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Cadernos CEDES - Social memory and citizenship

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Cadernos CEDES

Print version ISSN 0101-3262

Cad. CEDES vol. 18 n. 42 Campinas Aug. 1997

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621997000100007 

Memória social e cidadania*

Julieta Beatriz Ramos Desaulniers**

 

 

RESUMO: Pretende-se expor como as investigações que se desenvolvem em torno de uma problemática de pesquisa referente à formação em escolas de ofício católicas e à organização e estrutura do campo religioso no Rio Grande do Sul/ Brasil (séculos XVIII, XIX, XX), tem procurado preservar os diversos suportes da memória social visto que se trata de uma forma de ampliar os "espaços de possibilidades" voltados à construção da cidadania.

Palavras-chave: memória social, cidadania, formação

 

 

Introdução

A preservação dos diversos suportes da memória social tem despertado um interesse progressivo de vários profissionais, ligados às áreas das ciências humanas e sociais, por entenderem que se trata de uma forma de ampliar os "espaços de possibilidades" voltados à construção da cidadania. Por isso, iniciativas nesse sentido começam a multiplicar-se em nosso país, o que tem permitido melhores condições à pesquisa histórica, além de oferecer novos subsídios à produção social.

Nessa perspectiva, pretende-se expor como as investigações que se desenvolvem em torno de uma problemática de pesquisa, referente à formação em escolas de ofício católicas e à organização e estrutura do campo religioso no Rio Grande do Sul/Brasil (séculos XVIII, XIX e XX), têm procurado articular-se concretamente a tal tipo de empreendimento - o da preservação de suportes da memória social.

Os inúmeros registros que materializam as práticas e representações que constituem o real foram produzidos a partir de relações de disputa que os indivíduos estabeleceram entre si, junto às várias esferas do espaço social em que atuaram. As atividades que visam preservar a memória social em suas diversas expressões baseiam-se nesse postulado e por isso têm como suposto que:

- o resgate da memória social implica um empreendimento de pesquisa que se baseia numa perspectiva interdisciplinar, pois somente assim captam-se dimensões importantes que configuram a complexidade do real;

- a perspectiva interdisciplinar envolve inúmeros procedimentos, dispositivos (instrumentos) e fontes, que possibilitam mais elementos à reconstituição das várias expressões e práticas sociais contidas na memória oral, em documentos escritos, na fotografia e na iconografia, bem como em utensílios, objetos etc.;

- a montagem de um banco de dados informatizado, cujos dados são colhidos e organizados com a operacionalização dos principais indicadores e dimensões que se referem ao referencial teórico-metodológico utilizado nas pesquisas em andamento, tem condições de articular esses inúmeros registros em que se plasma a memória social, permitindo assim uma compreensão mais global das teias de relações que a constituíram, no decorrer do tempo;

- a afirmação da cidadania associa-se à preservação da memória social, já que tal atividade oferece subsídios ao cidadão/ao agente social sobre o conjunto de saberes que vêm sendo acumulados, em decorrência das ações e estratégias que têm sido produzidas historicamente. Assim, reconstitui-se a identidade individual e social, permitindo-lhe o re-conhecimento: um elemento muitíssimo importante a toda e qualquer dinâmica que produz o real;

- o empreendimento que se preocupa com a organização e a divulgação das informações que contêm a memória social, ao socializar/democratizar a história, cumpre com um dos fundamentos da produção científica e, ao mesmo tempo, com um dos pressupostos da cidadania.

Ao discutir essas questões, apresentam-se as várias estratégias que estão sendo desencadeadas para reunir, sistematizar e divulgar as investigações sobre a temática mencionada anteriormente, com o intuito de intensificar as iniciativas que se interessam em preservar a memória social, como forma de ampliação da cidadania. Espera-se, também, oportunizar um intercâmbio mais efetivo com pesquisadores e centros de pesquisa que tratam dessas questões, capaz de estimular análises comparativas. Isso, sem dúvida, aumenta o "fôlego" dessa pesquisa e, conseqüentemente, dos espaços de construção da cidadania, já que se expandem igualmente as condições de resgate da memória social.

