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Psicologia USP - The body feeling of strangeness and the diagnosis in adolescence

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Psicologia USP

Print version ISSN 0103-6564

Psicol. USP vol.11 n.1 São Paulo  2000

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642000000100008 

A INQUIETANTE ESTRANHEZA DO CORPO E O DIAGNÓSTICO NA ADOLESCENCIA

 

Sandra Dias1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 

O texto aborda a adolescência como um momento em que ocorrem transformações na relação do sujeito com o seu corpo e com os laços amorosos e sociais. A teoria freudiana destaca nesta fase duas grandes transformações: um novo fim sexual e a escolha do objeto sexual ao lado de uma nova excitação sexual da qual o sujeito não pode escapar. É o momento em que há o risco de pane e uma tendência a agir como solução para os impasses. Esse agir decorre da descoberta que o corpo se torna estranho. O corpo familiar da primeira infância é perdido e em seu lugar aparece um mal-estar em relação ao corpo. A impossibilidade do luto do corpo perdido ao lado da queda dos ideais e da separação dos pais conduz ao alto índice de tentativas de morte, muitas vezes mascaradas através de jogos e condutas arriscadas dos adolescentes. Perceber a forma como esse corpo se torna estranho e fonte de angústia, permite estabelecer índices diagnósticos. Esses poderão servir para se antecipar a uma ação que conduza ao pior, em virtude do desencadeamento de uma psicose muitas vezes confundida com a crise narcisista própria da idade.

Descritores: Adolescência. Desenvolvimento físico. Identidade sexual. Diagnóstico. Psicose. Complexo de Édipo. Agressividade.

 

 

A adolescência se coloca como um desafio para os pais, educadores e a sociedade em geral, porque aparece como o momento em que o sujeito pode se encontrar num estado-limite, em risco de pane, solicitando intervencões de natureza prática, ética e clínica. Enquanto a psicanálise enfatiza a posição subjetiva na adolescência, a psicologia a caracteriza como um momento de crise, caracterizado pela rebelião contra as gerações anteriores e contra os valores tradicionais.

Rassial (1997, p. 38) situa a pane no âmbito dos pensamentos, dos investimentos e na diferenciação entre o discurso e o agir, o objetivo e o subjetivo, o pequeno outro e o grande Outro, entre o passado, o presente e o futuro, o familiar e o social. Mas o mais fundamental em relação a esse momento de crise é que é o momento na existência em que se verifica a tendência a agir como solução para a pane / crise. Essa tendência implica uma forma de agir que, embora o senso comum conote como um agir sem pensar, é na verdade um pensamento-ação que muitas vezes conduz ao pior. Essa forma de agir decorre da descoberta de que o corpo se torna um estranho, um estrangeiro que incomoda (Alberti, 1996). O corpo familiar da primeira infância é perdido e em seu lugar aparece um mal-estar em relação ao corpo - um corpo desconhecido, suspeito, fonte de inquietude e, na medida em que remete à sexualidade, interpela e questiona o sujeito (Tubert, 1999, p. 59). Os impasses em relação a esse novo corpo ainda não familiar, ao lado da queda dos ideais e da separação dos pais conduz aos altos índices de tentativas morte nessa fase da vida, freqüentemente mascaradas através de ritos, de jogos grupais e condutas ousadas (Víctora, 1997, p. 163). Portanto, situar a crise da adolescência precisando os mecanismos que ocorrem permite estabelecer índices diagnósticos a partir dos quais é possível se adiantar a uma catástrofe.

Freud (1905/1972, p. 213) utiliza a palavra puberdade, não adolescência, para o momento "onde operam-se mudanças destinadas a dar à vida sexual infantil sua forma final normal," mudanças decorrentes do crescimento manifesto dos orgãos genitais externos. Com o período da puberdade ele marca um período de transformações que se inicia com as mudanças físicas e se estende até a eleição do objeto sexual e a realização do ato sexual. O uso da palavra puberdade, em detrimento de adolescência, é a marca da inserção do pensamento freudiano na cultura de sua época pois denota a maturação fisiológica como limite à infância, e não a constatação clínica das mudanças na identidade sexual relatada nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

Nesse texto:

... a puberdade é caracterizada como a fase em que as atividades derivadas de pulsões e zonas erógenas distintas, que independente umas das outras buscavam prazer por si mesmas, se subordinam ao primado genital, isto é, a fase em que se estabelece a unificação das pulsões sob um novo fim sexual a primazia do genital com a conseqüente diferenciação entre sexos e a eleição do objeto sexual. (Freud, 1905/1972, p. 213).

