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Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia - Squamous cell carcinoma of the tongue due to Fanconi's Anemia after bone marrow transplantation

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Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia

Print version ISSN 1516-8484

Rev. Bras. Hematol. Hemoter. vol.25 no.4 São José do Rio Preto  2003

http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842003000400010 

RELATO DE CASO CASE REPORT

 

Carcinoma de células escamosas em língua pós-transplante de medula óssea por Anemia de Fanconi

 

Squamous cell carcinoma of the tongue due to Fanconi's Anemia after bone marrow transplantation

 

 

Ricardo PasquiniI; José Z. NetoII; Carlos R. MedeirosIII; Marco A. BitencourtIV; Carmem M. S. BonfimV; Vaneuza A. MoreiraVI; Daniela C. SetúbalVII; Mary E. D. FlowersVIII; Elcio KupkaIX; Marcos V. AraújoIX

IMédico, professor titular e chefe da especialidade de Hematologia e Oncologia da UFPR. Chefe da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFPR – Curitiba-PR
II Serviço de Transplante de Medula Óssea (TMO), Disciplina de Hematologia e Oncologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná – Curitiba-PR – Brasil
IIIMédico, mestre em Medicina Interna. Professor adjunto da disciplina de Hematologia e Oncologia da UFPR. Médico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFRP – Curitiba-PR
IVMestre em Medicina Interna, médico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFRP – Curitiba – PR
VMédico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFRP – Curitiba-PR
VIMédico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFRP – Curitiba-PR. Cursando o terceiro ano do mestrado em Medicina Interna da UFPR
VIIMédico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFRP – Curitiba-PR. Cursando o segundo ano do mestrado em Medicina Interna da UFPR
VIIIMédico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Fred Hutchinson Câncer Research Center, em Seattle, Washington, Seattle – USA. Estudante de 10º período do Curso de Medicina da UFPR – Curitiba-PR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Anemia Fanconi (AF) é uma síndrome autossômica recessiva, caracterizada por pancitopenia progressiva com hipoplasia de MO, em associação com várias anormalidades constitucionais, tendo como único recurso terapêutico com possibilidade potencial de cura o transplante de medula óssea, e sendo tais pacientes propensos ao desenvolvimento de malignidades hematológicas e carcinoma de células escamosas (CEC) em diversos locais: reto, vagina, cérvice, esôfago, cavidade bucal, faringe ou pele, mas especialmente em cabeça e pescoço. Relatamos aqui três casos de pacientes portadores de AF, que após TMO desenvolveram CEC em língua. Além disso, mencionamos fatores de risco relatados para tal evento, como diagnóstico de AF, condicionamento pré-transplante (quimioterápicos e irradiação), terapia com drogas imunossupressoras para tratamento de doença enxerto contra hospedeiro (DECH) aguda ou crônica, sexo e idade avançada. Além do que, discorremos sobre a existência de três mecanismos postulados que predispõem indivíduos com AF ao desenvolvimento de neoplasia: (1) defeito na reparação do DNA; (2) defeito na detoxificação de radicais de oxigênio; e (3) imunodeficiência.

Palavras-chave: Anemia de Fanconi; carcinoma de células escamosas; transplante de medula óssea; agentes alkilantes; ciclofosfamida; citogenética.