 

Alguns pressupostos

Os inúmeros registros que materializam as práticas e representações, que constituem a memória social relativos ao fenômeno que está sendo investigado, são produtos de uma teia de relações que foi se constituindo a partir de relações de disputa entre os indivíduos, as quais foram travadas na dinâmica que se estabelece entre as várias esferas do espaço social em que eles atuaram.

Então, é importante destacar, em primeiro lugar, que "fenômeno é um tecido de relações", mas não é ele que ilustra a relação, e sim a relação é que o esclarece, iluminando-o.1 Por isso, segundo Panofsky, "os objetos a serem comparados não são obtidos por uma simples apreensão empírica e intuitiva da realidade, mas devem ser conquistados por uma análise metódica e um trabalho de abstração". Entende-se que somente assim poder-se-á "extrair as estruturas que se exprimem e se ocultam nas realidades concretas, sendo então possível estabelecer a comparação destinada a descobrir as propriedades comuns".2

O autor observa que, dependendo do "crivo de interpretação que for aplicado", o fenômeno em estudo poderá ter "significações de níveis diferentes". Sendo isto verdade, "uma representação mutilada da `cifra' (do crivo), condena a uma decifração mutilante".3

Em síntese, é o ponto de vista que "cria o objeto", conforme Saussure, e não o contrário. Em decorrência disso, é fundamental definir e construir o objeto de investigação "em função de uma problemática teórica". Assim, supõe-se, os principais aspectos da realidade estudada são submetidos a um exame, na medida em que estão sendo postos em relação com problemas que lhe são apresentados.4

Espera-se, dessa maneira, atingir uma ruptura com o real (e não meramente incorrer num intuitivismo) e, então, poder alcançar certos resultados que permitam algumas generalizações.5

Essas foram algumas das preocupações e diretrizes que orientaram a estrutura e a seleção dos conceitos, dimensões e indicadores de uma pesquisa que visa capturar a memória social em sua complexidade.

Assim, operacionaliza-se o sistema de hipóteses em que se fundamenta essa pesquisa, o qual exerce a função de uma espécie de "trilha" ou filtro que esclarece, distingue e seleciona os elementos a serem priorizados na análise da teia de relações que constitui o fenômeno em estudo.

Em segundo lugar, assinala-se que os registros em que se plasma a memória social são produzidos através de relações de disputa entre os agentes dos diversos campos do espaço social. Nessa perspectiva, a abordagem de Pierre Bourdieu constitui uma referência para se capturar as principais expressões que configuram a dinâmica em que se desencadeiam tais relações, a partir de categorias e dimensões que se referem à teoria dos campos.

De acordo com esse autor,6 obtém-se a análise da essência do campo por meio da análise da história do campo. E, assim, apreende-se a particularidade na generalidade e a generalidade na particularidade.7 O campo "constitui-se de forças, variando de acordo com as posições que os agentes ocupam e lutas de concorrência que tendem a conservar ou transformar o campo de forças". É a luta entre os agentes que faz a história do campo,8 sendo este, aliás, o próprio "lugar de lutas".9

Bourdieu propõe o modelo que estabelece a relação entre campos e habitus, por entender que essa é "a única maneira rigorosa de reintroduzir os agentes singulares e suas ações singulares", sem incorrer na história factual.10 Porém, são as disposições dos indivíduos que mediatizam as posições e as tomadas de posição dos agentes. Assim, mesmo sendo bastante significativo o efeito do campo, ele não se exerce mecanicamente sobre os indivíduos.11 Destaca, também, que é nessa dinâmica entre campo e habitus que "a história entra em relação com ela mesma: é uma verdadeira cumplicidade ontológica que une o agente e o mundo social".12

Vale considerar ainda que a realidade social é produzida, quase em sua totalidade, em contextos institucionais. Sendo assim, resgatar a memória social implica a análise das principais dimensões que configuram os fatos institucionais que estão imbricados nos seus registros.

