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Revista Panamericana de Salud Pública - Trends in the teaching of epidemiology in Brazil

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Revista Panamericana de Salud Pública

Print version ISSN 1020-4989

Rev Panam Salud Publica vol.2 n.5 Washington Jan. 1997

http://dx.doi.org/10.1590/S1020-49891997001100006 

Recursos humanos / Human resources

 

Tendências no ensino da epidemiologia no Brasil1

 

Rita Barradas Barata2

 

 

RESUMO O ensino da epidemiologia teve início no Brasil na década de 20 e sempre foi voltado para a saúde pública. Na década de 70, o ensino de epidemiologia passou por um crescimento em nível de pós-graduação. Os anos 80 foram marcados pela "epidemiologia social", que incorporava as ciências sociais e seus métodos; a segunda metade da década foi marcada pelo desenvolvimento das técnicas da bioestatística. No momento atual, a definição de diretrizes para o ensino da epidemiologia depende da reflexão acerca de vários pontos, entre os quais a reformulação ou extinção dos programas de residência médica em medicina preventiva, medicina social ou saúde coletiva; implantação de programas de mestrado e doutorado exclusivamente em ; oposição entre formação instrumental e formação teórica; e desenvolvimento de estratégias para o fortalecimento de novos grupos de docentes em instituições de ensino nas regiões mais pobres do país. Existe uma tendência positiva de aproximação entre instituições de ensino e serviços de saúde, tanto para o cumprimento de tarefas de ensino e formação de pessoal, quanto para o assessoramento técnico no planejamento, organização e avaliação de programas. Em relação aos profissionais que atuam em serviços de saúde, a efetividade dos programas em epidemiologia depende da capacidade dos docentes de trabalharem com situações de ensino-aprendizagem que facilitem a apreensão por parte dos alunos nas condições reais de seu trabalho, situações concretas em que a teorização seja uma decorrência natural.

 

 

O ensino da epidemiologia teve início no Brasil durante a década de 20, com a criação do Instituto de Higiene, hoje Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Portanto, a epidemiologia no Brasil está ligada, em sua origem, ao pensamento e à prática da saúde pública. Com a criação, a partir de meados da década de 50, de departamentos de medicina preventiva ou medicina social em faculdades de Medicina, a epidemiologia passou a fazer parte também da formação de médicos, sem contudo perder os traços de ligação com a saúde pública.

Mais ou menos simultaneamente à criação dos departamentos mencionados, se iniciaram no Brasil os programas de residência médica (1). Estes programas só foram regulamentados no final da década de 70, como programas de pós-graduação senso lato (2). Entende-se como programas senso lato os cursos de residência médica (1760 a 3520 horas), especialização (cursos de no mínimo 320 horas), capacitação (mínimo de 120 horas) e aperfeiçoamento (20 a 80 horas). São considerados pós-graduação senso estrito os programas de mestrado (MS) e doutourado (PhD).

Dentre os programas de residência médica, havia os que centravam o ensino da epidemiologia nas práticas dos serviços de saúde, isto é, na preparação para o trabalho em vigilância epidemiológica e estatísticas de saúde; outros programas buscavam privilegiar a formação teórica e metodológica, preparando os alunos para a pós-graduação senso estrito (3-5). Atualmente, estas modalidades de residência médica encontram-se em franco processo de recuo, sinalizado pela redução constante da demanda por vagas e pelo preenchimento cada vez menor do número de vagas oferecidas. A desorganização do sistema público de saúde no Brasil provavelmente tem contribuído para a desvalorização da formação de sanitaristas. Parte desse fenômeno, entretanto, parece poder ser atribuído à valorização da formação de especialistas e à conseqüente negação de uma formação com características generalistas (6).

O ensino de pós-graduação senso estrito, na área da saúde, teve um primeiro crescimento na década de 70, com a instalação de cursos de mestrado e doutorado em algumas escolas de Medicina e de saúde pública. Este período foi marcado por um esforço de construção teórica de inspiração marxista e estruturalista, fortemente influenciado pela incorporação das ciências sociais aplicadas à saúde. O resultado deste esforço foi o afastamento progressivo com relação aos conteúdos e abordagens tradicionais da saúde pública e a adoção de posturas críticas (7) que, além de descrever e associar causas e efeitos imediatos, buscavam compreender o processo de produção social do adoecer (epistemologias dialéticas e genéticas). Ganharam espaço as discussões metodológicas, estimuladas pela sistematização realizada por MacMahon, e as discussões teóricas, motivadas pelo trabalho de Susser sobre pensamento causal (8-10).

