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Revista de Saúde Pública - The challenge of emergent disease and the return to descriptive epidemiology

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Revista de Saúde Pública

Print version ISSN 0034-8910

Rev. Saúde Pública vol.31 n.5 São Paulo Oct. 1997

http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101997000600015 

O desafio das doenças emergentes e a revalorização da epidemiologia descritiva*

The challenge of emergent disease and the return to descriptive epidemiology

 

Rita de Cássia Barradas Barata
Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. São Paulo, SP - Brasil

 

 

Resumo
Este artigo trata das doenças emergentes e re-emergentes apresentando seu conceito, as principais ocorrências nos últimos 25 anos, e os determinantes dessas ocorrências. Trata também da epidemiologia descritiva e sua utilização na investigação desses problemas de saúde apontando a importância de sua recuperação pelos epidemiologistas. Finalmente, são mencionados os desafios que as doenças emergentes colocam para a prática em saúde coletiva e também para o desenvolvimento metodológico da epidemiologia descritiva.
Epidemiologia descritiva. Doença, etiologia.
Abstract
The definition of emergent and re-emergent diseases, patterns of ocurrence during the last 25 years, and the determinants of this occurrence are presented. The importance of descriptive epidemiology and its use in the investigation of these health problems, especially in view of epidemiologists' tendency to give less attention to it, finally, is emphasized the challenges that the emergent diseases pose for public health practice and for the methodological development of descriptive epidemiology are also set out. These challenges are considered in three fields: biosecurity, surveillance systems and descriptive epidemiology techniques.
Epidemiology descriptive. Disease, etiology.

 

 

INTRODUÇÃO

As décadas de 40 e 50 assinalam, na América, o momento da transição do perfil de morbidade das doenças infecciosas e parasitárias para problemas crônicos e degenerativos. Na epidemiologia, essa transição se fez acompanhar de uma intensificação no desenvolvimento dos aspectos metodológicos, consolidando os chamados estudos analíticos, principalmente os estudos de coorte e caso-controle, como os mais apropriados para a investigação dos fatores de risco presentes na causalidade dessas doenças24.

Os sucessos obtidos nas primeiras décadas deste século, no controle das doenças infecciosas e parasitárias, através dos programas de imunização em massa, do controle de vetores e do saneamento ambiental pareciam indicar que o conhecimento disponível era suficiente para o manejo das doenças transmissíveis. A metodologia de inquérito epidemiológico e as técnicas da epidemiologia descritiva utilizadas na caracterização desses problemas, no âmbito populacional, pareciam não necessitar de maiores refinamentos.

A campanha de erradicação da varíola, desenhada com base na experiência adquirida durante a década de 50 no programa de erradicação da malária, auxiliou a incorporação das técnicas de vigilância epidemiológica aos programas de controle de doenças transmissíveis em todo o mundo. A Agência Norte-Americana, criada durante a campanha de erradicação da malária no Sul dos Estados Unidos, foi transformada em Centro de Controle de Doenças e se encarregou de implantar o sistema de vigilância epidemiológica no País15.

Na medida em que as doenças transmissíveis, sujeitas à vigilância, vão se tornando mais raras, a importância política desses órgãos destinados ao controle também vai diminuindo. Assim, na década de 80, sob o impacto de administrações republicanas nos Estados Unidos e no contexto da crise fiscal dos governos ocidentais, o corte das verbas destinadas à saúde pública promove um progressivo desmantelamento dessas estruturas.

Ao mesmo tempo, na epidemiologia, o interesse dos investigadores desloca-se, cada vez mais, para as doenças crônicas, desaparecendo progressivamente, dos livros-textos e publicações da área, a referência à epidemiologia descritiva.