ABSTRACT

Fanconi's Anemia, first described in 1927, is a rare autonomic recessive disease characterized by progressive pancytopenia, congenital malformations, spontaneous or chemically induced chromosome breakage and increased incidence of leukemia and other cancers. The onset of bone marrow hypoplasia and its hematological manifestations is usually in the 3 - 7 year age range. The disease has traditionally been managed clinically through administration of blood products, treatment of infections and prolonged administration of androgens, growth factors and more recently with gene therapy. The value of bone marrow transplantation in correcting the hematological manifestations of Fanconi's anemia has been established. Alkilanting agents and radiation have been utilized as a conditioning regimen in bone marrow transplantation for Fanconi's anemia, but these patients are particularly hypersensitive to these agents and its toxicity is the main cause of mortality and morbidity. Bone marrow transplantation is at the moment the only therapeutic modality able to bring hematological cure. Fanconi's anemia patients are particularly susceptible to the development of hematological malignancies and squamous cell carcinoma in the epithelium of the rectum, vagina, cervix, esophagus, oral cavity, pharynx or skin in general but more frequently on the head and neck; probably not only because the basic cellular defect but also because of the conditioning regimen. We report on three cases of Fanconi's anemia patients developing squamous cell carcinoma of the tongue after bone marrow transplantation. Furthermore, there is mention of the risk factors linked in an event, such as the diagnosis of Fanconi's anemia, pre-transplant conditioning regimen that usually includes alkylating agents and irradiation; immunosuppressive prophylactic therapy for acute and chronic graft-versus-host-disease, gender and age. Additionally, we discussed the existence of three postulated mechanisms that make individuals with Fanconi's anemia susceptible to the development of neoplasias: (1) deficiency in the DNA repair system, (2) deficiency in oxygen radical detoxification; and (3) immunodeficiency.

Key words: Fanconi's anemia; squamous cell carcinoma; bone marrow transplantation; alkylating agents; cyclophosphamide; cytogenetic.


 

 

Introdução

Em 1927, Fanconi1 relatou três irmãos com um quadro de anemia progressiva e hiperpigmentação de pele.

Em 1929, Uehlinger2 relatou um paciente com pancitopenia e malformação dos polegares e rins. Desde então, a Anemia Fanconi (AF) é conhecida como síndrome autossômica recessiva, é diagnosticada a partir de testes de instabilidade cromossômica em resposta ao diepoxibutano, mitomicina C ou outros agentes clastogênicos.

Afeta aproximadamente 1/360.000 pessoas e caracteriza-se por pancitopenia progressiva com hipoplasia de medula óssea, em associação com várias anormalidades constitucionais (baixa estatura, hiperpigmentação de pele, predominando em flexuras, tronco inferior e pescoço, deformidades esqueléticas, anormalidades renais e hipogonadismo). Temos citada, ainda, a consangüinidade como fator predisponente.3

O único recurso terapêutico com possibilidade de cura é o transplante de medula óssea, e tais pacientes são propensos ao desenvolvimento de malignidades hematológicas e carcinoma de células escamosas (CEC), especialmente em cabeça e pescoço.

A AF pertence a um grupo de síndromes caracterizadas por fragilidade cromossômica ou defeito no reparo do DNA, assim como ocorre na ataxia, telangiectasia, síndrome de Bloom, disceratose congênita, xeroderma pigmentoso. Há uma alta incidência de malignidades nestas doenças mencionadas. Entre estas, CEC, o qual pode envolver um dos diversos locais: reto, vagina, cérvice, esôfago, cavidade bucal, faringe ou pele.

 

Descrição de Casos

Neste relato apresentamos três casos de AF tratados com transplante de medula óssea (TMO) que, em sua evolução pós-transplante, desenvolveram neoplasia, caracterizada histologicamente como CEC, em todos os casos acometendo cavidade oral, mais especificamente a língua.

 

Caso 1

Paciente masculino, 4 anos de idade, admitido no Serviço de TMO do HC-UFPR em novembro de 1988, para investigação de possível AF. Apresentava história de 11 transfusões prévias e quadros de repetição de broncopneumonia. Ao exame apresentava-se anêmico, com manchas hipercrômicas em tórax, dorso e principalmente em face, ausência de visceromegalias e dedo supranumerário em mão direita.

Realizou-se exame citogenético, que confirmou a existência de AF em fase aplástica. Em sua história familiar, encontramos consangüinidade entre os progenitores. Mãe com cinco filhos vivos e uma história de aborto espontâneo, sendo o paciente em questão o 4º filho. Os três primeiros não apresentavam alterações até a data do diagnóstico do paciente, e havia história de transfusão por anemia no último filho. Ausência de história familiar de neoplasias, doenças hematológicas ou diabetes mellitus.

Proposto TMO, sendo o doador a irmã do paciente (2ª filha), a qual nunca sofreu transfusão. O transplante foi realizado em agosto de 89.

