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Psicologia: Ciência e Profissão - "Psicologia das raças" e religiosidade no Brasil: uma intersecção histórica

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Psicologia: Ciência e Profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.1 Brasília Mar. 2002

http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000100008 

ARTIGOS

 

"Psicologia das raças" e religiosidade no Brasil: uma intersecção histórica1

 

 

André Luis Masiero*

Departamento de Psicologia e Educação. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo discutiremos como eram apreciadas as manifestações religiosas afro-descendentes pelas ciências psicológicas no Brasil, sob forte influência das teorias raciais e eugenia, na virada do século XIX-XX.

Palavras-chave: Psicologia racial, Racismo, Eugenia.


ABSTRACT

In this article we will discuss how the afro-descending religious manifestations were viewed by the psychological sciences in Brazil, under the strong influence of the racial theories and eugenics, in the turning of the XIX-XX century .

Keywords: Race psychology, Racism, Eugenics.


 

 

A construção do Conceito de Raça e a Psicologia

O advento das grandes navegações do século XVI e o encontro entre as civilizações até então estranhas uma à outra possibilitou ao homem ocidental as primeiras percepções da diversidade humana. São famosos os relatos dos viajantes que aportavam no novo mundo deslumbrados com aquelas estranhas formas de viver. O encontro levara o homem ocidental a novas concepções de vida, de mundo e sobre qual seria sua posição diante de tamanha diversidade. Em poucas palavras, conhecendo o outro, a razão ocidental transformou a si mesma.

Não tardou para que afirmasse a sua situação de superioridade diante do diferente, idéia que continuaria existindo nos séculos posteriores sob as mais diversas formações discursivas. Neste período, serão comuns as tentativas de “domesticação” do homem que, acreditava-se, estava em seu estado mais rudimentar.

Até o final do século XVIII não havia o conceito de raça propriamente dito como o entendemos hoje em seus parâmetros científicos, porém, a idéia de superioridade e inferioridade humana, dimensões inerentes ao conceito, já eram uma constante.

Uma obra ilustrativa no Brasil é Apontamentos Para a Civilização dos Indios do Império do Brasil, de José Bonifácio de Andrada e Silva, publicada originalmente em 1823. Segundo Massimi (1990) esta obra ensina técnicas para civilizar os “homens primitivos”, inspiradas na filosofia de Lamettrie e em filósofos mecanicistas franceses do século XVIII.

É impossível estabelecer um marco inicial com clareza das teorias raciais. Eram comuns as idéias sobre superioridade entre povos orientais e na Grécia antiga. Segundo Mosca (1975 : 290) os gregos da antigüidade julgavam-se superiores aos bárbaros e a todos os povos diferentes em relação à sua civilização.

No entanto, coube aos Iluministas no século XVIII refletirem sobre a diversidade e unidade humana. Naturalizando valores como igualdade e liberdade, tornavam-nos totais e comuns a toda a humanidade, como condições subjacentes para o desenvolvimento da civilização. O legado humanista pretendia que todos os homens tivessem a capacidade natural de aperfeiçoar-se, de superar os seus próprios limites. Ainda que houvesse as noções de “selvagem” e “primitivo” atribuídas a determinados povos, eram juízos ligados à gênese humana e à sua condição imberbe e não propriamente à inferioridade racial.

Tão logo inicia-se no século XIX a noção da “igualdade intrínseca entre os homens”, proclamada principalmente por Rousseau (Mosca, 1975) e Diderot (1974) no século XVIII, começa a entrar em declínio, paralelamente às metas de colonização e exploração dos novos territórios, sobretudo na América Latina e África. Se para os iluministas a corrupção moral advinha do meio, para muitos filósofos do século XIX a “imoralidade” só poderia ser uma mácula natural das civilizações inferiores .

O termo raça aparece pela primeira vez na obra de Georges Cuvier (Mosca, 1975) , nos primeiros anos do século XIX. Além de verificar as diferenças humanas, Cuvier agrupava-as em categorias e classificava os grupos étnicos seguindo o modelo epistemológico comum às ciências do período, como a botânica, geologia etc.

É difícil encontrar um filósofo do século XIX que não tenha examinado a questão racial, mesmo que superficialmente. Fichte, por exemplo, no seu Discursos à Nação Alemã, procurava restituir a auto-confiança do povo alemão derrotado por Napoleão na batalha da Prússia, buscando justificar o fracasso de tal sorte que não colocasse em risco a credibilidade na pureza racial do seu povo (Mosca, 1975). Hegel, na sua Filosofia da História, publicada em 1837, conferia ao povo alemão a nobre missão de guiar a humanidade para o desenvolvimento civilizatório ideal, tal a superioridade do povo de sua nação.

Com relação ao Brasil, poderíamos chamar a atenção para a obra do conde Joseph-Arthur Gobineau, também embaixador da França no país no final do século passado. Seu escrito mais conhecido é o Ensaio Sobre a Desigualdade Das Raças Humanas, clássico da literatura racista mundial, publicada em quatro volumes entre 1853 e 1855. Nessa obra, o autor procura demonstrar que todos os acontecimentos vividos pela humanidade são produtos das lutas entre raças superiores e inferiores e dos cruzamentos ocorridos entre elas (Raeders, 1996). Além disso, classificava os grupos étnicos de acordo com as suas condições materiais e posição na pirâmide social: o poder da nobreza seria uma conseqüência direta de suas raízes arianas; a burguesia descenderia dos mestiços, mas ainda assim seria portadora de qualidades das “raças fortes”; e finalmente o escravo, descendente dos grupos semíticos e negros.