Durante o período que vai do início dos anos 70 ao início dos 90 o mundo passa por uma série de transformações, extremamente rápidas, principalmente nas regiões não desenvolvidas da América, Ásia e África, caracterizadas por intenso processo de urbanização que resulta no aparecimento de grandes centros urbanos com mais de um milhão de habitantes em áreas onde anteriormente não havia tais adensamentos populacionais; por fluxos migratórios decorrentes desse mesmo processo ou associados a guerras civis e perseguições políticas; por incorporação desordenada de tecnologias, que muitas vezes desestruturam formas tradicionais de enfrentamento dos problemas, sem que haja o correspondente desenvolvimento social para sustentá-las; por inúmeras oportunidades de comunicação, comércio e interações entre países de áreas relativamente isoladas7, 11.

Krause22 inicia seu artigo sobre as novas e velhas epidemias afirmando que "Uma nova epidemia pode estar sendo incubada agora mesmo em uma mega cidade, sem saneamento e superpovoada, do mundo não desenvolvido ou nas florestas remotas da África, América do Sul ou Ásia- regiões esparssamente povoadas que recentemente têm sido alteradas pela civilização moderna".

Todas essas condições de transformação resultam em modificações no perfil de morbidade acarretando o aparecimento de novas doenças e agravos à saúde e a alteração no comportamento epidemiológico de antigas doenças, tornando mais complexo o quadro sanitário e, até certo ponto, derrubando a idéia de uma transição epidemiológica pensada como simples sucessão de fases decorrentes, fundamentalmente, do processo de envelhecimento populacional.

O presente trabalho tem por objetivo recolocar a importância da epidemiologia descritiva como ferramenta de conhecimento epidemiológico, face à crescente desvalorização que a mesma vem sofrendo quando cotejada com as técnicas da chamada epidemiologia analítica. As investigações, nas quais a caracterização da distribuição dos casos, segundo as categorias de tempo, espaço e pessoas foram determinantes para o esclarecimento de doenças emergentes e re-emergentes, exemplificam a importância que a abordagem da distribuição das doenças deve ter no pensamento epidemiológico.

Epidemiologia Descritiva

Segundo Samaja37, o principal pressuposto de toda investigação científica é que o objeto de estudo seja inteligível. Este a priori de inteligibilidade contém, pelo menos, dois momentos básicos: a descrição do objeto que visa identificar os componentes e caracterizá-los, e a possibilidade de reelaboração conforme um padrão de assimilação compatível com a razão humana.

Para poder descrever de maneira científica a realidade é preciso explicitar de que modo é feita a sua fragmentação, segundo que categorias. Um enunciado descritivo tem duas finalidades: serve para individualizar um elemento ou componente do objeto e para atribuir-lhe certa propriedade. As proposições descritivas têm como valores conceitos classificatórios, conceitos comparativos, conceitos métricos e outros37.

Na epidemiologia um passo essencial no estudo de uma doença é "descrever precisamente sua ocorrência na população"14. Essa descrição tem como categorias básicas a distribuição temporal, a distribuição espacial e a distribuição segundo atributos pessoais visando a identificar o padrão geral de ocorrência e os grupos sob risco. A descrição metódica do comportamento da doença permite a elaboração de hipóteses "causais" com base na ocorrência usual de doenças conhecidas e possibilita o uso da analogia tanto no estudo das doenças novas quanto na explicação de doenças anteriormente conhecidas.

Segundo Lilienfeld23 "o epidemiologista está primariamente interessado na ocorrência da doença por tempo, lugar e pessoas. Ele tenta determinar se houve aumento ou decréscimo da doença ao longo dos anos; se uma área geográfica tem freqüência da doença mais alta do que outras e se as características das pessoas com a doença ou condição sob estudo distinguem-se daquelas sem ela".

Com o aprimoramento da metodologia dos estudos observacionais, progressivamente, a epidemiologia descritiva foi perdendo lugar nos principais veículos de divulgação científica da área, embora permanecesse dominante em revistas de doenças infecciosas. Os manuais de epidemiologia apresentam um conjunto de técnicas de análises destinadas à mensuração de riscos, estudos de associação entre fatores de risco e risco de doenças e formas de controlar confundimento e interação. A mesma atenção não é dada às técnicas de análise de tendências temporais e nem às técnicas de análise espaciais, úteis para os estudos descritivos e de agregados ecológicos.