As teses e os trabalhos de investigação realizados nesse período se caracterizaram por abordagens eminentemente descritivas, que procuravam, entretanto, articular as questões epidemiológicas ao pensamento crítico predominante na medicina social. As reflexões teóricas e metodológicas desenvolvidas a partir das práticas de ensino e pesquisa vigentes na época desembocaram no movimento da saúde coletiva e na criação da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), no início dos anos 80. A ABRASCO foi criada com o objetivo de apoiar e articular os centros de treinamento, ensino e pesquisa em saúde coletiva no Brasil e com o objetivo de ampliar o diálogo entre entidades-membro, comunidade técnica e científica, organizações governamentais e não-governamentais e sociedade civil.

Nos últimos 15 anos houve um crescimento importante na área da saúde coletiva e, em particular, da epidemiologia. Uma série de acontecimentos passaram a influenciar diretamente o ensino e a formação em epidemiologia, tanto em relação à produção acadêmica quanto em relação às práticas em serviços de saúde. Dadas as especificidades de cada um destes aspectos — a produção de conhecimento através de investigações científicas e a produção de atividades de controle de doenças e organização dos serviços de saúde — iremos analisá-los separadamente.

 

FORMAÇÃO ACADÊMICA

No campo da formação acadêmica em epidemiologia, podemos assinalar os anos 80 como um momento de crescimento e de abertura para inúmeras influências de ordem teórica e metodológica, mas também de ordem política e institucional. A primeira metade da década foi marcada pela assim chamada "epidemiologia social". Tal designação englobava as contribuições originais que a incorporação das ciências sociais, principalmente a sociologia de cunho marxista, trouxeram para a explicação epidemiológica dos processos saúde-doença. Os trabalhos realizados no México, no Equador e no Brasil provocaram um vivo debate no campo como um todo. As pesquisas empreendidas revelavam as virtudes e dificuldades do movimento, que pretendia refundir conhecimentos buscando explicações amplas que permitissem ultrapassar o nível fenomênico (no sentido do positivismo) dos processos saúde-doença e desvelar as desigualdades geradas e mantidas por uma estrutura social em tudo iníqua, desigualdades essas que também se manifestam no viver, adoecer e morrer dos grupos humanos.

O ensino da epidemiologia passou então a incluir, além de instrumentos e métodos tradicionalmente utilizados pela disciplina (por exemplo, inquéritos que utilizam técnicas quantitativas; métodos descritivos baseados nas categorias tempo, espaço e atributos das pessoas acometidas e métodos analíticos de estudos transversais, conglomerados, coorte e caso-controle), o estudo das ciências sociais e seus métodos de investigação (por exemplo, estudos históricos que utilizam métodos de análise documental e técnicas qualitativas, como análise de conteúdo e análise do discurso; estudos de caso com metodologia antropológica; estudos estruturais com metodologias e técnicas qualitativas ou quantitativas). Do ponto de vista da epidemiologia, as contribuições mais importantes foram a incorporação dos estudos históricos e a incorporação e operacionalização dos conceitos de classe social, processo de trabalho e processo de reprodução social.

Esse programa de formação demandava um tempo maior para sua execução, além das dificuldades que a aproximação com o pensamento das ciências sociais, normalmente inédito para os profissionais com formação predominantemente biológica, representava. Diante da novidade, formaram-se pelo menos dois partidos que apaixonadamente se opunham: de um lado, aqueles que reivindicavam para a epidemiologia maior identidade com o campo da Medicina e das ciências biológicas e consideravam que a aproximação com as ciências sociais descaracterizaria e borraria os limites da epidemiologia; de outro lado, aqueles que viam na aproximação com as ciências sociais uma tentativa de superar os limites colocados à epidemiologia por sua origem positivista, empiricista, indutivista e, freqüentemente, reducionista. Essa superação se daria através de elementos que as ciências sociais poderiam trazer para o entendimento de vida saudável e doença como processos determinados socialmente e historicamente condicionados (11).