Ao relatar as metamorfoses da puberdade, Freud destaca não só o novo fim sexual e o reencontro com o objeto, como também o aparecimento de uma nova excitação sexual. Essa nova excitação deriva de três fontes: mas a mais importante é a excitação sexual endógena da qual o sujeito não consegue fugir, e que provoca o mal-estar em relação ao corpo.

Ao lado da elevação da libido, do novo objetivo sexual e do processo de escolha de um objeto, o jovem também afrouxa os laços com a família em decorrência da luta contra a barreira do incesto (Freud, 1905/1972, p. 232). Esse é o momento onde se conjugam o desejo sexual e a possibilidade do ato sexual, é o encontro da verdade que situa os limites da onipotência infantil. "O sujeito desperta de suas fantasias de imortalidade para se deparar com o mal estar que o acorda do sonho," permitindo emergir o que fora preservado no sonho – o desejo sexual (Shermann, 1996, p. 113). Esse encontro como o desejo, se bem sucedido, permitirá a apropriação de um novo corpo – o corpo sexuado, afetando não só a relação com o Outro parental, como também a relação com o outro semelhante. Essa passagem onde o corpo infantil inicialmente preso à problemática de ser o falo da mãe passa para o estatuto de corpo sexuado, oriunda do acesso à uma identificação sexual secundária e a emergência do sujeito desejante, é o que se conhece como saída ou resolução do Édipo (Delaroche, 1996).

Freud (1905/1972, p. 214) caracteriza a puberdade como um período crítico em que se devem dar novas combinações e ajustes que levam a complicados mecanismos, cuja não realização implica em distúrbios patológicos. Isto quer dizer que a crise se refere ao fato de que uma série de operações fundadoras serão recolocadas, exigindo um trabalho psíquico, o qual se não for realizado conduz ao que se conhece como "patologias da adolescência." No plano da subjetividade, a puberdade se constitui um tempo de acabamento da estrutura, em que o remanejamento do sexual em relação ao mito edípico, afeta a economia do desejo e gozo, produzindo novas produções sintomáticas e possibilitando novos laços sociais. Essa temporalidade em que se produzem esses efeitos, momento na existência onde o sujeito ultrapassa o período da infância sem contudo aceder à posição na sociedade de sujeito do direito, isto é, passa pelas vicissitudes do complexo de Édipo sem o correspondente reconhecimento social e jurídico de sua posição como sujeito sexuado e cidadão - o adulto, é o que a sociedade moderna chama de adolescência.

A adolescência sendo o período em que se verificam mudanças na vida psíquica, mudanças na relação com o corpo próprio e com o semelhante; onde se estabelece novas escolhas e laços, pode ocorrer em outra temporalidade que a da puberdade, o que é comprovado pela dificuldade de estabelecer os seus limites.

A adolescência é também o momento da existência em que o sujeito experimenta pela primeira vez um sentimento de estranheza em relação ao seu corpo e as dificuldades e impossibilidades serão resolvidas por atos, atos que permitam a saída dos impasses e da pane. O mal-estar com o corpo, o sentimento de estranheza, decorrente da perda da imagem narcísica infantil que revestia o corpo, ao lado da onipotência infantil ainda não superada, levarão esses jovens a escolher atos sem considerar a possibilidade de danos no corpo próprio e no do outro.

Lacan (1985) retoma a tradição psiquiátrica do diagnóstico para enfatizar que qualquer ato do sujeito deve ser relacionado à sua posição subjetiva. Retoma a noção de defesa em Freud e a articula a diferentes localizações subjetivas. Uma tentativa de suicídio é diferente se a defesa que opera é o recalque (Verdrängung) ou a rejeição (Verwerfung), isto é, se trata de uma neurose ou psicose. Com esses indicadores pode-se diferenciar a crise da adolescência do desencadeamento da psicose, tão comum e catastrófico nessa fase. Isto porque o que leva o jovem neurótico às ações que colocam sua vida em risco não é angústia frente ao corpo, elemento decisivo na psicose, mas sim a impossibilidade de separação dos pais ao lado da ferocidade do super-eu.

