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Lua Nova: Revista de Cultura e Política - Legitimacy, justice and democracy: Rawls's new contractarianism

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Lua Nova: Revista de Cultura e Política

Print version ISSN 0102-6445

Lua Nova  no.57 São Paulo  2002

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452002000200004 

Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls*

 

Legitimacy, justice and democracy: Rawls's new contractarianism

 

 

Cícero Araújo**

Professor no Departamento de Ciência Política da USP

 

 


RESUMO

O autor discute por que o Liberalismo Político de John Rawls representa uma virada na tradição contratualista. Oferecem-se argumentos para mostrar que a ênfase na justiça, em vez da legitimidade (inclusive a legitimidade democrática), inovou o aparato conceitual do Contratualismo, na qual temas clássicos da teoria política passam a confrontar complexos problemas de justificação moral.

Palavras-chave: Democracia; justiça; Rawls.


ABSTRACT

The author argues why John Rawls's Political Liberalism is a turning point in the tradition of Contractarian thought. Some reasons are given to show that the focus on justice, rather than legitimacy (including democratic legitimacy), has brought conceptual innovations to Contractarianism, in which classical topics of political theory face intricate problems of moral justification.

Keywords: Democracy; justice; Rawls.


 

 

Em homenagem a John Rawls (1921-2002)

 

I

A ênfase de Rawls nas questões de justiça, e não nas de legitimidade, nos dá uma boa indicação de como o contratualismo inaugurado por este autor traz uma nova agenda de questões para a tradição do contratualismo como um todo. Isto corresponde a um turning point no pensamento político de matriz liberal. Para compreender melhor esse aspecto da contribuição rawlsiana para o pensamento político contemporâneo, vale a pena reconstruir os argumentos que fundamentam a nova agenda. Esses argumentos aparecem com maior clareza se consideramos a democracia como o terceiro termo das nossas preocupações, junto com a justiça e a legitimidade. Estão em jogo os deslocamentos e as rearticulações que Rawls pretende estabelecer entre essas três dimensões fundamentais do pensamento político moderno, ao abrir uma nova etapa na história do liberalismo.

Antes de dizer como a democracia e a justiça podem estar vinculadas, seria interessante especular sobre os modos pelos quais aparecem como conceitos distintos. Na edição paperback de Political Liberalism (Columbia University Press, 1996), onde está publicado sua resposta às críticas feitas por Habermas à primeira edição do livro (1993), Rawls faz uma contraposição entre questões de "legitimidade" e questões de "justiça". O modo de se escolher os governantes num regime democrático, diz ele, pode atender a todos os critérios de legitimação típicos da democracia e suas decisões idem. Ainda assim, as decisões dos governos democráticos podem ser injustas:

Dar foco à legitimidade em vez da justiça pode parecer um ponto menor, já que nós podemos pensar "legítimo" e "justo" como idênticos. Um pouco de reflexão mostra que eles não são. Um rei ou rainha legítimos podem governar como uma autoridade efetiva e justa, mas também não podem; e por certo não necessariamente de modo justo, embora legítimo. O fato de serem legítimos diz algo sobre seu pedigree: como vieram ao cargo (...) Um aspecto significativo da idéia de legitimidade é que ela permite uma certa margem no quão bem soberanos podem governar e quanto podem ser tolerados. O mesmo vale para um regime democrático. Ele pode ser legítimo e de acordo com uma longa tradição originada quando sua constituição foi aprovada pelo eleitorado (o povo)... E no entanto ele pode não ser muito justo, ou muito pouco justo, e assim também as suas leis e políticas. (Political Liberalism, p. 427)1

As leis podem ser aprovadas com sólidas maiorias e atender a todas as exigências do processo democrático e, no entanto, serem altamente questionáveis do ponto de vista da justiça. Rawls, contudo, não está negando que haja uma forte ligação entre o processo democrático e a justiça. Apenas está nos alertando de que não são conceitos idênticos ou de mesma extensão: "Embora a idéia de legitimidade esteja claramente relacionada à justiça, deve-se observar que seu papel especial nas instituições democráticas (...) é autorizar um procedimento apropriado para tomar decisões quando os conflitos e desacordos na vida política tornam a unanimidade impossível ou raramente esperada." (p. 428).

