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Revista Brasileira de História - Ocupações de Áreas Urbanas em São Paulo: Trajetórias de Vida: Linguagens e Representações

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Revista Brasileira de História

On-line version ISSN 1806-9347

Rev. bras. Hist. vol. 18 n. 35 São Paulo  1998

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000100016 

Ocupações de Áreas Urbanas em São Paulo:
Trajetórias de Vida
Linguagens e Representações

 

João Carlos de Souza
Universidade Federal de Minas Gerais

 

 

RESUMO
O artigo tem por objetivo analisar algumas experiências de vida de seis ocupantes de terra, na luta por moradia, na cidade de São Paulo. A partir de relações sociais conflituosas, estabelecidas por esses ocupantes com os vizinhos às áreas ocupadas, relatada por eles em entrevistas gravadas, pretende-se compreender como foram reelaborando sua linguagem e identidade.
Palavras-chave: identidade, migração urbana, experiência de vida.

 

ABSTRACT
The article has as subject to analyse some life experiences of six land accupants on fight for habitation in São Paulo City. From the conflictous social relationship established by these occupants with neighbours living in the occupied areas, narrated by themselves in recorded interviews, the author aims to understend how their identify and language was reelaborated.
Keywords: identity, urban migration, life experiences.

 

 

Muitos migrantes na cidade de São Paulo, cujas trajetórias de vida foram marcadas por situações de profundo significado no contexto de suas lutas por moradia, especialmente nas ocupações de terra, foram descobrindo-se enquanto sujeitos do processo, momento em que também, de alguma forma, reelaboraram sua identidade, mediados pelas interações estabelecidas em seus novos espaços.

Cabe, entretanto, uma explicação para o tratamento que daremos às histórias de vida de alguns desses migrantes ocupantes de terra. A abordagem será realizada a partir de alguns fragmentos de conversas relatando suas experiências no referido contexto. Em que sentido fala-se aqui de histórias de vida? Embora delimitantes, entendemos que esses fragmentos de discursos enquanto parte de experiências mais amplas de suas vidas, possuem grande valor por desvelar a reelaboração de sua identidade enquanto grupo. A análise de suas falas ganha importância, uma vez que estas constituíram-se no bojo de experiências coletivas.

Privilegiando a análise da linguagem a partir de suas falas e atitudes, das histórias de vida dos ocupantes1, consideramos apenas parte das trajetórias de alguns deles, principalmente as relacionadas com experiências vivenciadas no processo de ocupação de terras e no cotidiano das relações pessoais, nas tentivas de adequações aos novos espaços físico e social (interlocuções que estabeleceram com a vizinhança das áreas das terras ocupadas, com autoridades e também as reflexões sobre os discursos presentes na sociedade, de vizinhos ou em reportagens escritas, embora estas últimas não se constituam no enfoque principal deste artigo).

As considerações aqui apresentadas estão norteadas por extensa problemática: os reflexos das experiências dos ocupantes em sua linguagem e atitudes do cotidiano, nas suas interações, nas suas representações do mundo; o estímulo que o discurso do outro pode provocar em termos de reflexão, possibilitando um contra-discurso e contribuindo para a produção de uma auto-imagem; as leituras que os ocupantes foram fazendo de suas experiências e em que sentido marcaram suas trajetórias de vida.

As questões, portanto, da constituição da linguagem, das representações e da identidade de alguns ocupantes de terra, são discutidas a partir dos referenciais advindos da experiência, de suas vivências cotidianas num novo espaço, que oportunizaram o confronto dos discursos, definidor de relações sociais, de reconhecimento ou de desqualificação. Nesse sentido, a análise foi realizada de uma perspectiva como a de Eder Sader, para quem "o discurso que revela a ação revela também o seu sujeito"2. No discurso encontramos o sentido das coisas, a direção que se pretende dar às relações, nas quais os sujeitos se revelam, em seus novos espaços.

