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Cadernos de Pesquisa - Duty and aspiration in brasilian children

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Cadernos de Pesquisa

Print version ISSN 0100-1574

Cad. Pesqui.  no.114 São Paulo Nov. 2001

http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742001000300007 

O dever e a aspiração em crianças brasileiras

 

Duty and aspiration in brasilian children

 

 

Heloisa Moulin de Alencar-MurtaI; Antonio Carlos OrtegaII; Alessandro Fazolo CezárioIII, *; José Carlos GomesIII, *; Rodrigo Bissoli MirandaIII, *

IDepartamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento/Universidade Federal do Espírito Santo e Instituto de Psicologia/Universidade de São Paulo; alencarhm@zaz.com.br
IIPrograma de Pós-Graduação em Psicologia/Universidade Federal do Espírito Santo e Instituto Superior de Estudos e Pesquisa Psicossociais/Fundação Getúlio Vargas; aortega@escelsa.com.br
IIIGraduados em Psicologia/Universidade Federal do Espírito Santo; fazolo@ufes.br, rbissoli@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho teve por objetivo investigar a caracterização do "erro educacional fundamental", com base na distinção entre a moralidade do dever e a da aspiração.Participaram como sujeitos 120 crianças da pré-escola e da 4ª série do ensino fundamental, de ambos os sexos e de diferentes classes sociais. Como instrumento de análise, foram utilizadas seis histórias: duas do domínio moral, duas do pró-social e duas do acadêmico. Foi feita análise das previsões das "reações dos professores" em relação aos personagens transgressores e cumpridores de uma norma e das "reações emocionais dos personagens transgressores". Os resultados evidenciam que houve diferença significativa nas respostas para "as reações dos professores", em relação à idade (domínio pró-social e acadêmico) e ao sexo (domínio acadêmico). Quanto à análise das "reações emocionais dos personagens transgressores", verificou-se que a idade influenciou expressivamente as respostas no domínio pró-social. Finalmente foram discutidas implicações teóricas e educacionais dos resultados.

ERRO EDUCACIONAL FUNDAMENTAL – PSICOGÊNESE – CRIANÇAS


ABSTRACT

This article intends to investigate the characterization of "the fundamental educational error" based on the moral distinction between duty and aspiration. One hundred and twenty children from pre-school and from the fourth grade of elementary school, from both sexes and different social classes participated. As an instrument of analysis, six histories, two from the moral, two from the pro-social and two from the academic domain were used. The analysis was done for predictions of "teachers' reactions" in relation to transgressors and fulfillers of the norms as well as for the "the emotional reactions of the transgressors". Results obtained showed a significant difference by age and sex in responses predicting "teachers' reaction" related to the prosocial and academic domains. In analyzing the "emotional reaction of the transgressors" it was possible to verify that age significantly influenced the answers in the prosocial domain. Finally the theoretical and educational implications of the results are discussed.


 

 

Este trabalho é o resultado de uma pesquisa sobre o desenvolvimento moral, a qual teve por objetivo investigar a proposta de Lourenço (1991, 1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a) relativa ao "erro educacional fundamental"– EEF–, que consiste na

Convicção da pessoa em geral e dos professores em particular, que pensam que a criança não faz mais do que o seu dever quando se comporta bem nada merecendo por isso, mas que deve ser repreendida e mesmo castigada, quando se comporta mal. (Lourenço,1993, p.60)

Segundo Lourenço (1992, 1992a, 1993), o EEF é a causa de uma assimetria encontrada entre o dever e a aspiração. A distinção entre a moralidade do dever e a moralidade da aspiração foi inicialmente estabelecida por Fuller (apud Lourenço 1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a; Sampaio, Lourenço, 1997). Na moralidade do dever, propõe-se mais castigo para quem transgride a norma do que elogio para quem a cumpre, ou seja, atribui-se pouco mérito ao cumprimento das normas e muita responsabilidade pela sua violação. Na moralidade da aspiração, ao contrário, propõe-se mais elogio a quem cumpre e obtém sucesso do que censura para quem transgride ou fracassa, ou seja, atribui-se mais mérito ao sucesso ou ao cumprimento das normas do que responsabilidade pelo fracasso ou pela violação das regras. Na moralidade de aspiração somos encorajados a ir além do dever e a atingir padrões de excelência.

De acordo com Hamilton et al. (1990), as proposições de Fuller referentes à moralidade do dever e à moralidade de aspiração podem ser consideradas, em termos piagetianos, como correspondentes às "fases" de desenvolvimento moral denominadas, respectivamente, heteronomia e autonomia1. Conforme a teoria piagetiana, não existe somente uma única moral imposta socialmente. Esse modelo aponta para a importância das relações individuais, que são divididas em duas categorias: as relações de coação e as relações de cooperação. Enquanto a relação de coação sedimenta a "fase" do desenvolvimento moral denominada por Piaget (1994) heteronomia, as relações de cooperação possibilitam a construção de uma moral da autonomia.

As relações de coação são fundamentalmente assimétricas, pois nelas há somente respeito unilateral às leis e à autoridade. São relações em que um manda e o outro obedece. Trata-se do chamado respeito unilateral, porque só existe o "respeito" em uma direção, ou seja, na do subordinado para o chefe, na da criança para o adulto, na do aluno para o professor etc. Na moralidade de coação, as regras não precisam ser compreendidas; deve-se apenas obedecê-las. Um professor que diz ao seu aluno que uma determinada regra deve ser cumprida, porque é ele quem manda na sala de aula, é um exemplo de uma relação de coação. Um outro exemplo pode ser tirado da famosa frase: "Você sabe com quem está falando?" Essa questão supõe (nada mais que isso) que existe uma diferença, uma desigualdade, entre quem a está pronunciando e quem a está ouvindo.