O condicionamento pré-transplante ocorreu com ciclofosfamida (CFA) 200 mg/kg dividido em quatro doses com um dia de descanso, além de imunoprofilaxia com metotrexate (MTX) + ciclosporina (CSA), e antibioticoterapia profilática.

Teve como complicações imediatas do TMO: epigastralgia, dor em hipofaringe, hematêmese, mucosites com velamento oral, ulcerações em lábio e picos febris.

Na evolução, apresentou Doença do Enxerto-contra-Hospedeiro (DECH) aguda, com posterior cronificação, e recebeu o tratamento preconizado com CSA, sendo acrescido posteriormente prednisona.

Em 1990, houve suspeita de hepatite não-A não-B não confirmada. Em 1994, suspeitou-se de hepatite C, confirmada por anti-HCV positivo em 95. Houve persistência crônica das lesões de boca, e, em outubro de 2000, cerca de 134 meses pós-TMO, diagnosticou-se CEC estádio IV em terço médio de língua, tendo como indicação terapêutica quimioterapia e radioterapia, indo o paciente a óbito em março de 2001, devido a complicações do tumor.

 

Caso 2

Paciente masculino, 6 anos, admitido no Serviço de TMO do HC-UFPR em fevereiro de 1997, encaminhado com diagnóstico de AF para tratamento.

Apresentava história de anemia e febre esporádica desde abril de 1996, tendo sido internado em outro serviço em outubro de 1996, confirmando-se o diagnóstico de AF por análise citogenética diepoxibutano.

Nesta internação, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico por uma plaquetopenia severa, restando como seqüela hemiparesia à esquerda. Relatou-se a administração prévia de, no mínimo, 25 unidades de hemoderivados.

Proposto TMO alogênico, tendo como doadora a irmã, sendo que a tipagem sangüínea desta era AB positivo contrastando com a do receptor que era tipo B positivo. Devido a tal fato, houve tratamento da MO com hidroxi-etil-amido por incompatibilidade ABO maior, não havendo intercorrências.

O receptor apresentava sorologia positiva para citomegalovírus e a doadora era negativa.

O condicionamento pré-transplante foi realizado com CFA 100 mg/kg, e imunoprofilaxia com CSA e MTX, além de antibioticoprofilaxia.

As complicações pós-transplante foram mucosite, infecções, hipertensão arterial após 10º dia, e hepatite medicamentosa por fluconazol, o qual foi substituído por outro antifúngico.

Teve alta hospitalar cerca de trinta dias após transplante, efetuado em fevereiro de 1997, sendo que não havia sinais de DECH, até então.

Em janeiro de 2002, cerca de 59 meses pós-TMO, relatou lesão progressiva em língua, com sintomas de disfagia, sendo diagnosticado CEC após glossectomia de terço ântero-lateral direito, sem evidências de complicações até o momento.

 

Caso 3

Paciente portador de Anemia de Fanconi, com 20 anos de idade, foi admitido na unidade de transplante de medula óssea em setembro de 1991. Ele apresentava um história de pancitopenia severa de um mês de evolução e já havia recebido 74 transfusões de hemocomponentes. Análise citogenética com diepoxibutano confirmou o diagnóstico de AF em fase aplástica.

O paciente foi submetido a transplante de medula óssea em setembro de 2001; o doador foi seu irmão HLA, totalmente idêntico e com análise citogenética normal. O regime de condicionamento foi com ciclofosfamida na dose de 200 mg/kg dividida em quatro dias. Ele recebeu um total de 4.79 x 108 celulas mononucleares/kg de peso corporal. Recebeu também antibioticoterapia profilática. Profilaxia para DECH foi a associação clássica de MTX e CSA de acordo com o protocolo de Seattle.

As complicações imediatas pós-transplante foram: mucosite severa grau IV, esofagite e gastrite, hipertensão arterial e cistite hemorrágica.

Assim como os demais pacientes, ele teve recuperação hematológica completa, e estudo de quimerismo com VNTR (variable number of tandem repeats), mostra que 100% de suas células sangüíneas foram de origem do doador. O paciente desenvolveu DECH aguda grau IV, que foi responsivo ao tratamento e evoluiu para DECH crônica moderada extensa, e por isso recebeu ciclosporina e corticóide continuadamente.