Depois de publicar seu Ensaio, o conde desembarca no Brasil, em 1869, durante o carnaval, onde exerceria a função de diplomata designado pelo governo francês. Tudo indica que aqui o conde acreditara que teria encontrado provas substanciais de suas teses lançadas no Ensaio. Sua permanência durante quinze meses no país,contra a sua vontade, foi o suficiente para que concluísse, pouco amistosamente, que a miscigenação condenaria a civilização brasileira à “degeneração” e à decadência física e psíquica. O conde “ desprezava os brasileiros, que via como irrevogavelmente manchados pela miscigenação”. (Skidmore, 1976 : 46). Gobineau acreditava que, em pouco tempo, o Brasil seria habitado por um povo fraco e inferiorizado e mergulharia num caos social sem precedentes, fruto da “promiscuidade interracial” (termo utilizado na época) que grassava naquele momento. A única saída proposta pelo conde seria o “branqueamento” gradual da raça, o que seria alcançado controlando os cruzamentos raciais e impedindo a imigração de mais africanos para o país.

Em uma de suas cartas para um amigo francês, descreveu suas impressões sobre o povo brasileiro:

“Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo…” (Raeders, 1996; Skidmore, 1976 : 46. ).

Depois de envolver-se em inevitáveis conflitos pessoais devido as suas idéias, Gobineau, em maio de 1870, foi transferido para outro país, aconselhado pelo imperador D. Pedro II, seu único amigo brasileiro e por quem tinha grande admiração.

Muitos outros autores racistas europeus tomaram o exemplo da miscigenação racial que ocorria no Brasil e em outros países da América Latina para constituírem suas teorias. Entre eles, Louis Agassiz e Gustave Le Bon, o qual influenciou a obra de Freud, Psicologia Das Massas e Análise do Ego.

Poderíamos ainda enumerar muitos outros pensadores que perscrutaram o objeto raça durante o século XIX, porém, sem presunção, nenhum deles com argumentos científicos realmente sólidos que justificassem a repercussão que alcançaram até a metade do século XX.

Na base das transformações conceituais no curso do século XIX, a ciência passou a buscar métodos taxonômicos que poderiam ser aplicados em quaisquer situações. Aplicados aos grupos humanos, hierarquizaram-nos primeiramente em função de seus atributos físicos. Posteriormente, com o avanço das ciências psicológicas, agregam-se a esses métodos classificatórios suas qualidades mentais e morais.

Com a publicação da obra A Origem Das Espécies, de Charles Darwin, em 1859, os autores que tratavam das diferenças raciais passaram a explicar o comportamento das sociedades humanas a partir de conceitos como “seleção do mais forte”, “hereditariedade” entre muitos outros. Darwin, pensador cauteloso, no entanto, teria limitado-se a explicar a dinâmica das diferenças biológicas que os seus dados sustentavam (Schwarcz, 1995). Cabe lembrar que, em sua passagem pelo Brasil, condenou o regime escravo e manifestou idéias abolicionistas.

A multiplicidade de interpretações dessa obra tomou rumos diversos. Com o propósito de justificar a dominação de um povo sobre outro, formaram-se inúmeros segmentos no pensamento social baseados na idéia da superioridade adaptativa natural de alguns povos. De acordo com estas idéias, todas as diferenças humanas seriam biologicamente determinadas. Como seria insensato contrariar o que a própria natureza assim havia determinado, estava mais que justificada a altivez biológica e, por conseguinte, cultural de determinados povos. O século XIX assistiu a um verdadeiro processo de naturalização da cultura popular.

A perspectiva que tomava os conceitos retirados da obra de Darwin para a interpretação das causas do atraso social de alguns povos ficou conhecida como darwinismo social ou teoria das raças. Para os partidários dessa corrente de pensamento, as coletividades humanas, assim como as demais espécies animais, deveriam passar por estágios evolutivos fixos, aprimorando as suas qualidades em cada uma dessas etapas.

Os povos que não seguissem esse padrão tenderiam a desaparecer por injunção natural. Evidentemente, a miscigenação estava fora da ordem natural da evolução e por isso poderia condenar as nações mestiças à “degradação” e “corrupção moral”.

Com efeito, para identificarmos um próximo momento da interpretação das relações raciais, surgem outros sistemas teóricos menos fatalistas, mas não menos racistas, que procuravam oferecer uma solução para o problema da questão racial humana. Seria possível reverter o processo degenerativo e conduzir a humanidade para uma melhor configuração racial, argumentavam os darwinistas sociais. Entre os filósofos mais conhecidos nessa direção estão Herbert Spencer e Francis Galton, dois pensadores centrais no início da psicologia quantitativa.

Spencer, inglês rico e autodidata, gozou de muita popularidade, principalmente nos E.U.A., onde suas idéias foram mais bem acolhidas que em sua terra natal. Em suma, procurava aplicar as leis da evolução darwinista ao entendimento da dinâmica das sociedades. Para o filósofo, todas as dimensões humanas, inclusive as psicológicas, tinham caráter evolutivo e, se nada perturbasse esse caminho natural, que era para ele um princípio universal, a humanidade se aperfeiçoaria com o passar do tempo. As mesmas leis valiam para as relações individuais. Os menos capazes, pelo déficit intelectual, comportamento inadequado ou deformidade física, tenderiam a desaparecer, enquanto os mais bem adaptados se encarregariam das benfeitorias humanas. Logo, o estado, detentor de um poder artificial, isto é, não outorgado pela natureza, não deveria intrometer-se na ordem natural. Spencer, precursor do liberalismo, era contra qualquer tipo de intervenção estatal na vida pública. Como muito bem apontaram Schultz & Schultz (1996:146), se o estado sustentasse os “mais fracos” e pobres, estes permaneceriam, se reproduziriam e, assim, prejudicariam todo o resto da sociedade.

Muitas das idéias de Spencer foram expostas em sua obra Princípios de Psicologia, publicada em 1855. Unanimidade nos E.U.A., suas idéias influenciaram muitos psicólogos americanos.

