It is the cache of ${baseHref}. It is a snapshot of the page. The current page could have changed in the meantime.
Tip: To quickly find your search term on this page, press Ctrl+F or ⌘-F (Mac) and use the find bar.

Psicologia USP - Social conditions of the constitution of infantile drawing

SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue2Computerized work and psychic sufferingParallelism between history and psychogenesis of the writing of musical rhythm author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia USP

Print version ISSN 0103-6564

Psicol. USP vol.9 n.2 São Paulo  1998

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641998000200008 

CONDIÇÕES SOCIAIS DA CONSTITUIÇÃO DO DESENHO INFANTIL

 

Silvia Maria Cintra da Silva
Departamento de Psicologia Social e Educacional Universidade Federal de Uberlândia

 

 

Este trabalho focaliza algumas das condições sociais da produção da atividade gráfica. Os dados foram coletados através de vídeo-gravações e de desenhos de crianças pré-escolares, em situações de produção gráfica, em sala de aula, durante um ano letivo. Baseada na abordagem histórico-cultural, a análise buscou verificar as relações entre a fala e o desenho, assim como as ações das crianças com e sobre as possibilidades funcionais dos materiais empregados na atividade gráfica e as mediações entre pares e professora. De acordo com os resultados, o impacto dos eventos interativos, em especial os processos de linguagem na atividade de desenho, indicam a necessidade de revisão da ênfase maturacionista nas atuais discussões teóricas sobre o tema.
Descritores: Desenho. Crianças em idade pré-escolar. Linguagem. Comunicação oral. Interação social. Mediação.

 

 

Na literatura sobre a produção gráfica infantil encontra-se uma ênfase acentuada na caracterização do desenho como uma atividade natural e espontânea, dividida em etapas que seguem uma seqüência universal. Autores como Goodnow (1979), Kellogg (1969), Lowenfeld e Brittain (1977), Luquet (1981), Lurçat (1988) e Merèdieu (1979) privilegiam um ou outro aspecto do grafismo, como o cognitivo, afetivo, motor, gráfico e estético. Entretanto, o pano de fundo de suas produções está vinculado a uma visão maturacionista do desenho, concebido enquanto produção basicamente individual e desligada do contexto sócio-cultural. Quando o meio é mencionado, o é de forma superficial, sem uma preocupação mais pormenorizada em relação à sua participação ou influência no curso de transformações da produção gráfica. É claro que essa concepção delineia opções metodológicas cuja tendência é observar a criança desenhando sozinha, e focalizar o produto, ao invés do processo.

A visão maturacionista concebe a participação social como algo nocivo, que pode prejudicar o desenrolar "natural" do desenvolvimento gráfico. O ambiente pode apenas estimular a vivência de experiências em relação ao processo de criação gráfica, bem como proporcionar variedade de materiais; tais contribuições podem, quando muito, afetar o ritmo - considerado universal - das etapas.

Como exceção, podemos citar Wilson e Wilson (1982), pesquisadores da epistemologia do desenho, que se destacam por reconhecer a influência exercida pelo contexto social no desenho infantil, ao afirmarem que as pessoas são modificadas pelas características de sua época e espaço.

Gombrich (1986), outro autor que considera a participação do ambiente em que vive o indivíduo, declara que a arte não é somente "a expressão de uma visão pessoal" (p.3), porque certas obras só podem ser geradas dentro de determinados contextos sociais, devido à influência do meio em que vive o artista. Tal afirmação refere-se a pintores, mas também deve guiar uma reflexão sobre a produção gráfica da criança.

O modelo maturacionista, que privilegia uma visão de criança enquanto indivíduo isolado de um contexto mais amplo e focaliza o desenho enquanto produto, choca-se com a perspectiva histórico-cultural, que aborda a constituição do homem enquanto tal no plano da intersubjetividade. Nesta ótica, as relações interpessoais, que são a base do desenvolvimento, têm que fundamentar também a análise da atividade gráfica. E é justamente nas formulações gerais de Vygotsky para uma teoria histórico-cultural que podemos encontrar novos elementos para a superação das concepções sobre desenho até hoje predominantes.