Entende-se, nesse sentido, que instituição se constitui de um conjunto de relações sociais, as quais se instauram a partir de uma base material e de gestão, bem como por meio das práticas, dos interesses e das categorias de interpretação dos diversos grupos de agentes.13 A análise desses elementos é fundamental para se capturar tal processo.14

Desse modo, colocam-se em evidência os fatos da organização da instituição, pois aqui é que se situam as regularidades estruturais, mais do que as funções da instituição, que se referem às propriedades de natureza conjuntural.15

Assim, com uma pesquisa organizada em torno de um objeto construído que se baseia numa problemática teórica, conforme considerações feitas anteriormente, procura-se minimizar a interferência da perspectiva ingênua na delimitação e análise16 do fenômeno que está sendo investigado e que será exposto a seguir.

 

Visando a interdisciplinaridade

A elaboração de um projeto de pesquisa integrado17 sobre um fenômeno que é central no campo educativo - o processo de formação e a produção de saberes realizados em várias instituições sociais - apóia-se no pressuposto de que o resgate da memória social implica um empreendimento de pesquisa que se baseia numa perspectiva interdisciplinar, já que somente assim captam-se dimensões importantes que configuram sua complexidade, no decorrer do tempo e do espaço.

 

Destaca-se na referida proposta de pesquisa que:

- uma investigação que envolve a temática da construção da identidade do cidadão, a ser analisada numa perspectiva interdisciplinar, é, sem dúvida, uma possibilidade de compreensão mais ampla das inúmeras ações e estratégias que, no período em estudo (século XX), foram desencadeadas para formar, através de um conjunto de saberes, os habitantes das cidades gaúchas do Rio Grande do Sul/Brasil. O desenvolvimento acelerado do capitalismo e as acentuadas rupturas no contexto urbano impunham, a cada dia, a necessidade de novas condutas e valores a seus moradores;

- tal tipo de estudo coloca em evidência a complexidade do processo de formação dos indivíduos, ao analisar os principais empreendimentos desencadeados por algumas das instâncias ou campos nele envolvidos. Assim, percebe-se que existe uma interação entre as várias dinâmicas voltadas à formação do cidadão, num dado tempo e espaço, e que resgatar os mecanismos pelos quais elas foram produzidas certamente oportunizará uma "apropriação histórica" que oferece elementos para "preparar o que há de ser";

- as atividades previstas no decorrer do processo de pesquisa igualmente assinalam a relevância dessa investigação, já que evidenciam uma preocupação constante com a socialização das informações obtidas nesse empreendimento;

- no que diz respeito à proposição de pesquisa junto a fontes primárias, seu resgate e constituição de um banco de dados, acessível ao pesquisador interessado no tema e ao público acadêmico em geral, são pertinentes algumas considerações. O resgate da memória social, do "legado" do passado, sob a perspectiva de que merecem ser preservados porque são coletivamente significativos em sua diversidade,18 instaura a possibilidade de superação de uma história concebida como processo acabado e fechado aos significados sociais;

- concebendo a construção do urbano como processo, cuja centralidade é essencial ao tema proposto, destaca-se a importância de uma pesquisa que resgate os meios de operar e de se produzir o urbano como espaço público em que estão inscritas múltiplas "significações de que é feita uma cidade";

- mais que isso, considerando que o processo de urbanização implica a constituição da cidadania, em seu sentido pleno, entendida como a "formação, informação e participação múltiplas na construção da cultura, da política, de um espaço e tempo coletivos", torna-se indiscutível a relevância de uma proposta que objetive a construção historiográfica desse processo, recriando a memória social, recuperando experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas, ambigüidades de lembranças e esquecimentos;