Embora o nome de Spencer tenha ficado associado a Darwin (darwinismo social), a idéia de evolução era comum a outros sistemas filosóficos. Essa associação imediata em grande parte se deve ao prestígio das idéias de Darwin nos meios científicos do século XIX, o que acabou transferindo grande confiabilidade aos trabalhos de Spencer sobre a evolução social.

Também influenciado pelas idéias evolucionistas, o britânico Francis Galton, primo de Darwin, fundou um novo campo de estudos, a eugenia. Na sua obra Hereditary Genius, de 1869, o autor definiu a sua ciência como o estudo e manipulação da hereditariedade com o objetivo de melhorar ao máximo as qualidades inatas, sobretudo as habilidades mentais, das raças. O termo eugenia deriva do grego eu= boa, genus=geração. Se Spencer, com sua ideologia laissez faire, argumentava que a evolução social ocorreria naturalmente sem qualquer intervenção externa, Galton procurava uma maneira de intervir impelindo a evolução social e cultural humana com os métodos científicos insuspeitos de sua época. Entre suas teses, o cruzamento racial era um dos fatores referentes da “degeneração” da nobreza humana, pois as raças inferiores ao misturarem-se com as superiores poderiam inserir os seus maus predicados no patrimônio hereditário coletivo. Outra tese sua que influenciaria a psicologia no século XIX, é que haveria uma continuidade entre os caracteres físicos e morais. Um terceiro pressuposto central de sua obra é que os filhos herdavam todas as características inatas de seus genitores, como a inteligência e a tendência para comportamentos inadequados, mais comuns em certos grupos étnicos.

Dessa forma, Galton justificava que deveria haver uma maior proteção e incentivos materiais para reprodução dos melhores indivíduos, física e mentalmente (Schultz, 1996). Esses exemplares raciais deveriam legar suas boas qualidades aos descendentes, garantindo a boa descendência. Essa estratégia ficou conhecida como eugenia positiva.

Galton propunha que o estado deveria regulamentar os casamentos, tanto os interraciais, quanto entre loucos, débeis mentais, alcoólatras etc. criando leis que impusessem ao indivíduo padrões de comportamento saudáveis para a raça e, conseqüentemente, para a nação. Esta tentativa de retardar o nascimento de “degenerados” foi chamada de eugenia negativa.

Por outro lado, a ciência galtoniana tinha um forte apelo propagandístico, pois pretendia também levar para a população o conhecimento científico necessário para bem conduzir a sua própria evolução. Como escolher um bom parceiro para o casamento, um bom exemplar racial, evitar o álcool, prevenir doenças infecciosas etc. eram estratégias centrais no combate contra a má descendência e a decadência racial. Galton não se cansava de tomar o seu próprio exemplo para justificar a sua tese da herança das qualidades mentais, afinal, em sua família, havia dois homens eminentes, seu primo Charles Darwin e ele próprio, procurando, destarte, comprovar que entre as boas famílias a probabilidade do aparecimento de grandes personalidades era maior.

Aos poucos, com a disseminação das idéias eugênicas, começou-se a contestar o evolucionismo social naturalmente determinado, isto é, a idéia spenceriana de que os indesejáveis seriam aos poucos espontaneamente eliminados do convívio social, e passou-se para uma preocupação sumária com o perigo que estes “degenerados” e “mestiços” representavam para a evolução da humanidade. Sobretudo pela ameaça ao sentimento nacionalista, por espoliarem o estado e a parcela produtiva da sociedade, com as enormes despesas que demandavam para a cura ou, na pior das hipóteses, para serem amparados por instituições carcerárias, psiquiátricas ou disciplinares por toda a vida. Para os eugenistas, os homens deveriam intervir na sua própria evolução, orientados pelo estado e embasados pelos conhecimentos que a ciência proporcionava.

Os saberes psicológicos3 não ficaram alheios a essas idéias. Muitos cientistas buscaram justificativas biológicas e raciais para as grandes diferenças individuais observadas nas medidas de inteligência, tendências comportamentais ou para certas desordens mentais, encontradas em representantes de determinadas culturas ou raças.

As medidas psicológicas nasceram com o objetivo de explorarem as habilidades mentais e comportamentais dos indivíduos e dos grupos humanos. Tratava-se da psicologia das diferenças. Francis Galton foi um dos pioneiros na criação de técnicas de medidas das capacidades mentais. A sua pressuposição era a de que essa capacidade poderia ser medida de acordo com a acuidade sensório-motora. Quanto mais arguto o sentido, mais capaz seria o indivíduo. Evidentemente era uma idéia ramificada das concepções dos empiristas ingleses, sobretudo de John Locke. Se tudo o que havia na mente necessariamente deveria ter passado pelos sentidos, logo, os mais inteligentes possuiriam uma capacidade sensitiva mais apurada que os “incapazes”, rezava a hipótese galtoniana. Em seu laboratório antropométrico, fundado em 1884, Galton examinava a acuidade visual, tempo de reação, estimativa de distância e peso, entre outras capacidades. Sua idéia primeiramente era submeter toda a população inglesa aos seus testes para determinar exatamente qual a capacidade mental de que dispunha a raça formadora da Inglaterra. Porém, durante os seis anos de funcionamento de seu laboratório, colheu dados de cerca de oito mil pessoas, nada mais. (Schultz, 1996).

Sob a supervisão do ministério da educação da França, um outro psicólogo, Alfred Binet, também desenvolveu testes mentais alguns anos mais tarde. Com outros pressupostos epistemológicos, Binet discordava das formas de medir a inteligência por meio de provas sensório-motoras. As funções cognitivas, como a memória, compreensão, imaginação, refletiam a capacidade mental com maior fidelidade. Binet, juntamente com Théodore Simon, criou um teste mental que levava em consideração três funções cognitivas entendidas como mais relevantes: julgamento, compreensão e raciocínio (Schultz, 1996). Além disso introduziu também o conceito de idade mental, que relacionava a idade cronológica com a nota alcançada nos seus testes.