Na "fase" de desenvolvimento moral de heteronomia, podem ser encontradas crianças com idade que varia entre seis e dez anos, aproximadamente. Em contrapartida, há pessoas que nunca ultrapassam esse "estágio" do desenvolvimento moral. Nessa etapa, a interpretação das regras é vista sob duas formas: 1) a da atribuição das regras a "divindades", sendo as regras consideradas permanentes e imutáveis (nesse caso, o sujeito não se concebe como legislador) e 2) a de que, apesar de o indivíduo ter um respeito quase "religioso" pelas regras, ele se mostra bastante liberal na sua aplicação, pois elas não são concebidas como necessárias para a regularização ou harmonização de suas ações. Na heteronomia, o que importa é a responsabilidade objetiva do ato (o dano que causou), independentemente, por exemplo, da intenção do autor de um delito.

Na relação de coação, os sentimentos predominantes que aparecem são o medo e o amor. Por temor, as regras devem ser seguidas. Obviamente, quando não existe um risco condizente com o temor, não há necessidade de seguir as regras. Dessa forma, o respeito unilateral é caracterizado como um respeito por medo do castigo ou como o próprio medo de perder o amor da pessoa que representa a autoridade.

Além disso, as relações de cooperação são regidas pela reciprocidade entre os membros, sendo as regras estabelecidas entre eles. Desse tipo de relação deriva o respeito mútuo entre as pessoas. A relação de cooperação tem como base uma relação entre iguais. Nesse sentido, existe a possibilidade de trocas, de acordos, de construção, de fazer junto. O respeito é considerado mútuo porque é recíproco e não unilateral. Uma ilustração desse tipo de moralidade seria a frase: "Quem você pensa que é?" Nessa pergunta, quem a pronuncia está destituindo o outro da sua autoridade; está, portanto, afirmando a sua igualdade.

Assim, as relações de cooperação tornam possível a construção de uma moral de autonomia. Essa "fase" pode ser observada em crianças a partir dos dez anos aproximadamente (ou pode até mesmo nunca ser encontrada). Nesse estágio, os sujeitos concebem as regras de maneira adulta. Há o cumprimento delas, que agora são estabelecidas pelas relações individuais. É considerado importante, então, o respeito mútuo entre as pessoas.

É segundo as relações de coação e de cooperação que Piaget concebe e assinala a importância do social. Isso significa, segundo La Taille (1992), "que Piaget pensa o social e suas influências sobre os indivíduos pela perspectiva da ética" (p.21).

O juízo moral na criança permanece como livro praticamente isolado na obra de Piaget (1994), no que diz respeito a essa temática. Entretanto, podemos encontrar em poucos textos posteriores algumas considerações a respeito do tema abordado. Um destes escritos é "A Explicação em sociologia"2 (Piaget, 1973).

A pergunta central no texto citado é sobre qual o lugar que o social tem para a teoria piagetiana. Essa questão é analisada apenas de forma teórica, uma vez que é somente no livro O Juízo moral na criança que o referido autor apresenta pesquisas relativas ao tema. Dessa forma, para desenvolver aspectos a respeito da importância do social para a teoria piagetiana, o autor estabelece um paralelo entre a sociologia e a psicologia, procurando demonstrar que entre as duas áreas existe uma correspondência e não uma equivalência. Essa é a tese da correspondência entre o social e o sujeito do conhecimento (Piaget estudou o sujeito epistêmico). Isso significa dizer que o social tem um peso, influencia, mas não é causa do desenvolvimento cognitivo.

Piaget foi e continua sendo muito criticado por ter sido mal compreendido sobre a importância do social na sua teoria3. Segundo o teórico, o desenvolvimento cognitivo decorre da construção das estruturas mentais. Conforme Ramozzi-Chiarottino (1988), essas estruturas mentais possuem uma gênese e esse aspecto significa que "...a possibilidade de estabelecer relações lógicas não é dada a priori no sentido cronológico; ao contrário, surge em função da construção das estruturas que ocorrem na interação do indivíduo com o meio e é, portanto, uma conquista do ser humano" (Ramozzi-Chiarottino, 1988, p.13-4).

Queremos destacar o fato de que, embora não considere o social causa determinante do desenvolvimento cognitivo, Piaget (1973) não desconsidera a sua importância. Pelo contrário, para ele a epistemologia genética depende da psicologia e da sociologia, e a sociogênese dos diversos modos do conhecimento não se revela "nem mais, nem menos importante que sua psicogênese, pois são aspectos indissolúveis de toda formação real" (p.25).

Dessa forma, vimos que Piaget (1994) pensa a influência do social nos indivíduos pela perspectiva da moral (relações de coação e de cooperação). Para esse autor, o respeito unilateral é a origem do sentimento do dever, e a autonomia só aparece quando o respeito mútuo é bastante forte para estabelecer uma reciprocidade. Desse modo:

...o bem não resulta, como o dever, de uma coação exercida pela sociedade sobre o indivíduo. A aspiração ao bem é de outra natureza que a obediência a uma regra imperativa. O respeito mútuo, que constitui o bem, não leva ao mesmo conformismo que o respeito unilateral que caracteriza o dever... (Piaget, 1994, p.262, grifo nosso)

Conforme mencionado anteriormente, de acordo com Lourenço (1992, 1992a), a convicção das pessoas em geral a respeito do "erro educacional fundamental" pode ser considerada como a principal causa responsável pela assimetria encontrada entre o dever e a aspiração. Essa hipótese seria confirmada caso o EEF fosse predominantemente encontrado nos sujeitos pesquisados e se constituísse em uma crença social relativamente generalizada. A fim de obter uma comprovação empírica para as questões relativas ao EEF, Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a) e Sampaio e Lourenço (1997) realizaram estudos em que se procurou englobar dois procedimentos metodológicos em entrevistas com crianças:

1. Análise das reações socializadoras dos professores em relação aos personagens transgressores ou cumpridores de uma norma (Lourenço, 1992, 1992a, 1994a; Sampaio, Lourenço, 1997). Nessa situação, as crianças eram solicitadas a prever a reação do professor em um contexto em que um personagem transgredia uma norma, ou fracassava na resolução de uma tarefa acadêmica, e um outro personagem aderia a uma norma, ou obtinha sucesso na referida tarefa. No último estudo, Sampaio e Lourenço (1997) realizaram uma pesquisa englobando, além das crianças, os educadores de uma forma geral (professores, pais e mães).