A segunda metade da década de 80 assistiu a um movimento até certo ponto oposto ao anteriormente descrito. O enorme desenvolvimento das técnicas da bioestatística, incorporadas pelos epidemiologistas para a análise de suas informações, e o crescimento do emprego de computadores na elaboração e análise de dados epidemiológicos provocaram uma guinada relativa nos rumos que o ensino e a prática da epidemiologia vinham tomando. Por um lado, essa guinada fez com que o ensino da epidemiologia no Brasil dedicasse maior atenção à formação em bioestatística, nem sempre valorizada. Por outro lado, devido ao fácil acesso a programas de computador para análise de dados quantitativos, em muitas circunstâncias a incorporação dessas técnicas foi feita de maneira alienada, sem que se estudasse e conhecesse seus fundamentos e sem respeitar suas indicações, suposições e limitações (11).

A utilização crescente de recursos cada vez mais sofisticados de análise não foi acompanhada por um fortalecimento teórico e metodológico da epidemiologia. Pelo contrário, o que se observa é um esvaziamento progressivo, onde se torna difícil distinguir a marca pessoal do investigador em seu produto. A ausência quase completa de interpretações que acompanha os trabalhos epidemiológicos mais recentes, por exemplo, livros-texto, artigos e teses, principalmente nos últimos 10 anos, e a profusão de fórmulas e expressões matemáticas parecem conferir maior cientificidade aos conteúdos tratados, ao mesmo tempo em que parecem também esvaziar seu potencial explicativo. Evidentemente, a contribuição da bioestatística para o avanço do conhecimento em epidemiologia não pode ser descartada por causa do uso empobrecido que alguns pesquisadores têm lhe dado. A simplificação e o extremo reducionismo a que as primeiras investigações etiológicas estavam condenadas, face às limitações de aplicação dos modelos de regressão então disponíveis, à impossibilidade de controlar adequadamente as variáveis de confusão, de posicionar de maneira hierarquizada os fatores e variáveis analisados, puderam ser e continuam sendo superados pelo desenvolvimento de novas técnicas multivariadas. Da mesma forma, a possibilidade de contar com o processamento eletrônico de um grande número de dados através do conforto e da praticidade de um microcomputador são conquistas que não podem ser esquecidas ou diminuídas.

Foucault, analisando as características da epistemologia contemporânea, assinala que "seria falso ver no formalismo o sinal de uma rarefação do pensamento, incapaz de apreender a plenitude dos conteúdos"; não seria menos falso, diz ele, colocar o formalismo no horizonte de um novo pensamento e de um novo saber (12). Isto serve como um alerta: a esterilidade na produção teórica e na reflexão crítica não deve ser atribuída ao formalismo em si; por outro lado, os procedimentos de formalização não devem ser vistos como possibilidade de criação de um novo saber, muito embora possam caracterizar uma nova etapa no desenvolvimento científico de um dado campo de saberes (13).

O aumento do número de recursos disponíveis para elaboração e análise de dados repercutiu no ensino da epidemiologia; os estudantes se viram diante da necessidade de aprender como utilizar programas específicos para microcomputadores. A facilidade de incorporação acrítica destes novos instrumentos resultou muitas vezes em conflito com o movimento que vinha se configurando anteriormente no sentido de uma formação mais teórica ao lado do domínio técnico. Como dar conta, dentro dos prazos previstos — 18 a 24 meses para mestrado e 3 a 4 anos para doutorado — de uma formação que inclua o domínio teórico e conceitual dos recursos destinados à abordagem quantitativa dos problemas de saúde e doença, o domínio teórico dos fundamentos da bioestatística que embasam essas abordagens, o aprendizado das teorias e métodos das ciências sociais e as bases filosóficas para a reflexão epistemológica necessária a toda prática científica criativa, sem descuidar do estudo das teorias e métodos da própria epidemiologia?

A esses acontecimentos de aporte teórico e metodológico ao campo da epidemiologia, acrescentam-se outros que também tiveram grande influência sobre os programas de ensino. Um deles, de ordem política, é representado pelo movimento da "epidemiologia clínica", que implica a aproximação da epidemiologia com o campo médico e seu conseqüente afastamento do campo da saúde coletiva: a epidemiologia clínica se caracteriza pela aplicação dos métodos de estudo da epidemiologia a problemas clínicos tais como diagnóstico, terapêutica e prognóstico, de forma a estabelecer os riscos imediatamente aplicáveis ao indivíduo. Os cursos curtos (40 a 80 horas) de treinamento em epidemiologia clínica se multiplicaram pelo país sem que entretanto conseguissem modificar substancialmente os programas de pós-graduação senso estrito. A forte tradição que liga a epidemiologia ao campo da saúde coletiva tem sido, até aqui, um anteparo suficiente contra o crescimento dessa corrente, pelo menos no âmbito dos departamentos de medicina preventiva e social. No entanto, a epidemiologia clínica tem crescido em algumas escolas médicas, a partir de departamentos clínicos ou de ciências básicas. O questionamento dessa corrente não implica na negação da necessidade de aprimoramento das pesquisas clínicas, porém tal aprimoramento não deveria significar uma negação das pesquisas populacionais ou a exclusão da problemática da saúde coletiva do âmbito das instituições de ensino médico.