Depois da morte de Binet, os psicólogos americanos tomaram a dianteira no desenvolvimento de novos testes psicológicos, sobretudo pela iniciativa de Henry H. Goddard. Nesse período, precisamente em 1916, o psicólogo americano Lewis M. Terman introduziu o conceito de Q.I. (Quociente de Inteligência). Foram criados uma infinidade deles para todos os tipos de processos seletivos, como para o exército, para as fábricas, e para o controle da entrada de imigrantes no país.

Alguns grupos migratórios que aportavam na costa americana eram submetidos a provas psicométricas e caso não apresentassem um bom desempenho nas provas mentais, poderiam ser repatriados. Segundo os psicólogos americanos dessa época, os latinos, eslavos e negros seriam menos dotados intelectualmente, portanto indesejáveis para formação da nação americana. Fenômeno semelhante ocorreu em diversos países e se estenderam ainda por muito anos.

A psicologia, neste sentido, assumia um importante papel na desvelada busca pela formação das identidades nacionais durante o começo do século XX.

A partir de 1870, as teorias raciais ganham força nas elites brasileiras, as quais subitamente apresentaram-se como aliadas aos projetos desenvolvimentistas, no planeamento da consolidação da identidade e primazia nacional. Aqui encontraram um terreno fértil para as mais variadas especulações, inclusive no âmbito das ciências psicológicas, visto a “grande e perigosa miscigenação racial” presente no país.

Acreditava-se que o Brasil estava passando por um processo de degeneração, causa da mistura racial que se processava, como vimos anteriormente. Para alguns psicólogos, isso prejudicaria o desenvolvimento mental e moral da população resultante. Justamente nesse momento a psicologia encontrava-se em ascensão, e era uma das ciências mais promissoras por congregar elementos da medicina, da filosofia moral e dos métodos quantitativos e classificatórios. Derivou-se daí a idéia de aplicar as técnicas psicométricas disponíveis para apurar as qualidades intelectuais e comportamentais dos povos constituintes da nação, principalmente negros e mestiços. Evidentemente, se o seu “valor mental” era deficiente, como queriam demonstrar outros investigadores europeus e americanos, logo o cultural - particularmente o religioso - também o era. Mentes imperfeitas não cultivariam tradições culturais sadias.

A religiosidade brasileira de origem ou influência africana foi um dos alvos prioritários da ciência psicológica sob a ótica eugênica e racial. Vista como uma manifestação religiosa inferior, “perigosa para a moral católica” predominante e para a saúde mental coletiva, a disseminação dos cultos afro-brasileiros compunha, segundo os psiquiatras e psicólogos da época, um grave problema sanitário, pois poderia conduzir adeptos para a doença mental, caso houvesse alguma predisposição hereditária para isso - e quase sempre havia - sem contar que essas “manifestações primitivas” não eram bem-vindas a um país que almejava civilizar-se rapidamente. A grande questão não era se os brasileiros seriam civilizados, mas se seriam civilizáveis, isto é, se partindo da situação de “país mestiço”, poder-se-ia alcançar algum dia o nível das civilizações avançadas.

Assim como nos outros países do mundo, no Brasil os saberes psicológicos vinham ostentando uma posição central no ideal da consolidação da nacionalidade, visto os seus objetivos pedagógicos e médicos, em suas respectivas ações disciplinares e higienizadoras. Segundo Massimi (1990), as preocupações com as questões psicológicas da população brasileira como princípio básico para condensação da nacionalidade já estavam seladas no país antes mesmo do surgimento da psicologia como disciplina autônoma, cientificamente orientada.

Nesse sentido, entre as diversas ações requisitadas aos saberes psicológicos, para contribuir com a nacionalidade brasileira inclui-se fundamentalmente a higienização mental. As práticas higienistas objetivavam avaliar a qualidade mental das diferentes raças que compunham a nação, tomando como base os estudos apresentados na Europa e E.U.A. com suas próprias populações.

O Brasil era visto tanto pelos médicos brasileiros quanto estrangeiros como um enorme laboratório racial, para os mais pessimistas como um enorme hospital, tal o caminho “degenerativo” que o país vinha trilhando. Esboçavam uma inquietação específica com a situação do estado de São Paulo, importante centro agrícola que recebia grandes contingentes de imigrantes em busca de trabalho, provenientes de países europeus e asiáticos ou mesmo de outros estados brasileiros. Nesse período, primeiros anos do século XX, começaram as preocupações médicas com a sanidade corporal e mental desses novos habitantes - no caso dos europeus e asiáticos - e com a população afro-descendente, há pouco tempo na condição formal de “cidadãos”, com final do regime escravo em 1888.

Já nas décadas de 20 e 30, as ciências psicológicas, procuravam adotar medidas profiláticas e disciplinares às práticas religiosas. Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro eram os estados nos quais a elite intelectual brasileira desenvolveu estas idéias com maior severidade.

Patente era localizar os óbices do avanço nacional. Segundo a ciência do período, as crenças populares eram causas centrais do atraso do país. Os novos e promissores métodos de avaliação psicológica compunham importantes aliados na cruzada desenvolvimentista brasileira, mormente quando associados a outras instituições estratégicas, como o poder legislativo e a chamada polícia de costumes (Rocha, 1928).

 

A Religiosidade Afro-Descendente e o “Valor Mental do Negro”4

Entre os psiquiatras e psicólogos, dois fatores, evidentemente racistas, pareciam indiscutíveis com relação ao psiquismo da população afro-descendente na virada do século XIX para o XX:

1) A tendência que possuíam para certas desordens mentais;

2) sua baixa capacidade intelectual.