Essas interlocuções deram-se por ocasião de atitudes concretas no cotidiano e em relação a situações definidas (a forma indevida de acondicionamento do lixo ou o uso de telefone público, por exemplo). Foram várias as situações em que os ocupantes tiveram que se impor para fazer valer o direito de serem respeitados. E é precisamente o que faz parte da experiência de Dona Leozina, do Jardim São Carlos, conforme nos narra:

Sê considerada invasora não é nada, o pior é que eles xingava a gente de maloquera... não todos, né, porque teve muitas pessoa aí que ajudô a gente, mas teve muitas... chamava a gente de maloquero, de vagabundo que não queria trabalhá, ficava invadindo terreno... de favelado, disso, daquilo. Eles humilharo a gente pra caramba. Humilhavam. Mas eu nunca me... entreguei por causa disso. (...) Então eu não me sentia diminuída, de jeito nenhum, não sentia diminuída não. Levantava a cabeça, não queria nem sabê. E era bestera, porque alí mesmo do outro lado, teve gente lá do outro lado, que veio jogá lixo na minha porta e eu fiz a mulhé catá com a mão na hora e carregá pro lixero levá. E o lixero passô e ela não pois o lixo. Quando eu escutei o barulho de lata que eu vi que ela tava jogando, assim como daqui no seu carro ou mais perto, na minha porta, na hora eu fiz ela catá. Falei:

- O que que a senhora tá pensando, que a gente mora num barraco não é gente igual a vocês? Samo, samo gente igual a voceis. Voceis tivero a felicidade de tê uma casa e nois ainda não, mas nois vamo tê a nossa. Mas nem porisso, porque eu tô num barraco eu vô quere lixo teu aqui.

Ah! Fiz ela catá na hora3!

Nesta narração de Leozina, dois elementos podem ser destacados. Um primeiro nos revela que parte da vizinhança os representavam como: "maloqueiros"," vagabundos", "favelados"... Essa visão teve reflexos nas posturas práticas de moradores próximos às áreas ocupadas, pois muitos negaram solidariedade aos ocupantes (em situações como, por exemplo: ceder ligações de extensões de encanamento de água e de rede elétrica aos barracos, enquanto estes ainda não podiam contar com esses serviços básicos, dada a situação irregular dos assentamentos).

Um segundo aspecto é o do lixo, e este tem um valor simbólico nessa disputa, explicitando o lugar que a sociedade atribuiu aos "invasores", identificando-os com o quê não presta e que se descarta, pois moram em barracos e não são merecedores de consideração. Revela uma certa visão de mundo, presente em vários segmentos da sociedade, refletida na atitude da moradora mencionada na fala da Leozina: bom é quem está empregado, tem casa boa para morar, veste-se bem e desfruta de uma posição na sociedade. São esses os referenciais de grande parte da população. Dessa forma, a desqualificação dos "invasores" passa pelo referencial de que estes não estão integrados ao modelo social vigente. O porquê do não acesso de todos a esse modelo, não é posto em questão.

Mas Leozina não fica ociosa. A capacidade de indignar-se leva-a a uma pergunta que já supõe uma reflexão: "quem mora em barraco não é gente?". Seus referenciais de leitura dessa realidade são outros: passam pela experiência da migração, da condição de "sem terra" e "sem teto". A trajetória de migrante é marcada por sofrimento, muito trabalho, baixos salários, fome, saudade dos amigos e familiares, discriminações... Como podem, então, sofrer a desqualificação referida? A reflexão e a resposta trazem implícitas a importância que possuem, para além de consumidores ou proprietários. Invoca a igualdade de ser gente igual a eles. A desqualificação é questionada sobrepondo-se a ela uma outra representação ontologicamente mais ampla - a de ser gente, pessoa.

As relações entre os antigos e os novos moradores se dão, portanto, em torno do uso do espaço e na busca dos mesmos direitos, especialmente por parte dos ocupantes que desejam e necessitam ser reconhecidos como pessoas. Vistos como intrusos, constituindo-se em inoportunos que vêm tirar a tranqüilidade e o sossego dos antigos moradores, os ocupantes depararam-se com diversas situações em que o conflito foi explicitado. Nesses momentos, em maior ou menor grau, os ocupantes despertaram, tomaram consciência do que podiam representar, de sua identidade (não a imposta pelos discursos dos outros).