Na medida em que a epidemiologia tem por objeto de suas investigações o processo saúde-doença em sua dimensão coletiva, não há como libertá-la completamente do campo médico, sem que isso represente uma perda de referenciais. Por outro lado, restringir a epidemiologia às questões postas pela prática médica significaria colocar a pesquisa epidemiológica em posição de subordinação e dependência, muito além do razoável. A suposição de que a dimensão coletiva nada mais é do que a soma de condições individuais tem possibilitado e fortalecido essa situação subordinada. Autores prestigiados como Miettinem chegam a afirmar que os problemas eminentemente coletivos, como por exemplo as epidemias, não são objeto de investigação para a epidemiologia moderna, visto que ela se destinaria a estudar apenas os problemas que apresentam expressão individual (14). Esta postura nega a dimensão coletiva dos fenômenos na realidade e a especificidade do objeto da epidemiologia.

A criação da comissão de epidemiologia da ABRASCO, em 1984, também influenciou o desenvolvimento da epidemiologia no país. A comissão promoveu reuniões e seminários e facilitou a publicação e divulgação dos conhecimentos produzidos, por exemplo com a criação da Revista Brasileira de Epidemiologia. Além disso, a comissão participa ativamente da elaboração e coordenação de uma política de ciência e tecnologia para a saúde coletiva e formulou para a ABRASCO dois planos diretores para o desenvolvimento da epidemiologia no país, contemplando questões de ensino, pesquisa e práticas em serviços de saúde. Estes planos são utilizados, por exemplo, nas negociações de convênios com órgãos governamentais. A comissão realizou ainda três congressos nacionais bastante expressivos (1990, 1992 e 1995). O último destes congressos teve participação de Portugal, Espanha e de todos os países da América, com apresentação de 1700 trabalhos científicos.

Outro fato ainda precisa ser considerado para completarmos nossa visão panorâmica sobre o ensino da epidemiologia no Brasil, em relação à formação acadêmica. Nos últimos anos, cresceu o número de pesquisadores e docentes formados no exterior. Este fato tem conseqüências positivas, tais como o aumento do número de indivíduos com titulação de doutor, que se reflete no aumento da produção científica e também na possibilidade de expansão dos programas de pós-graduação senso estrito, inclusive nas regiões do país que contam com menos recursos. Além disso, pode-se também assinalar o crescimento, ainda modesto, da publicação em revistas internacionais e da realização de projetos de investigação, multicêntricos ou não, em colaboração e com financiamento de organismos internacionais. O intercâmbio entre docentes e alunos de instituições nacionais e internacionais também gera avanços significativos, pois coloca epidemiologistas brasileiros em contato permanente com os epidemiologistas dos países centrais.

Os problemas que tal formação feita no exterior podem trazer são basicamente de duas ordens. Primeiramente, os custos da manutenção de alunos brasileiros nas instituições de ensino fora do país são relativamente elevados, além de serem subtraídos aos programas nacionais de pós-graduação.3 Em segundo lugar, há o fato dessa formação feita fora do país provocar um distanciamento relativo do pesquisador para com os problemas e as questões próprias de seu país. Por exemplo, há poucos epidemiologistas interessados em pesquisar a malária, um problema de saúde pública significativo no Brasil (cerca de 500000 casos novos a cada ano), ao passo que alguns pesquisadores se dedicam ao estudo de "edifícios doentes", ou seja, edifícios submetidos a ambientes totalmente artificiais, ainda raros no país. Nesse alerta não se deve ver traços de uma posição xenofóbica, mas apenas a preocupação com a preservação dos aspectos positivos do processo de formação de profissionais no exterior. Há hoje no país a tendência de restringir as bolsas de estudo para doutoramento pleno, expandindo a modalidade sanduíche (na qual apenas uma etapa dos estudos, normalmente a análise de dados, é feita em uma instituição no exterior) e as bolsas de pós-doutorado, retendo assim as vantagens do intercâmbio internacional sem onerar os sistemas de financiamento da formação nacional.

