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Kriterion: Revista de Filosofia - Montaigne, a descoberta do Novo Mundo e o ceticismo moderno

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Kriterion: Revista de Filosofia

Print version ISSN 0100-512X

Kriterion vol.53 no.126 Belo Horizonte Dec. 2012

http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2012000200006 

ARTIGOS

 

Montaigne, a descoberta do Novo Mundo e o ceticismo moderno

 

 

Danilo Marcondes

Professor do Departamento de Filosofia/PUC-Rio e UFF, E-mail: danilosouzafilho@gmail.com

 

 


RESUMO

O descobrimento do Novo Mundo é um dos fatores fundamentais de ruptura com a tradição, na inauguração do pensamento moderno. A descoberta de povos no novo continente com culturas radicalmente diferentes da europeia leva a um questionamento cético sobre a universalidade da natureza humana, o que denominamos "argumento antropológico". Montaigne é o mais importante pensador deste contexto a discutir esta questão nos Ensaios. Examinamos aqui alguns dos aspectos centrais de sua reflexão a este respeito.

Palavras-chave: Montaigne, ceticismo moderno, descoberta do Novo Mundo


ABSTRACT

The Discovery of the New World is one of the central causes of the breakdown with tradition that opens the way to modern thought. The first contact of the Europeans with the native peoples of the New World shows radically different cultures giving rise to doubts about the universality of human nature, what might be called an "anthropological argument" in a skeptic sense. Michel de Montaigne is the major philosopher in this context to discuss these issues in his Essays and I shall examine some of the more relevant aspects of this discussion.

Keywords: Montaigne, Modern Skepticism, Discovery of the New World


 

 

Jovem Sócrates: Por que dizes que a nossa divisão não fora feita corretamente?
Estrangeiro de Eleia: Porque é o mesmo que tentar alguém dividir a humanidade em duas partes, como costuma a maioria, isto é, separando-a como se o gênero helênico constituísse uma unidade distinta das demais e dando-se a estas o nome comum de "bárbaros"; supondo que por causa dessa denominação coletiva formem também uma unidade, quando de fato são numerosíssimas, distintas entre si e de linguagens bem diferentes (ἀσύμφωνος).

Platão, O sofista, 262c.

Em um texto já clássico sobre a descoberta do Novo Mundo, Tzvetan Todorov[1] a interpreta como "a descoberta do outro", devido a seu impacto sobre o pensamento europeu da época e ao abalo que causa na imagem tradicional da unidade da natureza humana no pensamento filosófico e teológico deste período. Contudo, que relevância esse evento histórico e toda a imensa literatura que gerou podem ter para a formação da filosofia moderna? À primeira vista parece surpreendente que a história da filosofia, inclusive contemporaneamente, não tenha dado nenhum sentido especial à descoberta do Novo Mundo, nem se tenha preocupado em interpretá-la como parte da formação e do desenvolvimento do pensamento moderno.

Minha hipótese de trabalho consiste em mostrar que, além das causas tradicionais de ruptura com a tradição como a Reforma Protestante e a Revolução Científica, a Descoberta do Novo Mundo consiste em um terceiro fator fundamental na transformação do mundo que levará à formação do pensamento moderno, aprofundando esta ruptura, especialmente com o mundo medieval, mas também com o antigo. Na verdade, de um ponto de vista cronológico, a Descoberta do Novo Mundo (1492) antecipa os outros dois fatores e conceitualmente pertence ao mesmo contexto de discussão. Consiste, portanto, em um fator histórico importante na constituição do solo em que o ceticismo antigo será retomado e levanta questões que serão discutidas por um pensamento fortemente influenciado pelo ceticismo.

De certa forma, contudo, já teria havido um conhecimento pelos renascentistas ao menos de algumas fontes céticas da Antiguidade grega, o que certamente contribuiu para a formação da mentalidade de muitos dos que escreveram sobre o Novo Mundo e interpretaram o significado das navegações e descobertas em relação à tradição clássica e ao mundo europeu. Pode-se dizer que, até certo ponto, o pensamento moderno foi influenciado num primeiro momento pela retomada do ceticismo antigo, sobretudo no contexto florentino e, em seguida, as grandes transformações pelas quais o mundo europeu passou deram uma nova dimensão à leitura dos céticos antigos[2]. Há assim um segundo momento, ou uma segunda leva, da retomada do ceticismo antigo que adquire um novo sentido quando vista em relação a essas transformações. A retomada dos textos céticos antigos aprofunda e radicaliza o debate já iniciado a partir das grandes transformações históricas no contexto europeu.