Na neurose, o recalcamento indica uma operação simbólica que permite a elaboração do luto pelo corpo infantil, a estranheza inicial do corpo, logo é substituída pela angústia frente ao olhar dos outros, olhar sobre esse novo corpo. Nesse caso a angústia é mais de perda de amor, o medo de que a nova imagem possa não agradar, daí a crise ser uma crise de natureza narcísica. A fase do espelho permite esclarecer essa crise narcisista, crise que se coloca em relação à imagem do corpo e à perda do amor.

Lacan mostra que a criança se constitui na dependência do amor materno, o primeiro Outro inesquecível. Dessa forma a criança é moldada no e pelo desejo desse Outro. O que sustenta a relação da criança com esse corpo primeiro é o olhar e a voz do Outro. O olhar e a voz são os elementos que permitem a apropriação da imagem e a regulação da distância da imagem do corpo real - o corpo enquanto carne. A criança ante sua imagem no espelho reage com júbilo buscando com seu olhar a quem a sustenta (Lacan, 1949/1998b). Essa função de reconhecimento implica numa presença: o Olhar do Outro, garantia do desejo. Ser olhado é ser amado, por isso na neurose a forma como o outro vê o sujeito é tão importante. É que o olhar traz no simbólico a marca do Ideal do eu que se "forma com o recalque de um desejo do sujeito, pela adoção da imagem mesma do Outro que desse detém o gozo, juntamente com o direito e os meios" (Lacan, 1958/1998c, p. 763).

Na fase do espelho a imagem fragmentada do corpo é recoberta pela idéia de totalidade antecipada decorrente de uma identificação com a imagem do outro. Nesta constituição, onde o eu é um outro, há dois lugares para um só, o eu se constituindo como desconhecimento. Este modo de identificação narcisista, onde se nega a imagem do outro para passar a ser essa imagem, terá a agressividade como tendência correlativa deste modo de identificação narcisista (Lacan, 1948/1998a, p. 112). As identificações edípicas posteriores permitirão ao sujeito transcender esta agressividade constitutiva do primeiro momento da constituição subjetiva. Assim quando o outro vem a se constituir um rival para o jovem, este se sente ameaçado em sua posição subjetiva, a agressividade pode aparecer mas com limites. Isto porque a relação do sujeito com a imagem é sustentada pelo simbólico do desejo do Outro, e a ferocidade do super eu é inibida pelo ideal do eu, regulação que impediria o sujeito de cair na lei do tudo ou nada: ou eu ou o outro, ou me destruo pelo dano no corpo próprio ou bem passo à destruição do outro (Dias, 1999).

Para aceder a essa constituição, a criança tem que ter metaforizado para sua mãe o falo, para que ela possa introduzí-la no engano básico de sua consistência imaginária como completa. Isto é, a criança consiste nessa ilusão preliminar de ser essa imagem antecipada, de ser esse todo que reveste o corpo despedaçado porque ela tem uma existência simbólica para a mãe. É o desejo da mãe que dá ao filho o lugar de falo imaginário, e essa imagem do filho como falo é a tela com a qual a mãe engana seu desejo e o filho também. Esta imagem não denota tanto o ver-se no espelho como o fato de ver essa imagem sustentada no olhar do Outro. Este olhar é um olhar de amor porque representa a disposição da mãe de nomear o gozo jubiloso do filho. Esse olhar permite, enfim, a constituição de um eu, que abandonando as prerrogativas auto-eróticas, logrou alcançar uma unidade na imagem, sustentada pelo traço unário (o significante do Ideal do Eu) que é a instância que autoriza a imagem como amável.

