

"Making difference: theories on gender, body, and behaviour"
Abstract: Since the end of the nineteenth century, when Darwin published his work on evolution, several female scientists have reacted by adopting basically two points of view: while some deny the potential of the biological sciences to explain social arrangements, others reinterpret biology studies on sex differences, admitting that these may explain human behavior and social inequality. In an attempt to appraise how social differences are assigned to the human body, this article discusses theoretical trends in recent works of biological sciences, which try to either reaffirm or deny the plausibility of theories that resort to sex differences presumably located in the body (brains, genes, male and female physiology) to explain variations in human beings' skills, abilities, cognitive patterns, and sexuality. And, given the influence of the media on our views on male and female, it also discusses the repercussion of such essentialist views on national and international print media.
Keywords: science and gender, biological determinism, media, sociology of scientific knowledge.

 

 

1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no GT 11, Pessoa, Corpo e Doença, Sessão 3. Doença, Gênero e Diferença Social, em Petrópolis, outubro de 2000.
2 Essa tentativa classificatória resulta, como a maioria desses esforços, numa simplificação; na prática, as fronteiras entre essas três linhas de estudo nem sempre são precisas, e os três tipos de abordagem acabam se entrecruzando nas interpretações e análises.
3 Os dois exemplos são apresentados por FAUSTO-STERLING, 1997. Essa autora é expoente da linha feminista de estudos que explicitamente dedicam grande atenção às características sociais dos conhecimentos científicos produzidos em diferentes épocas.
4 Ver, por exemplo, LATOUR, 2000, especialmente a parte I, p.104.
5 LATOUR, 1994, p. 35.
6 GOULD, 1999, p. 13.
7 SCHIEBINGER, 1987.
8 SCHIEBINGER, 1993.
9 FAUSTO-STERLING, 1995, p. 40-41.
10 FAUSTO-STERLING, 1995, p. 41.
11 FAUSTO-STERLING, 1992, p. 269.
12 Schatten & Schatten apud MARTIN, 1996, p. 106.
13 Por exemplo, FAUSTO-STERLING, 1992 e 2000; HARAWAY, 1976 e1989; HUBBARD, 1989 e 1994; KELLER, 1996; LONGINO, 1996; e NELKIN, 1995.
14 NELKIN, 1995, p. 22.
15 Longman, 1992.
16 NELKIN, 1995, p. 164-66.
17 Maiores detalhes sobre esse caso exemplar podem ser encontrados em CITELI (no prelo).
18 HILGARTNER, 1990, p. 519-20.
19 HILGARTNER, 1990, p. 590-631.
20 HILGARTNER, 1990, p. 534.
21 FEDIGAN (1994) tenta explicar esse fenômeno.
22 HARAWAY (1976 e 1989) é a autora que apresenta as mais contundentes críticas a diversas dessas autoras.
23 Como FEDIGAN, 1986 e 1994; HARDY, 1986; ZIHLMAN, 1987 e 1997; STRUM, 1999; entre muitas outras.
24 FEDIGAN, 1986.
25 FAUSTO-STERLING, 1997, p. 57-58.
26 FAUSTO-STERLING, 1997, p. 58.
27 Essa matéria, publicada na Time de 8 de março de 1999, teve duas repercussões imediatas na mídia brasileira, mesmo que nenhuma delas fizesse qualquer referência à fonte de inspiração: foi reproduzida quase integralmente, sem crédito ou citação da fonte, pela revista Veja de 10 de março de 1999 sob a rubrica "Ciência". No domingo seguinte, 14 de março de 1999, o físico Marcelo Gleiser pela primeira vez incluiu esse tema em sua coluna semanal no caderno Mais! da Folha de S.Paulo, intitulada "O comportamento sexual humano segundo a ciência". Outro artigo, de autoria do mais reconhecido jornalista científico brasileiro, José Reis, publicado em sua coluna "Periscópio" em 18 de abril de 1999, também do caderno Mais! da Folha, embora com outra abordagem, pode ter sido provocado pela matéria da Time.
28 ANGIER, 2000.