A assim chamada "literatura das navegações", consistindo nos relatos desses eventos históricos ainda pouco estudados fora dos círculos dos especialistas, tem uma importância capital para o entendimento dessas transformações e do processo de formação da modernidade e teve um grande impacto no pensamento da época, sobretudo, em um momento em que a divisão em áreas como filosofia, história, literatura etc. era ainda quase inexistente[3]. Esses textos, grande parte deles de cronistas e navegadores, incluem não só a descrição das viagens e das "maravilhas" encontradas nas Índias, orientais e ocidentais, mas também reflexões filosóficas, políticas e religiosas, dando origem ao que já foi também chamado de "antropologia das navegações".

Minha hipótese consiste em mostrar que há um aspecto específico da importância da descoberta do Novo Mundo pelos europeus para a discussão cética do início do pensamento moderno que denomino aqui "argumento antropológico", na medida em que traz um novo argumento cético: Haveria uma natureza humana universal? E de que critérios dispomos para definir "natureza humana", diante da diversidade de culturas que aí se encontram?

Isso leva à radicalização da discussão que encontramos nos tropos de Enesidemo, sobretudo o segundo, que trata da diferença entre os seres humanos e o décimo, sobre a variação de costumes e crenças[4].

Pretendo examinar alguns dos principais ângulos dessa questão, mostrando, inclusive, a necessidade de reformulá-la a partir da análise de várias fontes e da discussão de diferentes interpretações em torno do descobrimento do Novo Mundo. É dentro deste contexto que proponho considerarmos Michel de Montaigne o grande pensador do século XVI, talvez mesmo o único no âmbito do pensamento filosófico, que refletiu sobre a descoberta do Novo Mundo e seu impacto no mundo europeu de sua época. Pretendo mostrar também que esta questão está relacionada em Montaigne à formulação de questões céticas em sua obra.

 

A retomada do ceticismo antigo no pensamento moderno

É surpreendente que a filosofia cética, que parecia morta e enterrada por mais de mil anos durante o período medieval, tenha sido retomada com força total no início do pensamento moderno, sobretudo no século XVI, como mostrou Richard Popkin (2000).

Mas se a filosofia cética antiga, tanto dos pirrônicos, quanto dos acadêmicos, parecia ter sido abandonada porque a filosofia cristã introduziu um critério de verdade permitindo superar o ceticismo, tal como mostra santo Agostinho em Contra os Acadêmicos (389 A.D.); por outro lado, o ceticismo, se entendermos por isso questões céticas sobre a possibilidade do conhecimento e de sua justificação, permaneceu presente na discussão filosófica medieval ainda que de forma lateral. Deve-se distinguir nesse sentido, ceticismo – como a presença de questões céticas sobre a possibilidade da certeza no âmbito tanto do conhecimento, quanto da ação –, de filosofia cética, consistindo em questões derivadas da leitura dos filósofos céticos da Antiguidade. Isso nos permite entender melhor a questão da permanência ou não de um pensamento cético no período medieval, assim como a possibilidade de sua retomada no início do período moderno. A rigor, portanto, há formulações do ceticismo no período medieval, mas há, além disso, a retomada de uma filosofia cética no início da modernidade.

A posição agostiniana, por sua vez, contribuirá decisivamente para a consolidação da doutrina de uma natureza humana universal, através da defesa da concepção de que Cristo veio para pregar para todos os homens e que portanto todos têm o potencial para se tornar cristãos. O texto agostiniano De catechizandis rudibus (c.405) evidencia essa concepção e, tendo servido de base para a conversão dos bárbaros do século V em diante, servirá também como inspiração para a conversão dos povos do Novo Mundo.