O crescimento do corpo e os sinais exteriores da maturação fisiológica (a mudança do timbre de voz, as secreções genitais, o aparecimento dos seios e da barba) - a emergência de um real pulsional - vai colocar em jogo não só o lugar do adulto como o lugar do próprio sujeito. Na comparação com o adulto-pai, destituído agora do lugar ideal que ocupava, ao sujeito não lhe cabem ainda nem esse lugar nem as roupagens infantis: a do falo e as imagens que cobrem o real do corpo. Em relação ao corpo, a morte da imagem sustentada no narcisismo parental através do "His majesty, the baby" é acompanhada pela perda da voz e do olhar que a fundavam - o olhar e voz da mãe - havendo aí necessidade de uma passagem de uma imagem do corpo a outra. O adolescente se confrontará com uma perda do ser - ser o falo, deverá passar do ser para o ter. Esta passagem provoca um mal-estar na sua relação com o outro semelhante, estabelecida na base de um novo olhar e voz, e em relação ao próprio corpo, onde se opera um deslocamento do campo pulsional que viabilizará uma posição sexuada.

O espelho mostra o devir humano em que a criança deve se alojar no narcisismo dos pais para ter garantia de existência e aponta também para a possibilidade da estrutura: a criança-falo deve se alojar no desejo em relação a uma falta estruturante, o que marca a castração materna e o lugar da criança como sendo o objeto da falta no Outro - o falo imaginário. A lógica dos três tempos do Édipo mostra essa passagem em que a criança entra como objeto do Outro para sair dele como sujeito dividido pela palavra. Ao entrar no Édipo, pela metaforização do desejo materno, esta interdita o gozo do Outro e abre uma brecha. Essa hiância, em que se dá a primeira inscrição da significação fálica, permite que a criança se localize em relação a uma perda de gozo e à localização de um saber em falta.

No seminário sobre as psicoses, Lacan (1985) situa a noção de defesa no centro da questão do diagnóstico e a associa à função paterna. Considerando o espelho como o momento fundante em que o sujeito é capturado pelo desejo da mãe - o Outro primordial -, o significante paterno, aquele que nomeia o desejo da mãe que viabilizará a saída da criança do impasse edípico. Essa substituição do representante-significante do desejo materno pelo representante-significante paterno é a metáfora paterna que barra o incesto ao estabelecer a dupla proibição: não dormir com a mãe e não reintegrar o próprio produto. Lacan distingue dessa forma os significantes que determinam a criança antes mesmo dela nascer - o Outro do código, dos significantes que permitem situar a barreira contra o incesto - o Outro da lei. O pai sendo responsável pela separação da criança da mãe, responde na estrutura pelo Outro enquanto Lei e permite à criança sair do espelho outorgando-lhe uma identidade sexual.

Rassial (1997, p. 40) coloca como primeira operação adolescente: aceder a uma relação genitalizada com o Outro sexo, para além do fálico que domina a infância, ao lado de duas outras operações igualmente importantes: a modificação do valor e da função do sintoma (do sintoma que era no desejo dos pais para a apropriação de um sintoma - o sintoma sexual) e o teste da eficácia da lei paterna enquanto significante que barra o incesto. A metáfora paterna perde seu valor na adolescência devido à desqualificação do pai e da mãe em encarnar imaginariamente o Outro, e também porque a promessa de felicidade se mostra enganadora: a promessa edípica de que se renunciasse ao gozo, mais tarde teria direitos. A criança vive ouvindo dizer que quando crescer ela terá isso, ou será igual ao papai/mamãe, enfim que, quando for adulto, poderá obter o que almeja, ser feliz, enfim gozar. Contudo essa promessa é enganosa porque a completude não existe, uma vez que o objeto é perdido, todo encontro sendo reencontro aponta uma falta. Esse momento da verdade é o momento do profundo mal-estar, se descortina para além do imaginário, o real do sexo. Momento da queda dos pais do lugar de sustentação imaginária desse Outro, restando só ao significante paterno a possibilidade de fazer frente ao gozo invasor.

Na adolescência, o sujeito assim constituído, quando essa imagem narcisista não serve mais de revestimento para o corpo, ao se deparar com a emergência do real pulsional que afeta o corpo, passará por uma crise narcisista onde o central é a enunciação: como sustentar um desejo (Tubert, 1999). Nesses casos é a forma como o Outro parental se posiciona nessa situação crítica que precipita as condutas impulsivas e os atos dos jovens.