Vygotsky (1988) argumenta a favor de um funcionamento psicológico histórico-cultural: as chamadas funções psicológicas superiores são construídas no seio das relações entre os homens. Há uma interação contínua entre as condições sociais, que estão em constante mudança, e a base biológica do homem. Com o uso de signos, ocorrem transformações qualitativas nos processos psíquicos, pois o acesso do sujeito ao mundo é mediado pelas ferramentas (instrumentos) e pelos sistemas simbólicos de que ele dispõe. Esses sistemas são criações humanas e, ao longo do desenvolvimento, funcionam inicialmente no nível interpsíquico, sendo depois internalizados e passando a ocorrer intrapsiquicamente.

A perspectiva histórico-cultural possibilita, concomitantemente, uma crítica e a superação das concepções maturacionistas a respeito do grafismo, porque permite ver o desenho como signo empregado pelo homem e constituído a partir das interações sociais. Afinal, será que uma criança que não tivesse qualquer contato com seres humanos chegaria a desenhar, ou desenharia da mesma forma que uma criança civilizada? O contato com os pares não é fundamental para a aquisição de formas amadurecidas de atividade, como o desenho? Possuir um substrato biológico não parece ser a única - ou principal - condição para o desenvolvimento do grafismo.

As abordagens maturacionistas também não investigam o papel da fala na atividade gráfica. Alguns autores chegam apenas a citá-la quando se referem ao deslocamento da nomeação através das etapas do desenho.

Inicialmente, a criança só nomeia seu trabalho após terminá-lo; nomeação muitas vezes fugaz e que pode ser freqüentemente alterada. A mesma marca gráfica pode ser chamada de urso, em um dia, e de flor, em outro. Aos poucos, a nomeação passa a acompanhar a produção: a criança desenha e batiza seus traços, às vezes simultaneamente. Ao final deste processo, a criança declara antes o que deseja produzir graficamente. É claro que as nomeações anteriores e concomitantes à produção podem continuar ocorrendo; entretanto, esse deslocamento da linguagem oral reflete a mudança da participação da fala na organização dos processos psíquicos. O fato de a criança planejar seu desenho significa que há intenção representativa e que ela está ordenando suas ações por meio da fala.

A organização das ações através da linguagem é um fato apontado por Vygotsky, que mostra ser a fala um recurso mediador na relação do sujeito com outros e consigo próprio, por meio das funções de ordenar e orientar o comportamento

A fala organiza o desenho; quando a criança diz "Vou fazer uma casinha" e dirige sua ação gráfica neste sentido, está sendo orientada pela palavra. Ao mesmo tempo, o desenho organiza a fala, como ocorre quando, por exemplo, determinado grafismo sugere um rio e a criança assim denomina seu traçado, estimulada pela marca gráfica. Este recorte é apenas didático, porque a atividade de desenho é dialeticamente constituída por estes dois movimentos.

O desenho aparece muito antes da entrada da criança na escola, mas o fato é que há uma mudança qualitativa no grafismo a partir do seu ingresso neste novo universo. Se até então a influência do outro poderia ser sutil - ou não -, agora há uma preocupação mais formalizada em relação à produção gráfica. A escolarização tanto pode oferecer amplas oportunidades de desenvolver, ampliar e modificar o repertório gráfico da criança, quanto de abafá-lo e/ou prejudicá-lo.

A contribuição do outro precisa ser examinada e valorizada, não porque seja necessariamente boa (em oposição às formulações maturacionistas), mas porque participa inevitavelmente do funcionamento do sujeito.

Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de estudar condições sociais de produção do grafismo infantil. Neste sentido, observou-se a dinâmica interativa durante a atividade de desenho, no contexto pré-escolar, porque "... é apenas no interjogo das ações que os modos de participação do outro podem ser figurados." (Góes, 1992). O interesse foi examinar o jogo dialógico em relação tanto à produção gráfica em ocorrência quanto à manipulação dos materiais envolvidos na atividade. Não foram analisadas as características estruturais do grafismo, mas as relações entre fala e desenho.