- cabe ressaltar que o estudo aborda um tema de significado e interesse que perpassa os tempos e os espaços. Diz respeito a um aspecto vital do homem como ser social: o da construção de sua identidade pelas instituições sociais. À parte a relevância intrínseca do tema, um estudo de tal natureza justifica-se pela escassa produção de pesquisas na área, em razão, por um lado, da carência de enfoques interdisciplinares que busquem integrar as perspectivas da sociologia, da história e da educação, uma tendência que vem sendo apontada nas pesquisas mais recentes, em desenvolvimento no Primeiro Mundo. E, por outro lado, no tocante especificamente à literatura sociológica sobre os movimentos sociais, dada a insuficiência de trabalhos que incorporam a análise específica dos processos de produção e reprodução cultural à compreensão das ações coletivas, muito embora os movimentos sociais constituam por excelência o lugar de gestação de novos valores e representações;

- finalmente, a pesquisa permite interrogar-se sobre os "transbordamentos" da escola por outras instâncias, na construção e difusão dos conhecimentos, já no início do século XX. Ou seja, esse estudo indica que a escola, historicamente, não dá conta de produzir, instaurar e disseminar todos os saberes que constituem a construção das identidades sociais.19

Em função de tais motivos, consolidar uma linha de pesquisa que pretende resgatar a memória social pode representar, efetivamente, uma forma de qualificar as ações e políticas que estão sendo implementadas na atualidade e que têm a finalidade de formar o cidadão para o ano 2000.20

As várias sublinhas de pesquisa que integram tal Projeto,21 expostas a seguir, referem-se à questão central que polariza toda a dinâmica desse empreendimento:

- "Formar o cidadão: Uma proposta da escola de ofício católica"

- "As iniciativas de assistência e a formação do cidadão"

- "As ações e práticas formativas da medicina social no Rio Grande do Sul"

- "A constituição dos agentes do Estado: Contribuições para a formação do cidadão"

- "Sindicalismo, estratégias pedagógicas e formação operária"

Essas questões estão problematizadas com base no pressuposto de que a descontinuidade verificada na estrutura e organização do processo de formação do cidadão, assim como os principais saberes instaurados nesse processo, estão associados à dinâmica estrutural do campo do poder (social, econômico e político) e articulam-se ao mesmo tempo interativa e conflitivamente com a dinâmica estrutural dos demais campos do espaço social.22

Há alguns anos, venho desenvolvendo estudos e pesquisas procurando resgatar a memória social dos processos de formação realizados em escolas de ofício católicas, os quais se sustentam na idéia de que o surgimento de um novo discurso religioso, em fins do século XIX e atualizado periodicamente no decorrer do séc. XX, instaura um tipo de ação pedagógica voltada aos segmentos populares de Porto Alegre e outras cidades gaúchas, que se materializa em instituições escolares com regime de internato ou semi-internato, com o objetivo de "formar o cidadão útil a si e à Pátria". Os saberes aí produzidos gravitam em torno dos pressupostos e postulados da Igreja católica, como também dos interesses envolvidos no jogo de relações de disputa que se estabelecem no interior do campo religioso entre seus agentes, e destes com os integrantes dos demais campos do espaço social.23

As considerações a serem feitas a seguir visam apresentar alguns aspectos que têm caracterizado o desenvolvimento das atividades que se vinculam mais especificamente à sublinha "Formar o cidadão: Uma proposta da escola de ofício católica", quando se procura salientar suas articulações com a dinâmica mais ampla do Projeto Integrado.