Tendo em vista o contexto atual, as instituições de ensino precisam tomar posição frente a um conjunto de problemas, novos e antigos. Os seguintes pontos deveriam ser especialmente considerados pelas instituições de ensino na definição de diretrizes para a epidemiologia:

•  Extinção dos programas de residência médica em medicina preventiva, medicina social ou saúde coletiva, ou reformulação destes programas tendo em vista o panorama atual da organização dos serviços de saúde no país e a redefinição do ensino de epidemiologia.

•  Implantação de programas de mestrado e doutorado exclusivamente em epidemiologia. Por um lado, estes programas permitiriam preparar pesquisadores e docentes capacitados e atualizados sobre questões epidemiológicas específicas. Por outro lado, a criação de tais programas poderia aumentar a distância entre a epidemiologia e as demais ciências do campo da saúde coletiva, acarretando uma certa esterilização do pensamento epidemiológico. Trata-se, portanto, da questão da formação especializada em oposição à formação interdisciplinar ou transdisciplinar para os pesquisadores em epidemiologia.

•  A tensão entre tendências "tecnocráticas" e tendências "críticas", que está presente no ensino universitário em geral, também se coloca para o ensino da epidemiologia. A primeira tendência baseia-se na reprodução especular do ensino feito fora do país, sem considerar as necessidades e peculiaridades locais. Essa tendência ressalta os aspectos funcionais de formação e descuida dos aspectos propriamente informativos, incentiva a utilização e reprodução de fórmulas prontas, receitas aplicadas a novos contextos investigativos sem acrescentar nada da contribuição do pesquisador. Já as tendências críticas procuram introduzir na formação elementos capazes de fornecer aos pesquisadores as ferramentas para construir um pensamento original, uma investigação científica criativa e ajustada às necessidades nacionais, uma independência positiva em relação ao que se produz fora do país, sem que isso redunde em negação das contribuições oriundas dos diferentes pensadores e pesquisadores (15).

•  A oposição entre formação instrumental e formação teórica também merece ser destacada. A definição da epidemiologia como um conjunto de métodos e técnicas se contrapõe à tentativa de valorizar a epidemiologia como ciência possuidora de um objeto específico (16-19).

•  Estratégias para o fortalecimento de novos grupos de docentes e pesquisadores que surgem em universidades e instituições de ensino nas regiões mais pobres do país. Num país de dimensões continentais, é necessário elaborar instrumentos de intercâmbio, de divulgação da produção e de realização de pesquisas conjuntas que permitam retratar a diversidade de situações epidemiológicas.

 

FORMAÇÃO PARA PROFISSIONAIS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE

O ensino da epidemiologia para profissionais dos serviços de saúde no Brasil, como foi assinalado no início desta exposição, sempre esteve fortemente ligado ao pensamento e à prática da saúde pública. Nos primórdios da organização das estruturas de saúde no país, a contribuição da epidemiologia estava relacionada à elaboração dos diagnósticos de saúde, etapa relativamente formal que constituía a abertura de todos os planos nacionais e, eventualmente, estaduais de saúde. Aos epidemiologistas cabia também a elaboração e execução de campanhas sanitárias. A formação para tais tarefas era assegurada basicamente por cursos de especialização em saúde pública e por programas de treinamento organizados e executados pelos próprios serviços, geralmente com apoio técnico e financeiro de agências internacionais como a Fundação Rockefeller e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Na década de 70, as campanhas sanitárias progressivamente deram lugar à criação dos sistemas de vigilância epidemiológica e os diagnósticos de saúde foram sucedidos pelos sistemas de informação. A visão estática de uma dada situação foi, dessa forma, substituída pelo acompanhamento sistemático das modificações. Novamente, foram os próprios serviços de saúde que se encarregaram de treinar seus profissionais, auxiliados por cursos de aperfeiçoamento, atualização e especialização organizados pelas escolas de saúde pública (8).