Contudo, há um ponto a partir do qual a injustiça das decisões começa a corromper a própria legitimidade do processo democrático. A razão é que este último funda-se num arcabouço constitucional que depende de nossas convicções a respeito da "justiça política":

A legitimidade dos atos legislativos depende da justiça da constituição (...) e quanto maior é o desvio da justiça, mais provável é a injustiça dos resultados. Para que possam ser legítimas, as leis não podem ser injustas demais. Procedimentos políticos constitucionais podem de fato ser... puramente procedimentais quanto à legitimidade. Em vista da imperfeição de todos os procedimentos políticos humanos, não pode haver tal procedimento com relação à justiça política, e nenhum procedimento poderia determinar seu conteúdo substantivo. Logo, sempre dependemos de nossos juízos substantivos de justiça. (p.429)2

A distinção entre democracia e justiça é pertinente. Porém, somos obrigados a refletir sobre questões de justiça quando se trata de traçar até onde podemos tolerar decisões procedimentalmente legítimas. A justiça traça os limites da legitimidade democrática.3 Mais do que isso: se quisermos avaliar quão justas são as decisões dos regimes democráticos, olhar para os procedimentos de legitimação das decisões é claramente insuficiente, mesmo quando as consideremos aceitáveis, isto é, dentro da margem de tolerância necessária à sustentação do jogo democrático. Pois quando fazemos tal avaliação, "sempre dependemos de nossos juízos substantivos de justiça". Este ponto não só expõe a diferença entre a "posição original" rawlsiana e a "situação ideal de discurso" habermasiana. Mais importante ainda é que expõe a diferença de perspectivas da teoria da justiça e da teoria democrática. Vejamos.

Primeiro, a teoria da justiça é eminentemente normativa, enquanto a teoria democrática, além de ser normativa (o que devem ser as instituições políticas), é também descritiva e explicativa (como as instituições democráticas funcionam). Segundo, no plano estritamente normativo, uma teoria geral da justiça tem de lidar com o problema da relação entre igualdade e desigualdade entre pessoas ou grupos de pessoas, determinando que igualdades são corretas (moralmente justificáveis) e que desigualdades são incorretas (moralmente injustificáveis); ou, inversamente, que desigualdades são justificáveis e que igualdades são injustificáveis. Terceiro, o problema da igualdade/desigualdade não é unidimensional. Ele aparece em diversos níveis: por exemplo, na dimensão da distribuição de recursos materiais, na dimensão da determinação dos crimes e das penas, na do acesso à educação e à saúde, na da participação política e assim por diante. Ademais, o reconhecimento da igualdade numa dimensão não implica o mesmo reconhecimento em outras dimensões.

Os teóricos da justiça, hoje como na Antigüidade Clássica, dividem-se entre os que acham que é possível integrar esses vários níveis num conjunto sintético de princípios gerais e outros, que acham que esta perspectiva está fadada ao fracasso. Ambos, porém, sabem que a justiça se fala em vários modos. E isso quer dizer, entre outras coisas, que ela não se restringe à dimensão estritamente política. Contudo, há de fato uma questão específica de justiça no que se refere ao exercício do poder político. E é aqui que a parte normativa da teoria democrática dialoga com a teoria da justiça. Este é, por exemplo, o problema de quem pode participar e como deve participar das decisões coletivas. Há uma questão de igualdade neste problema? Todos os que são afetados pelas decisões políticas, e são obrigados a obedecê-las, devem participar igualmente dessas mesmas decisões? Naturalmente, esta é uma das questões centrais da teoria democrática.