2. Estudo das reações emocionais dos personagens transgressores (Lourenço, 1993, 1994). Nessa questão, os sujeitos da pesquisa eram entrevistados a respeito da possível reação emocional do personagem que transgride uma norma ou fracassa em uma tarefa acadêmica.

Com a finalidade de desenvolver os seus estudos referentes ao segundo procedimento metodológico, Lourenço (1993, 1994) baseou-se em uma linha de investigação que procura cruzar a distinção proposta por Fuller (apud Lorenço 1993 e 1994a) com a teoria da autodiscrepância de Higgins (1987). Essa proposição refere-se não só às emoções orientadas para agitação/ansiedade – tais como medo, nervosismo e preocupação (consistente com uma orientação para o dever, ou seja, a favor do Erro Educacional Fundamental EEF), mas também às orientadas para insatisfação/desapontamento – tais como tristeza, pena e desolação (consistente com uma orientação para a aspiração, ou contra o EEF). Portanto, essa linha de investigação possibilita a constatação, via sentimentos, do referido "erro educacional fundamental".

A importância do afeto no juízo moral é também enfatizada na teoria piagetiana. No artigo intitulado "The Relation of affectivity to intelligence in the mental development of the child", Piaget (1962) faz um paralelo entre os estágios de desenvolvimento cognitivo e o afeto. Nessa comparação, queremos destacar o seu questionamento referente à busca do correspondente afetivo no que diz respeito à conservação no campo cognitivo e, conseqüentemente, à reversibilidade. Piaget encontra este paralelo em uma seção muito particular da vida afetiva: o juízo moral. Os valores morais necessitam da própria conservação para a sua existência. É nesse sentido que a área do juízo moral é considerada a de excelência para o estudo da articulação entre o afeto e a cognição. Quando temos de tomar uma decisão, realizar um juízo, dar uma sentença, sem dúvida colocamos em jogo os dois lados dessa mesma moeda: o afeto e a razão. O que deve ou deveria prevalecer é uma outra questão.

O homem é racional e ao mesmo tempo contraditório. A racionalidade (a inteligência) não tem a força que muitos gostariam, mas ela existe. Na moralidade há um juízo moral, critérios de avaliação, objetivos conscientes de conduta. Entretanto, algumas pessoas podem agir somente com base no sentimento. Não foi o sentimento moral e, sim, justamente o lado racional da moralidade que Piaget procurou estudar. Em contrapartida, esse autor sempre reafirmou a importância e a existência do afeto no juízo moral.

Piaget (1994) aponta para o fato de que na relação de coação, portanto de heteronomia, os sentimentos que predominam são o medo e o amor. Qual seria o sentimento moral preponderante na moralidade de cooperação? Para responder a essa questão, de acordo com o exposto anteriormente, Lourenço (1993,1994) procurou estudar os sentimentos de tristeza, pena e desolação, que são relativos à insatisfação e ao desapontamento4.

Assim, Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a) procurou realizar uma análise do "erro educacional fundamental" no que diz respeito tanto "às previsões das reações dos professores" quanto às possíveis "reações emocionais dos personagens transgressores". Com a finalidade de desenvolver a temática em questão, o EEF vem sendo analisado em relação ao domínio moral, pró-social e acadêmico5. Segundo Lourenço:

O domínio moral tem a ver com a justiça e o bem-estar do outro (Kohlberg, 1984; Turiel, 1983) e ocupa-se dos chamados deveres negativos ou perfeitos (Nunner-Winkler, 1984), como, por exemplo, não roubar ou não mentir. O domínio pró-social está relacionado com as necessidades do outro em contextos "onde é irrelevante o papel da lei, da autoridade, do castigo, ou das obrigações formais" (Eisenberg-Berg, Hand, 1979, p.357) e ocupa-se dos chamados deveres imperfeitos ou positivos, como, por exemplo, ajudar ou repartir. O domínio acadêmico anda "à volta da realização escolar e, portanto, à volta de atividades que envolvem sucesso ou fracasso (Weiner, 1985)". (1992, p.23)

A fim de obter comprovação empírica para as questões relativas ao "erro educacional fundamental", Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a) e Sampaio e Lourenço (1997) realizaram vários estudos em uma população portuguesa. A seguir descreveremos as características metodológicas de suas pesquisas, e os estudos serão agrupados de acordo com essas características.

Em duas investigações, os autores objetivaram verificar a existência do "erro educacional fundamental" com base na distinção de Fuller (apud Lourenço 1992a, 1994a) entre o dever e a aspiração. Dessa maneira, foram analisadas 81 crianças de nível socioeconômico elevado que freqüentavam a pré-escola, o 1º e o 4º ano de escolaridade (IC= 5, 6 e 9). Nessas pesquisas, foram estudados itens do domínio moral, pró-social e acadêmico e a previsão das "reações dos professores" (Lourenço, 1992a, 1994a).

Em outra pesquisa, Lourenço (1992) estudou a mesma problemática dos trabalhos acima relatados, em um contexto socioeconômico diferente, entrevistando 54 crianças de nível socioeconômico baixo que freqüentavam a pré-escola e os anos iniciais de escolaridade (IC = 4 e 7). Nesse trabalho o pesquisador levou em consideração os mesmos domínios estudados nas pesquisas anteriores e versou sobre uma investigação do EEF pela "reação dos professores".

Em dois outros estudos, Lourenço (1993 e 1994) realizou investigações em que procurou relacionar a distinção de Fuller entre dever e aspiração e a teoria de Higgins (1987) sobre emoções orientadas para a agitação/ansiedade e para a insatisfação/desapontamento. Dessa forma, analisou 40 crianças de nível socioeconômico médio, que freqüentavam o 1º e o 4º ano de escolaridade (IC= 5/6 e 10/11 anos). Nesses trabalhos o autor estudou apenas itens do domínio moral e do domínio acadêmico. Essas pesquisas versaram sobre o estudo do EEF sob os aspectos dos sentimentos, ou seja, sobre as possíveis "reações emocionais do personagem que transgrediu uma norma ou fracassou na realização de uma tarefa acadêmica".