A retomada do ceticismo antigo no período moderno foi examinada inicialmente por C.B.Schmitt (1983) que mostrou que, embora a filosofia cética tenha sido pouco discutida no Ocidente no período medieval, ela não desapareceu totalmente, havendo inclusive comentários bizantinos aos céticos antigos, quase sempre na mesma linha dos comentários do início do Cristianismo, recorrendo aos céticos para mostrar a fragilidade da filosofia grega, imersa em controvérsias, e argumentando que os próprios filósofos gregos não se entendiam entre si.

Richard Popkin[5] também retoma essa mesma questão, já como introdução à sua discussão do ceticismo moderno, situando o ressurgimento da filosofia cética no contexto da crise intelectual da Reforma Protestante.

O que denominei anteriormente de "segunda leva" da discussão cética no período moderno pode ser entendido sobretudo como resultado da maior divulgação nesse período de textos dos céticos antigos, principalmente de Sexto Empírico. Quando esses textos se tornam disponíveis, inclusive graças ao trabalho dos humanistas, amplia-se e aprofunda-se a discussão de questões céticas que já vinham sendo realizadas. Os pensadores que as debatiam, seja porque as consideravam importantes, seja porque visavam refutá-las, encontram novos argumentos para o desenvolvimento deste debate. A isso se soma que as transformações ocorridas no mundo europeu nesse período contribuem para a radicalização da discussão cética em uma época de incertezas. Um desses novos argumentos consiste na discussão sobre a universalidade da natureza humana, que se radicaliza agora com a descoberta da diversidade cultural dos povos do Novo Mundo.

O marco central da retomada do ceticismo antigo no período moderno é a tradução do grego para o latim e a publicação do texto das Hipotiposes Pirrônicas (sob o título de Pyrrhoniarum Institutionum) de Sexto Empírico por Henri Estienne (Henricus Stephanus) em 1562, o que permitiu uma maior difusão dessa obra[6]. Em seguida (1569), Gentian Hervet traduziu do grego para o latim e publicou Contra os Professores (Adversus mathematicos)[7]. Com isso, as duas principais obras de Sexto Empírico, representando a filosofia cética pirrônica, tornaram-se bastante difundidas nos meios intelectuais europeus.

Pesquisas recentes mostraram, contudo, que os manuscritos de Sexto Empírico tiveram uma difusão maior no Renascimento do que de início se supunha.[8] Além disso, a filosofia cética acadêmica era conhecida através dos textos de Cícero – sobretudo os Academica –, considerado no Renascimento um grande mestre.

Há portanto toda uma literatura que discute a filosofia cética e formula questões céticas antes da difusão do ceticismo pirrônico pelas traduções e edições de Stephanus e de Hervet. Essa literatura foi fundamental para criar o contexto de debate e o conhecimento sobre a filosofia cética em que o pensamento de Montaigne se desenvolveu. Autores importantes e influentes no Renascimento francês escreveram obras sobre questões céticas, e discutiram o ceticismo por vezes de forma crítica e irônica, como, por exemplo, François Rabelais, ou como parte da visão anti-aristotélica e anti-escolástica como Francisco Sanchez, que nascido em Portugal era professor em Montpellier.

 

Montaigne e a Descoberta do Novo Mundo

A discussão sobre a natureza humana e sobre suas diferentes manifestações aparece já em autores medievais e renascentistas que discutem a existência de monstros, de monstruosidades que parecem humanos, mas são ou o resultado de formas distorcidas da natureza humana ou consistem em outras espécies, como as que encontramos já em referências míticas desde a Antiguidade (p.ex. ciclopes na Odisséia de Homero). Montaigne teria lido, segundo Pierre Villey,[9] autores contemporâneos seus, como Arnaud Sorbin, autor do Tractatus de monstruis (1570), e Ambroise Paré, autor do Des monstres (1573)[10], o que pode ter contribuído para esse tipo de questionamento. Veja-se a esse respeito o ensaio "D'un enfant monstrueux" (II, 30)[11].

Embora no famoso ensaio "En relisant Montaigne", Lévi-Strauss[12], devido principalmente ao texto "Des cannibales" (Essais, I, 31), considere ser o filósofo quem melhor refletiu, em sua época, sobre o tema da descoberta do Novo Mundo, esta questão não tem recebido nenhuma ênfase especial entre os estudiosos de Montaigne. Se examinarmos, por exemplo, os dois principais periódicos dedicados aos estudos de Montaigne: Montaigne Studies e Bulletin de La Société des Amis de Montaigne, não encontramos um número significativo de artigos dedicados a esse tema[13].