Em trabalhos publicados em revistas brasileiras especializadas, ou nos anais de congressos, as estatísticas indicavam sempre o mesmo fenômeno, qual seja, o maior número de negros e mestiços internados em colônias psiquiátricas. Um levantamento realizado por Ulisses Pernambucano, diretor da Assistência Geral a Psicopatas do estado de Pernambuco e Helena Campos, então estagiária do mesmo serviço, em 1932, indicava quase o dobro de doentes mentais negros internados em colônias psiquiátricas que todas as outras raças reunidas:

“A população de Pernambuco era em 1929 de 2.916.000 habitantes conforme a estimativa da Diretoria Geral de Estatística do Estado. Os negros devem estar aí representados por 174.960 pessôas e todas as outras raças com 2.741.040. Tomando os números globais de internados (345 para os negros e 2.947 para todas as outras raças) e comparando-os com a população calculada verifica-se que para 100.000 indivíduos 197 negros são internados por psicopatias contra 107 de todas as outras raças”. (Pernambucano & Campos, 1932 : 123-4)5 .

Nesse mesmo trabalho os autores não atribuíam grande importância aos fatores ambientais como gênese das psicopatologias, mas também não ofereceram nenhuma outra explicação para o fenômeno, mesmo que hipotética. Um fenômeno inerente à raça? Era a questão deixada à deriva.

Esse tipo de idéia parecia ser compartilhada por muitos outros médicos e antropólogos. Vejamos outros exemplos:

“Em relação às doenças mentais, o negro se revela predisposto ao alcoolismo e às psicoses alucinatórias.” (Ribas, 1945: 2).

“Do ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os mestiços manifestam uma accentuada fraqueza: a emotividade exagerada, optima condição para o surto dos estados passionais.” (Roquette-Pinto, 1929 : 138 ).

Com relação à capacidade intelectual, Oliveira Vianna, citando um trabalho realizado na Europa mas de grande interesse para o Brasil, explicava que, numa avaliação feita através do teste de Binet, encontravam-se os seguintes dados:

“num estudo comparativo da capacidade intelectual dos negros e dos brancos, 5% de supernormais entre os brancos e 0,8% entre negros. Equivale dizer que, numa população de 10.000 negros, haveria probabilidade de existir cêrca de 80 negros de inteligência superior, ao passo que numa população de 10.000 brancos deveriam produzir-se 500.” (Vianna, 1932 : 196). Completando o seu raciocínio, conclui que teria encontrado uma explicação para o fato de esses tipos mais inteligentes, os brancos, encontrarem-se nas camadas superiores da sociedade, ou mesmo constituírem as elites dirigentes da nação. Conclusão essa marcada pelas idéias de Gobineau, sobre a relação entre posição social e etnia. As exigências da civilização, para Vianna, eram incompatíveis com a miscigenação.

É nesse contexto racista do começo do século XX que surgem as pesquisas sobre religiosidade, que enfocavam principalmente o Candomblé, no nordeste, e o que se convencionou chamar de “baixo espiritismo”, em São Paulo e Rio de Janeiro. Nas técnicas psicométricas dos anos 20 e 30, procurou-se aprimorar métodos que permitissem a identificação de psicopatas dissimulados dispersos pela sociedade, que poderiam futuramente causar “epidemias mentais” de caráter religioso. Cavalcanti (1933) justifica dessa forma a necessidade dos estudos sobre seitas e religiões pelos serviços de saúde mental:

“As religiões, principalmente as inferiores, desenvolvendo anormalmente a cultura do sub-consciente crêam manifestações morbidas do ‘automatismo psicologico’ de Janet. (...). A massa, reflexo servil do ‘condutor’ ou do profeta póde chegar assim ás grandes manifestações do misticismo (Joazeiro, do Padre Cicero) ou a reações anti-sociais (Canudos, Antonio Conselheiro). Em um caso como no outro a Higiene Mental tem de estar alerta. Os delirios nem sempre inofensivos para a coletividade que assim se geram, devem ser prevenidos. (...). De qualquer modo acompanhar essas manifestações é ficar armado de elementos para uma intervenção profilactica em momento oportuno”. Cavalcanti (1933: 68)

Seguindo essa mesma corrente de raciocínio, em 1934, a Assistência a Psicopatas do Estado e a Secretaria de Segurança de Pernambuco passaram a estender os seus serviços aos pais-de-santo que atuavam nos terreiros da cidade do Recife, organizando um protocolo que visava a normatizar o seu funcionamento. Com essa estratégia, foram catalogados todos os terreiros da capital pernambucana. A partir de então, para funcionarem legalmente, deveriam passar por uma avaliação, conforme explica Pedro Cavalcanti, citado por Luiz Cerqueira:

“Este ano prosseguiu normalmente o registro das seitas africanas e centros espíritas. Elevou-se a 13 o número de autorizações fornecidas à Comissão de Censura das Casas de Diversões, da Secretaria de Segurança Pública, sendo examinados pelo Serviço 23 responsáveis... São os seguintes os requisitos para o fornecimento dessas autorizações: 1.º ) saúde psiquiátrica completa de babalorixá ou médium de centro espírita; 2.º) determinação da I.M. [idade mental] e Q.I. (escala Binet-Simon-Terman, revisão pernambucana) e perfil psicológico de Rossolimo (adaptação pernambucana) feitos pelo Instituto de Psicologia; 3.º ) entrega de estatutos e regulamentos das seitas e centros espíritas, assim como as listas dos dias de funções; 4.º ) registros desses centros em livro especial; 5.º ) Compromisso de não se entregarem à prática ilegal da medicina e permitirem visitas de nossos auxiliares”. (Cerqueira, 1989 : 36).

Essas exigências não foram categorizadas fortuitamente, mas com base em experiências anteriores dos psiquiatras com “seitas apocalípticas” e “epidemias religiosas” nessa região. A partir de estudos de casos afins, operavam-se as generalizações teóricas.