Esse movimento pode ser percebido tanto nas circunstâncias relatadas por Dona Leozina, como no diálogo a seguir mantido entre a ocupante Ilza e os moradores próximos ao Jardim Bandeirantes:

Quando nós entramos aqui, os vizinhos não... muitos não aceitavam porque diz que os bandido tinha vindo pra aqui. Que somos nóis. (...) E até hoje. Hoje mesmo eu fui no orelhão e aquela fila de gente! Aí uma senhora, que mora no prédio alí do mercado, passô e começou a chiar:
- Ah! esse povo! Esses invasor aqui pendurado nesse telefone, a gente precisa desse telefone e tá ocupando...
Eu falei:
- Espera aí dona, dá licença, venha aqui, se existe esse mercado aqui por que hem? Abriu esse açougue aqui por que hem? Aquela farmácia que abriu ali por quê? Se nóis não tivesse vindo aqui não tinha abrido isso aí, não? Eles iam vendê as coisa aqui pra quem, pra meia duzia de gente que morava aqui?
- Quem é a senhora?
- Eu sou eu mesmo.
- Como é o nome da senhora?
- Sou eu mesmo. Eu acho que a senhora deve respeitá nóis. Não tô mexendo com a senhora. Se a senhora está se achando prejudicada manda colocá um telefone pra nóis lá em cima. Não foi falta da gente reivindicá. A gente é discriminada até hoje4.

Priorizamos a análise da interlocução entre os ocupantes e seus vizinhos por entendê-la como o espaço de produção de linguagem e de constituição dos sujeitos. Reconhecemos que, como no texto de Geraldi citado,

a questão da linguagem é fundamental no desenvolvimento de todo e qualquer homem; de que ela é condição `sine qua non' na apreensão de conceitos que permitem aos sujeitos compreender o mundo e nele agir; de que ela é ainda a mais usual forma de encontros, desencontros e confrontos de posições, porque é por ela que estas posições se tornam públicas5...

É o que nos revela o diálogo mencionado acima, na fala de Ilza. A cobrança, por parte da moradora vizinha à área ocupada, de uma identidade social não reconhecida por ela nos "invasores" está fundada numa relação de propriedade. Na verdade, a pergunta: "Quem é a senhora?" já continha uma afirmação: "Vocês não são ninguém, não têm nada, são miseráveis, invasores;com que direito vêm nos atrapalhar?; tirar nosso sossego?; usar nosso telefone?; invadir nosso espaço?" A desqualificação é uma cassação do direito de cidadania, do direito de acesso e uso de equipamentos coletivos, seja um telefone público, uma escola etc.

A atitude de desqualificar e de negar o espaço aos novos moradores (aos ocupantes) foi respondida por Ilza com uma verdadeira aula, pois ela entendia as interrelações que já se estabeleciam no local, onde a prosperidade e os rendimentos do comércio dos moradores, que estavam há mais tempo instalados, dependiam da presença dos ocupantes enquanto novos consumidores. O outro elemento dessa reflexão é marcado pela resposta: "eu sou eu mesmo", que reafirma a personalidade, não fundada naquilo que lhe é externo (o ter uma casa, por exemplo), mas no fato de ser uma pessoa.

Ao se defrontarem com essas situações do cotidiano, os ocupantes recusaram a denominação de invasores e foram elaborando reflexões e falas, as quais resultaram na composição de um universo de representações capaz de legitimar a sua situação de ocupantes e de superar a desqualificação que sofriam.

"Invasor", "infrator", "baderneiro"," maloqueiro", "vagabundo", "bandido"... - a essas representações, a esse imaginário coletivo desqualificador, tinham que opor um outro," o seu," com o objetivo de manter a luta acesa, dar ânimo novo e efetivar o seu projeto.

É diante disso que podemos afirmar que a comunicação na vida cotidiana é extraordinariamente rica e importante, pois o material privilegiado nesse tipo de comunicação é a palavra. Conforme afirmou Bakhtin: "É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se situam". Segundo o mesmo autor, as palavras estão presentes em todas as relações entre indivíduos, pois "as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios." E o autor conclui que a palavra é sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais6.

Numa síntese de vários aspectos que foram abordados, a ocupante Francismar, conhecida por Fran, expõe um contexto amplo de relações, uma fala rica, reveladora do espírito das ocupações, do que representaram e da distinção que se pode fazer entre ocupante e invasor:

Mesmo no começo, eu não tinha uma consciência, uma clareza mais grande, mas quando eu via os noticiários, mesmo numa revista Veja que saiu uma foto minha e mais uns companheiros e saiu lá o nome: invasora, né e tal. Ainda me lembro até hoje é... costureira desempregada tal... tal... invasora... aquilo me chateou, me chocou na hora. Então eu achei que era um nome muito pesado pra gente que no fundo no fundo a gente... claro, eu não concordo de a gente chegá e invadi alguma coisa de alguém, mas no nosso jeito era necessário porque você não tinha pra onde ir. Você tá com problema de aluguel, você tá com o aluguel atrasado, com risco de despejo e eu deixei sempre claro pro pessoal. Aí que nós começamos a mudá o nome, né, que antigamente falava invasão e ficava p. da vida quando alguém falava, sabe:
- Ah! Você mora lá na invasão?
Eu falava:
- Eu não moro na invasão. Eu moro na ocupação. Eu sei que invasora é quando você invade uma coisa, invade uma fábrica, que você não tem necessidade de invadi, ou um banco que você não tem necessidade daquilo. Então eu acho a palavra invasão muito pesada, muito fora de ética. Acho que é um dos nomes que a gente não merece assim, sabe. Optei pela ocupação porque é um pouco mais suave. Então, e é uma coisa assim que eu gostaria de deixar bem claro pras pessoas que acha que invadi. Invadi aquilo que esta sendo usufruído, está sendo construtivo até pesa... no caso de quem vai fazer isso. Mas no caso do abandono, no caso do esquecido, acho que não é nada de errado, acho que é até uma coisa construtiva. Só é chato até hoje se alguém fala assim:
- A Fran é invasora.
ou
- Você roubou o terreno de alguém.
Eu fico danada da vida. A gente ouve muito disso daí, viu. Eu acho que as pessoas que falam isso é as pessoas que não tem consciência. A pessoa que é sensata nem cita isso daí7.

Destacamos nessa fala de Fran, a sua reação - que foi também a de outros ocupantes - diante do que a imprensa noticiava e as pessoas falavam, quando a identificavam como" invasora"; identificação que despertou um sentimento de tristeza mas, por outro lado, provocou a reflexão: "mas é um nome muito pesado".

No início, o termo "invasão" não era objeto de maior atenção, conforme disse Fran: "mesmo no começo eu não tinha uma consciência, uma clareza...". Mas a experiência de vida, a necessidade: "(...) você não tinha pra onde ir. Você tá com problema de aluguel (...) risco de despejo (...)" possibilitou reavaliar o seu significado. É nesse contexto social e histórico que aconteceram as interações: de um lado uma concepção já elaborada do significado de "invasão" de propriedade presente na sociedade; de outro, a experiência de vida de migrantes sem moradia, que operam nos limites estabelecidos por esta formação social, na esperança de alterá-los a partir de sua ação e com um novo discurso.

Portanto, esses dois aspectos - a experiência de vida, que também é coletiva, e as interlocuções - provocaram a reflexão, uma nova percepção, uma visão diferenciada de mundo por parte de Fran e de outros ocupantes, que passaram a atribuir novos significados às suas ações e a fazer uma leitura crítica no confronto com o discurso do outro. Nesse processo, redefinem-se: são ocupantes!

Como afirma Geraldi, "(...) os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como produto deste mesmo processo. (...) Também não há um sujeito dado, pronto, que entra na interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas"8. Nesse sentido, a fala da ocupante Fran é mais uma vez reveladora da importância da interação verbal como o lugar da produção da linguagem e dos sujeitos. Em sua fala, ela também estabeleceu uma vinculação entre invasão e o conceito de roubo; por esse mesmo motivo, muitos entrevistados recusaram-se a aceitar tal denominação.

Uma outra distinção que foram elaborando refere-se aos termos "favela" e" acampamento". Existia um imaginário de vergonha presente entre os ocupantes: o de serem identificados com moradores de "favela". Discriminação por parte dos ocupantes em relação aos favelados? Essa desqualificação realizada no âmbito da sociedade e que os ocupantes recusaram, não é sem fundamento. O que estava em jogo não era só o aspecto semelhante da moradia (barracos feitos de materiais plásticos, tábuas velhas e madeirite, papelão ou mesmo um cômodo de alvenaria sem reboco, tão característicos das favelas de São Paulo), mas as outras representações que lhes são associadas, desqualificações discriminatórias que são feitas aos moradores de favelas: maloqueiros, gente ruim, vagabundos...

A reação foi a de negar e combater essa desqualificação, usando outras imagens, outras falas: "é um acampamento". Essa designação carrega uma idéia de provisoriedade e não contém, para a convivência social, aqueles estigmas que cassam os direitos de cidadania. Com ela, querem demonstrar que, o que os marca não é o fato de serem "invasores", ou de morarem em barracos, mas a singularidade reafirmadora de pessoas; como as demais, querem ser tratadas como gente.

