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Psicologia em Estudo - The process of creation of a musical: an objectification of the subjectivity, based on Sartre and Vygotsky

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Psicologia em Estudo

Print version ISSN 1413-7372

Psicol. estud. vol.8 no.2 Maringá July/Dec. 2003

http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000200016 

ARTIGOS

 

Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky1

 

The process of creation of a  musical: an objectification of the subjectivity, based on  Sartre and Vygotsky

 

 

Kátia Maheirie

Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O sujeito é compreendido neste trabalho como constituído e constituinte do contexto social, e a música como uma linguagem reflexivo-afetiva, capaz de construir sentidos coletivos e singulares. Entendemos como reflexiva toda atividade humana que objetiva predominantemente uma racionalidade; e, como afetivas as objetivações que, embora mediadas por uma racionalidade, contemplam sobremaneira emoções e sentimentos. A partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky, compreendemos que nos processos de criação musical os sujeitos unificam dialeticamente a aprendizagem dos conhecimentos técnicos, numa postura afetiva, a qual implica em relações entre percepção, imaginação, sentimentos e emoções. O músico, no processo criativo, transforma os sons numa objetividade subjetivada, como negação dialética do determinismo de um contexto, já que nele deixa, necessariamente, a marca da sua subjetividade. O processo de criação musical deve ser compreendido sempre como um produto histórico-social, completamente inserido no contexto no qual se dá.

Palavras-chave: processo criativo, música, sujeito em Sartre e Vygotsky.


ABSTRACT

In this workthe subject is understood as constituted and constituent of the social context, and the music, as a reflexive-affectionate language, capable to build collective and singular sense. We understand as reflexive every human activity that, above all,aims at a rationality; and, we understand as affectionate the objectifications that, although mediated by a rationality, they contemplate emotions and feelings. Based on works of Sartre and Vygotsky, we understand that in the process of musical creation, the subjects unify dialectically the learning of the technical knowledge, in an affectionate posture, which implicates in relation among perception, imagination, feelings and emotions. The musician, in the creative process, transforms the sounds in a subjectfied objectivity, as a dialectical denial  of the determinism of a context, since it he leaves, necessarily, the mark of the his subjectivity. The process of musical creation should always be understood as a historical-social product, completely inserted in the context in which it occurs.

Key words: creative process, music, subject in Sartre and Vygotsky.


 

 

Este artigo busca refletir sobre o processo de criação musical a partir de duas concepções teóricas, representadas aqui por Sartre e Vygotsky. Embora estes dois autores apresentem diferenças epistemológicas e ontológicas, que são provenientes de diferentes matrizes filosóficas2 neste trabalho nos interessa destacar aquilo que os unifica no que se refere à concepção de sujeito e, como conseqüência, de processos criativos.

Compreendendo o sujeito como constituído e constituinte do contexto social no qual está inserido, é possível qualificar a música como uma forma de comunicação, de linguagem, pois por meio do significado3 que ela carrega e da relação com o contexto social no qual está inserida, ela possibilita aos sujeitos a construção de múltiplos sentidos singulares e coletivos.

A música, de forma geral, nos aborda num primeiro momento de maneira espontânea4, e, neste estado específico, ela nos atinge no âmbito da afetividade, predominando esta esfera do humano no ouvir e, até mesmo, no fazer musical. Mas convém compreender melhor o que significa afetividade. Em primeiro lugar, podemos dizer que ela contempla as emoções e os sentimentos. Segundo Sawaia (1994), os sentimentos seriam os estados mais “estáveis” da afetividade, como o amor, a felicidade, o ódio, ou qualquer outro sentimento que não seja caracterizado pela “explosão”. Eles envolvem a reflexão espontânea, que os alimenta e constitui: “o sentimento dá-se como uma espécie de conhecimento (...), mas não é um conhecimento intelectual” (Sartre, 1936/1996, p. 98-9). Já as emoções se caracterizam pelo caráter “explosivo” da afetividade, como a paixão, a alegria, a raiva, etc. A reflexão espontânea os alimenta, mas não os constitui. Ambos estão contidos na atitude afetiva e se caracterizam por serem formas específicas e diferenciadas de se relacionar a um objeto. A afetividade, em síntese, envolve todas as relações humanas consideradas espontâneas, seja percepção, seja imaginação ou reflexão, contemplando, assim, os sentimentos e as emoções como formas específicas de relação entre subjetividade e objetividade.