Complicou com estenose de esôfago no período pós-transplante, que foi corrigida cirurgicamente.

Em abril de 1997 foi diagnosticado, por biópsia, carcinoma de células escamosas estádio IV em língua. Foi submetido a hemigolssectomia e esvaziamento cervical. Faleceu em março de 2000 devido a recidiva do tumor em complicações relacionadas ao mesmo.

 

Discussão

Entre as complicações que têm sido descritas após TMO, as doenças malignas têm um papel de destaque, devido à maior sobrevida dos pacientes livres da doença primária.4

Tumores sólidos podem ser vistos como complicação maligna de TMO, ocorrendo vários anos após, geralmente cinco a dez anos.4

Demonstrou-se que, ao longo do tempo de evolução pós-TMO, o risco de desenvolvimento de malignidade linfóide decai rapidamente, enquanto o risco para tumores sólidos aumenta progressivamente. Socié et al relataram 18 pacientes, dentre setecentos avaliados no estudo, que apresentaram tumores sólidos diagnosticados de 30 a 221 meses (média 99 meses) pós-TMO.5

Em um estudo retrospectivo de 2.246 pacientes transplantados por leucemia ou anemia aplástica, encontraram-se 35 casos (1-6%) de câncer secundário entre 1,5 meses e 13,9 anos pós-transplante.6 A incidência destes tumores secundários era seis a sete vezes mais alta no grupo com tumor primário que na população geral, com idade comparada. Embora a malignidade mais comum fosse linfoma não-Hodgkin (16 pacientes), 13/35 casos eram de tumores sólidos, incluindo três CEC (língua, cavidade oral, vulva). Foi proposto que irradiação de corpo total (ICT) e certos tratamentos para DECH aguda (globulina antitimócito ou anticorpo monoclonal anti-CD3) foram fatores de risco no desenvolvimento de tumores secundários.7

Fatores de risco para tumores sólidos identificados incluem diagnóstico de AF, terapia com azatioprina para DECH crônica, irradiação (total ou tóraco-abdominal), DECH crônica ou aguda, sexo masculino e idade avançada.5,7-10

Encontramos relatos mencionando um predomínio de casos femininos em AF associada com neoplasias,11,12 mas destacando o fato que a relação M:F é 2:1 na AF isoladamente. Tal predominância feminina levantou a hipótese de estar relacionada a fatores hormonais, os quais poderiam estar envolvidos na patogênese do CEC.13

Em revisão da literatura realizada em uma publicação de relato de caso,7 constataram-se 27 casos de tumor pós-TMO por AF, dos quais 22 acometiam o sexo feminino, quatro o masculino e um não foi mencionado, indicando maior prevalência de tumores pós-transplante acometendo o sexo feminino.

Foi relatado que os CEC em AF têm envolvimento predominante de membranas mucosas; dos 29 relatados até o momento, todos, exceto um, apresentavam envolvimento mucoso.7

Somente nove casos de CEC envolvendo cabeça e pescoço foram relatados, com cinco destes envolvendo a língua.8 Em outra publicação, encontrou-se um levantamento de 27 casos de tumores pós-TMO por AF, sendo 10 casos com acometimento de língua.7

Socié et al relataram caso de um menino de 12 anos, que desenvolveu CEC de língua 74 meses após TMO por AF,14 sendo que os mesmos estimaram riscos de tumor sólido 22 vezes maior em transplantados por AA que na população geral,15 mencionando-se que o paciente tinha como fatores de risco: predisposição genética, condições pré-transplante (CFA/ICT), DECH crônica, tratamento imunossupressivo prolongado.7

Um paciente de 29 anos, com dez anos de DECH crônica, desenvolveu CEC de língua, relatado por Bradford.16