As abordagens descritivas muitas vezes são tratadas como "menos científicas" e com menor grau de sofisticação analítica. Entretanto, as questões teóricas, conceituais e metodológicas, implicadas nesses estudos são tão ou mais desafiadoras do que aquelas relativas aos demais tipos de desenhos de investigação utilizados em estudos epidemiológicos.

Doenças Emergentes e Reemergentes

O CDC5 (Center for Diseases Control) define doenças emergentes como aquelas doenças infecciosas cuja incidência aumentou nas duas últimas décadas ou tendem a aumentar no futuro. No sentido de especificar melhor esta definição, um tanto vaga, são mencionadas diferentes circunstâncias que podem caracterizar a emergência de novos problemas de saúde.

A primeira dessas circunstâncias corresponde ao surgimento ou identificação de novos agentes etiológicos, anteriormente desconhecidos, como por exemplo, o vírus da (HIV) Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Outra situação também enquadrada nessa definição é a relativa ao aumento da incidência e disseminação de doenças que anteriormente estavam controladas como a cólera. Outras doenças têm sua incidência aumentada em decorrência do crescimento dos grupos expostos, tais como, imunossuprimidos, idosos, pacientes institucionalizados, moradores de rua, migrantes, crianças em berçários e escolas maternais, pobres em geral. Agentes microbianos resistentes aos desinfetantes como cloro e aos medicamentos representam outro conjunto de doenças que podem ser definidas como problemas emergentes. Completam a relação as doenças produzidas pela exposição a animais, tais como, a infeção por hantanvírus e a doença de Lyme; a disseminação das doenças tropicais como a malária, o dengue, a tripanossomíase americana; e, aquelas doenças cujo aumento de incidência decorre diretamente de uma vigilância epidemiológica ineficiente ou insuficiente5, 7.

Os novos agentes etiológicos têm, provavelmente, sua origem nas amplas transformações sociais observadas nos últimos 25 anos, acompanhadas de alterações importantes em vários ecossistemas. As transformações na dinâmica populacional decorrentes do processo de envelhecimento, do crescimento populacional em determinadas condições, da mobilidade e da diferenciação e exclusão de determinados grupos contribuem para o surgimento de novos agentes etiológicos com características insuspeitas de infectividade, patogenicidade e virulência33.

Os novos comportamentos epidemiológicos observados para doenças antigas, por sua vez, indicam alterações importantes na resistência, infectividade e patogenicidade de vários agentes etiológicos, relacionadas a habilidade e versatilidade genética de gens carregados por elementos extracromossômicos, tais como plasmídeos e fagos, transferidos de organismo para organismo por conjugação, transdução ou transformação, acelerando assim as mutações22. Outro aspecto a ser considerado na mudança das características epidemiológicas de várias doenças diz respeito a novas situações de vida de segmentos populacionais submetidos a inúmeros riscos, tais como os moradores de rua, os migrantes e refugiados das guerras civis, os usuários de drogas e grupos marginalizados dos grandes centros urbanos e outros.

Alguns Exemplos de Doenças Emergentes e o Papel da Epidemiologia Descritiva em sua Elucidação

Ainda no início da década de 60, a ocorrência de um surto de febre hemorrágica, no interior da Bolívia, chamou a atenção dos pesquisadores do CDC levando à identificação de um novo agente etiológico: o vírus Machupo. As investigações conduzidas naquela época permitiram a identificação do agente, mas não foram capazes de esclarecer totalmente o mecanismo de transmissão. Aparentemente havia indícios de transmissão direta de pessoa a pessoa10, 15.

Em 1967, um novo surto provocado por outro vírus causador de doença hemorrágica é descrito em Marburg, na Alemanha. A investigação epidemiológica demonstrou que as fontes de infeção desse novo agente eram macacos importados de Uganda para propósitos científicos. A transmissão ocorreu por contato dos casos primários com sangue, tecidos e secreções de animais infectados, e os casos secundários foram observados em profissionais de saúde que trataram dos casos primários. Em 1975, novo surto da doença é identificado em Johanesburg15, 16.