Quando o sujeito está “mergulhado” em uma música, ele significa o mundo que está a sua volta, por meio de consciências afetivas5. Nesta perspectiva, dizemos que a música é uma linguagem  reflexivo-afetiva, já que envolve um tipo de reflexão que se faz possível por meio da afetividade, e uma afetividade que se faz possível por meio de determinado tipo de reflexão.

Acontece que o impacto causado  pela música não é sentido somente na singularidade psicofísica do sujeito. Justamente por criar e despertar a afetividade, a música parece alterar a forma como o sujeito significa o mundo que o cerca. Quando se está “tomado” pela emoção de uma música, os objetos à nossa volta ganham sentido e, o que parecia ser indiferente, passa a ser vivido como “necessário”. Isto é, os objetos, entendidos enquanto “materialidade”, realidade física, passam a ficar repletos de sentido e marcados pela subjetividade humana. Neste instante, tudo ao redor parece dançar ao mesmo compasso da música, e esta organização sonora passa a dar musicalidade  ao mundo como um todo.

Este tipo de linguagem, como já apontamos, contempla o processo das emoções e dos sentimentos. Mas, para entendermos o que acontece com o sujeito, seja o produtor da música, seja o ouvinte, é necessário que compreendamos melhor a constituição das emoções, como elas participam do fazer musical, e qual seu papel para quem escuta tais músicas.

A afirmação mais básica que podemos levantar a respeito das emoções é que é um tipo de consciência (Maheirie, 1994, 2001), e, como tal, é necessariamente relacional, isto é, como consciência é sempre consciência de alguma coisa. Portanto, de forma geral, a emoção só pode ser uma consciência do mundo e, como tal, é sempre relacional e dirigida a ele. Quando, por exemplo, nos apaixonamos, estamos enraivecidos ou amedrontados, vivenciamos estes estados em relação a alguém ou alguma coisa.

Para Sartre (1939/1965), a emoção é a estrutura afetiva da consciência, e como consciência afetiva, na sua espontaneidade, se constitui como uma forma de apreender o mundo. O mundo, por sua vez, quando estamos numa postura espontânea de consciência, pode nos aparecer como sendo amável, odiável, apaixonante, etc, e como tendo que ser vivido necessariamente desta maneira.

Da mesma forma, as ações aparecem “como potencialidades do mundo”, ou como “exigências” dele:

É a própria maneira como eu as apreendo através da minha atividade criadora que as constitui como tais: aparecem como potencialidades devendo ser realizadas (...) Sinto objetivamente a sua exigência (Sartre,1939/1965, p. 52).

Este processo, próprio do domínio da afetividade humana, dialetiza as antíteses ordem-caos, determinismo-liberdade e reflexão-emoção, em sínteses provisórias no tempo, revelando-se no vivido espontâneo do sujeito que compõe a música. Criar é, então, visar a  uma seqüência estruturada no âmago da liberdade, a partir do determinismo presente na leitura do caos, de maneira reflexivo-afetiva. A partir do caos do som e do silêncio, o sujeito atribui a propriedade do tempo e do espaço, realizando uma seqüência de notas e intervalos, estruturados em melodia, harmonia e ritmo. Mas, no momento mesmo da criação, cada nota e cada intervalo contidos aí aparecem e são vividos como necessários, tal como a altura, duração, intensidade e timbre no qual se deram. Trata-se de uma atividade que está presente no domínio da espontaneidade, isto é, da afetividade e, assim, é vivida pelo criador como um encadeamento necessário, fatal e irreversível.