No centro da recusa a serem chamados de invasores - como atestam as falas de Leozina, Ilza e Fran - está uma outra história, uma outra imagem. A percepção de que havia uma distinção entre invasão e ocupação foi uma construção que esses ocupantes foram realizando no processo, especialmente aqueles que não tinham nenhuma vivência anterior em movimentos populares. Trata-se de algo relevante, pois o grupo de ocupantes no curso de suas relações sociais - ao criar novos signos como ocupação e acampamento - possibilitaram a manifestação de sua consciência, ou seja, que esta tomasse forma e existência9.

Ainda que de forma breve, abordamos alguns aspectos dos vários discursos que alguns entrevistados foram elaborando para justificar as ocupações. Nesse processo de elaboração pode-se perceber a importância de suas experiências de vida enquanto migrantes que tentam sobreviver em condições precárias numa metrópole como São Paulo e lutando por moradia. A essas experiências deve se associar algumas matrizes discursivas; entre outras, aquelas veiculadas pelo Movimento dos sem terra.

Nas falas e reflexões dos entrevistados o discurso de justificação da luta e, portanto, das ocupações ganhou seu contorno mais forte em torno da noção de Direito. Direito que se apresentou sob várias nuances: um Direito Natural, fundamentado no discurso religioso; um Direito Público, que parte de um entendimento de que a propriedade pública deve ser destinada ao social e um Direito Legal, que considera a necessidade - direito real de uso.

O ocupante Dimas, por exemplo, fundamentou o direito à ocupação num princípio bíblico:

A partir da hora que a gente tá precisando a gente vai, vai lutar por uma coisa que a gente tá sabendo que a terra foi Deus que fez, que o terreno não é de ninguém, é da gente mesmo. Como a gente tá precisando de um pedaço de terra e tá sabendo que tá aí, nos grileiros, ficar aí fazendo, ganhar dinheiro em cima da coisa que Deus pôs no mundo, a gente (...) Deus dá à gente uma força(...)10.

Para legitimar a luta por moradia e as ocupações, Dimas recorre ao princípio bíblico de que Deus criou a terra, e portanto, ela pertence a todos os seus filhos. Trata-se da evocação de um direito natural fundamentado num discurso religioso. O campo do sagrado, conforme análise de Antonio Torres Montenegro, torna-se referência para dar força e certeza de vitória no enfrentamento11. Carrega também uma representação de justiça divina, pois injusta é a situação em que muitos se encontram: sem terra para morar, submetidos à especulação dos grileiros, os verdadeiros invasores.

A matriz desse discurso encontra-se na Teologia da Libertação, assumida, então, pela Região episcopal de São Miguel Paulista através do Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, D. Angélico Sândalo Bernardino. Em um artigo no jornal "Grita Povo", de Maio de l984, o religioso fez uma análise da situação da classe trabalhadora no Brasil: sem terra para plantar e morar. Classificou-a de uma" situação cadela". Entre outras afirmações, escreveu: "Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário." E teceu considerações sob o ponto de vista bíblico em relação à propriedade da terra: "A terra é de Deus e Ele a dá, em propriedade e uso, a Todos os seus filhos"12.

Uma outra noção de direito também foi sendo elaborada no processo de justificação e legitimação das ocupações. É o direito sobre a coisa pública, que é identificada com o referencial visível: o governo. Nessa perspectiva, veja-se a narração/ argumentação do ocupante Sr. Molina em relação ao diálogo que manteve com policiais da cavalaria que o indagavam sobre as razões da ocupação:

"- Quantos anos o senhor tem ?
E eu disse:
- Sessenta e treis anos.
- Nessa idade o senhor ainda não criou vergonha na cara pra tá invadindo propriedade dos otro?
Aí foi quando eu respondi pra ele:
Não! Eu... como se diz, é... vergonha na cara é uma coisa que sempre tive e nunca pensei em invadir propriedade de ninguém, mas como isso aqui é do Governo, o que é do governo é nosso"
13.

Há nessa noção um conceito de coisa pública, como algo a que todos tem direito enquanto participantes de uma sociedade. Os bens sob a guarda do governo fazem parte de um patrimônio que é de todos, especialmente dos que ainda não têm acesso à terra, elemento necessário à sobrevivência. A noção de que a propriedade alheia é inviolável persiste, porém não foi qualquer propriedade que foi ocupada. Trata-se de uma propriedade pública, destinada ao social.