 

Resgatando a memória social

A referida sublinha de pesquisa tem como objeto de estudo a formação instaurada em escolas católicas do estado do Rio Grande do Sul, no decorrer dos séculos XIX e XX; e os subprojetos, que visam a reconstituição histórica desse processo, são listados a seguir: as obras fundadas pelo Pe. Cacique, a partir de 1868; Orfanotrófio Pão dos Pobres de Santo Antônio, fundado em 1895 e dirigido desde 1916 pelos irmãos lassalistas; Escola São José, fundada pelos maristas em 1921; Casa do Pequeno Operário, iniciada em 1943 pela congregação salesiana; Escola São José do Murialdo, criada em 1954 pelos padres josefinos; Educandário São Luiz Guanella, fundado em 1947 pelos guanellianos; Centro Social Pe. Calábria, ligado à congregação dos padres da Divina Providência, criado em 1962.24

Algumas descobertas já foram feitas à luz do referencial teórico-metodológico que norteia essas pesquisas. Dentre elas, destacam-se:

- as articulações desse processo com o campo religioso, visto que determinam a configuração do mesmo em seus tempos e espaços. Isso implica dizer que a formação proposta nessas escolas é muito peculiar, se comparada com a das demais escolas voltadas à classe trabalhadora. Nas escolas católicas, os fundamentos que suportam tal processo, com metas bem específicas a cumprir, priorizam os elementos que caracterizam e constituem o contexto em que estão inseridas - o campo religioso.

- todas as questões, de caráter mais pedagógico ou técnico, são subordinadas aos pressupostos da religião católica, os quais definem significativamente o sistema de disposições - habitus -, adquirido pelos formados em tais estabelecimentos.

- a referida formação foi produzida e sustentada por relações de disputa travadas entre os representantes da Igreja, no interior do próprio campo, e entre esses mesmos agentes sociais e os integrantes dos vários campos, em especial do campo de poder, que constituíam o espaço social de Porto Alegre e do estado no período em estudo, definindo suas diretrizes e ações.

- a formação desencadeada em tais escolas revelou-se eficiente enquanto foi capaz de mobilizar o capital característico do campo religioso, estabelecendo através dele as lutas com os demais campos do espaço social, pela garantia e expansão de seu poder.

- as instituições exerceram uma ação simbólica junto ao campo do poder e à sociedade civil, através da inculcação de um sistema de práticas e representações sagradas, reanimado pelas crenças, pelos símbolos e pelas festas religiosas, cuja "estrutura (estruturada) reproduz sob forma transfigurada (irreconhecível) a estrutura das relações econômicas e sociais vigentes".25

- a reconstituição do percurso da entidade em análise demonstra que ocorreu a superação de uma mera proposta assistencial: tratava-se de uma ação de caráter pedagógico, com destaque para os valores relativos à religião católica.

- tais iniciativas recorreram a um conjunto de estratégias, a fim de assegurar a eficácia do processo que pretendia, em novos moldes, instaurar um sistema de disposições gerais, capaz de expressar a forma cristã que produziria o homem novo, "apto para o trabalho, que lhe garantiria uma vida útil para si e para a Pátria, quando fosse reintegrado ao convívio social".26

- os espaços de autoconstrução desse ambiente de formação, organizados para envolver o órfão o tempo todo, independentemente da tarefa a ser executada por ele, eram muito reduzidos, o que não eliminou, porém, sua participação, tornando-o um cúmplice do tipo de formação que ele incorporou nesse contexto totalizante.

Vale observar que a conquista desse conjunto de descobertas não é uma tarefa fácil. Pelo contrário. Demanda um trabalho árduo para reunir e organizar os "achados", além de supor uma postura flexível do pesquisador em face dos tantos "perdidos" - quase irrecuperáveis - com que depara no decorrer de suas buscas.

Enfim, a reconstituição de trajetórias referentes ao sistema educacional apresenta várias dificuldades, especialmente quanto à localização e às condições dos dados, necessários para se realizar satisfatoriamente esse empreendimento, em função do reduzido espírito de conservação da nossa história.

Os arquivos referentes à memória27 de tais escolas praticamente inexistem. Sua história está mesmo na memória daquelas pessoas que delas participaram, e como uma propriedade particular.