 

A Situação Estudada

O estudo foi realizado em uma creche particular, que atende gratuitamente crianças de nível econômico baixo. Para a pesquisa, foram escolhidas as classes em que o trabalho educacional se realizava de maneira mais formalizada: maternal, pré 1 e pré 2, sendo a idade das crianças, no início da coleta (1992), de 3, 4 e 5 anos, respectivamente.

Optou-se por sujeitos desta faixa etária para que fossem abrangidos aqueles que, segundo as análises correntes, estão iniciando a figuração, o que possibilitaria captar também esse movimento de emergência do desenho figurativo em sua relação com as condições sociais de produção, em especial com a fala.

As observações foram realizadas entre março e dezembro de 1992, estendendo-se por todo o ano letivo. O registro das situações foi feito através de vídeo-gravações de períodos de atividade de desenho. As filmagens aconteceram uma vez por semana, e em cada classe a pesquisadora permanecia cerca de 20 minutos. Em cada sala era focalizada uma mesinha, onde sentavam-se três crianças que se revezavam a cada semana.

Em geral, a atividade gráfica foi desenvolvida sem um tema predeterminado, mas, em algumas ocasiões as professoras ou a pesquisadora sugeriram temas, como "A Páscoa", "A Família", "O que eu mais gosto de ver na TV". Também foi proposto às professoras que contassem uma história e pedissem às crianças que fizessem um desenho a respeito.

A análise dos dados privilegiou o enfoque microgenético, por permitir a caracterização, em um nível detalhado, do curso de transformações da produção da criança na relação com seus pares e com os materiais com os quais ela age. Wertsch (1985) esclarece que a abordagem microgenética consiste de caracterização, em nível de minúcia, de transições e mudanças qualitativas da ação do sujeito, referentes às mediações sociais/semióticas aí implicadas. Esta opção metodológica pareceu apropriada ao contexto do estudo realizado porque se buscou examinar condições sociais de ações da criança durante a atividade gráfica.

 

Analisando o Momento da Produção Gráfica

A análise foi organizada através dos seguintes temas: 1. a exploração dos materiais; 2. as mediações de pares e professora na produção gráfica através da fala e do desenho e 3. a fala da criança durante a produção gráfica.

Estes temas procuram delinear condições de produção do desenho a partir do emprego dos materiais utilizados durante o desenhar e das relações entre a criança, seus pares e a professora.

Existe uma relação intensa das crianças com os materiais empregados na atividade gráfica; elas manipulam-nos para desenhar, pintar, furar o papel, riscar/contornar o próprio corpo. Em certos momentos, os materiais tornam-se objeto de disputa; em outros, estão a serviço do "jogo simbólico". E as marcas gráficas no papel conseguem registrar poucos desses movimentos, que acontecem durante o desenhar, na interação das crianças entre si e com os materiais.

O parceiro marca muito o processo gráfico, pois está presente o tempo todo. Enquanto a criança desenha, sua produção está sendo exposta, bem como a dos colegas; além disso, todas as crianças olham, criticam, avaliam, sugerem, ajudam e chegam mesmo a atuar como co-autoras. Esse parceiro, além de um coetâneo, também pode ser a professora.

Na apresentação de episódios de atividade, os nomes das crianças foram representados pelas iniciais; as professoras foram referidas como P. e a investigadora como I.

No episódio abaixo relatado, o desenho de uma criança influenciou a produção gráfica da colega:

(Maternal) N. e M. estão sentadas à mesma mesa.

N. - Ah, eu tô fazendo sol. Ô tia, eu tô fazendo o sol.

M. desenha outro sol e a cada "raio" desenhado fala:

- Sol, sol, sol, sol.

I. - O que você está fazendo, M.?

M. - Eu tô fazendo sol.

Enquanto desenha, a criança fala. Espontaneamente nomeia a sua produção, ou responde à pergunta de alguém. A criança chega a alterar seu grafismo em função de algumas palavras. No exemplo abaixo, a fala de uma criança provocou a produção gráfica de três colegas, que desenvolveram o tema "sugerido" pela verbalização inicial.