Todavia, nenhuma teoria completa da justiça afirmará que a correta distribuição de poder político transporta automaticamente a justiça para os demais níveis. Vale dizer, é conceitualmente possível, numa comunidade política onde se promova uma razoável e substantiva igualdade política entre os cidadãos, que as decisões coletivas sejam injustas em outras dimensões, tais como a forma da distribuição dos recursos produtivos e naturais, do acesso à educação e à saúde etc. A justiça é um tema mais amplo e em vários aspectos independente da teoria do regime político legítimo.

Nos últimos desdobramentos de sua obra, Rawls passou a chamar seu novo contratualismo de "liberalismo político". Como o contratualismo moderno é uma das plaformas de inspiração do pensamento liberal clássico, talvez não seja tão abusivo – feitas as devidas ressalvas – chamar o liberalismo político rawlsiano de "novo liberalismo", termo que vamos empregar aqui num sentido mais restrito do que em seu uso popular. Finalmente, esperamos que o contraste entre liberalismo e novo liberalismo que passamos a fazer agora possa nos dizer algo sobre a diferença entre democracia e justiça.4

 

II

Costuma-se contrapor o ideário político popularmente adjetivado como "neoliberal" ao liberalismo de feitio mais igualitarista, como o de Rawls. Porém, se tomarmos o termo ao pé da letra, "neoliberalismo" ou "novo liberalismo" também poderia referir-se a um revigorado liberalismo na teoria política contemporânea, mais ou menos como falamos de neorepublicanismo, neomarxismo e assim por diante. E de fato o pensamento de Rawls é um marco na recuperação contemporânea do pensamento liberal, e que vai dar origem a outras vertentes de um liberalismo renovado, algumas mesmo fortemente adversárias de seu próprio pensamento (por exemplo, Robert Nozick).

"Liberalismo", sem dúvida, é um termo muito genérico. Abrange tantas possibilidades e tantas versões que torna difícil dar-lhe uma definição. A dificuldade maior talvez resida no fato de que o liberalismo não é apenas uma corrente teórica da tradição do pensamento moderno (isto é, da filosofia e teoria política), mas é também uma prática e uma ideologia políticas, cujo teor varia de um lugar para outro e de um momento histórico para outro. Para diminuir a vagueza do termo, vamos tentar tratá-lo mais do ponto de vista da filosofia e teoria políticas do que do ponto de vista da prática e da ideologia políticas, embora tenhamos de adiantar que nem sempre será possível preservar essa fronteira com todo rigor. Procederemos do mesmo modo ao falar do "novo liberalismo". Isso implica enfrentar a questão de um patamar mais abstrato e conceitual; o que não deixa de ter seu interesse prático, se esse patamar nos ajudar a entender melhor o significado das práticas políticas associadas à tradição liberal e suas heranças contemporâneas. O contraste, então, é entre o liberalismo clássico e o novo liberalismo.

Pode-se dizer que a preocupação fundamental do liberalismo clássico relaciona-se com o problema dos limites do poder político. É verdade que todo pensamento moderno se preocupou com os limites do poder político. Mas podemos perceber, nesse tema, uma diferença de ênfases. A ênfase do pensamento liberal clássico incidia sobre os limites do governo, ou os "limites da ação do Estado", para usar a expressão de um dos grandes autores liberais do século XIX. Outras correntes, como as republicanas e socialistas, davam ênfase aos limites da esfera privada. Enquanto, por exemplo, os socialistas chamavam mais atenção para as tendências de hipertrofia do poder político via propriedade privada, os liberais consideravam um tema mais urgente, e mais ameaçador para a boa ordem política, a hipertrofia do poder estatal, e procuravam pensar em limites nessa esfera exatamente para reservar um lugar ao sol às liberdades individuais e/ou à propriedade. Insistimos, diga-se de passagem, neste "e/ou" porque, mesmo no pensamento liberal clássico, não há necessariamente uma ligação entre a defesa das liberdades individuais e a defesa da propriedade. O liberalismo norte-americano, por exemplo, sempre fez uma defesa intransigente das liberdades individuais, mas nem sempre foi tão intransigente na questão da propriedade; e isso explica, em parte, porque naquele país o termo carrega uma carga semântica diferente da que observamos na Europa ou no Brasil.