Um terceiro viés dessas justificativas é o direito real de uso e foi elaborado na própria vivência dos ocupantes, de suas observações e necessidades. Uma terra abandonada, que não está sendo utilizada para nada, é terra de ninguém. É de quem precisa - raciocina Severino:

Bom, eu acredito que nós estamos invadindo uma terra que era nossa. A terra tava abandonada aqui... então nós invadimo, lógico14.

Embora Severino empregue o termo "invadir", opera, na realidade, com a lógica da ocupação: "terra que era nossa... estava abandonada." O que se apreende dessa fala é uma séria questão acerca da utilização do espaço urbano: como ficam os terrenos abandonados em meio à cidade? Severino questiona a inutilidade dos terrenos baldios e das grandes áreas desocupadas e demonstra indignação, ao mesmo tempo em que denuncia uma situação de injustiça: como podem existir áreas abandonadas, havendo tantos necessitados? Em última instância, questiona a especulação do mercado de terras.

Existe, por parte dos ocupantes, o reconhecimento da propriedade, mas não como valor absoluto. O que questionam é a ausência de uma destinação social. O valor que colocam acima do direito de propriedade é o da vida. Trata-se também de um princípio defendido pelo Movimento dos sem terra15.

Investigando e analisando a linguagem dos ocupantes, é possível identificar alterações na mesma, alterações que ocorreram no e a partir do processo de luta pela terra e moradia que lhes ofereceu novos referenciais, possibilitando outras leituras de mundo, novos valores e, dessa forma, a construção de contra-discursos.

Os sujeitos ocupantes buscaram o reconhecimento em seus novos espaços, estabelecendo relações com os moradores vizinhos às áreas, relações que por vezes revelaram-se conflituosas. Foram nesses embates que forjaram contra-discursos, falas questionadoras de conceitos e opiniões mais gerais da sociedade sobre a problemática dos sem terra e sem moradia. Recusaram a denominação de "invasores" e as representações a ela correlatas, e a esta opuseram a de "ocupantes".

Enfim, passaram a avaliar as ocupações, em que estavam inseridos, em outro âmbito de discurso: questionando o meramente legal foram capazes de pensar a existência, e nas relações que produziram, de pensar a vida, valor acima de qualquer outro. Só a vida pode trazer a dignidade. É o que está sempre presente em suas falas. No campo do simbólico, portanto através de suas falas, os ocupantes de terra forjaram novas representações, que os auxiliaram na reelaboração de sua identidade.

 

NOTAS

1 Nas quatro áreas já mencionadas, foram entrevistados 33 ocupantes. Desses, apenas 6 serão mencionados, todos com a devida autorização por escrito para publicação.

2 SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 57.         [ Links ]

3 Entrevista concedida por Leozina, no Jardim São Carlos, em 08/11/90.

4 Entrevista concedida por Ilza, no Jardim Bandeirantes, em 21/07/91.

5 GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 2ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 1993, pp. 04-05.         [ Links ]

6 BAKTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6ª ed., São Paulo, Hucitec, 1992.         [ Links ]

7 Entrevista concedida por Francismar, na Vila Iolanda, em 09/03/91

8 GERALDI, J. Wanderley, op.cit. p. 6.

9 BAKHTIN, Mikhail. op. cit., p. 34. Afirma que: "A consciência surge e se afirma como realidade mediante a encarnação material em signos."

10 Entrevista concedida por Dimas, no Jardim Mabel, em 23/03/91.

11 MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo, Contexto, 1992, pp. 59-63.         [ Links ] Analisa a função da "aliança com o sagrado" entre os moradores de Casa Amarela, região de Recife, na disputa pelas terras daquela área.

12 BERNARDINO, D. Angélico Sandalo "Urgente: a Terra é de Todos". In Jornal Grita Povo. maio/84.         [ Links ] Artigo onde oferece orientações ao Movimento dos sem terra que estava sendo fundado naquele ano.

13 Entrevista concedida pelo Sr. Molina, no Jardim Mabel, em 04/11/90.

14 Entrevista concedida por Severino, no Jardim Mabel, em 05/04/91.

15 Jornal Grita Povo, Ano III, nº 20, maio/84.         [ Links ] Em artigo "Urgente: A Terra é de Todos," D. Angélico afirma: "Não há lei, não há direito, que estejam acima da vida. Homens sem terra tem direito à terra para viver dignamente. O resto é conversa fiada!"