O primeiro requisito procurava debelar as possíveis tendências para a doença mental do líder, babalorixá ou médium, visto tratar-se quase sempre de mestiço ou negro. Como era corrente na psiquiatria do começo do século, esses indivíduos eram considerados portadores de tendências desviantes geneticamente determinadas. Conforme vinham demonstrando, através das provas psicológicas aplicadas em crédulos de seitas religiosas nas ocasiões em que foram recolhidos aos manicômios, todos apresentavam QI e idade mental baixos. Segundo Lucena (1940), a idade mental de uma amostra de internados num manicômio do Recife, que tinham participado de um caso de “epidemia religiosa”, não passava de 10 anos, já o QI não mais que 606 . Os sujeitos desse levantamento eram os envolvidos no conhecido caso ocorrido na cidade de Panelas, pequena localidade do interior de Pernambuco.

Lucena (1940: 41-4) relata que em 1936, um jovem de 20 anos de nome João Cícero, acreditando estar possuído pelo espírito do Padre Cícero, amealhou fiéis ao redor de si e passou a organizar rezas e novenas. Incomodada com o fato, a polícia convocara o jovem a depor. Alegando que o santo que o possuía não consentia o seu comparecimento na delegacia, não deu as caras. Constantemente vigiados, um dos crentes acabou preso por porte de arma. Temendo um ataque da polícia devido à constante vigilância policial, os crédulos, já em número de 70 homens, armados de facas, foices e paus, atacaram a casa do inspetor de polícia, Antônio de Melo, que acabou morto a golpes de foice. Dirigiram-se posteriormente a Vila de Cupira, onde o primeiro companheiro encontrava-se preso, para tentarem libertá-lo. Em confronto com a polícia nessa localidade, quatro seguidores de João Cícero foram mortos. (Lucena, 1940). Depois da contenda, o grupo se dispersou, o líder desapareceu para sempre e alguns adeptos foram presos ou recolhidos ao manicômio.

Portanto, a terceira condição a que se referia Cerqueira (1989) tinha um papel preventivo fundamental. Sabendo-se os dias de funcionamento desses centros seria possível realizar fiscalizações imprevistas durante a realização dos rituais. Acreditava-se que a constante iminência da chegada dos fiscais inibiria os desvios, fossem mentais, como a eclosão inconsciente de transes coletivos, ou criminosos, com a exploração dos crédulos e a prática ilegal da medicina, como a venda de preparados mágicos para todos os males, também chamados “raizadas”.

A regulamentação determinava que os estatutos das seitas deveriam conter as suas finalidades, bem como os nomes dos responsáveis pelos cultos, fundadores, hierarquia, cargos etc.; assim, em caso de irregularidades, seria mais fácil autuar o líder espiritual. Qualquer mudança de endereço desses centros deveria ser comunicada imediatamente ao serviço, uma vez que, antes de se fazer o registro das casas religiosas, era difícil até mesmo encontrá-las nos recônditos da periferia urbana.

Como podemos notar, as técnicas psicométricas tinham um papel central na prática de “vigilância religiosa”, como um dos desdobramentos da ideologia higiênico-racial. O Perfil Psicológico de Rossolimo, a que se refere o trecho acima (Cerqueira, 1989), era um teste que se mostrava eficiente para avaliar indivíduos envolvidos em “epidemias religiosas” ou em outros distúrbios sociais de fundo psicopatológico semelhantes (Editorial, 1929). Essa prova era dividida em vários quesitos quantificáveis: Atenção, Vontade, Retentividade (com os sub itens: figuras/visual; elementos de linguagem/auditivo; números/visual e auditivo), Apreensividade, Julgamento, Poder de Combinação, Engenho, Imaginação e Espírito de Observação (Lucena, 1940). A cada uma dessas dimensões mentais era atribuída uma nota; traçava-se então um gráfico e tirava-se uma média geral do nível intelectual e da personalidade do probando. Era um teste que procurava congregar tanto elementos psico-motores quanto cognitivos, sublinhando-os separadamente. Embora com algumas modificações, era uma prova com influências de Galton e de Binet.

Nesse mesmo sentido, com a multiplicação das técnicas de avaliação mental, o exame psicológico proposto por Whitaker (1937 : 84-5) sugeria que, na composição de um laudo psiquiátrico, deveriam ser levados em consideração o “Modo de comportamento religioso (...), Modo de comportamento político (...) e Interesses estéticos e científicos”. Dentro dessas disposições psicológicas, poderiam figurar tipos de comportamento como comunista, anti-religioso, supersticioso, revolucionário, entre outros. É interessante notar aqui que categorias ideológicas (comunista, revolucionário) poderiam facilmente transformar-se em categorias psico-patológicas, ambas igualmente nocivas para a ordem social. Portanto, o mesmo tratamento poderia ser despendido para os movimentos sociais, não necessariamente ligados a práticas religiosas, mas ainda entendidos como psicopatologias coletivas.

Em seu artigo, Rocha (1928) chamava a atenção dos psiquiatras e da opinião pública para a periculosidade de indivíduos agitadores que passavam despercebidos pela sociedade e pela psiquiatria (Editorial, 1931), como teria ocorrido com o famoso caso de Febronio Indio do Brasil, “louco moral” que ocupou as manchetes de revistas e jornais durante os anos 30.

Arthur Ramos, antropólogo brasileiro, autor de trabalhos sobre psicologia social, discípulo de Raimundo Nina Rodrigues, ressalta que o conhecimento profundo das seitas de origem africana no Brasil contribuiria para corrigi-las e colocá-las no caminho natural da evolução, ainda que jamais poderiam galgar o nível de civilização a que alcançaram as religiões das sociedades brancas, tendo em vista que a mentalidade dessas culturas seria significativamente mais elevada que as negras e se desenvolveria num ritmo bem mais acelerado, conforme notamos em suas palavras:

“Da mesma forma que a catechese foi uma ilusão também a repressão pura pela sociedade falhará, devido a este choque de mentalidades”. (Ramos, 1940 : 295).