A ênfase nos limites da ação estatal fez com que o liberalismo clássico formulasse uma teoria normativa de governo: uma teoria do governo legítimo. E isso tornou a corrente uma herdeira natural das preocupações do contratualismo moderno. Evidentemente, Espinosa e Rousseau podem ser considerados exceção, embora sempre seja possível encontrar problemas afins mesmo nesses autores. Mas tomemos como referência principal autores como Grócio, Pufendorf ou Locke. Todos eles partem de uma concepção de direitos naturais que serve (1) como um guia para pensar o correto procedimento para constituir um governo legítimo; (2) como um delimitador da ação desse governo, uma vez constituído; e (3) para formular um conceito de soberania. Mesmo Hobbes, que posteriormente despertará justas suspeitas por parte dos pensadores liberais, tem uma concepção de direito natural que, apesar de minimalista, bem poderia servir de base para uma teoria dos limites. Já no seu tempo ele deixava, na Inglaterra, menos enfurecidos os assim chamados defensores da "liberdade dos súditos" do que os defensores das prerrogativas reais.

Hobbes, além disso, foi um dos primeiros a formular claramente uma teoria da liberdade negativa (embora ela ainda não recebesse esse nome), tão cara aos liberais posteriormente. Isto é, a teoria de que a liberdade não é a lei, mas o silêncio da lei. Em parte, é graças a essa herança que o liberalismo entrou na história do pensamento político mais conhecido como uma teoria sobre o que os governos não podem fazer, do que uma teoria sobre o que devem fazer. Todavia, dizer que isso foi tudo que essa corrente herdou dos contratualistas seria um tanto injusto para com os liberais. Porque a outra parte da herança, muito bem assimilada pelo liberalismo, é a concepção de soberania. E a soberania está na base do conceito moderno de Estado, ou seja, o Estado nacional.

A soberania liberal tem duas faces. Sua face interna, que diz respeito aos súditos, inclina-se para uma noção de soberania limitada, em oposição à chamada "soberania absoluta". Mas sua face externa, que diz respeito à comunidade das nações, endossa inteiramente a noção de soberania como autodeterminação, isto é, a afirmação do direito absoluto de um Estado de não sofrer interferência de outros Estados em seus negócios internos. Aliás, não podemos nos esquecer de que o termo "liberalismo", como movimento político, nasceu na Espanha nas primeiras décadas do século XIX, num contexto de luta dos espanhóis, simultaneamente contra o Antigo Regime e o Império Napoleônico. Em outras palavras, num contexto de luta pela afirmação e independência de um Estado nacional. Observe-se que, em todas as lutas nacionalistas ocorridas no século XIX, vamos encontrar um engajamento teórico e prático favorável da parte do pensamento liberal. Assim será na Itália e na Alemanha, para não falar na América Latina. Graças a esse surto, toda reflexão que encontramos, por parte dos liberais do tempo, sobre o ideal da comunidade política vai se referir inevitavelmente (e positivamente) à comunidade nacional.

Em suma, o liberalismo clássico, tanto quanto outras correntes políticas teóricas, foi marcado pelo nacionalismo, e isso independentemente de suas diferenças internas em temas como a abertura comercial, o livre cambismo e outros assuntos controversos da economia política. Pode-se dizer o mesmo em relação à democracia? Essa é uma questão mais complicada. Na medida em que o tema da democracia se vinculou ao do sufrágio universal – como foi o caso no decorrer do século XIX – é certo que boa parte dos liberais fazia uma forte objeção à democracia. Antes de seu advento em instituições reais, o regime do sufrágio universal despertava ansiedades a respeito de ser ou não uma nova forma de tirania, a chamada "tirania da maioria" ou "tirania da multidão", e portanto um perigo às liberdades. Nessa mesma medida também poderia representar, é claro, um perigo à propriedade.