Sartre definia este processo, quer dizer, o ato de criar, como sendo um ato de “conferir ao mundo uma necessidade” (Beauvoir, 1960/1984, p. 43-44). Isto significa que o artista introduz a necessidade (um encadeamento, uma significação que se impõe quase que como uma fatalidade) onde só havia liberdade (plano da vivência onde tudo ou qualquer coisa é possível). A fatalidade, como condição inerente à arte, nada mais é do que uma das formas que o sujeito tem de fazer com que o som e o silêncio aconteçam no mundo. Para este autor, a música é vivida essencialmente como uma necessidade:

Os ritmos, a harmonia dos períodos ou dos refrões me trazem lágrimas aos olhos, as formas mais elementares de periodicidade me comovem. Noto que esse desenvolvimento regular deve ser essencialmente temporal, pois a simetria espacial me deixa indiferente (...) Por isso, a música é a forma mais comovente, para mim, e a mais diretamente acessível da beleza (...) E que essa ocorrência seja bela, isto é, que tenha a necessidade esplêndida e amarga de uma tragédia, de uma melodia, de um ritmo, de todas essas formas temporais que avançam majestosamente, através de harmonias regulares, para um fim que levam nos seus flancos (Sartre, 1983/1983, p. 343).

O sentimento que daí se origina não se encontra somente na materialidade do som e do silêncio, mas também na maneira pela qual estes se organizam num determinado encadeamento. Este é traçado por um sujeito que inscreve sua subjetividade naquela objetividade, transformando a realidade física, para si e para os outros que escutam aquela música, numa objetividade subjetivada. Assim, toda música produz uma necessidade, uma fatalidade, uma ordem no caos do som e do silêncio, ao produzir novas emoções.

Para Sartre, a emoção tem início devido à percepção de um objeto que tende a alimentá-la de forma constante, fazendo com que o sujeito emocionado e o objeto emocionador se constituam numa síntese indissolúvel. Mas, para que um objeto possa ser emocionador, tem que se realizar como presença imediata e, simultaneamente, mágica para a consciência. O que isto significa? Vivendo cotidianamente, o sujeito apreende as qualidades do mundo de maneira determinista (mundo amável, odiável, difícil, amargo, apaixonante, etc.) e, conseqüentemente, as possibilidades de atuação neste mundo aparecem como igualmente deterministas. Quando o sujeito percebe que os caminhos traçados para a atuação estão barrados, ou quando o sujeito tenta apreender um objeto (o objeto emocionador) e, no domínio do real não o consegue, a consciência busca apreendê-lo de uma outra maneira, criando um “mundo mágico”, o que equivale a dizer um mundo imaginário, transformando-se (emocionando-se) para poder transformá-lo. Em outras palavras, o sujeito como corpo e consciência modifica suas qualidades, emocionando-se, para que o mundo possa se “transformar”:

O que sucede, simplesmente, é que, sendo a apreensão de um objeto impossível ou criando uma tensão insustentável, a consciência o apreende ou o tenta apreender de outra maneira, ou seja, a consciência transforma-se justamente para transformar o objeto (Sartre, 1939/1965, p. 55).

O sujeito consegue apreender um objeto “novo” ou um “antigo” de uma maneira nova, já que ressignifica este objeto a partir da situação na qual se encontra. Percepção, imaginação e reflexão espontânea constituem este processo, porque toda emoção visa produzir um mundo mágico, um mundo imaginário, no qual o corpo se transforma num meio de “encantamento” deste mundo.

Nesta perspectiva, por exemplo, a dança e o canto do músico e da platéia são formas que o sujeito, como corporalidade vivida, toma para simbolizar a “posse” do objeto desejado. A consciência, na emoção, não se limita a criar significações sobre o mundo, já que ela, de fato, vive este mundo que acaba de criar, indicando que “a emoção é sofrida” (Sartre, 1939/1965, p. 67) e, neste sentido, não se tem um total e absoluto controle sobre ela. Assim, a emoção é um tipo de consciência que está estruturada na “crença”, já que é necessário acreditarmos num imaginário (que nós mesmos construímos) para que possamos nos emocionar.