Diante de tal panorama, a solução para o pesquisador é fazer-se de detetive e sair "à cata" do material indispensável, procurando um por um os dados e as informações, para obter as fontes e os recursos à reconstituição do fenômeno em estudo. Ou seja, às vezes o cientista precisa assumir atribuições que, em princípio, não fazem parte de sua competência, o que, aliás, é bem aceito por ele quando consegue atingir os principais objetivos de seu trabalho.

Essa tem sido a regra mantida no decorrer desta investigação: muito tempo, muita imaginação e perseverança estão sendo despendidos, a fim de obter as referências necessárias à reconstituição da trajetória do processo de formação, proposto pelas escolas de ofício católicas em estudo.

 

Sistematizando para se reconhecer e socializar

As preocupações em resgatar a memória social que instigam as pesquisas sobre o processo de formação realizado em escolas católicas são reforçadas com o alerta de Bloch, que observa que a ignorância do passado, além de prejudicar o conhecimento do presente, compromete também a própria ação no presente. Logo, o processo de reconhecimento é fundamental à dinâmica do próprio fenômeno em análise e ao contexto mais amplo em que o mesmo está inserido.

Por isso, a captura dessa realidade vem sendo empreendida desde 1988, por meio de um conjunto de ações, em busca de uma apropriação capaz de "ajudar a preparar o que há de ser".28 Assim, pretende-se atingir uma "apropriação interveniente do passado", ao se captar a evolução das escolas católicas investigadas e, dessa maneira, "ajudar o homem a pensar-se no mundo e a intervir de forma mais avisada e inteligente na construção de uma sociedade diferente".29

Nesse sentido, procura-se destacar que "não há nenhum determinismo na evolução dos sistemas educativos, das idéias pedagógicas ou das práticas escolares: tudo é produto de uma construção social".30

Comentam-se, a seguir, as principais iniciativas que visam sistematizar para socializar as pesquisas sobre formação em escolas católicas do Rio Grande do Sul, no decorrer dos séculos XIX e XX, possibilitando, assim, seu reconhecer e o reconhecer das identidades desses processos por parte do contexto mais amplo que o constitui, como expressão da memória social.

 

Banco de dados informatizado

Essa iniciativa constitui-se o ponto de confluência dos subprojetos em andamento, garantindo a utilização mais ágil dessas informações pelas pessoas interessadas no assunto.31

O banco de dados está sendo montado com base nas principais categorias e dimensões que operacionalizam os pressupostos teóricos em que se sustentam as pesquisas referidas no item "Alguns pressupostos". Procura-se evidenciar a estrutura e a organização do campo religioso no RS, seus principais empreendimentos voltados à formação, bem como as ações e estratégias que foram sendo implementadas pelos seus representantes para garantirem a dinâmica de tais processos, no decorrer dos últimos séculos, desde o período da colonização (século XVIII).

Exposição

Em comemoração ao centenário da escola de ofício católica "Pão dos Pobres", caso exemplar dentre as que se situam no estado do Rio Grande do Sul, organizou-se a exposição que busca resgatar essa trajetória "através de fotos, objetos, depoimentos e ambientação" e, assim, "propõe-se realizar um inventário da memória social contida nos vestígios preservados pela Obra".32

Observa-se que esse empreendimento constituiu-se uma verdadeira oficina de pesquisa, envolvendo toda a equipe, já que a proposta de recuperação da memória social significou a interdisciplinaridade em ato, ao procurar remontar esse "lugar"33 centenário, através de várias linguagens que focavam o processo de formação voltado à urbanidade e à cidadania.

Museu Pedagógico

A exposição sobre o "Pão dos Pobres" é o passo inicial à organização e montagem de um museu sobre as escolas de ofício católicas do Rio Grande do Sul, que se baseia igualmente nos pressupostos que orientam as investigações em andamento, tendo como objetivos:34

- recolher/preservar a memória social e histórica das escolas de ofício católicas do RGS;

- reconstituir espaços/vivências da formação em escolas de ofício católicas do RGS;

- reconstituir processos pedagógicos desencadeados no RGS;

- resgatar sinais, vestígios do passado que contribuam para a elucidação do presente;

- fomentar iniciativas de preservação da memória no RGS;

- traduzir em linguagens diferenciadas os estudos desenvolvidos sobre a formação em escolas de ofício católicas do RGS;

- delimitar os vários espaços e tempos de formação do cidadão e de constituição de cidadania.