Por último, Sampaio e Lourenço (1997) analisaram o "erro educacional fundamental" em crianças e em seus educadores (pais, mães e professores). Dessa forma, foram investigadas: a) 96 crianças do 1º ano e do 4º ano (IC= 6/7 anos e 9/10 anos), provenientes de vários meios socioeconômicos, com predominância da classe média; b) 192 pais e mães das referidas crianças e c) 96 professores. No estudo, os autores levaram em consideração itens do domínio moral, pró-social e acadêmico, numa situação de pesquisa na qual não só as crianças eram solicitadas a prever a reação de seus educadores, mas também estes eram solicitados a prever as próprias reações.

Apesar das diferenças que caracterizaram esses estudos, foi constatado que as crianças portuguesas investigadas cometem desde cedo o "erro educacional fundamental" e que este tende a acentuar-se com a escolaridade, pelo menos até o final do 4º ano de escolaridade.

Neste trabalho, procuramos inicialmente verificar, em relação à idade, se o mesmo ocorre em uma população brasileira. Assim, investigamos tanto se o EEF já existe em crianças pré-escolares e se existe uma tendência de aumentar com a escolaridade/idade. Foi nosso objetivo, também, averiguar se o EEF é cometido com a mesma intensidade nos três domínios investigados, que são: moral, pró-social e acadêmico. Além disso, verificamos a influência do nível socioeconômico e do sexo na caracterização do "erro educacional fundamental". Apesar de ter delimitado a classe social das crianças entrevistadas, com amostras igualmente divididas no que diz respeito ao sexo, Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a) e Sampaio e Lourenço (1997) não realizaram estudos sistemáticos para verificar a influência dessas variáveis no EEF.

Este estudo é, portanto, caracterizado como uma réplica de pesquisa, que pode ser justificada quando se pretende indicar a generalidade dos resultados alcançados anteriormente. O fato aponta para a extensão dos resultados que já tenham sido obtidos, pois, uma vez que uma pesquisa tenha sido realizada sob determinadas condições (por exemplo, dentro de uma determinada cultura), a generalidade procura, quando possível, indicar até que ponto, alteradas as condições, se podem esperar resultados semelhantes (Luna, 1998).

 

MÉTODO

Sujeitos

Participaram como sujeitos, nesta pesquisa, 120 escolares: 60 do sexo masculino e 60 do sexo feminino, que cursavam a pré-escola (com idade entre 5 e 6 anos) e a 4ª série do ensino fundamental (com idade entre 10 e 11 anos) de três escolas de 1º grau da Grande Vitória (ES), pertencentes a três classes sociais diferentes, conforme assinala a tabela 1.

 

 

Os sujeitos foram selecionados nas escolas por sorteio, com base nas variáveis antes mencionadas. É importante ressaltar que tanto as crianças de classe alta quanto as de classe média são provenientes de escolas particulares. Em contrapartida, os escolares de classe baixa freqüentam uma instituição pública. Com a finalidade de delinearmos as classes sociais dos sujeitos entrevistados, utilizamos como indicadores sociais o preço da mensalidade da escola (no caso da particular) e o bairro de residência das crianças entrevistadas.

Instrumentos

Nesta pesquisa foram utilizados seis itens: dois referentes ao domínio moral (roubar/não roubar e copiar/não copiar), dois relativos ao domínio pró-social (confortar/ não confortar e repartir/não repartir) e dois concernentes ao domínio acadêmico (sucesso/fracasso em um problema de aritmética e ditado com/sem erros). As histórias referentes aos itens analisados foram propostas por Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a), com base nas investigações sobre a definição dos três domínios em questão.

Cada um desses itens representa adesão/transgressão às normas ou sucesso/fracasso em atividades acadêmicas. Cada item foi ilustrado por meio de três cartões que descrevem: 1) o domínio envolvido, 2) a ação de adesão ou sucesso e 3) a ação de transgressão ou fracasso. Os personagens envolvidos nas histórias foram descritos para a criança como sendo da sua idade e do seu sexo.

A descrição das histórias relatadas aos sujeitos para cada domínio será apresentada a seguir:

(Item moral: Roubar/não roubar)

Artur e Tiago são meninos da sua idade que estudam na mesma escola. Um dia, quando iam para a escola, viram duas bonitas bolas na vitrine de uma loja. Gostariam muito de ficar com essas bolas, mas não tinham dinheiro para comprá-las. Tiago decidiu entrar na loja e, sem ninguém ver, roubou uma delas. Artur, ao contrário, decidiu não roubar nenhuma bola e continuou o seu caminho para a escola. (Versão feminina: Ana e Rita)

A figura 1 ilustra essa história:

 

 

(Item moral: Copiar/não copiar)

Sandro e Celso são meninos da sua idade que estudam na mesma escola. Um dia o professor pediu que desenhassem uma xícara nos seus cadernos, mas que desenhassem de cabeça e sem abrir o livro que tinham na carteira onde havia desenhos de xícaras. Sandro, que não sabia fazer o desenho de cabeça, procurou fazê-lo sozinho e não abriu o livro para copiar quando o professor estava de costas. Celso, que também não sabia fazer o desenho de cabeça, abriu o livro para copiar quando o professor estava de costas. (Versão feminina: Sofia e Clara)

(Item pró-social: Repartir/não repartir)

Rodrigo, Pedro e Maurício são meninos da sua idade que estudam na mesma escola. Um dia Rodrigo tinha fome, queria lanchar, mas não tinha nada para comer, nem dinheiro para comprar uma merenda. Pediu, então, aos seus colegas que repartissem o lanche com ele. Pedro decidiu não repartir o seu lanche com o Rodrigo e comeu-o sozinho. Maurício, ao contrário, decidiu repartir o seu lanche com Rodrigo e comeu apenas a metade. (Versão feminina: Rosana, Patrícia e Márcia)

(Item pró-social: Confortar/não confortar)

Antônio, Paulo e Fabiano são meninos da sua idade e estão indo a uma festa de aniversário. No caminho Paulo escorregou, caiu, ficou triste, teve de voltar para casa e não pôde ir à festa. Antônio decidiu não ir à festa e ficou fazendo companhia a Paulo. Mas Fabiano decidiu ir à festa em vez de ficar fazendo companhia a Paulo. (Versão feminina: Antônia, Paula e Fabiana)