Sobre as idéias de Arthur Ramos é que se formulou a atuação prática da Assistência a Psicopatas e da Secretaria de Segurança, para regulamentar o funcionamento dos terreiros do Recife, conforme descrito acima.

A mentalidade primitiva encontrava-se, para o antropólogo, num estágio religioso “pré-lógico”, por isso os negros do interior da Bahia não conseguiriam assimilar rapidamente valores culturais mais adiantados. Talvez criticando o modo colonial de sujeição cultural-religiosa, referia-se às tentativas de catequização como “ilusórias”, isto é, sem efeito algum para o desenvolvimento daquela raça. Para tanto, propunha uma atuação:

“Como já o disse com relação á repressão ao curandeirismo, torna-se necessaria uma lenta educação do meio, com a opposição de normas corretas de pensamento ás practicas mysticas pre-logicas da religião negra” (Ramos, 1940 : 296).

Ensiná-las a pensar e atuar corretamente, eis a solução.

Assim como Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos julgava que a mistura racial brasileira já era fato consumado e certamente disso resultaria em algum prejuízo cultural para o país. Restava saber o quanto representava esse prejuízo para se traçar medidas eficientes de intervenção, para além das medidas catequéticas do período anterior.

Segundo Prandi (1995), em 1940 a igreja católica declarou-se hostil aos cultos afro-brasileiros, pois almejava a hegemonia religiosa no país. Contra a vontade da igreja, a Umbanda e o Candomblé sempre funcionaram em sincretismo com o catolicismo, incorporando alguns dos seus elementos rituais e materiais. De acordo com Borges e Lima (1932 : 138-9):

“O ‘espiritismo’ que conseguimos observar está submetido a influencia da religião superior dominante no meio - o catolicismo (...). Praticamente, podemos afirmar não haver em Pernambuco o puro espiritismo religião, sem influencia manifesta do catolicismo”.

Nesse sentido, a incorporação cultural afro à população brasileira representava um fator disgênico6 do ponto de vista racial e também cultural. Com a mistura de elementos rituais de religiões distintas, ambas perderiam sua originalidade e sua pureza, o que poderia significar um atraso na evolução deste segmento cultural brasileiro.

Nesse ponto, diluíam-se muitas divergências, tão comuns no período, entre o catolicismo e a ciência evolucionista. A desqualificação dos outros cultos religiosos brasileiros com argumentos científicos, portanto insuspeitos, reforçava a pretensão católica de firmar-se como religião oficial e hegemônica no Brasil.

Os rituais dos cultos afro-brasileiros significavam uma afronta à racionalidade científica do período. Os gestos, as músicas, as danças eram considerados comportamentos desarrazoados, de indivíduos que incontestavelmente só pode-riam sofrer de algum atraso mental, com o agravante de que os líderes poderiam levar a desordens semelhantes outros indivíduos sugestionáveis, principalmente mulheres, pessoas com baixo grau de instrução ou de caráter fraco, geralmente outros negros, mestiços e marginalizados. Borges & Lima (1932 : 138) alertavam:

“Cultivando inconscientemente essas constituições morbidas, agravam-nas, educam esse automatismo libertado e são responsáveis por episodios delirantes que os psiquiatras observam todos os dias”.

Ainda contra a razão médico-científica, havia rituais de cura, simpatias e receitas caseiras para os males do corpo ou da alma, segundo Arthur Ramos, formas mentalistas em estágios “pré-lógicos” de conhecimento. Muitas vezes isso era interpretado pelos médicos como prática ilegal da medicina, guiada por charlatães exploradores ou psicopatas criminosos, e não como uma manifestação cultural de cunho religioso. Assim, poderiam ser enquadradas como prática ilegal da medicina algumas prescrições espirituais ou simples simpatias, como chás de ervas silvestres, rituais caseiros etc. Para esses casos, Borges & Lima (1932) indicavam os tratamentos que deveriam ser aplicados, bem como suas impressões sobre os centros espíritas derivadas de seus estudos:

“Assim, em geral, são todos esses ‘centros’ refugios de pobre gente ignorante que procura neles alivio para seus males, nucleos onde pequenos psicopatas encontram ambiente propicio para suas tendencias morbidas. De quando em vez explode um delirio polimorfo, em geral com cambiantes de possessão, influencia; ás vezes vagos tons persecutorios em fundo paranoide; outras de fundo mistico. Todos curaveis pelas medidas habituais de isolamento, balneo-terapia morna, tonicos. Muitos reincidem porque voltam á pratica. Medida definitiva seria a profilactica: evitar a esses predispostos a cultura sistemica da imaginação, o exagero do automatismo subliminal”. (Borges & Lima, 1932 : 145).

A preocupação dos homens de sciencia brasileiros com a saúde mental da população é remota e sempre foi influenciada pelo ponto de vista da “decadência racial” no país. Indivíduos mal- adaptados à sociedade teriam a tendência de aliar-se a essas religiões.

Impossível passar por esse assunto sem refletir sobre um caso representativo da cultura brasileira, o episódio de Canudos. Na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, há um capítulo dedicado à descrição comportamental e psiquiátrica de Antônio Conselheiro, o principal responsável pelo levante.

Diz o autor que trata-se de um indivíduo que “pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva” (Cunha 1979 : 102). De mentalidade atrasada, estaria próximo dos tipos primitivos da espécie, pelo fato de tratar-se de um mestiço.

Já nesta obra do século XIX, exprime-se a inquietude de nem sempre ser possível detectar um doente mental livre, “contaminando” e impelindo as massas à revolta patológica. Segundo o próprio Euclides da Cunha, não seria possível desvendar sua doença mental com as técnicas psiquiátricas e antropológicas usuais naquele momento, o que significava um enorme perigo para a ordem social.