Se na relação com o Outro parental predominam as injunções: Faça isso, faça desse modo; Seja assim, não seja desse modo; é reforçada a ferocidade do superego. Isto porque a criança se separa dos pais identificando-se ao super eu parental; o super eu é, na teoria freudiana, a estrutura herdeira do complexo de Édipo. Sendo o super eu uma instância imperativa, ocorre um curto-circuito já que os pais deixam de encarnar imagináriamente os ideais. As conseqüências disso podem aparecer sob a forma de uma inibição, onde o adolescente rejeita qualquer atividade ou relação que possa aumentar a angústia (Víctora, 1997), ocasionando uma depressão onde a saída mais freqüente para o impasse é a morte, pois o aniquilamento do corpo se coloca como a única possibilidade de separação do Outro parental, uma vez que nenhum apelo é escutado.

A outra possibilidade diz respeito a uma situação onde o jovem fica completamente só nesse momento de pane, sem nenhum arrimo por parte do par parental, que ao verem no corpo do filho a imagem de um adulto, se licenciam de suas funções simbólicas, muitas vezes, invertendo até a relação, colocando-se eles próprios no palco da vida como personagens em crise. A omissão e o mutismo frente à angústia do adolescente conduzem a uma situação onde a emergência do pulsional, ao afetar as formas do corpo e remanejar o imaginário correlato, torna o corpo um fardo para o seu portador, que não sabe muito bem o que acontece ali, nem dispõe de recurso para poder entender o que é essa estranheza em relação ao corpo (Hamad, 1999, p. 25). A ferida narcisista, o mal-estar em relação ao corpo, aparecerá numa dialética da aparência que se mostra no culto ao espelho - à imagem, tanto no cuidado excessivo com o corpo como no desmazelo, no culto à moda ou mesmo o seu desprezo, nos ritos de limpeza e na obsessão por esportes. A gravidez precoce também pode se apresentar como uma saída para o impasse do mal-estar em relação ao sexual.

Portanto, se o Outro, Outro simbólico e da Lei, não vier em auxílio do jovem, se houver o risco do desarrimo do Outro, isso porá em causa os valores do pai e da família e pode levar tanto à depressão como a exaltações maníacas, nas quais o sujeito retorna à nostalgia da liberdade ilusória infantil, onde era tudo e podia tudo. Essa vacuidade do Outro e essa nostalgia segundo Rassial (1997, p. 42) podem também estar por detrás de certas psicopatias e toxicomanias.

Já na psicose, a angústia apresenta-se fundamentalmente frente ao próprio corpo: a imagem não vindo proteger o sujeito na sua relação com o Outro, o olhar se torna invasão, despedaçamento. Quando a defesa se mostra insuficiente para conter a angústia frente ao corpo, o aniquilamento deste aparece como única forma de evasão para o sujeito (Alberti, 1999). Freqüentemente esses momentos são tomados como uma crise narcisista e não são valorizados até que uma lesão ou morte aconteça.

O desfalecimento da função paterna obstaculariza e impede que a criança logre sair do espelho com o sentimento de pertencer a um ou outro sexo, de ter acesso a uma identidade sexual. Se o sujeito entra mal no Édipo, fora da normalidade edípica, a impossibilidade de sair do espelho provoca, ao lado de impulsões e transgressões, atos que colocam em risco a integridade física e até mesmo suicídio, como forma de resolução do impasse. Impasse porque o corpo fica preso ao real do espelho esférico, num transitivismo entre o eu e o eu ideal, como falo da mãe, dialética do tudo ou nada, cuja saída se dá pelo despedaçamento. A inoperância da paternidade deixa o corpo do adolescente cativo do real, cujos efeitos catastróficos não se deixam ver, até que se produza uma lesão, uma mutilação ou mesmo a morte.