Esta dimensão imaginária do mundo pode ser entendida como uma estrutura presente no mundo e qualificada como “mágica”. Desta forma, o imaginário faz parte da realidade humana, mesmo sendo a antítese do real. Este “mágico”, que nada mais é que a característica básica do imaginário, pode vir a reger a percepção de um sujeito sobre outro, pode vir a reger as relações interpsíquicas dos sujeitos, fazendo-se presente e muito forte no contexto social. Compreendido desta maneira, o mundo social é, antes de tudo, mágico, ou, melhor dizendo, o mundo, que é necessariamente social, contempla uma dimensão imaginária.

O imaginário e as significações se inscrevem no contexto social, estendendo-se às coisas, de tal maneira que a objetividade e as reações orgânicas formam um todo unificado. Sob esta ótica, o comportamento fisiológico não é um mero acessório, é a objetivação deste processo, representando o “sério” (Sartre, 1939/1965, p. 68) da emoção, como um de seus desdobramentos no plano da objetividade. Estas manifestações, como objetivação da vivência emocional, não estão separadas das ações de forma geral, já que ambas se encontram totalmente “sintetizadas”. Sobre elas não se tem um controle como se tem em outros tipos de ações (pode-se parar de correr, mas não parar de tremer). A emoção se caracteriza como um “comportamento encantador”, que é assumido no plano do real, pois “para acreditar nos comportamentos mágicos, é necessário estar-se perturbado” (Sartre, 1939/1965, p. 68) também.

Trata-se, antes, do comportamento de um corpo que se encontra em determinado estado: o estado, só por si, não provocaria o comportamento, e o comportamento sem o estado seria comédia; mas a emoção aparece num corpo perturbado que tem certo comportamento (Sartre, 1939/1965, p. 68).

As músicas, na medida em que provocam no fisiológico determinadas reações, podem, a partir daí, nos remeter a estados emocionais intensos, em que só as ações poderão lhes dar uma significação. Esta, não sendo estabelecida a priori na música, também não o é nas emoções, posto que o que nos emociona não emocionará necessariamente os outros.

Mas, independentemente daquilo que faz um determinado sujeito se emocionar, a emoção tende a se perpetuar, já que um certo conteúdo reflexivo a torna cativa de si, captando no objeto emocionador alguma coisa que a faz acontecer constantemente, perpetuando esse “mundo mágico”. Esta “alguma coisa” são as qualidades do mundo mágico projetadas ao futuro, vivenciadas como o sentido deste mundo, vivenciadas como “protensão afetiva”. Assim, é importante compreender que “a emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das formas pela qual ela compreende o seu ser-no-mundo” (Sartre, 1939/1965, p. 81).

Nesta direção, podemos afirmar, ao lado de Sawaia, que “conhecimento, ação e afetividade são elementos de um mesmo processo, o de orientar a relação do homem com o mundo e com o outro” (Sawaia, 1994, p. 164), e se revelam no movimento que constitui a postura do sujeito, neste caso específico, em relação à música (já que esta é nosso objeto de reflexão), seja como profissional seja como ouvinte.

A afetividade, postura central no sujeito musical, traz uma dimensão que se objetiva no corpo, outra que implica numa seleção de pensamentos, e uma terceira que se constitui em imagens, sem as quais não constituiríamos um mundo “mágico”. Vale destacar que estas três dimensões são faces de um mesmo processo, não podendo ser entendidas de forma dicotômica.

A imaginação, consciência afetiva de um objeto em imagem, se constitui pela degradação, ou seja, pela transformação de um saber já incorporado, isto é, subjetivado pelo sujeito ao longo da sua história. Neste processo, primeiramente, o sujeito percebe o objeto; em seguida, a partir da sua materialidade, da consciência do signo que está presente nele, opera uma síntese de significação que se constitui na transformação do saber já incorporado. Esta síntese de significação remete o sujeito a uma consciência de imagem, que, por sua vez, se traduz na realização de um saber na matéria intuitiva que lhe aparece (Sartre, 1936/1996). A mediação da afetividade torna este processo possível, pois é a postura relacional que garante a percepção, a imaginação, uma reflexão espontânea, envolvendo o processo do saber e a síntese de significação, que é a transformação ou degradação deste saber.