(Maternal) S. está em uma mesa com dois colegas e J., W. e A. estão juntas em outra.

P. - O que você vai desenhar, S.?

S. - Paiaço!

J. - Vô desenhá paiaço do oto lado. (vira a folha).

N. - Pode desenhá no lado? (dirige-se à professora) ... é prá desenhá paiaço (fala em voz baixinha).

A. - Ô tia, posso (olha para a L.) ô tia, eu tô pintando de paiaço (esfrega um giz de cera vermelho no nariz).

J. - Fazê palhaço. Paiacinho. Ó paiaço.

Antes da verbalização de S. - "paiaço" - não havia sido feita qualquer referência ao tema. Movimentos como estes são freqüentes no transcorrer da atividade gráfica. No episódio acima, a fala do outro despertou as crianças para aquele determinado tema, mas isto também pode acontecer com o próprio desenho: a criança vê o "coelho" do colega e desenvolve o seu, que pode ser muito parecido com o modelo ou totalmente diferente.

Algumas vezes, as crianças pedem para um colega desenhar algo que ainda não conseguem realizar:

(Pré 1) E. faz um coração e F. vê o desenho do colega:

- Cê faz um coração prá mim, E.?

E. atende ao pedido dela.

...............

E. - A lá, G., o que eu fiz prá ela, coração.

Requisitar e/ou permitir a execução pelo outro significa que a criança reconhece que há determinados traços que não consegue fazer e o colega, sim. A criança aprende com quem desenha um carro, por exemplo, até que possa não só dispensar esta ajuda, como passar adiante o que aprendeu, já internalizado.

Há também aquela colaboração que consiste de pistas que o outro fornece e que possibilitam ao próprio autor caminhar na direção que pretende atingir. É uma forma de auxílio diferente da anterior porque a criança que recebe as pistas tem a iniciativa do processo de registro na tentativa de conseguir desenhar o que deseja.

(Pré 2) L. - Ô T., como faz o cacho? (Árvore de Natal)

T. - O Natal? Qué que eu faço prá você?

L. - Aqui, ó, pra mim vê (indica um espaço na folha do colega).

T. - Assim, assim, assim (fala enquanto desenha em sua própria folha).

L. olha para o desenho na folha de T.: - Dexo vê com esse (pega o giz que o colega estava usando).

T. desenha em sua própria folha, oferecendo modelo e L. pega o giz que o colega usou, talvez tentando garantir que o seu desenho fique igual.

A professora também fornece modelos e pistas, mas sua ajuda diferencia-se da dos colegas devido à intencionalidade pedagógica e à focalização de conhecimentos cobrados pelo programa.

Freqüentemente, as crianças avaliam a produção dos companheiros, desde o grafismo em si até a adequação de nomeações e comentários sobre o próprio desenho. Sem qualquer pudor, apontam falhas, defeitos e lacunas. Nas observações realizadas, o elogio também acontece, embora raramente.

Quando a criança aponta lapsos no desenho alheio, mostra sua visão acerca do objeto que está sendo representado, apoiando-se em suas vivências e noções sobre o mundo para examinar o desenho alheio e poder dizer, por exemplo, que determinada figura não está corretamente representada.

(Maternal) B. - Tia, tô fazendo passalinho (indica uma parte de seu desenho).

E. - Uau, passarinho nem é assim! (Ri).

Há disputas entre as crianças, em relação a quem elas consideram que sabe ou não desenhar determinados elementos, e é interessante notar que muitas vezes o "crítico" não olha para o desenho do colega ao anunciar seu veredicto, que nestes casos está dirigido para a fala e não para o grafismo.

O pedido de ajuda a determinados colegas é freqüente porque as crianças percebem quem, na classe, recebe mais elogios da professora, por desenhar de maneira figurativa.

Enquanto desenha, a criança fala. Nomeia sua produção quando uma pessoa pergunta o que é e também sem que haja qualquer indagação a esse respeito. Quando alguém pergunta à criança "O que você está desenhando?", a criança geralmente nomeia as marcas no papel, atribuindo-lhes significado no momento em que é feito o questionamento.