(Item acadêmico: Ditado com/sem erro)

Um dia o professor fez um ditado na sala de aula e pediu que os meninos prestassem atenção para não cometerem erros. Eduardo, contudo, teve cinco erros. Mas Rafael fez o ditado e não cometeu nenhum erro. (Versão feminina: Rafaela e Eduarda)

(Item acadêmico: Sucesso/fracasso em um problema de aritmética)

João e Carlos são meninos da sua idade que estudam na mesma escola. Um dia, o professor perguntou-lhes quantas maçãs comeu um menino, depois de ter comido uma maçã no almoço e outra maçã no jantar. Carlos esforçou-se e respondeu bem dizendo que esse menino tinha comido duas maçãs. João, ao contrário, não se esforçou e respondeu mal, dizendo que esse menino tinha comido três maçãs. (Versão feminina: Joana e Carla)

Procedimentos

As crianças foram entrevistadas individualmente, de acordo com o método clínico proposto por Piaget (1994), em relação ao juízo moral. Os sujeitos foram confrontados com cada um dos seis itens e suas respectivas ilustrações, mas dois itens do mesmo domínio não apareceram sucessivamente. A cada criança foram colocadas as seguintes questões para cada uma das histórias:

Primeiro procedimento

1. O(a) professor(a) desses(as) meninos(as) soube o que eles(as) tinham feito. Com qual deles(as) o(a) professor(a) vai falar primeiro? Por quê?

2. Você acha que o(a) professor(a) vai castigar o(a) menino(a) que se comportou mal ou elogiar o(a) menino(a) que se comportou bem? Por quê?

Segundo procedimento

3. Nessa situação, esse(a) menino(a) comportou-se mal (roubou/copiou/ não confortou/não repartiu/fracassou em um problema de aritmética/cometeu erros em um ditado). Você acha que, por ter feito isso, ele(a) está se sentindo triste ou com medo? Por quê?

A primeira e segunda questões, com as suas justificativas, possibilitaram respectivamente uma avaliação indireta e uma avaliação direta do "erro educacional fundamental", no que diz respeito "às previsões das reações dos professores" em relação aos personagens transgressores/cumpridores de uma norma ou com fracasso/com sucesso em uma tarefa acadêmica (primeiro procedimento). A terceira questão e a sua justificativa possibilitaram uma avaliação indireta para o EEF quanto às "previsões das reações emocionais" dos personagens mencionados anteriormente (segundo procedimento).

Codificação das variáveis

As respostas dos sujeitos à primeira e à segunda questões foram categorizadas como: a) uma orientação negativa (para o dever ou para o EEF), se os escolares mencionassem que o professor iria falar primeiro com o transgressor ou castigá-lo e b) uma orientação positiva (para a aspiração ou contra o EEF), se os escolares previssem que o professor iria falar primeiro com o personagem cumpridor ou elogiá-lo. As justificativas das crianças correspondentes a essas questões foram categorizadas como tendo uma orientação negativa, quando invocavam o não cumprimento da norma (transgressão/ fracasso), e como tendo uma orientação positiva, quando mencionassem os motivos de suas escolhas com base no seu cumprimento (adesão/sucesso).

As respostas das crianças à terceira questão foram codificadas como: a) uma orientação negativa, se elas escolhessem a alternativa "sente medo" e b) uma orientação positiva, se elas escolhessem a alternativa "sente-se triste". As justificativas para essas respostas foram categorizadas como orientação negativa, quando justificassem a experiência do protagonista invocando as possíveis conseqüências negativas para a sua ação, e como uma orientação positiva, quando a experiência do protagonista fosse justificada com base na sua transgressão ou no seu fracasso.

 

RESULTADOS

Os resultados obtidos, por intermédio da Análise de Variância Anova permitiram verificar que, no domínio moral (itens: roubar/não roubar e copiar/não copiar), conforme mostra a figura 2, a idade não exerceu influência significativa nem na situação da previsão da "reação dos professores" (F=2,7), nem na da "reação emocional dos personagens transgressores" (F= 0,9).

 

 

Assim, verificamos que, apesar de o "erro educacional fundamental" ter sido encontrado predominantemente em todos os sujeitos da pesquisa, independentemente da idade investigada e do procedimento metodológico utilizado, a orientação para o EEF, ou para o dever, está fortemente marcada nos itens analisados do domínio moral. Não há, portanto, evidência de diferença de intensidade do "erro educacional fundamental" entre as faixas etárias no domínio moral. Esse tipo de orientação para o dever corresponde aproximadamente a 70% de todas as respostas emitidas para o domínio em questão.

Em relação ao domínio pró-social (itens: confortar/não confortar e repartir/não repartir), detectamos que os sujeitos responderam de forma bastante diferenciada de acordo com a idade, nas duas situações metodológicas investigadas (figura 3): 1) na situação da "reação dos professores" foi obtido um valor de F=14,27 (p< 0,001) e 2) no contexto da "reação emocional do personagem transgressor", o valor de F encontrado foi de 11,9 (p< 0,001).

 

 

Dessa forma, há fortes evidências de diferenças de intensidade de respostas para o "erro educacional fundamental", no domínio pró-social entre as faixas etárias. No primeiro procedimento metodológico utilizado, as crianças com idade entre 5 e 6 anos cometem o EEF, e os escolares com idade entre 10 e 11 anos tendem a dar respostas contrárias ao referido EEF. No que diz respeito à análise do segundo procedimento metodológico, constatamos que os sujeitos com idade entre 10 e 11 anos respondem mais intensamente de maneira contrária ao EEF. Foi possível verificar, também, que as crianças de mesma faixa etária tendem a responder de uma forma mais orientada para a aspiração quando solicitadas a prever as "reações emocionais do personagem transgressor" (segundo procedimento), do que quando avaliam as possíveis "reações dos professores" (primeiro procedimento).

De uma forma geral, detectamos que, no domínio pró-social, as crianças pré-escolares tenderam a dar mais respostas orientadas para o dever ou a cometer o EEF (54%) do que os escolares com idade entre 10 e 11 anos (34%).