Pierre Villey, o grande comentador de Montaigne e guia privilegiado de leitura dos Essais, não dá nenhum destaque em particular à questão do Novo Mundo, considerando-a como parte da discussão sobre a relatividade dos costumes. Discute essa questão sobretudo em relação a dois ensaios do livro I, "De la coutume" (I, 23) e "Des coutumes anciennes" (I, 49). Vê aí a variação dos hábitos e costumes humanos desde os relatos dos viajantes até os autores da Antiguidade, como Heródoto, como uma das fontes da dúvida em Montaigne: "Il y a là de quoi faire éclater tous les concepts et briser cette idée si simple, si commode, que nous nous faisions de l'homme"[14].

Porém, pode-se argumentar que essa questão tem uma importância central em sua obra. Evidência disso é que já na sua apresentação dos Ensaios ao leitor, Montaigne usa os nativos do Novo Mundo como contraponto de sua própria natureza: "Pois se eu estivesse estado entre aqueles povos dos quais se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e nu"[15]. Essa caracterização do ser humano do Novo Mundo como "natural", vivendo segundo as leis da natureza e, nesse sentido, "epicurista", encontra-se na "literatura das navegações" desde o seu início e leva à oposição que Montaigne faz em "Des cannibales" (I, 31) entre "selvagem" no sentido de "natural", como um fruto selvagem, e "selvagem" como resultante de cultura entendido como cultivo, como algo que altera a natureza, podendo mesmo vir a enfraquecê-la, perdendo vigor e naturalidade (I, 31, 205/307-308).

A primeira questão que se coloca a esse respeito é se a discussão de Montaigne sobre o Novo Mundo e a natureza humana seria apenas parte da discussão mais ampla sobre a diversidade dos costumes (persas, indianos, líbios, citas, etc.), tributária de Sexto Empírico e de Heródoto ou se teria uma especificidade. Como identificar esses povos desconhecidos, diante da total ausência de parâmetros? Seriam as dez tribos perdidas de Israel? Seriam o resultado de outra criação, a dos pré-adamitas, possibilidade discutida desde o Renascimento, chegando até a sua formulação clássica em Isaac de la Peyrère (1655)[16]? Seriam seres sem o pecado original, seres que teriam permanecido na "infância da humanidade"? Os povos tribais, sobretudo, são representados assim como o puro contraponto do homem europeu, seu outro, seu oposto.[17]

O argumento antropológico pode ser caracterizado sobretudo pelo questionamento de uma natureza humana universal, por um ceticismo acerca da existência de uma natureza humana única e homogênea, levando a um relativismo cultural quanto à possibilidade de entender, classificar e categorizar essas diferentes culturas tão radicalmente distintas da europeia, levantando a esse respeito exatamente o problema do critério em relação a esta possibilidade.

No caso do Novo Mundo, em que medida é possível recorrer aos padrões cristãos para julgar esses diferentes povos? A questão moral, sobretudo o questionamento da suposta superioridade moral cristã é levantada por Montaigne tanto em "Des cannibales" (I, 31), quanto em "Des coches" (III, 6).

Isso se dá precisamente no contexto da Reforma Protestante, da ruptura no interior do Cristianismo, e das guerras religiosas daí decorrentes. Ocorre também no contexto do tema humanista da miseria hominis, levando no caso à demonização do indígena enquanto bárbaro, selvagem, em um sentido diferente do ser caído e pecador do pensamento medieval; mas também em contraste com a dignitas hominis do "bom selvagem"[18], do homem natural, integrado à natureza, epicúreo. Montaigne (I, 31), possivelmente sob a inspiração de Tácito no relato da guerra contra os germânicos, admirados por sua força e coragem, levanta a questão do ponto de vista dos indígenas, mostrando como eles nos ensinam uma lição sobre nós mesmos, são como um espelho, apontam nossas fragilidades, expõem nossa inferioridade. Os indígenas do Brasil fornecem assim a Montaigne um pretexto para a crítica da própria sociedade francesa de sua época, como quando apresenta os questionamentos do chefe indígena com quem teria se encontrado sobre os costumes dos europeus ao final de "Des cannibales". Como se as perplexidades dos europeus em relação ao Novo Mundo tivessem seu equivalente simétrico e inverso na visão dos indígenas sobre os europeus. Trata-se exatamente de um "como se", de um artifício de Montaigne em sua crítica dos costumes. Mostrando que não há superioridade de um determinado costume em relação a outros, mas que todos podem parecer estranhos a partir de diferentes perspectivas.