A tensão ou o aumento da libido, o real pulsional, afeta o sujeito e exige uma nova posição sexuada, que depende do luto feito em relação ao corpo - o corpo familiar da primeira infância, corpo do narcisismo parental. Na psicose esse luto não é levado a cabo, o corpo ganha o sinal de estranho, como um quisto, um fora que o invade, um objeto estranho. O estranhamento e a impossibilidade de fugir desse novo pulsional, desse corpo que coloca um "plus" energético e exige um trabalho, produzem uma desesperança e um sentimento de inadequação. Isto porque o impossível luto da imagem infantil perdida se coloca ao lado da impossibilidade de acesso a um ideal, da conquista do objeto sexual e de uma nova posição subjetiva. A desesperança, se não inibir totalmente o âmbito da conduta num mutismo paralisante, conduz à sua proliferação num movimento desenfreado, na tentativa de se fazer escutar através de um apelo, cuja urgência revela sua dimensão. Esses adolescentes em suas atividades mostram o desespero através das condutas de risco (sexo promíscuo, esportes perigosos, velocidade, adesão a drogas e a grupos que desafiam a lei). Nos seus diários e redações escolares, através de histórias totalmente idealizadas ou com conteúdos mórbidos, ao modo de uma crônica da morte anunciada, revelam o mal-estar onde a saída se dá através de um ato impulsivo que provoca dano no próprio corpo ou do outro.

Perceber as formas como esse estranhamento aparece, permite se antecipar aos movimentos da saída do impasse, sempre perigosos, porque desesperados e situados no campo do ser e na dialética do tudo ou nada, permite evitar o pior e auxiliar esses jovens antes que uma tentativa de suicídio ou um rito de passagem mutilante, possam ser o único apelo escutado. Fenomenológicamente, esses atos que podem tomar a forma de ritos, de impulsões e até manias se fazem anunciar por índices que nos permitem fazer um diagnóstico da posição subjetiva do adolescente e antecipar a atos que conduzem ao pior, tanto nos apelos como nos surtos esquizofrênicos freqüentes nessa fase da vida. Destaco a seguir alguns desses índices como a dismorfobia e a obsessão com a forma perfeita, as provas ou os ritos de iniciação que implicam em agressão ao próprio corpo, ausência de agressividade diante da intrusão do outro e agressividade desmedida ao outro.

O aparecimento das secreções (a polução e a menarca), que assinalam a mudança do corpo, promove o novo encontro do sujeito diante do real do sexo e a possibilidade de colocar em ato o desejo edípico, já que as condições físicas agora permitem ser o que se idealiza. Mas esse agir é impedido pelo recalque, que, se não for eficaz, deixa entrever um profundo mal-estar com seu corpo (Alberti, 1996, p. 166). Nessas condições onde o recalque não faz barreira, o corpo passa a ser objeto de angústia, já que a imagem que o sustentava e o protegia claudicou. O sujeito não sabe lidar com o frêmito que vem do corpo, não sabe se servir dele nem apaziguá-lo, isto porque a fantasia não vem em socorro do jovem adolescente tapando o buraco aberto pela hiância do objeto.

É a fantasia através da conjunção das duas correntes (a terna e a sensual) que permite ao sujeito se situar na partilha dos sexos e ir de encontro ao objeto e o fim sexual. No texto sobre a fantasia "Bate-se numa criança," Freud (1919/1976b, p. 241) diz que "... compele o homem, provavelmente sózinho entre todos animais, a iniciar duas vezes a sua vida sexual, primeiro, como todas as criaturas, na primitiva infância e depois, após uma longa interrupção, uma vez mais na puberdade ..." Para Freud, a puberdade traz consigo uma normalização da vida sexual do sujeito que se origina da estrutura edípica. Isto é, como a fantasia e o desejo se inserem no complexo de Édipo, é a sua elaboração, ou não, que viabilizará o tipo de resolução para o sexual. Se o recalque não se mostrar eficaz, o corpo e os atos trarão a marca do incesto.

