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Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões - Retrospective study of heart injuries occurred in Manaus - Amazon

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Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões

Print version ISSN 0100-6991

Rev. Col. Bras. Cir. vol.39 no.4 Rio de Janeiro July/Aug. 2012

http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912012000400006 

ARTIGO ORIGINAL

 

Estudo retrospectivo de ferimentos cardíacos ocorridos em Manaus/AM

 

 

Cleinaldo de Almeida Costa, TCBC-AMI; Dario Birolini, TCBC-SPII; Antônio Oliveira de AraújoIII; Altair Rodrigues ChavesIII; Pedro Henrique Oliveira CabralIV; Roberto Oliver LagesV; Thiago Litaiff PadilhaVI

IProfessor da Disciplina Clínica Cirúrgica II (Cirurgia Vascular) da Universidade do Estado do Amazonas – UEA - Manaus – AM- BR
IIProfessor Livre-Docente  de Clínica Cirúrgica da Universidade de São Paulo
IIICirurgião Geral pelo departamento de Cirurgia Geral da Fundação Hospital Adriano Jorge FHAJ – Manaus - AM – BR
IVUrologista pelo Departamento de Urologia  do Hospital Ipiranga, São Paulo – SP – BR
VMédico da Escola Superior de Ciências da Saúde - Universidade do Estado do Amazonas – UEA – Manaus - AM – BR
VIMédico Residente em Cirurgia Geral da Fundação Hospital Adriano Jorge FHAJ - Manaus - AM-BR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Avaliar as formas de tratamento empregadas e os principais aspectos relacionados à morbidade e à mortalidade dos ferimentos cardíacos..
MÉTODOS: Estudo retrospectivo de 102 doentes com lesão cardíaca, atendidos nos dois prontos socorros de Manaus (Pronto Socorro Municipal  28 de Agosto e Hospital Pronto Socorro Dr. João Lúcio P. Machado) no período de janeiro de 1998 a junho de 2006.
RESULTADOS: Dos 102 doentes, 95,1% eram homens; a média de idade foi 27 anos; ferimentos por arma branca representaram 81,4% dos casos, contra 18,6% por arma de fogo; cardiorrafia foi realizada em 98,1% dos casos. As câmaras cardíacas atingidas foram: VD: 43,9% (36,2% isoladamente e 7,7% associada a outras câmaras); VE: 37,2%; AD: 8,5% e AE: 10,4%, com mortalidades específicas de 21%, 23%, 22% e 45%, respectivamente. Lesões de duas câmaras associadas alcançaram mortalidade de 37,5%, sendo 20% para VD+AD, 100% para VD+VE e zero para VD+AE. O pulmão correspondeu a 33,7% de 89 lesões associadas. Os tempos médios de cirurgia e de internação foram de 121 minutos e 8,2 dias, respectivamente. Cerca de 22,5% complicaram representando 41 complicações. A mortalidade foi 28,4%. Lesões grau IV e V corresponderam a 55% e 41% dos casos, com mortalidade específica de 26% e 15%, respectivamente. Todos os doentes com lesão grau VI morreram.
CONCLUSÃO: O ferimentos cardíacos por arma branca estiveram associados a menor mortalidade, as lesões cardíacas grau IV estiveram associadas à maior mortalidade e um menor tempo operatório esteve associado à maior gravidade e mortalidade.

Descritores: Mortalidade. Ferimentos penetrantes. Traumatismos cardíacos. Emergências. Pacientes.


 

 

INTRODUÇÃO

Os ferimentos cardíacos penetrantes já foram considerados letais e intratáveis. O poeta grego Homero fez a primeira descrição da morte de Sarpedon em A Ilíada, em 3000 a.C. Em 1883, Billroth declarou em um Congresso Europeu de Cirurgia que "o cirurgião que tentar suturar um ferimento cardíaco deverá perder o respeito de seus colegas". Entretanto, Rehn apresentou, em 22 de abril de 1897, no Congresso Germânico de Cirurgia o primeiro caso bem sucedido de cardiorrafia de ventrículo direito na literatura mundial1.

No Brasil, os dois primeiros relatos sobre tratamento de ferimentos cardíacos são de Sílvio Brauner, em 1927, no Rio de Janeiro, que realizou uma sutura de átrio em uma criança de nove anos de idade, que apresentava um ferimento precordial por arma branca, com 12 horas de evolução e sobreviveu à operação sem sequelas, e de Euryclides de Jesus Zerbini, em 1942, em São Paulo, que operou, com êxito, um doente com ferimento cardíaco2,3.