Quanto ao domínio acadêmico (itens: sucesso/fracasso em um problema de aritmética e ditado com/sem erro), observamos que a idade influenciou significativamente na proporção de respostas e justificativas orientadas para o EEF somente na situação que envolve a previsão da "reação dos professores", sendo o valor de F=11,2 (p< 0,001). Assim, conforme assinala a figura 4, enquanto as crianças pré-escolares cometem o EEF, não há evidências de que sujeitos da 4ª série do ensino fundamental possuam qualquer tendência para o "erro educacional fundamental" (as suas respostas ficaram igualmente divididas entre o dever e a aspiração). No que concerne à "reação emocional dos personagens transgressores", os sujeitos tendem a responder da mesma forma, independentemente da idade. É importante ressaltar que, no domínio acadêmico, assim como no pró-social, as crianças de mesma faixa etária responderam de maneira mais orientada para a aspiração, ou contra o EEF, na situação investigada nesse segundo procedimento metodológico.

 

 

A análise de todas as respostas para o domínio acadêmico mostrou que 59% delas foram orientadas para o dever em crianças brasileiras de 5 e 6 anos. Já os escolares de 10 e 11 anos apresentaram 43% das respostas em questão. Dessa forma, enquanto os pré-escolares tenderam a cometer o EEF, o mesmo não ocorreu com os sujeitos da 4ª série do ensino fundamental.

No que se refere ao sexo, constatamos que apenas no domínio acadêmico, na avaliação da "reação dos professores", os meninos apresentaram maior número de respostas e justificativas orientadas para o EEF do que as meninas (F=4,38; p<0,05).

Em relação à variável nível socioeconômico, verificamos que ela não influenciou a proporção de respostas para o dever. Dessa forma os sujeitos de classe alta, média ou baixa tenderam a responder da mesma forma quando investigados a respeito do tema em questão.

 

DISCUSSÃO

Com base nos resultados obtidos na presente pesquisa, no que diz respeito à previsão da "reação dos professores", observamos que houve predomínio do "erro educacional fundamental" em crianças pré-escolares (com idade entre 5 e 6 anos) nos três domínios investigados: moral, pró-social e acadêmico. Esse dado foi também encontrado nos estudos realizados com crianças portuguesas (Lourenço, 1992, 1992a e 1994a) e parece confirmar que o EEF é uma crença social relativamente generalizada.

Em contrapartida, na previsão da "reação dos personagens transgressores", relativa ao segundo procedimento metodológico, houve o predomínio do dever apenas nos itens do domínio moral. As figuras 3 e 4 demonstram a existência de maior número de respostas para a aspiração no domínio pró-social e no domínio acadêmico, em crianças pré-escolares. Este último resultado, entretanto, é contrário aos obtidos por Lourenço (1993, 1994). Para o referido autor, as crianças com idade entre 5 e 6 anos cometeriam o EEF em todos o procedimentos metodológicos investigados, incluindo o estudo da temática em questão, segundo o aspecto dos sentimentos.

Em nossa pesquisa, constatamos, também, que o "erro educacional fundamental" não tendeu a se acentuar com a escolaridade/idade nos dois procedimentos metodológicos investigados. Apenas no domínio moral as crianças de 10 e 11 anos cometeram o EEF; mas, quando foram comparadas com o grupo de crianças de 5 e 6 anos, a faixa etária não exerceu influência significativa na proporção de respostas e justificativas orientadas para o dever. No entanto, nos estudos realizados por Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a), o EEF foi encontrado em todos os domínios e faixas etárias envolvidos e tendeu a se acentuar com elas. Assim, o fato de que a moralidade do dever tende a triunfar sobre a moralidade da aspiração, como assinala o referido autor, pôde ser parcialmente confirmado neste estudo, apenas em relação aos pré-escolares, na situação da previsão das "reações dos professores", em todos os domínios envolvidos e em sujeitos da 4ª série do ensino fundamental, no domínio moral. De acordo com os nossos dados, o fato de o dever ser predominante em crianças com idade entre 5 e 6 anos e a aspiração em crianças de 10 e 11 anos (nos domínios pró-social e acadêmico) parece confirmar o argumento de que o "erro educacional fundamental" não prevalece nas escolas onde os sujeitos entrevistados estudavam, pelo menos segundo a opinião deles.

O fato de o dever não ter geralmente prevalência em escolares com idade entre 10 e 11 anos não é contrário à afirmativa de que as crenças educativas e especialmente a crença do EEF possuem impacto na realidade escolar. Entretanto, conforme discutido na introdução deste trabalho, de acordo com a teoria piagetiana, as crianças constroem as regras em interação com o meio social. Dessa forma, a crença do "erro educacional fundamental" parece existir, mas a moralidade é definida pelas crenças individuais, que são por sua vez construídas pelos indivíduos em suas interações com o mundo social (Blasi, 1990) e não somente impostas socialmente.

Sampaio e Lourenço (1997) realizaram um estudo no qual foram entrevistados os educadores (pais, mães e professores) e verificaram a prevalência do "erro educacional fundamental" em todos os sujeitos da pesquisa. Apesar de haver forte indício da presença do EEF em educadores, é importante ressaltar que, independentemente das regras que são impostas às crianças, em uma moralidade autônoma elas constroem as regras em questão. É dessa maneira que interpretamos o fato de que em escolares com idade entre 10 e 11 anos, as respostas tenderam para a aspiração, nos itens dos domínios pró-social e acadêmico. Caso assim não fosse, os sujeitos estariam orientados para o dever, para o EEF e ao encontro de uma moralidade heterônoma. Como poderíamos, então, explicar o fato de o dever ser predominante nos itens considerados como pertencentes ao domínio moral?

Alguns autores consideram o domínio moral como o protótipo do dever, o domínio acadêmico como o protótipo da aspiração (Weiner, Peter, 1973; Hamilton, Blumenfeld, Kushler, 1988; Hamilton et. al., 1990) e o domínio pró-social como intermediário entre o dever e a aspiração (Hamilton et al.,1990). Este último domínio, que é o pró-social6, torna-se alvo de controvérsias por ser ora considerado um domínio independente ora incluído no domínio moral (Sampaio, Lourenço, 1997).