O Édipo freudiano é triangular, mas Lacan nos mostra que um quarto termo é fundamental para situar o além da rivalidade do filho com o pai pela mãe, o elemento simbólico que opera a castração do filho ao interditar que ele goze da mãe e que esta goze dele. O quarto termo, o falo, como objeto do desejo materno (o desejo do Outro) no qual a criança se constitui no primeiro tempo edípico, pela intervenção do significante paterno passa do "ter sido objeto do desejo do Outro" para "o querer ter o falo." Essa dialética entre ser e ter, na qual a criança deixa de ser objeto do desejo materno para ser como o pai, abre não só o campo do Ideal do eu, como funda o sujeito desejante. A báscula que vai se dar nesse movimento responderá por uma agressividade narcísica quando o sujeito se vir ameaçado na sua posição subjetiva. Quando essa agressividade for ausente ou deixar de apresentar contornos limitados, tanto em relação ao próprio corpo como ao do semelhante, o fracasso do recalque em relação às pulsões sexuais, a inoperância da função paterna e a não constituição do corpo como corpo sexuado serão denunciados.

O que se quer dizer com o corpo tomado como real é que ele é considerado como uma coisa entre coisas, não tem estatuto de corpo simbólico, um corpo para mim, um corpo de prazer. O corpo não é simbolizado porque a perda primordial do objeto não foi simbolizada, restando ao corpo o lugar do objeto real: o estranho. Lacan ressitua as colocações freudianas a respeito de um estranho amor no auto-erotismo e um primitivo ódio anterior a este. Esse ódio e amor anteriores ao espelho, ao narcisismo, respondem pela indiferença com que um sujeito pode deixar destruir o seu próprio corpo sendo a ausência de agressividade um forte indício de psicose.

Freud designa o ódio como mais antigo que o amor porque assinala com o "eu odeio" o assassinato da coisa - Ding, como o primeiro objeto hostil, o estranho, o real que tem de ser excluído. Esse ódio primitivo não se coloca no campo da paixão, do narcisismo, é anterior ao espelho, é a forma de Freud situar a expulsão primordial, essa perda disso que se era como objeto. Eu odeio o objeto mau, estranho, hostil, que é lançado fora, eu o cuspo, corresponde na estrutura ao momento em que se constitui o primeiro fora, o fora para si. A ação -eu cuspo- essa expulsão do objeto mau: o objeto cuspido ocorre porque um pensamento sobre ele instaurou a sua dimensão simbólica. Esse pensamento designa a marca de um vazio, que permite um fora e um dentro para mim, o ódio sendo o equivalente da perda do objeto. Já o objeto dentro de mim é o objeto amado que corresponde ao que Freud (1925/1976a, p. 297) designa com afirmação primordial (Bejahung), e que Lacan situa como o sujeito alienado no espelho fora da lei, a dimensão do amor sem limites, da incorporação oral do pai anterior a toda relação de objeto.

É preciso que eu me desprenda desse primeiro fora para constituir-me como sujeito de uma falta, isto é, para que ocorra a perda do primeiro objeto-coisa, o objeto hostil, primeiro real que pela expulsão se torna indiferente. Se não houver expulsão, não há fora para mim, nem uma realidade para esse real hostil. É o julgamento de existência - um pensamento que pode decidir sobre a existência de um objeto - que permite ter um corpo imaginário e simbólico e, portanto, um corpo na realidade psíquica. O julgamento de existência implica o recalque originário que responde pela marca simbólica do corpo; que esvazia o gozo do corpo permitindo imaginarizá-lo num espaço fora, espaço da realidade psíquica, onde ele se situará no espaço demarcado pela fantasia. É a fantasia ao lado do significante paterno que modulará o grau de agressivididade, impedindo a ferocidade do super-eu; o corpo do outro, assim como o próprio, não poderá ser tomado como objeto de destruição. Desse modo, se a intrusão do outro, do rival, for acompanhada de uma indiferença ou de uma agressividade desmedida que coloca em risco a integridade do corpo, estamos diante de um índice diagnóstico da falência paterna, porque ali não houve um representante-representação do corpo. Esse corpo se constituiu ao modo do amor do auto-erotismo sem que tenha passado pelo ódio simbolizante, há uma inscrição sem perda, o que quer dizer que o objeto está inscrito em mim sem que eu saiba (Ariel, 1993, p. 92). O corpo aí é tomado como resto, como envelope ou como casca que pode cair, deixando antever a falha no revestimento narcísico do eu. É por isso que podemos assistir horrorizados a rituais que infligem intensa dor, jogos perigosos ou mesmo brigas em que os adolescentes se espancam como se seus corpos não fossem de carne e osso ou não existissem. Com o corpo aprisionado ao real, o jovem não reage ou detém a ação de destruição, não se percebe nenhuma compaixão ou sofrimento, seu corpo está como que dissolvido no mundo. A ausência de agressividade frente à intrusão do semelhante aponta para o corpo como real e para a psicose. Esses jovens podem até andar com bandos, estar no meio da turma, mas o único laço social de que são capazes é com as palavras. No texto O inconsciente, Freud (1915/1974) aponta que a transferência com a palavra é a única possível na psicose, em particular o esquizofrênico, que vivendo num mundo de objetos reais, trata a palavra como coisa, e todo o objeto como coisa, inclusive seu corpo. Assim nos desenhos, nos diários e nas redações escolares aparece esse mundo de relações entre objetos sem que se defina um sentido que não seja o do despedaçamento ou da morte colocada como aspiração ideal.