(Maternal) P. - O que você está fazendo?

A. - É solzão. É sol bem grandão, pra aquecer.

Algumas vezes esta nomeação compulsória atropela o processo de desenho e sua significação, porque a exigência da nomeação - especialmente por parte do adulto - leva a criança a batizar seus desenhos para responder, e não há qualquer garantia de que os nomes permaneçam, principalmente se isto acontecer no início da atividade.

(Maternal) I. - M., o que você está fazendo?

M. - eu tô fazendo sol!

I. - E o que mais?

M. -É, é um peixe. I. - Peixe? Tem mais coisa (a folha está repleta de garatujas). O que mais você fez?

M. - É ... é ... é peixe (não olha para o desenho para responder).

J. - Pescando o peixe. M. - Peixe pescando. O homem tá pescando.

I. - Cadê o homem pescando?

Rindo, M. aponta um traço vertical em sua folha. Ao final da atividade, M. está desenhando do outro lado da folha e I. pergunta sobre o desenho anterior.

M. - É cachorro.

I. - Você não tinha falado que era peixe?

M. hesita: - Então, cadê?

Este episódio mostra o quanto a nomeação é fugaz, modificando-se no transcorrer da atividade. Ocorrem também nomeações como a seguinte:

(Maternal) I. - O que você está desenhando?

A. - Batendo assim (ela está batendo o giz de cera sobre o papel).

A criança dá nome ao seu gesto, que para ela é mais importante do que as marcas que vão ficando no papel. A necessidade de dar significado ao gesto é do adulto.

Em relação à nomeação, não se mostra a participação, produtiva ou prejudicial, contraditória, enfim, do outro. A pergunta "O que você desenhou/está desenhando?" pode ou não coincidir com os momentos de nomeação que a criança faz. Quando não há esta coincidência, geralmente a criança é levada a dar significado ao desenho para satisfazer seu interlocutor. Entretanto, mesmo podendo atrapalhar o processo gráfico, esse tipo de questionamento leva a criança a pensar sobre sua produção e sobre o desenho como signo gráfico.

Não existe apenas o falar antes, durante ou ao término da atividade gráfica porque estes momentos não são isolados, mas constitutivos do próprio desenhar. O enunciado verbal organiza e é organizado pelo desenho. Falar a respeito da produção gráfica é também pensá-la. A linguagem verbal tem função de planejar a elaboração do grafismo; a criança pode antever seu produto, verbalizar o que pretende desenhar e mantê-lo ou modificá-lo antes e/ou depois de iniciar sua execução. A fala é também construtora do desenho: muitos detalhes gráficos são verbais, encadeados e unidos apenas oralmente. No caso da garatuja, onde o adulto vê somente um emaranhado de rabiscos, é quase como se houvesse dois desenhos: o que está no papel e o que a criança verbaliza.

Em algumas ocasiões, ao invés de apenas nomear elementos isolados, as crianças contam pequenas histórias a partir dos desenhos, unindo as figuras representadas no papel. A linguagem oral, mediante o desenho, cria situações que ultrapassam os elementos gráficos. Esta narração, essencialmente verbal, impõe um caráter de texto gráfico ao conjunto de figuras produzidas; é a palavra que vai unir esses elementos, integrando-os.

 

Conclusão

Assim como uma pessoa só aprende a expressar-se oralmente se conviver com falantes, a criança desenha porque vive em uma cultura que tem na atividade gráfica uma de suas formas de expressão. O desenvolvimento do grafismo é marcado pelas interações sociais, o que equivale a afirmar a sua constituição social.

O objetivo das análises aqui apresentadas não foi anular o papel do processo maturacional das crianças, porque olhando-se para os seus desenhos, verificou-se, ao longo do ano letivo, uma grande diferenciação, no sentido de um progressivo abandono das garatujas em direção à representação figurativa, mudança da qual certamente participaram fatores maturacionais. Contudo, pretendeu-se privilegiar, nas análises, a dimensão social das dinâmicas da atividade de desenho, isto é, a constituição do desenho nas relações sociais e a exploração dos recursos materiais culturalmente disponíveis.