Desta forma, observa-se que o tratamento dos ferimentos cardíacos penetrantes passou por importantes avanços ao longo dos séculos, variando desde a observação com total letalidade (800 a.C. até o Século XVII), passando da observação ao experimento (do Século XVII até 1882) e se sustentando nas técnicas de cardiorrafia e melhor entendimento da fisiopatologia destas lesões após esse período1.

Cerca de 22% a 25% das mortes por trauma estão relacionadas às lesões torácicas e 90% das lesões cardiovasculares são, em particular, oriundas de trauma penetrante4,5.

As taxas de sobrevivência geral dos ferimentos cardíacos penetrantes variam de pouco menos de 20% a 81%6,7. Entretanto, 60% a 80% das vítimas com essas lesões morrem no local do acidente ou a caminho da unidade de emergência, apesar dos avanços no resgate e transporte pré-hospitalar obtido nas últimas décadas4.

No Brasil, foi reportada uma série de 121 pacientes com ferimentos cardíacos onde os autores chamavam a atenção para a incidência: um para cada 10.000 pacientes admitidos, cerca de um caso por mês8. Algumas séries mostram que as vítimas de ferimentos cardíacos são predominantemente homens em idade produtiva, com média de idade variando entre 24 e 33 anos4,6,7,9-21.

Com relação aos ferimentos cardíacos penetrantes, diferentes proporções entre os agentes vulnerantes são encontradas na literatura, porém com predominância de ferimentos por arma de fogo (FAF) 22,23. Múltiplos fatores de risco nitidamente associados à agressão interpessoal, assaltos e homicídios aos quais estão expostos a população urbana, estão na gênese do traumatismo cardiovascular em 50% a 90% dos casos24. Neste contexto, os ferimentos cardíacos penetrantes acometem  um importante segmento da população vitimada por trauma.

A crescente incidência de doentes vítimas de ferimentos cardíacos em nossos pronto socorros trouxe a necessidade de entender os ferimentos cardíacos como problema no trauma e na saúde pública em Manaus. Assim, este estudo justifica-se para avaliar as formas de tratamento empregadas e os principais aspectos relacionados à morbidade e à mortalidade dos ferimentos cardíacos.

 

MÉTODOS

Um estudo retrospectivo foi realizado a partir da revisão dos prontuários de 102 doentes atendidos no período de janeiro de 1998 a junho de 2006, no Pronto Socorro Municipal 28 de Agosto e no Hospital Pronto Socorro Dr. João Lúcio Pereira Machado, unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), que atendem à totalidade dos casos de traumatismos graves ocorridos na cidade de Manaus, no estado do Amazonas. Foram incluídos no estudo todos os doentes atendidos vivos em ambos os pronto socorros e nos quais, durante o atendimento inicial e/ou durante a toracotomia exploradora, ficou evidenciado o ferimento cardíaco. A decisão de indicar a toracotomia exploradora foi baseada em parâmetros clínicos, tais como a posição de entrada do agente vulnerante na região precordial ou área de Ziedler, estado hemodinâmico (hipotensão refratária à reposição volêmica) e débito inicial da drenagem fechada de tórax. A toracotomia na sala de emergência foi realizada nos pacientes, com ferimentos torácicos penetrantes, em parada cardiorrespiratória, mas que apresentavam algum sinal vital à chegada na sala de emergência.

Além da coleta dos dados como idade, sexo, mecanismo de trauma e local da lesão, foi aplicada a Escala de Lesão Orgânica da American Association for the Surgery of Trauma (AAST), Escala para Lesão Cardíaca25. Esta classificação estratifica os ferimentos cardíacos por graus de dano anatômico e funcional, desde contusão até vários tipos de ferimentos penetrantes únicos ou múltiplos, conforme uma ou mais câmaras cardíacas afetadas.

Outras variáveis avaliadas foram: o tempo decorrido entre a admissão no pronto socorro e o início da cirurgia, as lesões associadas, a conduta cirúrgica adotada para cada paciente, o tempo de internação, as complicações e a mortalidade.

Foi realizada uma análise descritiva dos dados epidemiológicos e para estudar a relação entre as variáveis óbito, câmara cardíaca, mecanismo de trauma, escala de lesão da AAST, transfusão de concentrado de hemácias e tempo cirúrgico foi utilizado o teste do Qui-quadrado, com nível de 5% de significância.

Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, em Manaus, sob o número 772/2004.

 

RESULTADOS

Dos 102 doentes estudados, a maioria (95,1%) era do sexo masculino. A média de idade foi 27 anos, variando de 15 a 76 anos. A faixa etária mais frequente estava compreendida entre 21 e 30 anos de idade (46,1%). A arma branca foi responsável por 81,4% das lesões cardíacas, representando uma mortalidade específica de 24% e de 47% para FAF (p= 0,042). A região precordial foi o local de lesão torácica mais frequente (69,6%) do total de 112 lesões (Tabela 1).

 

 

O tempo decorrido entre a admissão no pronto socorro e o início da operação foi inferior a 20 minutos em 19,6% dos pacientes; variou entre 21 e 41 minutos em 28,4% dos pacientes e foi superior a 83 minutos em 25,5% dos pacientes (Tabela 2).

 

 

A maioria dos doentes (52,0%) foi operada utilizando-se a toracotomia ânterolateral esquerda para o tratamento das lesões cardíacas, seguida pela esternotomia mediana (24,5%) e pela bitoracotomia (20,5%), figura 1. A cardiorrafia foi a conduta cirúrgica predominante (98,0%). Um paciente necessitou de prótese de Dacron® e outro, além da cardiorrafia necessitou de prótese de Teflon® (Tabela 3).

 

 

 

 

A reposição volêmica média de cristaloides foi de 3500mL por doente. Entre 2500 a 4000 mililitros de cristaloides foram utilizados em 35,2%. Oitenta e dois doentes (80,3%) necessitaram de concentrados de hemácias (CH) destes, 63,4% necessitaram de uma a três unidades; 30,4% usaram entre quatro e seis unidades e 6,2% fizeram uso de sete a 11 unidades de CH, alcançando mortalidades específicas de 26,9%, 20% e 20%, respectivamente (p= 0,781). Nestes pacientes a mortalidade global foi 24% (p= 0,161). Dos 37 doentes que necessitaram plasma fresco congelado (PFC), 51,4% usaram entre duas e três unidades; 37,8% fizeram uso de até uma unidade e 10,8% necessitaram de mais de três unidades de PFC (Tabela 3).

O ventrículo direito (VD) foi a câmara cardíaca mais acometida, com 43,9% dos casos (36,2% isoladamente e 7,7% associado a outras câmaras), figura 2; seguido do ventrículo esquerdo (VE) com 37,2%, átrio esquerdo (AE) com 10,4% e o átrio direito (AD) com 8,5% (Tabela 4). A mortalidade específica foi 21%, 23%, 45% e 22%, respectivamente para VD, VE, AE e AD isoladamente. As lesões associadas alcançaram uma mortalidade de 37,5%, sendo de 20% para ferimentos de VD + AD; 100% para VD + VE e zero para VD + AE (p= 0,169).

 

 

 

 

O pulmão foi a estrutura anatômica mais acometida associada ao ferimento cardíaco (33,7% de 89 lesões associadas), seguido pelo diafragma (13,4%), fígado (11,2%) e estômago (7,8%) (Tabela 4).

O tempo médio de cirurgia foi 121 minutos, com 11,8% sendo operados em menos de 50 minutos (mortalidade de 100%); 25,5% entre 50 e 100 minutos (mortalidade de 28%); 33,3% entre 101 e 151 minutos (mortalidade de 22%) e 29,4% em mais de 151 minutos (mortalidade de 3%), com p= 0,001. A média do tempo de internação foi 8,2 dias com intervalo de tempo mais frequente entre cinco e dez dias, 53,3% de 92 doentes internados (Tabela 2). Nos registros analisados, não constava o intervalo de tempo entre o trauma e a admissão hospitalar.

Em 22,5% dos doentes ocorreram complicações, representando um total de 41 eventos. Uma segunda toracotomia para a revisão da hemostasia, juntamente com a pneumonia hospitalar foram as mais frequentes (12,2% cada, do total de complicações), seguida do choque hipovolêmico e insuficiência respiratória (9,8% cada). Outras complicações incluíram: choque cardiogênico (7,3%), hemotórax coagulado, encarceramento pulmonar, abscesso de parede torácica, parada cardiorrespiratória revertida (4,9 cada), taquicardia supraventricular, hemorragia digestiva, empiema, dor precordial persistente, síndrome da angústia respiratória do adulto, escara de decúbito, hipocalemia persistente, derrame pericárdico, infarto agudo do miocárdio e hiponatremia (2,4% cada).  A reoperação por toracotomia foi indicada por sangramento que se tornou ativo após restauração da volemia e da pressão arterial ou, num segundo tempo, por hemotórax retido (pós-operatório). A taxa de mortalidade geral foi 28,4%.