O sentido da música, em decorrência destas afirmações, é sempre permeado pela afetividade. Em primeiro lugar, percebemos sua sonoridade, depois degradamos um saber anterior que tenha uma relação com os elementos percebidos deste som para, em seguida, transformarmos este saber e constituirmos um sentido àquela música. Posteriormente, estabelecemos, de forma singular, um significado para a música, compactuando ou não com seu significado coletivo. As características daquela sonoridade surgem como um complexo representativo que aparece determinado pela consciência afetiva, a qual, por sua vez, lhes dá nova significação.

A música é uma expressão do pensamento afetivo e sua função é simbólica, posto que revela e traduz uma época, um fato, ou outro objeto qualquer, de forma que é possível afirmar que seu aspecto crucial é, como afirma Vygotsky (1970/1998), sua capacidade em compreender “pelo coração”. Ao escutarmos uma música podemos, por meio dela, tornar mais complexos os nossos saberes, definir melhor nossos pensamentos, dar maior precisão às nossas posições, trazer para o presente um objeto que está ausente, e, até mesmo criar objetos imaginários. Para o ouvinte, uma música pode despertar novas reflexões, com ou sem a mediação de imagens, já que estas, como parte da realidade humana, não são a antítese da reflexão, mas tão-somente antítese dialética do real. De qualquer forma, é preciso deixar a música agir sobre nós para que qualquer um destes aspectos possa se realizar, seja a partir do som e das letras, seja do movimento da dança e/ou do cenário onde os shows musicais acontecem.

Portanto, a contraposição entre realidade e imaginação não é tão absoluta quanto possa parecer. Vygotsky (1930/1990) é quem nos ajuda muito nesta direção, pois compreende uma ligação estreita entre estas duas dimensões, colocando a imaginação como uma função vital e necessária ao processo de criação e indicando quatro formas de vincular fantasia e realidade.

A primeira vinculação está contida no fato de extrairmos da realidade os elementos que compõem a imaginação. Estes elementos, que estão presentes na imaginação, são modificações das combinações dos elementos já presentes na realidade. Por isso, quanto mais ricas forem as experiências da história de um sujeito, maior o material que terá ao seu dispor para compor novas imagens, estruturando diversas fantasias.

A segunda vinculação se dá entre “produtos preparados da fantasia e determinados fenômenos complexos da realidade” (Vygotsky, 1930/1990, p. 19). O produto desta vinculação é fruto da função criadora da imaginação, pois inventa novas combinações entre elementos complexos, tanto de uma dimensão quanto da outra. Neste movimento de vinculação, o sujeito pode enriquecer sua experiência sem ter que vivenciá-la no concreto. É possível vislumbrar este processo quando, por exemplo, se escuta uma história contada por meio de uma música, ou quando esta nos descreve um lugar ou uma coletividade que não conhecemos no âmbito do real. Este tipo de vinculação nos permite compreender experiências sociais diversas das nossas, ampliando nosso horizonte compreensivo graças à nossa capacidade imaginativa.

A terceira forma de vinculação é o enlace emocional. Para Vygotsky (1930/1990), toda emoção se manifesta em imagens concordantes com ela, de tal forma que as reações corpóreas, impressões, idéias e imagens constituem um todo que se unifica a ela. Nesta perspectiva, os sentimentos tendem a dominar outras dimensões da vida e “qualificar” o mundo de acordo com nosso estado de ânimo, porque, se estamos alegres, corpo, pensamentos, impressões e imagens constituem um “mundo alegre”.