Na verdade, a visão do indígena pelo europeu resulta na fabricação de um ser fantástico, seu oposto, mas também seu espelho. Descrevê-los, procurar compreendê-los, afinal das contas só é possível recorrendo-se à analogia com as categorias tradicionais que, por definição, são inadequadas para isso. A tentativa de conhecimento do novo por analogia com o antigo, segundo o preceito aristotélico, frequentemente fracassa nesses casos. O suposto de uma natureza humana universal, ainda que aceito em um plano metafísico, por ser por demais abstrato resulta inútil na interpretação da variação dos costumes e de como isso afeta, molda, altera esta natureza geral. Embora ainda se possa pressupor a natureza humana universal, não é mais esta que é relevante para o entendimento dos povos, inclusive dos europeus, e portanto de seus costumes e de sua moral.

Isso se reflete no imaginário europeu enquanto se busca construir uma explicação sobre a natureza desses povos que é necessariamente ambivalente, e mesmo contraditória, valorizando ora sua proximidade à natureza, quase que como Adão no paraíso, ora sua selvageria e brutalidade que os aproxima dos animais[19]. O "nobre selvagem" é, ao mesmo tempo, o canibal que pratica esse "horror barbaresco" (Essais, I,31, 209/313). [20]

O conflito entre doutrinas suscitado pelo que denominei "argumento antropológico", ou seja, pela questão sobre a unidade da natureza humana decorrente do contato entre os europeus e os povos das Américas, pode ser ilustrado pelos dois relatos rivais sobre o projeto francês de instituir na Baía de Guanabara a França Antártica, que levou, após a expulsão dos franceses pelos portugueses, à fundação da cidade do Rio de Janeiro[21].

Ainda não abertamente convertido ao calvinismo, o Almirante Gaspard de Coligny, Grande Almirante de França idealiza a fundação de colônias francesas no Novo Mundo, onde, fora das disputas religiosas e territoriais na França, católicos e protestantes franceses, os huguenotes, poderiam viver em harmonia. Encarrega assim o vice-almirante da Bretanha, Nicolas Durand de Villegagnon, um experiente navegador, a fundar uma colônia no Brasil, naquele momento ainda esparsamente colonizado por Portugal. Este projeto utopista tinha exatamente como pressuposto que a mudança de contexto teria um impacto nos seres humanos, levando a uma mudança de costumes e permitindo com que católicos e protestantes convivessem em harmonia.

O cosmógrafo francês André Thevet fez parte da expedição de 1555 do Almirante Villegagnon. Em 1557-8 Thevet publicou sua obra Les singularitez de la France Antartique, na qual descreve a região em que esteve, sua fauna e sua flora, o povo que aí encontrou e com o qual conviveu, expressando sobretudo a grande estranheza que essa realidade quase indescritível lhe causou e apresentando uma visão, embora também ambivalente, sobretudo negativa dos costumes indígenas, tanto que seria mesmo impossível de converter esse povo ao cristianismo. Thevet tinha formação científica, era católico, frade franciscano e permaneceu de novembro de 1555 a janeiro de 1556 no Brasil, sendo que seu relato praticamente sintetiza relatos de outros marinheiros franceses que teriam vivido nessa região. Segundo se lê em Thevet, esses seres são em grande parte descritos mais pelo que não são, ou seja, por contraste com o europeu.[22] Contudo, Thevet é, de certo modo, um dos primeiros a enfrentar o dilema que será frequente nos relatos posteriores. Sua formação científica tradicional e as categorias de pensamento do homem europeu são insuficientes e inadequadas para a compreensão da nova realidade e isso se evidencia na ambiguidade de seu relato.A obra de Jean de Léry,[23] o calvinista francês que veio à França Antártica posteriormente, aqui permanecendo quase um ano entre 1557 e 1558, publicada em 1578, foi composta explicitamente para "corrigir os erros" que atribui ao católico Thevet, devido ao grande interesse manifestado pelo público leitor da época ao relato sobre as "singularidades" do Novo Mundo. Léry enfatiza o canibalismo dos indígenas, que serve de referência a Montaigne, e os considera, ao menos de início, "um povo maldito e desamparado de Deus", descendentes de Cam ou Canaã, segundo a narrativa do Gênesis. Posteriormente, a partir de sua convivência com eles e dos relatos dos franceses que habitavam entre os indígenas, sua visão se modifica, tornando-se menos negativa. O próprio Léry se envolve mais com os costumes e a vida dos indígenas do que Thevet. E seu propósito inicial de isentar os calvinistas de responsabilidade pelo fracasso do projeto da França Antártica, acusação feita por Thevet, acaba dando lugar a um relato ainda mais ambivalente do que o de seu adversário e ambos os relatos se complementam mais do que se opõem. É curioso sobretudo o impacto da experiência de vida de Léry entre os indígenas, que o leva progressivamente a se desfazer de seu preconceitos.