Em relação à obsessão com a forma perfeita, quando a defesa do recalque funciona, esse sintoma na adolescência refere-se mais à preocupação com a rejeição do semelhante da imagem e o medo da perda do amor do Outro. Acompanhada muitas vezes de excessos com regimes, esportes e moda, ela tem seus contornos limitados, pois não impede o jovem de realizar as tarefas próprias da idade, até mesmo quando aparecem os sintomas histéricos típicos da relação com a imagem, como bulimia e anorexia. Se contudo ela é acompanhada de atos ou rituais que infligem dor, humilhação ou risco de vida deve ser cuidadosamente considerada, pois o corpo pode estar sendo tratado como objeto real. Nesses casos ocorre uma dismorfobia, isto é uma vivência delirante do corpo em que o sujeito não se deterá em fazer com que o que foi rejeitado passe pelo equivalente perceptivo na realidade. Nesse sentido qualquer dor, lesão ou mutilação são utilizados para fazer acontecer na realidade, a fantasia, podendo até aparecer o pedido de um ato cirúrgico para a transformação do corpo. É totalmente diferente um adolescente dizer que o que detesta no nariz é que quando se olha no espelho vê o nariz da mãe daquele que, ao modo de Frankenstein, persegue um corpo ideal, com a crença de que aquele monte de atributos possa dar uma resposta ao seu ser ou ainda daquele que se sente perseguido pelo olhar do Outro, que denuncia o gozo que o ódio simbolizante não pode extrair do seu corpo e, para aplacar sua angústia, acredita que um ato cirúrgico possa ser a solução.

Portanto, para além dos índices que aparecem no campo da linguagem, é preciso prestar a atenção para o modo como o corpo do púbere se torna uma inquietante estranheza, junto com a angústia crescente que conduz aos atos que implicam riscos de morte, mesmo que mascarados. Esta é uma forma de se antecipar ao suicídio como único apelo possível nesse momento de pane na existência.

 

 

Dias, S. (2000). The Body Feeling of Strangeness and the Diagnosis in Adolescence. Psicologia USP, 11 (1), 119-135.

Abstract: The text approaches the adolescence to a moment when transformations happen on one person’s relation with its body and love and social ties. At this stage, Freudian theory brings out two big transformations: a new sexual goal and the choice of the sexual object beside a new sexual excitement from what the person cannot escape. That is the moment when, beside the risk of breakdown, there is a tendency to act as a solution for the impasses. This acting comes from the discovery that the body becomes a stranger. The first childhood's familiar body is lost and, in its place, it appears a discomfort towards the body. The impossibility of mourning over the lost body as well as the loss of the ideals and the separation from the parents takes it to a higher rate of death's tempt, many times covered by games and risking acts of the adolescents. Seeing the way in which this body becomes strange and source of anxiety, it allows establishing diagnostic signs. These signs may permit an anticipation of an action that takes to the worst on account of an outcome of a psychosis, many times confused with a common age narcissist crisis.

Index terms: Adolescence. Physical development. Sexual identify. Diagnosis. Psychosis. Oedipal complex. Agressiveness.

 

 

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