As lesões grau IV e V corresponderam a 55% e 41%, respectivamente, perfazendo um total de 96% das lesões cardíacas classificadas, alcançando uma mortalidade específica de 26% e 17% (p= 0,012), respectivamente( Tabela 3). Lesões grau VI alcançaram mortalidade de 100%.

 

DISCUSSÃO

Em Manaus, capital do Estado do Amazonas, com população urbana estimada em quase dois milhões de habitantes, contamos com um sistema integrado de trauma, mantido pelo Sistema Único de Saúde, constituído pelo  Pronto Socorro 28 de Agosto e pelo Hospital Pronto Socorro João Lúcio Pereira Machado, neste hospitais são atendidos os casos de traumatismos graves ocorridos na cidade. O resgate é feito por equipe multiprofissional do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e o atendimento cirúrgico hospitalar tem sido feito conforme o programa "Advanced Trauma Life Support" - Suporte Avançado de Vida no Trauma, ATLS®, desde 199626.

Nas últimas três décadas, foram desenvolvidos centros de trauma e sistemas integrados de atendimento ao doente vítima de traumatismo, culminando na remoção segura e transporte rápido, além da significativa mudança de mentalidade e sistematização no atendimento inicial do traumatizado durante a primeira hora27.

Nos Estados Unidos da América, estima-se que nove milhões de traumatismos envolvam o tórax e, aproximadamente, 22 a 25% das mortes por trauma sejam devidas às lesões torácicas4. A violência urbana está na gênese das lesões cardiovasculares e do tórax. Em Medellín na Colômbia, de 1990 a 1994, o problema da violência superou a doença aterosclerótica como a maior causa de morbidade e mortalidade da região28.

Apesar da faixa etária mais acometida no nosso estudo estar compreendida entre 21 e 30 anos, nem mesmo os extremos da idade são poupados dos ferimentos cardíacos, sendo descritas na literatura crianças de três anos e idosos de 78 anos de idade18,29. Entretanto, a média etária varia, na literatura, de 24 a 33 anos11,19 e a do nosso estudo foi 27 anos.

Neste estudo, os ferimentos cardíacos produzidos por arma branca foram claramente predominantes, quase 82% da amostra. Estes dados diferem bastante da literatura nacional e mundial4,7,12,30-33. Isto sugere uma peculiaridade regional, que se confirma com os dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública, onde estão relacionados 5840 ferimentos por arma branca e apenas 2267 ferimentos por projetis de arma de fogo, no período de 1997 a 1999. Na China também há predomínio de arma branca, representando 86,58% dos pacientes relatados num estudo34. O ferimento por arma branca é considerado menos grave do que o produzido pela arma de fogo, estando, dessa forma, associado a um melhor prognóstico4,9,17,30,35. Spencer Neto et al. 35  chamaram a atenção para essa questão ao mencionar a provável seleção dos pacientes que chegam com sinais vitais ao centro cirúrgico e, portanto, com menor dano miocárdico. Sua hipótese é confirmada ao analisar falecidos por morte violenta no estado do Pernambuco, em 1991, onde 70% dos óbitos por trauma foram produzidos por arma de fogo.

Desta forma, as casuísticas hospitalares registram taxas de mortalidade bem menores por FAF, ao passo que a arma de fogo é a responsável pela maioria dos traumatismos cardíacos nos estudos de necrópsia como demonstraram Fraga et al.36. Em nosso estudo, a mortalidade geral foi de 28,4%, refletindo melhor prognóstico destes pacientes, cuja maioria sofreu FAB, com mortalidade específica de 24%, ao passo que a mortalidade para FAF foi 47% (p=0,042). De maneira similar, um estudo chinês alcançou mortalidade de apenas 3,66% numa série de 82 pacientes, revisados ao longo de 16 anos, com 86,58% com FAB34. Rodrigues et al.37., relataram mortalidade geral de 32,9%, específica de 47,8% para FAF e de 52,2% para FAB38. Relataram, ainda, que a principal causa de morte foi a exsanguinação, e que do total de 23 mortos, somente quatro ocorreram após as primeiras 24 horas da admissão hospitalar devido à falência de múltiplos órgãos ou sepse37.