Nos anos 80, dois movimentos modificaram o panorama anterior. Várias escolas de saúde pública foram criadas por secretarias estaduais de saúde e, em cooperação com a Escola Nacional (dedicada ao ensino de pós-graduação e à pesquisa em saúde coletiva e vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil como parte da Fundação Oswaldo Cruz), passaram a ministrar, com regularidade, programas descentralizados de especialização. Simultaneamente, os departamentos de medicina preventiva e social das escolas médicas também começaram a oferecer cursos de especialização. Um grande número de sanitaristas foi formado em todo o país. Ao mesmo tempo, a concepção de que as práticas epidemiológicas e a própria epidemiologia se limitam à vigilância epidemiológica se consolidou nos serviços de saúde; inclusive, o sistema de informações em saúde ficou limitado à ótica exclusiva do planejamento e da administração (11).

Nos últimos 10 anos observa-se um interesse crescente por parte das instituições de ensino em se aproximarem dos serviços de saúde, não apenas para o cumprimento de tarefas de ensino e formação de pessoal, mas também para o assessoramento técnico no planejamento, organização e avaliação de programas. Muitas instituições de ensino iniciaram programas de integração docente-assistencial apoiados financeiramente por agências internacionais, como a Fundação Kellog, ou pelo Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de saúde (20). Na área da epidemiologia, atendendo a uma antiga reivindicação dos epidemiologistas brasileiros, assumiu importância a criação, pelo Ministério da Saúde, do Centro Nacional de Epidemiologia, encarregado da vigilância epidemiológica, da análise de situação de saúde e da capacitação e pesquisas operacionais em epidemiologia no Brasil.

Dentre as questões conceituais que insistentemente se colocam face à análise dos programas de capacitação senso lato em epidemiologia para os profissionais de saúde, uma em especial tem despertado a atenção de docentes e profissionais. Esta questão diz respeito ao modo como é aplicado o conceito de vigilância em saúde. Na tentativa de superar os modelos tradicionais da saúde pública, muitos grupos procuram novas formulações. Entre elas existe a proposta de fundir sob o conceito "vigilância em saúde" as ações de vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, controle de vetores e fiscalização dos ambientes de trabalho (21). Além do problema conceitual implícito no uso de um termo que denomina um certo conjunto específico de práticas para designar uma amplitude bastante heterogênea de ações, a questão traz para o ensino de epidemiologia um grande desafio. Como preparar profissionais capazes de dar conta de programas tão diversos, mesmo que unidos sob uma única designação? Embora o ensino genérico da epidemiologia com seus princípios, teorias e métodos pudesse atender múltiplas necessidades, a habilitação operacional para executar tais programas teria que ser de alguma maneira contemplada no programa de treinamento. Na prática, é extremamente difícil conciliar em um único programa tal diversidade de atividades.

Mas a questão da vigilância em saúde não se esgota na problemática apresentada. Para outro grupo, essa denominação cobre um espectro ainda mais amplo e é utilizada para assinalar uma mudança fundamental na concepção da organização dos serviços públicos de saúde. Pretende-se que a organização destes serviços, hoje fortemente influenciada pela capacidade tecnológica instalada e pela destinação prioritária para o grupo materno-infantil, independentemente das características de diferentes populações, seja substituída por uma organização que leve em conta o perfil de necessidades da população que reside no território atendido ou coberto por aquele serviço ou sistema local (22). Trata-se então de passar de uma organização marcada por uma concepção administrativa em que a oferta de certos equipamentos recorta e orienta a demanda, para uma concepção em que os recursos serão organizados para atender necessidades da população. A própria noção de necessidade deverá ser tomada em acepção filosófica mais do que no sentido eminentemente econômico que tal noção tem tido até aqui, de forma a denotar não apenas os carecimentos indispensáveis à sobrevivência e reprodução dos seres humanos enquanto seres biológicos, mas também as necessidades que o ser humano tem enquanto espécie que constrói sua história. Nessa perspectiva, as necessidades em saúde não se reduzem à obtenção de determinados benefícios técnicos, mas incluem um atendimento agradável, competente, eficiente e pronto.

Nessa segunda acepção, o termo "vigilância em saúde" parece ainda mais insatisfatório — um termo restrito utilizado para denominar um movimento extremamente amplo de reconceituação das finalidades dos serviços públicos de saúde e principalmente do compromisso ético desses mesmos serviços para com as condições de vida e saúde da população. A formação epidemiológica dos profissionais de serviços de saúde, na medida em que pretenda ser um instrumento nesse processo de mudança, terá de ser pensada a partir de definições prévias do que se entende por epidemiologia no âmbito dos serviços, qual o escopo de atuação dos profissionais que se pretende formar, em que situações concretas irão atuar tais profissionais, que domínio teórico e técnico se espera que eles possuam e em que contexto político se fará essa prática.