De fato, feitas as análises craniométricas de Antônio Conselheiro, depois de sua morte, pelo notório antropólogo baiano Raimundo Nina Rodrigues, não se constataram medidas que denunciassem sua “degeneração”. A certeza de se tratar de um “psicopata” adveio da análise de sua biografia, esta sim delatora, embora post facto. Sua vida errante, sem endereço ou trabalho fixo, os constantes conflitos familiares, seu paradeiro desconhecido durante anos, sua aparência geral e principalmente por tratar-se de um mestiço daria a entender que realmente seria um indivíduo limítrofe.

A “epidemia religiosa” ocorrida em Canudos, ainda segundo Euclides da Cunha, teria tido também componentes sociais decisivos, como a predisposição da população sertaneja mestiça para crer em emissários das alturas, profetas etc. tal como ocorria nas crenças das raças primitivas em estado mental regredido, com o agravante de se encontrarem em uma situação marginalizada no nordeste do país e com as dificuldades de se estabelecerem metas preventivas por parte das ciências psicológicas.

 

Considerações Finais:

Ao contrário do que se imagina, o aprimoramento das medidas psicológicas não refutou a tese da superioridade racial e cultural dos povos brancos, pelo menos até o final da segunda grande guerra. Buscavam argumentos quantitativos para as teses ideológicas sobre a superioridade racial. A despeito do surgimento da psicologia como uma ciência autônoma nesse período, supunha-se também uma sucessão intrincada entre os fenômenos psicológicos, biológicos e culturais, manifestas por exemplo em expressões lingüísticas como “valor mental do negro” , “déficit mental da raça”, etc.. Nesse sentido, a história da psicometria no Brasil mostra um pleno envolvimento com as teorias raciais do século XIX e começo do XX, como uma das suas vertentes mais significativas.

Por outro lado, as medidas preventivas alertavam a população para os perigos desses indivíduos. A divulgação científica através da imprensa comum, rádio ou de revistas próprias para esse fim trazia constantes relatos, muitas vezes carregados dramaticamente, de fatos envolvendo “degenerados” perigosos para a ordem social, como os episódios religiosos, grevistas etc. relatados anteriormente. Assim, procurava-se alertar os sãos sobre os perigos que os dissimulados representavam. Conforme a proposta de Galton, já no século passado, a propaganda educativa deveria ter um papel central na condução do desenvolvimento racial de um país. Isso foi feito no Brasil com grande desenvoltura.

Podemos observar, na história das técnicas de exame da personalidade, a inclusão de escolhas religiosas ou políticas na medida em que se tornam cientificamente depuradas. A partir disso, podemos afirmar que apenas os resultados numéricos nunca foram suficientes para constituir uma teoria científica, conforme pretendiam os primeiros psicometristas. As conclusões teóricas são interpretações advindas de resultados previamente quantificados através da aplicação das mais variadas técnicas de avaliação. A eloqüência dessas interpretações conclusivas dependerá do conjunto de crenças (p. ex. superioridade cultural e mental da raça branca) e hábitos compartilhados entre a comunidade científica, o cientista e, quase sempre, pela própria sociedade, num determinado período histórico. As quadrinhas populares, como a citada na epígrafe desse artigo, o anedotário, os mitos, compartilham com a ciência o mesmo universo mental desse momento.

No começo do século XX, a ciência é marcada pela intencionalidade e anseio de compartilhar seus conhecimentos com o popular, utilizando-se de recursos que procuram adequar-se às suas formas de conhecimento.

Após a abolição do regime escravocrata, não houve exatamente uma repressão aos cultos afro-brasileiros. A aplicação de técnicas psicométricas no âmbito religioso pretendia manter essas manifestações populares sob vigilância preventiva, para que episódios de “loucura epidêmica de origem religiosa” não voltassem a ocorrer, como em vários momentos da história do Brasil. Era uma tentativa de disciplinar os cultos religiosos circunscrevendo-os na ordem evolutiva com a finalidade de torná-los “mais civilizados” para o bem da soberania nacional e aprimoramento das virtudes individuais, portanto, uma inquietação não apenas científica, mas também política e ideológica.

 

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Endereço para correspondência
André Luis Masiero
Rua Prof. Pedreira de Freitas, 12
Casa do Pós Graduando 2 - Campus USP
14040-900 Ribeirão Preto - SP
E-mail: masiero@yahoo.com

Recebido em 18/07/00
Aprovado em 20/10/01

 

 

* Psicólogo. Doutorando em Psicologia pela FFCLRP - USP Ribeirão Preto. Dept.º de Psicologia e Educação
1 Apoio: Fapesp
2 Em um curso de neuro-psiquiatria realizado na Faculdade de Medicina da Bahia em 1945, conta-se que, nos intervalos, os participantes divertiam-se proferindo pequenas quadras humorísticas envolvendo a psiquiatria, os professores e os temas desenvolvidos no curso. Esta foi uma delas. Revista Neuro-biologia, Noticiario, Vol. 8, pp. 210-9, 1945.
3 Denominamos saberes psicológicos o conjunto de estratégias científicas destinadas a investigar questões relativas ao comportamento, inteligência, subjetividade, doenças mentais etc., aliados, direta ou indiretamente, à medicina. Durante o século XIX, antropólogos, filósofos, educadores ou médicos, vez por outra, eram chamados de “psicólogos”.
4 A expressão “problema do valor mental do negro” é o título de um dos capítulos da obra Raça e Assimilação, de Oliveira Vianna (1932), clássico da literatura racial científica brasileira.
5 Mantivemos a grafia original de todas as transcrições.
6 A padronização dos testes de Q.I. determina que a nota para um indivíduo normal deve ficar por volta de 100.