O precordio como local de entrada mais frequente do agente vulnerante convergiu com a literatura5,14,29. Ferimentos de entrada na chamada "cardiac box" ou área de Ziedler, cujos limites compreendem as clavículas (superiormente), as margens dos rebordos costais (inferiormente) e as linhas hemiclaviculares (lateralmente) devem pressupor possível lesão cardíaca38. As taxas de sobrevivência geral variam de 20 a 81%6,7. Estes elevados índices refletem as melhorias ocorridas no atendimento desses pacientes ao longo dos anos, seja na melhoria do atendimento pré-hospitalar, sobretudo no transporte rápido, seja no advento de novos métodos diagnósticos, como a ecocardiografia, na sala de emergência e de medidas de ressuscitação agressivas como a toracotomia de emergência10,38.

O tempo de internação varia na literatura entre 4,6 e 15,2 dias5. Neste estudo, a média foi 8,2 dias. Andrade-Alegre et al.9 reportaram o tempo decorrido entre o ferimento e o procedimento diagnóstico e terapêutico em três horas. Isso tem importância prática porque o tempo entre o acidente e o atendimento hospitalar influencia sobremaneira no prognóstico dos ferimentos cardíacos. Nesta série, este intervalo de tempo não foi registrado. Entretanto, o intervalo de tempo entre a admissão ao pronto socorro e o início da operação pode nos fornecer indiretamente a gravidade dos doentes, observando que aqueles com menor gravidade podem estar associados a retardo no diagnóstico e tratamento definitivo, por apresentarem-se estáveis à admissão. Nosso estudo encontrou uma média de 77 minutos para esse intervalo.

De maneira similar, a duração da operação pode ser usada para pressupor maior ou menor gravidade dos doentes, porém, de maneira inversa, pois quando analisamos o tempo do ato operatório, nós observamos que à medida que este tempo aumentou menor foi a mortalidade. Para os pacientes com tempo de operação inferior a 50 minutos, a mortalidade foi 100%; 28% para o intervalo de tempo entre 50 e 100 minutos; 22% para pacientes com tempo de operação entre 101 e 151; e 3% para aqueles com tempo superior a 151 minutos. Estes dados mostraram-se estatisticamente significativos (p= 0,001). Poucos estudos descrevem a duração do ato operatório e não dissertam sobre estes dados9.

Certamente devido à sua posição anatômica, o ventrículo direito é a câmara mais lesada em ferimentos cardíacos4,11,13,20,21. Estas feridas estão associadas a um melhor prognóstico e podem ser reparadas, de início, fechando-se digitalmente a laceração, enquanto se colocam as suturas simples utilizando fio de polipropileno (Prolene®) 3-0 (Figura 2)30. Estes doentes chegam aos centros de trauma com uma ou duas síndromes distintas: o tamponamento pericárdico e/ou o choque hemorrágico13,38. A tríade de Beck que inclui abafamento de bulhas cardíacas, hipotensão e turgência jugular é uma clássica descrição de tamponamento cardíaco, porém mostra-se pouco frequente38. Rodrigues et al.37 relataram uma incidência de 15% desta tríade. Outro recurso diagnóstico importante descrito é a janela pericárdica, seja pela abordagem subxifoidea ou transdiafragmática. Pela sua sensibilidade e eficácia é citada na literatura como padrão-ouro e tem indicação na suspeita de lesão cardíaca no paciente estável23,39. A toracoscopia também vem se mostrando uma opção diagnóstica nestes casos40.

Existem diversas análises quanto aos aspectos que determinam o prognóstico das lesões cardíacas, tais como: presença de tamponamento pericárdico, o local onde foi realizada a toracotomia (sala de emergência ou sala de operações), a câmara cardíaca lesada e o número de câmaras envolvidas, além de parâmetros fisiológicos4, 17,18,21,30.

Há uma correlação entre a mortalidade e a câmara cardíaca afetada, mostrando que as câmaras esquerdas estão associadas à maior mortalidade (80% para o átrio e 77% para o ventrículo)30. Encontramos uma mortalidade de 45% e 23%, respectivamente, para ferimentos atriais e ventriculares esquerdos isoladamente (p= 0,169). As lesões envolvendo múltiplas câmaras podem alcançar mortalidade de até 100% e são mais comumente produzidos por arma de fogo30. Entretanto, como a maioria das lesões descritas nesta série foi ocasionada por FAB, a mortalidade associada à lesão de múltiplas câmaras foi de 37,5%, apesar das lesões de VD associadas ao VE alcançarem mortalidade de 100%.