Como o centro do pensamento liberal era a defesa das liberdades e/ou da propriedade, a questão fundamental para o liberal clássico não era saber se deveríamos ter democracia, mas se a democracia era compatível ou não com aquele objetivo. A democracia era uma questão condicionada, e não condicionante. Como os liberais geralmente não viam como resolver esse problema a priori e com razoável margem de segurança, não é de surpreender-se que boa parte deles se distribuísse entre a resistência e a indiferença ao sufrágio universal. Por certo, houve exceções eloqüentes a essa regra: pensemos num John Stuart Mill, apesar de todas as suas próprias ressalvas ao sufrágio indiscriminado; ou no utilitarismo liberal de Bentham, um dos grandes defensores do sufrágio na Inglaterra, já no início do século XIX. (Note-se que algumas dessas exceções já representavam também um distanciamento crítico do modo de pensar contratualista.)

Contudo, conforme o próprio tempo foi esclarecendo que o sufrágio universal não tendia a fazer dos governos democráticos as tiranias previstas, e nem mesmo uma ameaça à propriedade, os liberais foram não só diminuindo sua resistência como se convertendo à tese exatamente oposta: que a democracia era o regime político que propiciava a melhor defesa possível das liberdades. Deixando de ser um problema, a democracia passou até a ser uma solução para o problema liberal. Chegamos desse modo ao século XX com um liberalismo que se via em condições de conciliar o ideal da soberania estatal e nacional, para o qual sempre se inclinou, com o ideal democrático, ao qual aderiu gradativamente.

 

III

Que aproximações e contrastes podemos fazer entre essa caracterização do liberalismo clássico e o novo liberalismo? Em primeiro lugar, a herança do contratualismo, o modo de pensar contratualista. Mas essa é uma aproximação mais de forma do que de conteúdo. Tomemos a obra mais influente do novo liberalismo, a de John Rawls. Nela o contrato é pensado para construir, não uma teoria do governo legítimo, como aparece em Grócio, Hobbes, Locke etc; mas para pensar, como vimos, uma teoria da justiça. E essa é uma diferença crucial. Pois no centro da teoria do governo legítimo está o conceito de soberania, portanto de Estado nacional. Mas a soberania não é central na teoria de Rawls. Aliás, não é central em nenhum dos grandes novos liberais, porque todos vão se inspirar neste ponto de partida do pensamento rawlsiano. Por conseguinte, vão tratar de defender ou criticar os princípios de justiça que o filósofo norte-americano deriva de seu contrato.

De certo modo, essa grande novidade do pensamento rawlsiano impôs a seus interlocutores, inclusive os outros novos liberais, a necessidade de apresentar teorias alternativas de justiça. É só pensar, por exemplo, na concepção mais radical no campo novo-liberal, representada pelo livro de Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia (Basic Books, 1974). Apesar da referência à palavra "Estado" no título do livro, a tese que constrói a respeito da origem dessa entidade serve essencialmente para guiá-lo na discussão sobre se a justiça deve ser redistributiva ou não. Não há nenhuma discussão sobre a comunidade política específica que deveria justificar e sustentar o Estado em questão. A noção de Estado nacional, nesse sentido, é completamente alheia à sua reflexão.

E aqui chegamos à segunda aproximação/contraste entre os dois liberalismos. É certo que novos liberais como Rawls, ao contrário de Nozick, possuem um conceito de comunidade política. A ausência desse conceito em Nozick é, por sinal, explicitamente criticada por Rawls (Political Liberalism, p. 264). Porém, a comunidade política rawlsiana é antes concebida, racionalisticamente, como um "sistema cooperativo" – no sentido quase econômico de uma associação cujos membros, ao dar sua contribuição para a preservação ou sucesso de um empreendimento comum, têm o direito de esperar que seus frutos também sejam repartidos eqüitativamente – do que como uma "nação": uma comunidade ligada por laços históricos, afetivos, lingüísticos, de nascimento ou de lutas políticas comuns. O pretendente à participação na comunidade rawlsiana não precisa apresentar nenhum desses credenciais, digamos, prosaicos, para reivindicar seus direitos de "membro". O critério de participação é mais objetivo, e diz respeito exatamente à noção de cooperação:

A idéia organizadora fundamental da justiça como eqüidade, dentro da qual outras idéias básicas estão ligadas sistematicamente, é a da sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação ao longo do tempo, de uma geração para outra.... Os termos eqüitativos da cooperação especificam uma idéia de reciprocidade: todos os que estão engajados na cooperação e que fazem sua parte, como as regras e procedimentos exigem, devem se beneficiar dela num modo apropriado, de acordo com um padrão adequado de comparação. Uma concepção de justiça política caracteriza os termos eqüitativos de cooperação. (Political Liberalism, p. 16).

Do conceito de comunidade política como um sistema cooperativo podemos derivar a noção de um governo que administra imparcialmente princípios de justiça distributiva, mas não necessariamente o governo de um Estado nacional, com o conceito de soberania que lhe é peculiar. Note-se, contudo, que não estamos afirmando que Rawls fosse desde sempre avesso à noção de Estado nacional. Sugerimos simplesmente que sua armação conceitual não está voltada para essa questão.

Rawls também fala, é verdade, da comunidade política como uma "sociedade fechada". Mas "fechada" para quem? Certamente para os que não cooperam. Contudo, na medida em que nos vemos como participantes de qualquer atividade cooperativa, inclusive e especialmente a econômica, mais ampla do que aquelas que ocorrem nas tradicionais fronteiras nacionais, por que esse sistema cooperativo não poderia ser considerado a comunidade política, nos termos de Rawls? Não por acaso, em suas reflexões mais recentes sobre justiça internacional, ele procura questionar a noção tradicional de soberania estatal, pois esta fecha qualquer possibilidade de entidades extra-nacionais, em nome de uma comunidade mais ampla, interferirem nos assuntos internos dos Estados. Daí sua distinção entre "povos" e "estados":

Uma outra razão para usar o termo "povos" é distinguir meu pensamento do modo como os Estados políticos são tradicionalmente concebidos, com seus poderes de soberania... Esses poderes incluem o direito de ir à guerra em prol de objetivos de Estado... Os poderes de soberania também garantem a um Estado uma certa autonomia... para lidar com seu próprio povo. Da minha perspectiva, essa autonomia é errada. (The Law of Peoples, pp.25-6. Harvard University Press, 1999).

Como se vê, a questão da justiça reduz a importância do problema, anteriormente crucial no pensamento liberal clássico, da soberania e da identidade nacional que a especifica. Quando a justiça passa para o centro da reflexão, é menos importante saber se pertencemos a esta ou aquela nação, do que se fazemos parte de uma comunidade que é normatizada por regras de cooperação justas, e se temos um governo que se esforça para conservá-las. Isto pode ser pertinente a países, ao Brasil ou à Suécia por exemplo, mas também poderia sê-lo ao mundo como um todo, se o concebêssemos como uma só sociedade em cooperação. Em face dessa ênfase, não é surpreendente que certos autores começassem a suspeitar que a comunidade pensada pelo novo liberalismo, ao prever laços pouco "quentes" entre seus membros, poderia significar a implosão da própria idéia de comunidade. E esse é o mote de toda uma nova corrente contemporânea do pensamento político, que cresceu precisamente em reação a essa tese.

Finalmente, se pensarmos que a progressiva identidade entre "Estado" e "nação" trouxe para o centro da política moderna o tema da soberania popular e democrática, fica claro por que o contraste entre o liberalismo clássico e o novo liberalismo, aqui exposto, também joga luz sobre o contraste entre a questão democrática e a questão da justiça. Como mostra R. Dahl5, as regras do jogo democrático só podem ser aceitas por seus participantes se a identidade da comunidade que o joga estiver previamente determinada. É exatamente essa carência que a identidade nacional de uma comunidade vem a suprir. Em última instância, ela empresta legitimidade às decisões democráticas, especialmente quando as questões a serem decididas são muito controversas, exigindo para sua resolução os procedimentos democráticos típicos nesses casos, como a regra da maioria.