Encontrou-se um estudo mostrando acompanhamento de oito pacientes, entre estes quatro com AA, e quatro com AF, dos quais seis desenvolveram lesão mucosa (CEC em cabeça e pescoço em cinco casos, e lesão disceratótica em um caso) e dois CEC de pele. Todos desenvolveram CEC em áreas envolvidas com DECH crônica e eram pacientes masculinos. A lesão disceratótica ocorreu em um paciente mais jovem que havia recebido TMO cinco anos antes por AF (aos 10 anos), desenvolvendo DECH crônica tratada com CSA e prednisona.9

Existem três mecanismos postulados que predispõem indivíduos com AF ao desenvolvimento de neoplasia: (1) defeito na reparação do DNA; (2) defeito na detoxificação de radicais de oxigênio; e (3) imunodeficiência.17,18

Defeito na reparação do DNA tem sido bem estudado em células com AF.19,20 Estas apresentam aumentada sensibilidade a mutágenos como irradiação e drogas alquilantes (mitomicina C ou ciclofosfamida23, 24),21 assim como maior susceptibilidade a transformação pelo vírus SV40.22

Zanis et al3 demonstraram que doses menores de CFA, 100 mg/kg, e ausência de ICT no condicionamento pré-transplante permitem melhora objetiva na sobrevida, diminuição considerável na toxicidade global, ausência de rejeição, regeneração hematológica completa e persistente e significativa diminuição da incidência de DECH aguda e crônica, havendo, assim, base para persistência na redução da dose, até se chegar a taxa menos tóxica possível e capaz de levar a uma pega completa do enxerto.

Em termos ainda de estrutura genética, sabe-se que a AF está associada com instabilidade cromossômica, quebras randômicas, defeito nos mecanismos de reparo.20

Há experimentos que detectaram a presença de p53 mutante pós-transplante, cuja forma expressa é inativa, não exercendo sua função, e resultando em acúmulo desta proteína no núcleo das células tumorais,25,26 assim demonstrando que os tumores em pacientes transplantados têm alguma relação genética quando comparada com pacientes não transplantados. Por outro lado, nenhum dos pacientes tinha alteração mostrando presença de anticorpos contra p53, sugerindo que o linfócito B do doador não era capaz de expressar anticorpo responsável por alteração no p53, fator que contribuiria para origem do carcinoma epitelial do receptor.9

O segundo mecanismo proposto, fundamentado no defeito da detoxificação de radicais de oxigênio foi primeiramente proposto por Nordensen,27 em 1977, o qual verificou que aberrações cromossômicas espontâneas em células AF diminuem com a adição de qualquer catalase ou superóxido dismutase ao meio de cultura. Muitos estudos têm suportado esses achados, com possível diminuição da concentração da catalase dentro de células do grupo A de complementação,28 diminuídos níveis de superóxido dismutase em eritrócitos de pacientes com AF29, 30 e aumentada sensibilidade a tensão de oxigênio.31,32

A DECH crônica predispõe ao desenvolvimento de carcinoma devido a condição inflamatória crônica.10,14 Além disso, o infiltrado linfocítico visto na DECH crônica pode levar a um aumento da incidência de mutações; assim, um estudo relatou que leucócitos na AF liberam uma quantidade aumentada de radicais oxigênio e que esse radicais são altamente reativos, assim enfatizando mais o segundo mecanismo proposto.35

Relacionado ao terceiro mecanismo, é bem conhecido que o sistema imune atua em muitas interações tumor-hospedeiro.8 De fato, Penn34 afirmou que "qualquer forma de imunossupressão, de suficiente duração e intensidade, levará ao desenvolvimento de certas formas de câncer".

A imunodeficiência pode atuar tanto como uma conseqüência primária da doença ou como uma complicação da terapia imunossupressiva pós-transplante.35

Muitos parâmetros imunológicos em AF estão alterados, mas, em geral, a imunidade humoral tem sido relatada como normal. O número e a porcentagem de linfócitos B parecem ser normais ou quase normais. IgG e IgM do soro, assim como IgA e IgE, estão normais. Níveis do complemento têm sido normais. Os defeitos no sistema imune em AF aparecem mais proeminentes na função das células T, na imunidade mediada por células.8,29,31,35