No segundo semestre de 1975 nova epidemia de doença hemorrágica aparece no Zaire e em seguida no Sudão. A investigação epidemiológica conduzida por pesquisadores da OMS (Organização Mundial de Saúde), e do CDC concluiu tratar-se de uma nova doença produzida por um vírus que recebeu a denominação de Ebola, nome do rio existente na região onde a doença apareceu. Duas outras epidemias ocorreram em 1986 e 1995 no continente africano. A investigação realizada permitiu a caracterização da doença, do agente etiológico, do mecanismo de transmissão, da identificação dos grupos de risco, mas, até o momento, não foi possível esclarecer qual é o reservatório do vírus na natureza15,41.

Entre julho de 1979 e abril de 1981 foram registrados 11 casos graves de pneumonia por Pneumocystis carinii em jovens residentes em New York, sem referência a quadros anteriores de imunodeficiência. Esses indivíduos eram usuários de drogas injetáveis e/ou homossexuais27. Entre novembro de 1980 e novembro de 1981 foram comunicados 5 casos de pneumonia por P. carinii em indivíduos homossexuais, não relacionados entre si, residentes em São Francisco (EUA)12. A publicação desses casos pelo CDC, em dezembro de 1981, chama a atenção para a possibilidade de que uma nova doença estivesse atingindo a comunidade de homossexuais masculinos, e dá início a investigação que levará à caracterização da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.

Muito embora o vírus só tenha sido identificado em 1984, as investigações realizadas a partir do início dos anos 80 levam ao esclarecimento dos mecanismos de transmissão mais importantes. Em abril de 1983 é publicado um estudo sobre o acúmulo de casos nos bairros com maior população "gay" em São Francisco (EUA), reforçando a caracterização inicial de transmissão entre homossexuais masculinos31. No ano seguinte é publicado um estudo de "clusters" reforçando a idéia de uma doença transmissível2; e outro contendo as primeiras evidências de transmissão por transfusão sangüínea19. Após a identificação do HIV e o desenvolvimento dos primeiros testes sorológicos, são publicados estudos sobre a disseminação da infeção em populações africanas, para as quais o perfil epidemiológico mostra-se diferente, evidenciando a importância da transmissão heterossexual e por uso de agulhas contaminadas25.

Além das doenças cujos agentes etiológicos são desconhecidos, as doenças emergentes incluem velhas doenças que apresentam novos comportamentos epidemiológicos. Dentre elas algumas adquirem especial relevância nos últimos 30 anos, como as epidemias de dengue hemorrágico em países asiáticos e na América Central, motivando inúmeras investigações visando ao esclarecimento dos mecanismos fisiopatológicos do quadro hemorrágico e, também, investigações epidemiológicas que possam esclarecer as circunstâncias nas quais tais epidemias surgem18. Outra doença relativamente conhecida que vem merecendo atenção é a infeção pelo vírus da hepatite B, principalmente sua ocorrência entre homossexuais masculinos, usuários de drogas endovenosas e profissionais de saúde, com especial referência aos cirurgiões dentistas17, 20.

A questão da resistência a drogas antimicrobianas constitui-se em um dos motivos mais importantes de alteração do comportamento epidemiológico de doenças, acarretando aumento de prevalência e letalidade para uma série de problemas que anteriormente eram considerados sob controle. Desde a constatação da existência de Staphilococcus aureus resistentes, na década de 50, vários surtos de infeções hospitalares e em comunidade, têm sido associados a bactérias, vírus e parasitas resistentes9.