Contudo, não é sobre esse princípio de legitimação (a identidade prévia da comunidade) que incidem as reflexões dos novos liberais. Antes, elas voltam-se para o conteúdo normativo das decisões de governo – se são justas ou não. Ainda que esse exame venha a requerer um "artifício de representação", tal como a posição original de Rawls, que pode ser pensado como um "procedimento", trata-se de um procedimento completamente distinto da legalidade democrática. Enquanto esta última constitui um processo decisório real, materializado em instituições políticas concretas, o procedimento da justiça é antes uma ferramenta para pensar, um thought experiment.

Esse procedimento ideal nos libera de privilegiar, quando se trata de fazer uma apreciação normativa das instituições políticas, a forma concreta, histórica, com que essas instituições são constituídas e à forma com que os ocupantes de seus governos chegam a esses postos. Em outras palavras, nos libera de privilegiar as questões de legitimidade, ainda que elas continuem a ter sua pertinência. E permite, portanto, pensar diretamente sobre a justiça das decisões para uma variedade de níveis e tipos de governo, seja ele o de um Estado democrático nos moldes atuais, ou de qualquer outro formato histórico que venham a ter as instâncias governamentais no futuro.

Por que a ênfase na justiça é politicamente tão importante nas teorias do novo liberalismo? Aqui temos de retornar à citação com que iniciamos este texto. Como vimos, Rawls havia ressaltado a distinção entre legitimidade e justiça: nem todos os atos legítimos de governo são atos justos; portanto, questionar a justiça das decisões não implica, necessariamente, questionar sua legitimidade. Porém, ao mesmo tempo, ele lembra que a partir de um certo limiar decisões injustas contaminam a legitimidade dos atos de governo. Isto é, a partir deste limiar, a democracia e a justiça, que são, abstratamente falando, conceitos distintos, passam a estabelecer uma relação de feedback, a determinar-se mutuamente. Esta é a região em que as questões políticas reencontram-se com as questões éticas ou morais. Neste nível, os procedimentos políticos não são julgados apenas pela sua correção formal, mas tanto pelos valores morais que os embebem quanto por seus resultados.

É verdade que o liberalismo clássico também se preocupou com essas regiões de interseção entre a política e a moral. Porém, a moral desse liberalismo, inspirada outra vez nos cânones do contratualismo moderno, aparece como pouco ou nada problemática, pois que diretamente acessível ao "senso comum" ou à "intuição racional". Sua moralidade é dada pelas "leis e direitos naturais", e essas leis são geralmente tratadas como "axiomas da razão", isto é, como proposições tão auto-evidentes como a noção de que o menor caminho entre dois pontos é uma reta. Essa moral intuicionista, pouco problemática, fez com que o liberal clássico se preocupasse menos com a fundamentação das proposições morais e mais com o problema seguinte de seu esquema conceitual, o da constituição de governos em conformidade com esses axiomas.

No contratualismo que inspirou o liberalismo clássico, a questão crucial é a seguinte: desde que os indivíduos são detentores de direitos naturais (uma proposição auto-evidente), como os governos podem se constituir sem violar esses direitos? E a resposta padrão é esta: volenti non fit iniuria (o que é voluntário não é injusto). Se houver consentimento voluntário por parte do súdito, obedecidos os rituais prescritos pelo direito natural, o soberano é legítimo, e também suas decisões. A legitimidade de um governo é baseada na atitude voluntária, no consentimento. Este é um pressuposto central da "ficção do contrato", que está na base do modo – desta vez não ficcional, mas real – de construir a legitimidade democrática dos governos e de suas decisões.