A quarta forma seria o produto da fantasia revelando-se como algo completamente novo, inexistente no mundo real que, quando objetivado, passa a existir neste plano e a modificar as pessoas e outros objetos. Com uma força ativa, este produto é capaz de transformar a realidade, fechando o círculo do processo de criação humana: é o produto da criação propriamente dito que, para existir, teve de ser mediado pela fantasia e pelas emoções.

Para Vygotsky (1930/1990), a fantasia, como um aspecto da imaginação, é movida pelas emoções, havendo uma mútua influência entre estas e a imaginação. O autor acrescenta que a afetividade pode até unificar concepções e significações distintas, tal é seu poder na constituição dos sujeitos. A importância que confere à relação entre afetividade e arte faz qualificar esta como a “técnica social do sentimento” (1970/1998, p. 3), sendo sua função sistematizá-lo e transcendê-lo numa nova objetividade.

Mas a emoção vivida na arte não pode ser confundida com outras emoções, nem a gramatical, nem a intelectual, já que a emoção da arte acontece primeiramente na forma. É esta que contém a arte propriamente dita, pois, ao mudarmos um milímetro que seja da sua forma, estaremos mudando tudo. Ora, se a forma é própria de toda obra de arte, “a emoção específica da forma é condição necessária da expressão artística” (1970/1998, p. 42). Especificamente, no objeto acústico, a “musicalidade”, propriamente dita, está na forma e não no conteúdo das letras, indicando que a arte musical reside, em primeiro lugar, no modo como a música me toca.

Vygotsky (1970/1998) afirma que a arte implica numa dualidade de emoções, isto é, ela possibilita emoções opostas do tipo dor-prazer, depressão-excitação, como no exemplo da tragédia. A contraposição dos sentimentos seria própria da impressão estética, a qual operaria “pelo princípio da antítese”. Para ele,

Toda obra de arte encerra forçosamente uma contradição emocional, suscita séries de sentimentos opostos entre si e provoca seu curto-circuito e destruição. A isto podemos chamar o verdadeiro efeito da obra de arte, e com isso nos aproximamos em cheio do conceito de catarse, que Aristóteles tomou como base da explicação da tragédia e mencionou reiteradamente a respeito de outras artes (Vygotsky, 1970/1998, p. 269).

Compreendida como uma “complexa transformação dos sentimentos” (Vygotsky, 1970/1998, p. 270) e vivida numa dimensão psicofísica, a catarse provém de um “curto-circuito” das emoções, que acontece devido ao seu caráter contraditório. O antagonismo principal estaria na emoção da forma em contraposição à emoção do conteúdo, as quais se colocariam em sentidos opostos, destruindo-se neste “curto-circuito”. Na superação desta contradição, teríamos a catarse reelaborada como reação estética. Desta maneira, o artista pode, por meio da forma, reforçar, enfraquecer, maximizar ou destruir o conteúdo, dependendo da articulação que ele estabeleça entre estas duas dimensões. O resultado implica no modo como o espectador transcende suas próprias emoções em forma de catarse e como ele consegue articulá-las na produção de fantasias. Em síntese,

Poderíamos dizer que a base da reação estética são as emoções suscitadas pela arte e por nós vivenciadas com toda realidade e força, mas encontram a sua descarga naquela atividade da fantasia que sempre requer de nós a percepção da arte. (...) É nessa unidade de sentimento e fantasia que se baseia qualquer arte (Vygotsky, 1970/1998, p. 272).

Para Vygotsky (1990), a imaginação acontece por um processo semelhante à gestação, cujo parto dá à luz a criatividade. Este processo tem início na percepção que temos dos objetos reais, para depois podermos dissociar e recompor os elementos desta realidade, em forma de fantasia. Em seguida, agrupamos os elementos modificados e estabelecemos uma síntese entre eles e os elementos agrupados do contexto real. Quando a imaginação se objetiva no mundo real, quando cristalizamos nossa “imagem” no contexto social e produzimos algo daí, estamos criando o novo.