Deficiência numérica e funcional das células natural killer (NK) de pacientes com AF que desenvolveram CEC foi referida. Essas células NK mostraram-se não aumentadas em atividade quando expostas a linhagens de células tumorais, mas, com adição de interferon extrínseco, houve uma atividade parcial de NK restaurada.36 Assim, a imunidade mediada por células está deficiente em alguns pacientes com AF pré-transplante e pode atuar na gênese da neoplasia.8

Hersey37 demonstrou um defeito na atividade das NK em pacientes com AF que desenvolveram CEC. O defeito na atividade NK foi possivelmente causado pela falha de liberação de interferon pelos linfócitos defeituosos em reconhecer o antígeno tumoral,22 dando maior ênfase à proposição anterior.

Há evidência de múltiplos processos na tumorigênese, mostrando que o tumor ocorre ou dissemina-se por uma falha do sistema imune em controlar as células neoplásicas, além de outros fatores.9

Células de pacientes com AF são significativamente mais suscetíveis a transformação viral, como documentado pelos estudos do vírus SV40, um membro do grupo dos papovavírus,38 que também inclui o papilomavírus humano (HPV). O HPV tem uma bem conhecida associação com o desenvolvimento de neoplasia de epitélio escamoso, especialmente em região ano-genital. Embora o HPV não tenha sido demonstrado em tumores de pacientes com AF, ele é um conhecido fator de risco para o desenvolvimento de CEC de cabeça e pescoço.8,9,39 É demonstrado em culturas de fibroblastos de pacientes com AF a maior suscetibilidade a transformação pelo vírus SV40 do que em controles normais.37,39

Culturas de células com AF mostram aberrações cromossômicas espontâneas, hipersensibilidade do DNA a quebras cruzadas por agentes como mitomicina C e diepoxibutano, e aumento da suscetibilidade a tumorigênese viral.38

Clinicamente, há um aumento na incidência de transformação maligna na AF, com leucemia aguda, carcinoma hepatocelular e CEC, sendo as mais comuns malignidades.7 Uma incidência aumentada de carcinoma hepatocelular em pacientes com AF sugere relação com o uso de andrógenos no tratamento da pancitopenia. 40,41

 

Conclusão

Na análise do primeiro caso apresentado mostramos a presença de sinais físicos característicos da AF. Temos neste, ainda, a presença de consangüinidade dos progenitores como fator predisponente à doença. Confirmamos alguns dos fatores de risco relatados na literatura, dos quais podemos citar: DECH crônica, principalmente em cavidade oral; imunossupressão crônica; uso de medicamentos imunossupressores, relatados como propensores a tumorigênese, porém não houve irradiação no seu condicionamento. A época de gênese tumoral neste paciente enquadra-se entre os limites já relatados. Temos neste quadro a presença concomitante do vírus da Hepatite C, o qual é um fator já conhecido na predisposição ao hepatocarcinoma. Na terapêutica não houve uso de andrógenos neste paciente, sem evidências clínicas de tal patologia até o momento de seu óbito.

No segundo caso, embora mais precocemente que o primeiro, a gênese tumoral também se encontra nos limites de tempo relatados. Entretanto, não houve evidências de DECH crônica e imunossupressão prolongada, embora tenha ocorrido o desenvolvimento de CEC 5 anos pós-TMO. Acrescentamos, ainda, que houve um melhor condicionamento pré-transplante conforme preconizado por estudo realizado por Zanis et al, além de inexistência de irradiação no condicionamento.3 Concluímos que, neste caso, não houve presença dos fatores clássicos referidos como relacionados à gênese tumoral na evolução natural do binômio doença-tratamento.

No terceiro caso houve uma toxicidade significativa relacionada ao regime de condicionamento, levando à estenose de esôfago. Neste caso encontramos a ocorrência de DECH e o uso crônico de imunossupressores em um paciente de idade mais avançada, bem acima da média de idade que em geral é diagnosticado AF, o que pode ser outro fator predisponente para neoplasia.

 

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Endereço para correspondência
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Recebido: 13/07/2003
Aceito após modificações: 10/09/2003

 

 

Avaliação: Editor e dois revisores externos.
Conflito de interesse: não declarado