Em consonância com a teoria histórico-cultural, deve-se recordar que não há duas linhas distintas de desenvolvimento, mas um curso de desenvolvimento constituído pelas dimensões maturacional e cultural.

Neste trabalho pretendeu-se focalizar a contribuição da cultura no desenvolvimento do grafismo. É surpreendente verificar que a dimensão sócio-cultural venha sendo tão negligenciada quando comparada à análise de outras esferas da atividade simbólica da criança. A participação do outro é reconhecida no brincar, na narrativa e na escrita. No desenho, quando é lembrada, geralmente assume forma negativa, como uma influência nociva.

A teoria histórico-cultural, base deste trabalho, propicia a construção de um novo olhar sobre o desenvolvimento do desenho. A incorporação das formulações sobre o papel central da linguagem no funcionamento psicológico é uma das grandes possibilidades de renovação teórica nessa área. Além disso, em termos mais específicos, as análises de Vygotsky sobre outros campos simbólicos na infância oferecem contribuições particulares para a interpretação da constituição do desenho.

A opção metodológica de olhar para encontros grupais procurou justamente mostrar o quanto o outro participa do processo gráfico. Houve também interesse em caracterizar o papel da instituição educacional no desenvolvimento do desenho; neste caso, no contexto pré-escolar.

No presente estudo, os momentos de observação foram extremamente férteis quanto à riqueza de material para análise. Aqui, o recorte privilegiou o processo de produção gráfica e as interações sociais que o constituem. Estas interações foram tão intensas que às vezes acabavam tornando-se prioritárias em relação à atividade de grafar.

No decorrer das atividades, as professoras participaram de formas diferentes, e distintas foram suas observações a respeito dos alunos e suas representações. As professoras do maternal e do Pré 1 entusiasmavam-se com cada conquista gráfica das crianças; por outro lado, a do pré 2 sempre estava voltada para as "imperfeições" dos desenhos infantis.

Visto que o outro é participante ativo do processo gráfico, pode-se pensar nas implicações trazidas pela sua presença. Se por um lado tem papel fundamental para o desenvolvimento do desenho, fornecendo ajuda, valorizando e possibilitando avanço, por outro pode também representar retrocesso, constrangimento. Se o desenho tem constituição social, também os problemas nessa esfera são socialmente constituídos.

Houve pouquíssimos momentos em que as crianças desenvolveram narrações a partir dos desenhos. As perguntas das professoras sobre a produção das crianças privilegiaram a nomeação de elementos isolados. Geralmente o adulto pergunta "O que é isso?", o que talvez provoque respostas fragmentadas. Se a indagação fosse "Conta para mim o que você desenhou?" poderia haver maior possibilidade de surgirem narrativas, mesmo que incipientes, porque essa pergunta conduz ao quando, onde, quem e por quê. Entretanto, a professora está interessada em saber se o aluno faz um desenho reconhecível e não na história que poderia ser desenvolvida a partir do grafismo. Também pode acontecer que a criança não queira contar nada com o desenho, mas esteja experimentando os materiais, descobrindo suas possibilidades, seus efeitos sobre a folha de papel. A significação pontualmente explicitada é uma exigência do adulto.

Uma grande diferença entre as ações da professora e as dos colegas reside no fato de que a primeira pretende ensinar formalmente o desenho, como mais um conteúdo do programa. Por essa prática, a professora distancia-se da participação do colega, mas ao mesmo tempo aproxima-se, pelo fato de essa atuação ser contraditória e promotora de tensão, ao encorajar e constranger o desenvolvimento.

Há inúmeras proibições na sala de aula, como o acesso à lousa e o uso de brinquedos como modelo. Tais materiais são muito agradáveis para as crianças e só por esse motivo sua utilização já estaria justificada. Entretanto, há uma grande preocupação das professoras em delimitar aquilo que elas consideram atividade pedagógica e seu papel docente. Existe a idéia de que apenas a professora pode ordenar situações de aprendizagem. Neste sentido, aprendizagem não é considerada intercâmbio, mas uma relação linear. O desenho acaba adquirindo função quase que exclusiva de treino motor e perdem-se suas características de atividade promotora de desenvolvimento cognitivo, afetivo e social.