Neste trabalho, os itens do domínio moral parecem apontar para o protótipo do dever, para todos os sujeitos entrevistados. Por sua vez, os itens pró-sociais tendem mais a se constituir como protótipo da aspiração e o domínio acadêmico como intermediário entre o dever e a aspiração, pelo menos para as crianças de 10 e 11 anos. Entretanto, concordamos com Lourenço (1992a) que não é possível concluir a respeito de definição de domínios (moral, pró-social ou acadêmico), uma vez que os itens avaliados não incluem a totalidade das histórias que poderiam envolvê-los.

Dessa forma, não seria possível, por exemplo, pensar em "definir" o domínio moral apenas com duas histórias que englobam os itens "roubar/não roubar" e "copiar/não copiar". Além disso, uma pesquisa que tivesse por objetivo envolver o maior número de itens, para um domínio específico, iria de encontro a outra questão fundamental inerente ao próprio campo da psicologia: o fato de que esta não pode ver o que é moral para os sujeitos pesquisados. Conforme Blasi (1990), não é tarefa do psicólogo definir o que pertence genuinamente à moralidade e sim descrever as diferentes maneiras nas quais as pessoas compreendem/percebem as obrigações morais. Dizer o que é ou não moral é uma tarefa para a filosofia, que por sua vez contribui com a psicologia na definição do objeto a ser estudado. Assim, o psicólogo se interessa pelo que a pessoa pensa e/ou sente e não sobre o que o sujeito deveria pensar e/ou sentir.

Nesta investigação, analisamos o que as crianças pensam e sentem a respeito de alguns itens que são considerados como pertencentes a domínios específicos. Esses dados permitiram ampliar o estudo dessa importante questão para a psicologia do desenvolvimento em uma população brasileira, entretanto é nossa opinião que essa problemática está longe de ser resolvida.

Dessa forma, detectamos que os itens considerados como pertencentes ao domínio moral estão sendo compreendidos pelas crianças como orientados para o dever. Entretanto, neste caso e também nos outros dois domínios investigados, devemos levar em conta o fato de que essa investigação foi realizada de forma muito específica e direcionada para o estudo de uma crença denominada "erro educacional fundamental". A maneira como foi conduzida a investigação não nos permite afirmar que as crianças entrevistadas estão na "fase" de heteronomia, no que diz respeito à questão analisada. Isto se deve ao fato de que grande parte das questões apresentadas às crianças estava direcionadas à previsão das "reações dos professores". O que estamos dizendo é que é diferente perguntarmos a uma criança o que o professor faria em uma determinada situação ou formularmos uma questão direcionada para o que seria justo o professor fazer.

Assim, tanto pelo reduzido número de itens estudados no domínio moral quanto pelos procedimentos metodológicos utilizados, não nos será possível analisar o fato de que nos itens do domínio em questão há predomínio de respostas para o dever.

Conforme mencionado na introdução deste trabalho, é nosso objetivo, também, verificar a influência do sexo na caracterização do EEF. A análise dos dados evidenciou que apenas no domínio acadêmico, na situação das "reações dos professores", essa variável exerceu influência significativa e que, nesse domínio, os meninos apresentaram mais respostas e justificativas orientadas para o "erro educacional fundamental" do que as meninas.

De acordo com Gilligan (1982), as mulheres teriam "uma voz diferente" dos homens. Não haveria problema nessa tese, caso a moralidade não estivesse sendo medida pela perspectiva da "voz masculina". A autora cita importantes nomes de estudiosos em que tais aspectos podem ser observados, entre eles destacam-se: Freud, Erikson, Piaget e Kolhberg e argumenta que esses autores pensam a moralidade do ponto de vista do direito e da justiça (que seria a perspectiva masculina) e não do ponto de vista da responsabilidade e do cuidado (ponto de vista feminino).

Entretanto, as pesquisas atuais têm demonstrado que a variável sexo não tem sido considerada significativa na análise dos aspectos morais (Walker, 1984; Lourenço, 1991). Uma revisão crítica da literatura, realizada por Walker, permitiu detectar que as diferenças entre os sexos não têm sido significativas. Ainda segundo Walker, em alguns estudos em que foram encontradas diferenças entre os sexos, no que diz respeito ao juízo moral, a própria diferença em questão estava sendo confundida com o nível de escolaridade ou ocupação profissional. Da mesma forma, Lourenço não encontrou diferenças entre as respostas de meninos e meninas a respeito da "ética do cuidado" (por exemplo: não virar as costas para uma pessoa em necessidade) e da "ética da justiça" (não tratar o outro injustamente). Em seus estudos, o referido autor conclui que os dados de sua pesquisa estão de acordo com o fato de que a justiça é um princípio moral básico e que a "ética do cuidado" não é tão determinante como Gilligan tem afirmado. Nós mesmos temos tido oportunidade de verificar, em estudos não publicados, que não há diferenças entre os sexos no que diz respeito à avaliação do juízo moral. Entretanto, estamos conscientes de que a psicologia ainda não conseguiu definir a existência ou não das diferenças psicológicas entre os sexos. No campo da moralidade, mesmo que não a consideremos uma hipótese plausível, essa diferença precisa ser mais bem investigada.

Por último, teceremos considerações a respeito da classe social dos sujeitos entrevistados. De acordo com Lourenço (1992), em crianças portuguesas de classe baixa, o EEF foi ligeiramente menor do que em crianças de classe média entrevistadas em trabalhos anteriores. Esse dado foi contrário à hipótese do autor, que esperava um maior número de respostas para o dever em crianças de classe baixa. Em nosso estudo, foi possível verificar que a referida variável também não exerceu influência significativa em relação às respostas e justificativas dos sujeitos orientadas para o EEF.

Tendo em vista que os resultados desta pesquisa evidenciaram alguns aspectos divergentes em relação aos estudos desenvolvidos por Lourenço (1992, 1992a, 1993, 1994, 1994a), propomos que a caracterização do "erro educacional fundamental" seja objeto de uma investigação mais acurada.