O pulmão é a víscera torácica mais comumente afetada nas lesões associadas aos ferimentos cardíacos, seguido pelos grandes vasos torácicos5,10,14,19,30. No abdome, as lesões de vísceras ocas são as mais frequentes, estando em segundo lugar no número total de lesões associadas30. Neste estudo, o pulmão esteve associado aos ferimentos cardíacos em 30 pacientes, o estômago e o intestino em 12 outros pacientes.

A literatura registra as mais diversas complicações, tais como: coagulopatia, sepse, infarto do miocárdio, encefalopatia anóxica, lesão valvar, atelectasia, adesão pleural, pneumotórax, pericardite e pneumonia13,15,17,29,30. Entretanto, o número de pacientes para cada complicação é muito pequeno, com exceção do hemopneumotórax e do choque13. Em nossa casuística, as complicações mais frequentes foram o choque persistente e o hemotórax retido. Tais complicações estiveram associadas, na maioria dos casos, ao sangramento pós-operatório após restauração da volemia da artéria torácica interna. Complicações tardias podem ser frequentes após um ferimento cardíaco. Westphal et al.41, em Manaus, analisaram cinco casos de tamponamento cardíaco tardio, cujo tratamento operatório consistiu em toracotomia pósterolateral e pericardiectomia em quatro casos e pericardiostomia em outro. Todos tiveram evolução satisfatória.

A abordagem cirúrgica preferida foi a toracotomia ânterolateral esquerda que pôde ser transformada em bitoracotomia de acordo com a necessidade (Figura 1). Estas incisões estão indicadas nos casos de instabilidade hemodinâmica, além de permitir amplo e rápido acesso cirúrgico às estruturas torácicas29. Entretanto, a escolha da incisão pode ser influenciada pela experiência do cirurgião e pela facilidade em executá-la. A toracotomia pósterolateral, por exemplo, mostra-se excelente em expor a cavidade pleural, mas potencialmente limitante na abordagem das lesões cardíacas. Por isso, seu uso é uma exceção nesta situação38.

Nesse estudo, 98% dos doentes foram tratados com cardiorrafia e a sobrevivência foi 71,6%. Apenas um paciente, recebeu prótese de poliéster  trançado (Dacron®). Cha et al. 11 obtiveram uma sobrevivência de 68%.

Na nossa casuística, 82 pacientes (80,3%) necessitaram de transfusão. Destes, 63,4% receberam entre uma e três unidades de concentrados de hemácias. Spencer Neto et al.35 concluíram que os pacientes que necessitaram de mais de três concentrados de hemácias nos períodos pré- e trans-operatório apresentaram um maior risco relativo para óbito, os que não necessitaram de transfusão, sobreviveram. Ao contrário, na nossa série, em 20 pacientes não houve tempo para requerer transfusão e houve uma mortalidade de 40%. Nos que necessitaram de transfusão, a mortalidade foi de 24% (p= 0,161). E ainda, nos pacientes que foram transfundidos de sete a 11 unidades de concentrados de hemácias, 20% foram a óbito. Entretanto, estes dados não foram estatisticamente significativos (p= 0,781).

Estratificando os ferimentos cardíacos de acordo com o grau de lesão anatômica e funcional, observamos que pacientes com lesão grau IV alcançaram mortalidade de 26%. Em contrapartida, ferimentos grau V, em tese, mais graves, alcançaram mortalidade menor (17%), com resultado estatisticamente significativo (p= 0,012). Para justificar tais resultados, a arma branca como agente vulnerante mais comum pode ter influenciado neste desfecho.

Em conclusão, os ferimentos cardíacos por arma branca estiveram associados à menor mortalidade. Lesões cardíacas grau IV da OIS-AAST estiveram associadas à maior mortalidade. Um menor tempo operatório esteve associado à maior gravidade e mortalidade.

 

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Endereço para correspondência:
Cleinaldo de Almeida Costa
E-mail: cleinaldocosta@uol.com.br

Conflito de interesse: nenhum
Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.

Recebido em 28/10/2011
Aceito para publicação em 29/12/2011

 

 

Trabalho realizado no Hospital Pronto-Socorro Dr. João Lúcio Pereira Machado e Pronto-Socorro Municipal 28 de Agosto – Manaus – AM- BR.