Nesta perspectiva, a imaginação é a base para toda e qualquer forma de criatividade, seja ela artística, cotidiana, científica ou técnica, na qual o sujeito realiza uma negação do passado, de suas experiências concretas, em função de um porvir, de suas projeções futuras. Portanto, o processo de criação é uma articulação temporal realizada pela subjetividade, numa postura afetiva, como negação da objetividade, com vista a transformar esta objetividade numa nova objetividade, deixando nela a marca da subjetividade.

O músico, quando cria um novo produto em seu trabalho acústico6, está resgatando seus conhecimentos técnicos e, ao mesmo tempo, está reelaborando seus sentimentos e emoções. Estes, a partir deste processo, ganham nova profundidade e significação, e são superados por meio da articulação entre reflexão espontânea e imaginação, até que se possa fazer surgir uma nova música. Criar uma música implica, neste sentido, a possibilidade de articulação entre o conhecimento técnico, a transformação das emoções, a imaginação e a reflexão, a partir dos elementos do som e do silêncio presentes no mundo, em função do ainda não existente.

Não obstante, quando dissemos que as emoções e sentimentos participam em todo trabalho de criação e, especialmente, na criação da música, não queremos dizer com isso que os sentimentos e emoções, da mesma forma que surgem na vivência do músico, possam ser utilizados “cruamente”. É Vygotsky quem nos chama a atenção para este fator:

Por si só, nem o mais sincero sentimento é capaz de criar arte. Para tanto, não lhe falta apenas técnica e maestria, porque nem o sentimento expresso em técnica jamais consegue produzir uma obra lírica ou uma sinfonia; para ambas as coisas se faz necessário ainda o ato criador de superação desse sentimento, da sua solução, da vitória sobre ele, e só então esse ato aparece, só então a arte se realiza (Vygotsky, 1970/1998, p. 314).

A música, sob esta ótica, é capaz de cumprir a função de dar uma forma aos sentimentos, emoções, imaginação e reflexões, já que os transforma num todo organizado e inteligível, objetivado em sons que se articulam sobre os fragmentos de silêncio. A especificidade deste processo faz da música o produto de um trabalho altamente elaborado, no qual o conhecimento dos elementos acústicos se alia à criatividade com que o sujeito articula, processa e elabora os elementos da percepção, imaginação e reflexão, de maneira afetiva. Assim, a música como produto do trabalho acústico aparece repleta de sentido e pode ser qualificada e compreendida como uma linguagem de reflexão afetiva.

O processo de criatividade do músico precisa ser compreendido, por sua vez, sempre como um produto histórico-social, completamente inserido no tempo/espaço no qual se dá, a partir das condições objetivas do contexto, sempre mediado por um processo intersubjetivo. Nesta perspectiva, toda obra é domínio da atividade de todos os homens, destacando um caráter coletivo em qualquer invenção singular.

Com isso, não estamos querendo dizer que direitos autorais não existem, ao contrário, acabamos de destacar a complexidade na elaboração do produto de um trabalho acústico. Queremos apenas tornar presente uma visão de sujeito, produto e produtor do contexto social, descartando totalmente a visão da arte como um “dom”, isto é, como uma potência inata que seria própria de alguns “selecionadíssimos” sujeitos. Compor é objetivar uma subjetividade singular que se acha inserida num determinado contexto. Nesta perspectiva, o produto da criação deve ser compreendido como uma totalização em curso, contendo toda a humanidade na interioridade de seu produto.

A partir de uma concepção que se tem do sujeito é que podemos lançar uma concepção do que possa ser criatividade. O sujeito, na perspectiva adotada neste trabalho, é compreendido por meio de uma leitura histórico-dialética, a qual aponta que ele é construído a partir da objetividade, mediado pela subjetividade, nunca podendo ser reduzido a uma condição de puro objeto. Por outro lado, tampouco podemos dizer que o sujeito ocupa a condição de sujeito absoluto, já que está determinado pelas condições objetivas do contexto.