Que mudanças, a esse respeito, ocorrem nas teorias políticas do novo contratualismo liberal? A idéia do consentimento voluntário continua, certamente, a ser um elemento importante. Porém, mais importante do que a sanção da vontade é o tema da fundamentação de sua moralidade. No novo contratualismo liberal as questões éticas ou morais são altamente complexas e problemáticas. Há uma profunda desconfiança do pressuposto de que as idéias morais podem ser intuídas diretamente. Daí que o contrato, o "artifício de representação", tenha de ser deslocado do nível da constituição dos governos para o nível da elaboração das proposições morais. Elas já não são mais "axiomáticas", mas têm de ser submetidas a exame crítico, comparadas, balanceadas e continuamente revisadas. (Essa tomada de consciência da complexidade e do caráter movediço das questões morais, ressalte-se, está muito bem expressa na idéia do "equilíbrio reflexivo" de Rawls.)

Numa teoria normativa que trabalha com critérios ideais, todo processo decisório real é um procedimento imperfeito. Não há como garantir com certeza que seus resultados serão justos, ainda que houvesse total acordo a respeito das características gerais de uma decisão justa. É só enquanto um processo de argumentação racional que a justiça é um "procedimento puro". Ou seja, se o artifício de representação com o qual se organiza o argumento é corretamente construído, então o que sai do argumento – no caso, os princípios de justiça – também será correto. O resultado não é concebido como independente, separável, do modo como se elabora o artifício de representação, a situação contratual. O que é justo ou injusto, portanto, não depende do consentimento real das pessoas, mas da natureza e da qualidade da argumentação. O teste de validação dos princípios de justiça não é se mais ou menos pessoas votam nesses princípios, mas sim os critérios que nos fazem distinguir um bom e um mau argumento. Enfim, os critérios usuais do debate racional.

É bastante compreensível, portanto, que o novo liberalismo não se satisfaça com o consentimento voluntário que sanciona um governo legítimo. Por isso, não só os atos dos governo eleitos, mas dos próprios cidadãos-eleitores ao consenti-los, passam agora a estar fortemente vinculados, de uma forma que jamais estiveram no liberalismo clássico, a seus conteúdos substantivos. Eis também por que Rawls vai lembrar, em seu debate com Habermas, que em todo procedimento político vale o lema garbage in, garbage out: se no processo decisório democrático algo ruim entra no início, inevitavelmente algo ruim também sairá dele, como resultado.6 É claro que o modo como os procedimentos políticos serão julgados, com base nesse método, vai variar de autor para autor. De qualquer forma, Estados democráticos podem agora ser considerados mais ou menos justos, pouco ou excessivamente igualitários, dependendo do modo como as questões morais de fundo são articuladas e justificadas.

 

 

* Um rascunho do que está exposto neste artigo foi apresentado no Simpósio de Ética, em Uberlândia (junho de 2002).
** Sua publicação mais recente em Lua Nova é "República e democracia" (n.o 51/2000).
1 Todas as traduções são de responsabilidade do autor.
2 Embora Rawls faça uma distinção entre "justiça procedimental" e "justiça substantiva", ele vai argumentar, em sua discussão com Habermas, que a justiça, no plano em que a está tratando, nunca é puramente procedimental, mas sempre tem alguma base substantiva.
3 Os critérios mais abstratos (ou filosóficos) que definem o que torna um regime político legítimo podem ser considerados um ramo de uma teoria geral da justiça. Repare-se, porém, que: (a) isto já mostra que a teoria da legitimidade política não é da mesma extensão de uma teoria da justiça completa; (b) que é bem possível que vários tipos de regimes políticos sejam compatíveis com os mesmos critérios abstratos de justiça política.
4 Para uma abordagem do mesmo tema, mas de um outro ângulo e projetando luz sobre questões que não serão abordadas aqui, ver Álvaro de Vita, "Democracia e justiça". Lua Nova 50/2000, pp. 5-23.
5 R. Dahl, Democracy and Its Critics. Yale University Press, 1989, capítulos 10 a 14..
6 "Reply to Habermas", in Political Liberalism, pp.430-1.