Na verdade, ambos apresentam aquilo que Montaigne formulará como o principal desafio da visão do homem europeu sobre os habitantes do Novo Mundo, a projeção da imagem tradicional da natureza humana sobre esses povos que, contudo, não correspondem a ela; e a tentativa de situá-los em uma ordem natural que, nesse momento, inevitavelmente terá de ser reformulada. Ao mesmo tempo, percebem a tentação sobre o homem europeu de viver a "vida dos selvagens", libertar-se dos condicionamentos da vida "civilizada" e dos conflitos da época entre católicos e protestantes, encontrando um mundo edênico. Tanto Thevet, quanto Léry reagem de forma ambivalente aos relatos de marinheiros, os truchements, que passaram a viver como nativos, mostrando para os cristãos que o próprio homem europeu corria o risco de um regresso a um "estado de natureza" pré-cristão. De volta à França, Jean de Léry se expressa significativamente com nostalgia: "Lamento frequentemente que eu não esteja no meio dos selvagens" (Je regrette souvent que je ne suis parmi les sauvages). Em conclusão, enfatizo os seguintes pontos sobre os quais a partir de suas reflexões sobre o Novo Mundo, Montaigne nos leva a pensar:

1. A dificuldade que se encontra em entender e interpretar a experiência humana, sobretudo devido à sua diversidade e à diferença dos costumes. O descobrimento do Novo Mundo aprofunda e radicaliza essa dificuldade. A originalidade de Montaigne está em que ele não formula, contudo, essa questão em termos de uma oposição ou dicotomia com o Outro em que os nativos seriam esse Outro do homem europeu, mas, ao contrário, enfatiza a diversidade de costumes e de experiências humanas em seus diferentes contextos. A oposição com o Outro cria uma identidade por oposição, homogeneizando esse "outro" e apagando as diferenças. Montaigne, ao contrário, mostra as variações nos costumes e suas diferentes possibilidades de forma que, na consideração das culturas, não se trata de estabelecer uma alteridade, o que seria meramente dicotômico, mas uma pluralidade de culturas.

Essa dificuldade se reflete no texto "Dos canibais", como ocorre com frequência em Montaigne, através do estilo fragmentado, da imprecisão das definições, da narrativa incompleta, do caráter não confiável dos narradores como o empregado de sua propriedade que teria vivido no Novo Mundo e o chefe indígena com quem conversa através de um intérprete também não confiável.

2. O ceticismo apresenta, de um ponto de vista metodológico, uma forma de tratar essa dificuldade, preparando-nos para o novo ao nos despir dos preconceitos e nos fazer ter a mente aberta diante dele e não apenas de tratá-lo por analogia ou comparação com o antigo. Nesse sentido, proponho uma analogia entre o argumento da "Apologia de Raymond Sebond", em que o ceticismo abre o caminho para a fé, e a discussão em "Des coches" e em "Des cannibales", em que o ceticismo abre o caminho para a aceitação e o entendimento do novo, agora no sentido dos novos costumes. O papel cético de "nettoyer l'esprit" nos prepararia para essa nova atitude, para a abertura do espírito, para o olhar antropológico que, através do recuo, do régard éloigné, é capaz de examinar a experiência humana em sua diversidade.