Subjetivar e objetivar se revelam aqui como duas dimensões do sujeito, já que ele é objetividade enquanto realidade física e ação e subjetividade enquanto possibilidade de transcender o já objetivado (Maheirie, 2002). Neste sentido, subjetividade é a dimensão que dialetiza a opacidade, fazendo com que o sujeito se relacione com a objetividade produzindo sentidos. Assim, o sujeito, como subjetividade objetivada, é mediado constantemente pela objetividade da realidade social e pela subjetividade que se objetivou no contexto, ou seja, pelos significados produzidos pelos sujeitos em relação.

Para que possamos estar coerentes com esta visão de sujeito, é importante que a atividade criadora seja compreendida como uma atividade humana e, neste sentido, submetida às determinações do contexto histórico-cultural no qual está inserida. Obra de sujeitos em situação, uma atividade criativa será tão maior quanto maiores forem as possibilidades de atuação destes sujeitos em seus contextos, aliadas às condições que estes têm para o exercício da imaginação (Zanella,  Balbinot & Pereira, 2000).

Assim, ao lado de Zanella e cols. (2000), podemos afirmar que “o caráter social de toda e qualquer criação humana afirma-se pelo interjogo existente entre o produto da atividade criadora e as novas significações que este engendrará, tanto para o autor/criador, como para os sujeitos que tomarão contato com a produção” (p. 543). Por isso, o produto da criação, seja ela cotidiana, científica, técnica ou artística, sempre dialetiza a relação objetividade/subjetividade na medida em que possibilita aos sujeitos produzirem constantemente novas significações, construindo, desconstruindo e reconstruindo sentidos singulares e coletivos em contextos concretos.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Kátia Maheirie
Caixa postal 10038
CEP 88062-970, Florianópolis/SC
E-mail: maheirie@cfh.ufsc.br

Recebido em 14/04/2003
Aceito em 15/10/2003

 

 

1 Este artigo é parte da tese de doutorado desenvolvida sob a orientação da Dra. Bader B. Sawaia e com a colaboração, sobre a forma de leitura crítica da Dra. Andréa V. Zanella. Apoio da Capes.
2 Sartre estrutura sua proposta teórica na leitura crítica que faz da fenomenologia de Husserl, do existencialismo de Kierkegaard e do marxismo, enquanto Vygotsky não sofre uma influência direta das duas primeiras correntes filosóficas. Ambos, apesar das diferenças, consideram o sujeito histórica e dialeticamente constituído.
3 Neste artigo, utilizamos "sentido" e "significado" como sinônimos, muito embora, ao trabalhar com Sartre e Vygotsky, precisemos deixar claro ao leitor de que forma estes autores utilizam os termos. Para Sartre (1960/1984), significado engloba o singular e o coletivo, qualificando de significações abstratas aquelas vividas coletivamente e significações concretas aquelas vividas singularmente, sendo ambas produzidas no contexto social. Para Vygotsky (1982/1992), significado engloba o coletivo, ou seja, significações são aquelas vividas coletivamente e o sentido é aquilo vivido de forma singular, sendo ambos produzidos no contexto social.
4 Por espontâneo estamos querendo qualificar os estados onde o sujeito não está posicional de si, ou seja, não se coloca numa postura crítica e distanciada de si mesmo, no sentido definido por Sartre (1936/1994). Desta forma, podem ser espontâneas as relações do sujeito com o objeto enquanto percepção, imaginação e reflexão, inclusive.
5 O termo "consciência", para nós, tem o sentido que lhe atribui a teoria sartreana, ou seja, consciência é relação, sendo considerada a dimensão subjetiva do sujeito, enquanto capacidade de negação dialética à "pura" objetividade. Para esclarecer o conceito, ver Sartre (1936/1994; 1943/2000) e Maheirie (1994; 2002).
6 Termo criado por Samuel Araújo (1992), para se referir a uma noção universal e abstrata que envolve o conceito de música. Para ele, trabalho acústico se refere a todo trabalho realizado pelo "ouvido", garantindo a noção de "trabalho" para o fazer musical, transcendendo a tradicional visão da música como, simplesmente, fenômeno sonoro.