A resistência aos antimicrobianos está associada à propensão e à troca de material genético entre cepas, à resistência intrínseca de parte das cepas, à capacidade de sobrevivência em ambientes diversos, à ocupação de novos nichos ecológicos, ao aumento da infectividade e a maior capacidade de colonização por parte de certos agentes. Ao lado dessas questões relacionadas com os próprios agentes há aquelas relativas ao "ambiente" e que incluem a presença de fontes de infeção de cepas resistentes, uso prolongado de antimicrobianos, uso de subdosagens de antimicrobianos, introdução constante de novas drogas. Cabe destacar o comportamento dos hospedeiros e suas características de vida que favorecem infeções e dificultam o tratamento adequado tais como as aglomerações intradomiciliares, os moradores de rua, o envelhecimento populacional, o uso de drogas injetáveis, a desnutrição, a destruição da infraestrutura de saúde pública9.

Um dos problemas emergentes que mais tem preocupado as autoridades sanitárias é o aumento da incidência da tuberculose, em diferentes grupos populacionais socialmente excluídos como os usuários de drogas injetáveis e os moradores de rua, mas também nos profissionais de saúde expostos aos contágios36. A cada ano há cerca de 8 milhões de casos novos e 2,9 milhões de óbitos no mundo. Estima-se que 1/3 da população mundial esteja infectada4. O problema de multirresistência às drogas veio agravar ainda mais o aumento de incidência que já vinha ocorrendo, acometendo principalmente pacientes com AIDS12. Cerca de 1/3 dos casos de tuberculose em New York são produzidos por cepas multirresistentes e a letalidade entre eles varia de 40 a 60% igualando-se àquela observada entre casos não tratados. Estudos realizados pelo CDC, entre 1982 e 1986, identificaram 9% de cepas resistentes em pacientes virgens de tratamento e 23% em pacientes previamente tratados4.

As novas técnicas de biologia molecular, aplicadas em investigações de casos e comunicantes de tuberculose, permitem a identificação de muitos clusters que as técnicas anteriores não eram capazes de identificar. Em um estudo de 688 casos notificados em São Francisco (EUA) foram encontrados 326 padrões distintos ("finger print") dos quais 44 foram identificados em mais de um caso. A investigação desses clusters permitiu definir como fatores de risco ser homem, jovem, negro, residente em um bairro com altas taxas de pobreza, em tratamento para AIDS. Os casos índices geralmente são pacientes que abandonaram o tratamento e a exposição ocorreu em enfermarias ou clínicas de tratamento para aidéticos38.

Em todos esses exemplos, a abordagem da epidemiologia descritiva foi fundamental para identificar as tendências ascendentes nas taxas de incidência, a formação de "clusters" espaciais ou relacionais, os grupos mais afetados, os mecanismos de transmissão envolvidos e outros. A epidemiologia descritiva cumpre mais do que a etapa exploratória da pesquisa. As distribuições temporais, espaciais e segundo atributos pessoais permitem caracterizar o comportamento da doença evidenciando suas alterações ao longo do tempo e indicando novas estratégias de controle.

Desafios Face às Doenças Emergentes e Reemergentes

A presença das doenças emergentes e reemergentes coloca série de desafios para a saúde pública em geral, e para a epidemiologia, em particular. O primeiro deles diz respeito às normas de biossegurança. Há um risco de que agentes etiológicos novos e com alta letalidade possam vir a ser utilizados como armas biológicas em ataques terroristas, o que vem mobilizando as forças de segurança dos países desenvolvidos. Mas, mais importante do que esse perigo, é a possibilidade bastante real do tráfico global de viroses em poucas horas, de um continente a outro através das viagens aéreas26.

Além das questões já mencionadas, a biossegurança tem a ver também com controle da importação de animais para experimentação, principalmente primatas, que podem ser reservatórios ou fontes de infeção de agentes novos. As condições de transporte, acomodação e manutenção desses animais devem ser objeto de vigilância sanitária. Do mesmo modo, o manejo de suspeitos clínicos em hospitais necessita de regras que protejam os profissionais de saúde e o restante da clientela. Resta ainda as condições e regras de segurança em laboratórios responsáveis pela identificação dos agentes etiológicos, visando não apenas à segurança dos profissionais e técnicos, mas também à proteção da comunidade.