A efetividade dos programas de capacitação em epidemiologia para os profissionais de saúde parece estar na dependência também da capacidade dos docentes de trabalharem com situações de ensino-aprendizagem e conteúdos que facilitem a apreensão por parte dos alunos nas condições reais de seu trabalho em saúde. Na medida do possível, o ideal dessa formação seria o trabalho sobre situações concretas, na qual os alunos e docentes pudessem, lado a lado, buscar soluções; situações em que a teorização fosse a decorrência natural de uma necessidade vivida pelos alunos. Algumas experiências realizadas nesse sentido têm mostrado o enorme potencial desse tipo de formação, desde que o trabalho não seja restrito apenas aos aspectos pragmáticos e não descuide das questões teóricas.

Portanto, para que os programas de capacitação sejam produtivos é preciso que os docentes procurem compreender as características peculiares do trabalho nos serviços de saúde, do mesmo modo que os profissionais terão de colocar provisoriamente entre parênteses as urgências do dia a dia para poderem refletir sobre seu próprio trabalho com algum grau de distanciamento.

Os esforços de aproximação entre as universidades e instituições de ensino, por um lado, e os serviços públicos de saúde, por outro, representam a retomada pela academia dos seus compromissos com a sociedade, através de uma prestação de serviços mais imediata. Estes esforços contribuem ainda para a busca de maior igualdade, na medida em que profissionais melhor treinados e com maior capacidade de reflexão podem prestar serviços melhores à população carente.

Para concluir, gostaria de retomar o pensamento de um importante pedagogo brasileiro, o professor Paulo Freire. Segundo ele, a principal questão que se coloca para todo educador é a indagação: educar para quê? A essa questão ele responde que devemos educar para trabalhar junto ao povo, para poder repensar nossas tradições culturais em suas diferentes manifestações, para criar novos valores de solidariedade humana e, principalmente, para conquistar a liberdade (23).

 

REFERÊNCIAS

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Manuscrito recebido em 3 de setembro de 1996.
Aceito em versão revisada em 20 de maio de 1997.

 

 

ABSTRACT

Trends in the teaching of epidemiology in Brazil

The teaching of epidemiology in Brazil began in the 1920s and has always been connected to public health. The 1970s witnessed an expansion in the number of graduate-level courses in epidemiology. The 1980s were characterized by "social epidemiology," which incorporated the social sciences and their methods into epidemiology; the second half of the decade was marked by the development of biostatistical techniques. Currently, the definition of guidelines for the teaching of epidemiology in Brazil depends on careful reflection regarding a number of issues, among which are the reformulation or elimination of medical residency programs in preventive medicine, social medicine, and collective health; the creation of masters and doctoral programs exclusively in epidemiology; the conflict between a theoretical emphasis and a technical emphasis; and the development of strategies to strengthen new instructional groups that are being created in teaching institutions in less developed regions of the country. A positive trend is that teaching institutions are working more closely with health services, both for training personnel and for providing technical support in planning, organizing, and evaluating health programs. Regarding the teaching of health service professionals, successful training depends on how well teachers can provide in-service training that ties students' learning to real work situations, where the application of theories can be understood in the natural context of real problems.

 

 

1 Trabalho apresentado na mesa-redonda "Tendências do ensino da epidemiologia", patrocinada pela International Epidemiology Association no III Congresso Brasileiro de Epidemiologia, II Congresso Íbero-Americano de Epidemiologia e I Congresso Latino-Americano de Epidemiologia. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva/Sociedad Iberoamericana de Epidemiología/Associação Latino-Americana de Medicina Social, Salvador, 24 a 28 de abril de 1995.

2 Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa de São Paulo e Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Correspondência e pedidos de separatas devem ser enviados para Rua Cesário Motta Jr. 61, 5° andar, CEP 01221-020, São Paulo, SP, Brasil. Fax: +55-11-222-0432. Email: celagsc@uol.com.br

3 Em valores monetários, o dispêndio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com bolsas de doutorado no país e no exterior em 1996 foi, respectivamente, 12 705 reais por aluno por ano e 22 585 dólares por aluno por ano. Como nessa época praticamente havia equivalência entre o real e o dólar, a comparação pode ser feita diretamente.