 

Recuperando a memória = ampliando a cidadania

Sem dúvida, o fenômeno investigado tem se constituído a fonte principal para as inúmeras atividades que desenvolvo como professora universitária e pesquisadora na área das ciências humanas e sociais, tais como: atualização permanente das disciplinas que ministro; organização de cursos de extensão universitária; aprimoramento dos instrumentais utilizados em pesquisa e das monografias e dissertações de mestrado que oriento; qualificação dos intercâmbios entre pesquisadores nacionais e internacionais; produção de artigos para revistas especializadas; elaboração de trabalhos para congressos nacionais e internacionais; palestras proferidas sobre essa questão em escolas católicas; traduções, missões de trabalho de professores estrangeiros etc.

No entanto, é certo que as possibilidades de socialização dos resultados do conjunto de estudos e pesquisas sistematizados até o momento ampliam-se significativamente a partir do Projeto Integrado, visto que todas as atividades da pesquisa envolvem diretamente três instituições universitárias que, por sua vez, estabelecem contatos com outras instituições, em que o banco de dados (que inclui as diferentes fontes consultadas, independentemente de seu suporte - fotografia, documentos, entrevistas - , facilitando a elaboração de guia preliminar de fontes, álbum fotográfico, catálogo temático), constitui-se o ponto de confluência entre os vários subprojetos em andamento, instigando o real ao recuperar a memória social através desses meios que estão sendo utilizados para sua sistematização e socialização.

Ainda, o fato de tais pesquisas sustentarem-se em dispositivos que podem estimular análises comparativas garante também um maior rigor científico, já que aumenta seu "fôlego" para reconstituir mais registros dos vestígios dessa história. E, assim, ampliam-se também os espaços de construção da cidadania, intimamente associada à expansão das condições que garantam o resgate da memória social.

 

Notas

1. Gaston Bachelard. O novo espírito científico. Lisboa, Editora 70, 1986, p. 105.         [ Links ]

2. Concepções de Erwin Panofsky sobre a construção do objeto científico, apresentadas in: Pierre Bourdieu. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1987, pp. 338-339.         [ Links ]

3. Idem, p. 341.

4. Bourdieu, op. cit., 1978, p. 54.

5. Idem, p. 80.

6. Tais considerações sobre o referencial de Pierre Bourdieu constam no Projeto Integrado "Urbanidade e cidadania: Processos de formação e instauração de saberes", aprovado pelo CNPq em mar./95, p. 14.

7. Pierre Bourdieu. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990, pp. 7 e 17.         [ Links ]

8. _____. "Le champ littéraire". In: Revue Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, Éditions de Minuit, no 89, set./1991, pp. 5 e 24.         [ Links ]

9. Idem, 1990, p. 172.

10. Idem, p. 63.

11. Idem, 1991, p.42.

12. P. Bourdieu. Réponses - Une anthropologie réflexive. Paris, Éditions du Seuil, 1992, p. 103.         [ Links ]

13. Jean-Michel Chapoulie & Jean-PierreBriand. "A instituição escolar e a escolarização: Uma visão de conjunto". In: Revista Educação & Sociedade. Campinas, Papirus & Cedes, no 47, abr./1994. Trad. de Julieta B.R. Desaulniers. Ver mais detalhes sobre esse enfoque in: Julieta B. Ramos Desaulniers. "Instituição e evolução da escolarização". In: Revista Teoria & Educação. Porto Alegre, Pannônica, no 6, 1992. ———. "Um pesquisador, uma abordagem" - entrevista com Jean-Michel Chapoulie. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, Ed. UFRGS, no 19, 1993.