Outro desafio importante é o aprimoramento dos sistemas de vigilância epidemiológica tornando-os aptos a detectar precocemente o aparecimento de algo inusitado ou as modificações no comportamento habitual de determinadas doenças. Na avaliação da "Federation of American Scientists"11 a capacidade existente para vigilância epidemiológica nos EUA é fragmentada, descoordenada e organizada apenas com vistas às doenças conhecidas. Entretanto, o CDC esteve envolvido na maioria, senão em todas, as investigações de novas doenças nos últimos 30 anos, em todo o mundo15.

O fortalecimento dos programas de vigilância epidemiológica implica investimentos em infra-estrutura criando as condições necessárias para a atuação oportuna, adequada e na amplitude necessária; o estabelecimento de um sistema de informações e, principalmente, a capacitação técnica. Esta abrange pelo menos três componentes: capacitação clínica para identificação sindrômica que possibilite desencadear as investigações laboratoriais e epidemiológicas; capacitação laboratorial para diagnóstico de novos agentes etiológicos na vigência de surtos e incorporação de novas técnicas da biologia molecular que permitam a identificação mais refinada dos agentes etiológicos; e capacitação epidemiológica para realização de investigações de campo e monitoramento adequado do comportamento epidemiológico das doenças.

O terceiro desafio que se apresenta é a revalorização da abordagem da epidemiologia descritiva com o desenvolvimento de métodos e técnicas de análise mais apropriados. Há um conjunto de técnicas de análise de tendências temporais que podem ser úteis em estudos epidemiológicos e sua utilização mais freqüente certamente levará a novos desenvolvimentos8,21,28,32. Do mesmo modo, as técnicas de geoprocessamento e os modelos de análise para distribuições espaciais podem fornecer novas ferramentas para a descrição de doenças em população3,6,29,39. O refinamento conceitual das categorias utilizadas para a caracterização dos grupos mais afetados também poderão aumentar o poder explicativo dos estudos descritivos.

O interesse despertado pelas doenças emergentes pode ser o estímulo para que a falsa dicotomia entre estudos descritivos e analíticos se desfaça.

Muitos autores já mostraram a inadequação desses termos e, principalmente, o empobrecimento que uma postura restritiva face aos estudos descritivos, traz para o campo da pesquisa epidemiológica1,30,37.

Os cientistas americanos e os técnicos do CDC propõem a criação de um sistema mundial de vigilância epidemiológica de doenças infecciosas que articule diferentes centros de excelência capazes de: detectar, investigar e monitorar patógenos emergentes, as doenças causadas por eles e os fatores ou circunstâncias relacionados à emergência; integrar os conhecimentos clínicos, laboratoriais e epidemiológicos; tornar disponível a informação necessária e desenhar estratégias de controle e prevenção; capacitar os recursos humanos necessários para a execução dos programas de vigilância e para as investigações de campo5,7,11.

Além dessas atividades mais diretamente voltadas para a execução de um programa de controle, vale também destacar a necessidade de aprimoramento das técnicas e métodos da epidemiologia descritiva que é a ferramenta intelectual principal na investigação desses problemas de saúde. Por epidemiologia descritiva pretende-se designar a abordagem das características epidemiológicas da doença na coletividade, sem com essa denominação estar conotando a descrição dos fenômenos destituída da devida interpretação.

 

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* Apresentado ao IV "Concresso Argentino de Epidemiología y Atención de la Salud". Associación Medica Argentina. Buenos Aires, 1996.
Correspondência para/Correspondence to: Rita de Cássia Barradas Barata - Rua Dr. Cesário Motta Jr., 61 - 5º andar - 01221-020 São Paulo, SP - Brasil. E-mail: celagsc@uol.com.br
Edição subvencionada pela FAPESP (Processo 97/09815-2).
Recebido em 13.9.1996. Reapresentado em 24.4.1997. Aprovado em 21.5.1997.