Como sugestão de trabalhos futuros, gostaríamos de ressaltar que a problemática do "erro educacional fundamental" poderia ser estudada tanto em educadores de uma forma geral, à semelhança do estudo realizado por Sampaio e Lourenço (1997), quanto nas relações entre as crianças. Nessa segunda situação, o sujeito da pesquisa poderia ser solicitado a julgar o que seria mais justo uma criança fazer em um contexto em que um personagem transgride e outro adere a uma norma.

Outra sugestão de trabalho é relativa à investigação do EEF por meio dos sentimentos. É nossa opinião que as questões formuladas aos sujeitos sejam realizadas de forma mais abrangente, sem a indicação de uma ou outra emoção. Assim, em lugar de restringirmos as perguntas a alguns sentimentos específicos, como o "medo" e a "tristeza", investigados nesta pesquisa, as questões poderiam ser formuladas de maneira genérica a respeito do sentimento do personagem transgressor. Dessa forma, o estudo da relação entre o afeto e o juízo moral poderia ser ampliado.

Podemos encontrar, nas investigações de La Taille (1991, 1992, 1993, 1996), exemplos de trabalhos relacionados com pesquisas que apontam para uma ampliação do campo da moralidade. O autor realizou quatro estudos a fim de pesquisar objetivos referentes à fronteira moral da intimidade, ressaltando a confissão do delito, a vergonha e a honra. Os dados, por sua vez, têm apontado para o fato de que as crianças constroem essa fronteira moral da intimidade, o que, de certa forma, pode permitir que o sujeito procure defender-se da vergonha em favor da honra. Além disso, tem sido evidenciado que é necessário, também, que a sociedade reconheça o valor da honra e, portanto, valorize a necessidade do respeito mútuo, para que possa atribuir ao indivíduo a sua "excelência". Assim, segundo Pitt-Rivers, "a honra fornece, portanto, um nexo entre os ideais da sociedade e a reprodução destes no indivíduo através da sua aspiração de os personificar" (s/d, p.13-4, grifo nosso).

A linha de pesquisa de La Taille está cada vez mais orientada para as virtudes, as quais se relacionam a aspectos ligados à aspiração. Assim, as virtudes parecem ter papel importante no campo da moralidade. Que Piaget não tenha pesquisado esse tema é outra questão. Certamente cabe a outros estudiosos realizar essa tarefa. É um enigma saber por que Piaget abandonou o estudo do campo da moralidade. Em contrapartida, apesar de não ter continuado, Piaget deixou importantes contribuições a respeito dessa temática, tanto no que diz respeito à psicogênese dos valores morais quanto no que diz respeito à própria educação moral de crianças e adolescentes.

Segundo Piaget (1996), "sem uma psicologia precisa das relações das crianças entre si e delas com os adultos, toda discussão sobre os procedimentos de educação moral resulta estéril" (p. 2). É nossa opinião que, sem uma finalidade específica, uma técnica para atingir esses objetivos e o conhecimento a respeito do desenvolvimento moral, nós não conseguiríamos ser eficientes em uma prática qualquer. Assim, independentemente dos itens ou domínios envolvidos, uma educação para a aspiração deve ser um objetivo de todos nós. Este é o árduo exercício para aqueles que desejam articular a teoria e a prática.

 

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* Alessandro Fazolo Cezário, José Carlos Gomes e Rodrigo Bissoli Miranda foram bolsistas do CNPq na ocasião em que realizavam esta pesquisa.
1. Segundo Piaget, não existem estágios morais propriamente ditos. Quando mencionarmos heteronomia ou autonomia, estaremos referindo-nos a um conjunto de traços que são dominantes em um determinado período de tempo.
2. Na realidade, esse texto foi publicado originalmente em 1950, no terceiro tomo do livro A Introdução à epistemologia genética. Nessa obra, Piaget faz uma primeira grande síntese de sua produção teórica, após 30 anos de pesquisa. Assim, o primeiro tomo é dedicado à inteligência, o segundo à física e o terceiro a outras áreas, como a biologia, a psicologia e a sociologia.
3. Poderíamos perguntar por que Piaget não considera o social como causa da construção das estruturas mentais. Ocorre que as suas pesquisas conduziram-no a afirmar que no início do desenvolvimento das estruturas mentais, sucede o que Piaget denominou lógica das ações seguida da lógica operatória. Assim, no estágio sensório-motor, existe a lógica das ações e esta não depende da linguagem nem do social para a sua construção. Discutir essa questão escaparia aos objetivos deste trabalho, mas uma interessante discussão a esse respeito pode ser encontrada no prefácio escrito por Yves de La Taille (1996a) para nova edição do livro de Piaget intitulado A construção do real na criança.
4. Em outra abordagem de investigação, La Taille (1996) e La Taille et al. (1991, 1992, 1993) mencionam os temas da humilhação, da vergonha e da honra, que não têm sido estudados de maneira intensa pela psicologia. O autor cita Piaget (1994) para quem: "O elemento quase material de medo, que intervém no respeito unilateral, desaparece então progressivamente em favor do medo totalmente moral de decair aos olhos do indivíduo respeitado" (Piaget, 1994, p. 284). O medo unilateral da moralidade de coação (heterônoma) seria "substituído", na moralidade de cooperação, pelo medo de ser julgado e diminuído pelo outro (pelo juízo do outro), ou seja, pelo medo da vergonha e, portanto, pela ameaça de perder a honra. Na moralidade da cooperação (autonomia), portanto, o sujeito procuraria defender-se da vergonha. Essa é, sem dúvida, uma linha de pesquisa importante para o esclarecimento dessa questão fundamental, que diz respeito ao papel do sentimento no juízo moral.
5. Alguns leitores poderão inicialmente questionar a respeito da separação e da denominação dos diferentes domínios, que são: moral, pró-social e acadêmio. Esta é uma questão importante para a psicologia do desenvolvimento, que aponta para a própria definição do objeto que se pretende estudar. Blasi (1990) considera que há algumas dificuldades no estudo da moralidade que vão desde as áreas específicas investigadas, desde os diferentes métodos utilizados, até as diversas definições de moralidade. Ao final deste trabalho discutiremos com um pouco mais de propriedade essa questão.
6. Para uma revisão das pesquisas em desenvolvimento pró-social recentemente realizadas no Brasil, ver o artigo de Carlo e Koller (1998).