Quando não existe a compreensão de que, além de a obra do artista ser determinada pelo contexto histórico-cultural, ninguém pinta ou desenha aquilo que vê, mas o que aprendeu a ver (arte não é cópia da realidade), acontece o tratamento enviesado da produção gráfica. Seria interessante que o professor pudesse ter acesso à história da arte e às obras dos grandes artistas, para uma visão mais ampla acerca das inúmeras possibilidades de utilização do desenho. Almeida (1981) destaca a importância da arte no processo educativo para o desenvolvimento da criança como sujeito que se expressa e se insere no mundo. Além desse conhecimento, é imprescindível que o docente compreenda como acontece o desenvolvimento da criança nos aspectos cognitivo, afetivo, motor e social; perceba a importância do desenho dentro do contexto da pré-escola e, a partir destes pontos, reflita sobre e questione sua prática pedagógica e seu papel de mediador (Reily, 1984).

É fundamental, enfim, que exista um conhecimento sobre a atividade gráfica enquanto processo que envolve pessoas em contínua interação e possibilita desenvolvimento e aprendizagem.

 

 

SILVA, S.M.C. Social Conditions of the Constitution of Infantile Drawing. Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.2, p.205-220, 1998.

Abstract: This essay focuses on some of the social conditions of the production of graphic activity. The data was collected through video recordings and of drawings made by pre-school children involved in classroom graphic activities during the school year. Based on a historic-cultural approach, this analysis strives to verify the relation between speech and drawing productions as well as the childrens' interaction with eachother and with the teacher. According to the results, the impact of interactive events, especially the process of language within the graphic activities, indicates a necessity of revision of the maturacionist emphasis of the theoretical discussions about the theme.
Index terms: Drawing. Preschool age children. Language. Oral communication. Social interaction. Mediation.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, C.M.C. Faz-se arte na pré-escola? Uma reflexão, uma proposta, uma crítica. Campinas, 1981. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade de Campinas.        [ Links ]

DERDYK, E. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo, Scipione, 1989.        [ Links ]

GÓES, M.C.R. Os modos de participação do outro no funcionamento do sujeito. 1992. [Mimeografado]        [ Links ]

GÓES, M.C.R. A natureza social do desenvolvimento. Cadernos Cedes, n.24, p.17-24, 1991.        [ Links ]

GOMBRICH, E.H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo, Martins Fontes, 1986.        [ Links ]

GOODNOW, J. Desenho de crianças. Lisboa, Moraes, 1979.        [ Links ]

KELLOGG, R. Analysing children's art. California, Mayfield, 1969.        [ Links ]

LOWENFELD, V.; BRITTAIN, W.L. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo, Mestre-Jou, 1977.        [ Links ]

LUQUET, G.H El dibujo infantil. Barcelona, Medica y Tecnica, 1981.        [ Links ]

LURÇAT, L. Pintar, dibujar, escribir, pensar: el grafismo en el preescolar. Madrid, Cincel, 1988.        [ Links ]

MERÈDIEU, F. O desenho infantil. São Paulo, Cultrix, 1979.        [ Links ]

REILY, L. Usos da arte na pré-escola: alternativas. In: CAMARGO, L., org. Arte-educação: da pré-escola à universidade. São Paulo, Nobel, 1984.        [ Links ]

SILVA, S.M.C. Condições sociais da constituição do desenho infantil. Campinas, 1993. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade de Campinas.        [ Links ]

VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1988.        [ Links ]

WERTSCH, J.V. Vygotsky and the social formation of mind. Cambridge, Harvard University Press, 1985.        [ Links ]

WILSON, B.; WILSON, M. Uma visão iconoclasta das fontes de imagens nos desenhos das crianças. Arte-Estudos deArte-Educação, n.1/2, 1982.