14. Outros autores apresentam, igualmente, subsídios importantes à operacionalização dessa categoria de análise - a instituição -, tais como: Erwing Goffman, Basil Bernstein, Pierre Bourdieu, Paul Willis, André Petitat, C. Castoriades, ...

15. Chapoulie & Briand, op. cit., pp. 46 e 47.

16. Pierre Bourdieu. El ofício de sociólogo. Buenos Aires, Século XXI, 1978.         [ Links ]

17. Trata-se do Projeto Integrado "Urbanidade e cidadania: Processos de formação e instauração de saberes, financiado pelo CNPq e Fapergs, envolvendo uma equipe de pesquisadores de diversas instituições universitárias (PUC-RS - Julieta B. Ramos Desaulniers; UFRGS - Nilton Bueno Fischer, Maria Stephanou; Unisinos - Luis Inácio G. Gaiger e Flávia C. Werle Obino).

18. Maria Célia Paoli. "Memória, história e cidadania: O direito ao passado". In: O direito à memória: Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo, DPH, 1992.         [ Links ]

19. Trechos extraídos do Projeto Integrado, op. cit., pp. 15-16.

20. Idem, p. 4.

21. Idem, pp. 21-23.

22. Idem, p. 7.

23. Idem, pp. 7-8.

24. As pesquisas sobre essas escolas têm sido financiadas com bolsas de Iniciação Científica, desde 1988, pela Fundação de Amparo à Pesquisa/Fapergs e Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUC-RS.

25. Pierre Bourdieu. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1987, p. 46.

26. Esta afirmação é uma constante nos discursos dos vários agentes sociais envolvidos nesse empreendimento.

27. Importantes referências sobre essas questões in: Justino Magalhães. Contributo para a história das instituições educativas - entre a memória e o arquivo. Material gentilmente cedido pelo autor, 1995, texto mimeografado.

28. Antônio Nóvoa. "Inovação e história da educação". Teoria & Educação. Porto Alegre, Pannônica Ltda., no 6, 1992, p. 219.

29. Idem, pp. 213-216.

30. Idem, p. 211.

31. Considerações feitas pela bolsista Maria Alice Canzi, ao expor as atividades que vem desenvolvendo junto ao subprojeto "O campo religioso no RS e a formação para o trabalho", no VII Salão de Iniciação Científica, UFRGS, 1995, p. 2.

32. Idéias de Maria Stephanou, ao apresentar essa iniciativa em material de divulgação, como consultora que acompanhou a realização desse evento e membro da equipe do Projeto Integrado "Urbanidade e cidadania", op. cit.

33. Essa categoria de análise baseia-se nos pressupostos considerados por Antonio Viñao Frago. "Del espacio escolar y la escuela como lugar: Propuestas y questiones". In: Revista Interuniversitária História de la Educatión. Salamanca, Editiones Universidad de Salamanca, nos 12-13, 1993-1994.         [ Links ]

34. Tais referências foram retiradas de Dulcemara Guazzelli Gonzaga, mencionadas no subprojeto sobre o Museu Pedagógico das Escolas de Ofício Católicas, RS, 1995, p. 2, que está sendo elaborado sob minha orientação.

 

 

Social memory and citizenship

ABSTRACT: The paper claims to expose the investigations that developed around a problematic research. The research in question looked at education in the Catholic offices schools and at the structure of the religious area in Rio Grande do Sul in Brazil (in the XVIII, XIX, and XX centuries). It tries to support the different social memories that amplify space and possibility that turned into the making of citizenship.

 

 

* Este texto - com algumas alterações - foi apresentado no III Congresso Iberoamericano de História de la Educación Latinoamericana, realizado em Caracas/Venezuela, de 9 a 14/6/96.

** Professora e pesquisadora junto ao IFCH; fez mestrado em Serviço Social, na Pontifícia Universidade Católica do RGS. E-mail: julieta@music.pucrs.br