3. De um ponto de vista moral isso nos mostra que não temos como julgar os seres humanos a partir de sua natureza enquanto bárbaros, homens puros, ou seres civilizados, mas, sim, os seus costumes, condenando os que são cruéis e violentos, seja entre os nativos do Novo Mundo, seja entre os europeus quando cometem atrocidades, como na França por ocasião das Guerras Religiosas, em que episódios de canibalismo teriam também ocorrido por necessidade extrema durante o cerco de Sancerre. O que se condena ou exalta não são indivíduos nem povos, mas hábitos ou costumes, que são contingentes e cambiáveis e não significam necessariamente a crença em uma natureza humana boa ou má, selvagem ou civilizada.

"Des cannibales" é, por tudo isso, um dos primeiros textos modernos, se não mesmo o primeiro, a conter o uso do termo "cultura" no sentido que passará a adquirir na antropologia e na história[24]. Embora Cícero o empregasse por analogia com o cultivo de uma planta na agricultura, formulando o conceito de "cultura da alma", Montaigne parece ser o primeiro a usá-lo para referir-se a como os costumes alteram a natureza humana e como são eles que devem ser interpretados de um ponto de vista moral.

Nos limites desse texto, lanço aqui apenas esta hipótese interpretativa, sobre o "argumento antropológico", que considero esclarecedora quanto à influência de Montaigne na formação do pensamento moderno e quanto à radical originalidade deste pensador.

 

Referências bibliográficas

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Texto recebido em 13 de agosto de 2012 e aprovado em 16 de outubro de 2012

 

 

1 Todorov 1982.
2 Floridi 2002.
3 Ver, por exemplo, Barreto 1987.
4 Annas, J. e Jonathan Barnes 1985.
5 Popkin 2000.
6 Henricus Stephanus (1528-1598) foi um autor extremamente influente em sua época como tradutor, editor e pensador. Foi o tradutor para o latim dos diálogos de Platão, cuja edição de 1578 se tornou referência para a divisão e numeração do texto de Platão até hoje, a assim chamada "paginação de Stephanus". Sua Apologia pro Herodoto (1566) foi também uma obra importante, inclusive para a discussão sobre o Novo Mundo pela comparação entre os costumes que apresenta.
7 Gentian Hervet (1499-1584) foi um teólogo católico francês que recorreu aos argumentos céticos (pirrônicos) para combater os calvinistas.
8 Floridi 2002.
9 Villey (1908 :148).
10 Ver Hodgen 1964.
11 As citações dos Ensaios de Montaigne seguem a tradução brasileira de Rosemary C. Abílio, eventualmente modificada. As referências indicam, em sequência, o número do livro em algarismos romanos e, em arábicos, antes da barra, a página da edição Villey-Saulnier (PUF) e depois da barra a página da referida tradução brasileira.
12 Lévi-Strauss 1991.
13 Exceção feita ao volume recente (XXII) dos Montaigne Studies (2010), precisamente sobre "Montaigne et le Nouveau Monde".
14 Villey (1908:143).
15 "Que si j'eusse été entre ces nations qu'on dit vivre encore sous la douce liberté des premières lois de nature, je t'assure que je m'y fusse très volontiers peint tout entier et tout nu" (I, "Au Lecteur", 3/4).
16 Segundo Popkin 2000, cap.XI.
17 Todorov 1983.
18 Esse conceito, que já foi atribuído a Montaigne e a Rousseau, não se encontra formulado como tal nesses autores, mas parece originar-se (como "noble savage") no autor inglês John Dryden em sua peça The conquest of Granada de 1672. Porém já os primeiros relatos sobre o descobrimento do Novo Mundo como os de Colombo e Américo Vespúcio referem-se ao "homem natural" encontrado nessas regiões.
19 Pagden 1972.
20 Ver a esse respeito Brahami (2006: 143-157).
21 Essa questão é extensamente discutida por Frank Lestringant (1990).
22 Thevet 1997.
23 Léry 1994.
24 "Et si pourtant la saveur mesme et delicatesse se treuve à nostre gout excellente, à l'envi des nostres, en divers fruits de ces contrées-là, sans culture ", (I, 31, 208). A tradução brasileira traz "cultivo" (p.308).