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Psicologia: Ciência e Profissão - Language acquisition: a contribution for the discussion on autism and subjectivity

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Psicologia: Ciência e Profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.26 no.1 Brasília  2006

http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932006000100003 

ARTIGOS

 

Aquisição de linguagem: uma contribuição para o debate sobre autismo e subjetividade

 

Language acquisition: a contribution for the discussion on autism and subjectivity

 

 

Fabiana Lins Browne Rêgo*; Glória Maria Monteiro de Carvalho**

Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho consistiu numa tentativa de relacionar a linguagem de uma criança, numa fase inicial de sua trajetória lingüística, com a verbalização de um adolescente portador de autismo. A partir dessa tentativa, procurou-se levantar questões sobre o polêmico debate que envolve autismo e subjetividade, assumindo a hipótese de que o autista ocupa uma posição subjetiva diante da língua. Nessa perspectiva, pôde-se propor que, embora as produções do autista se constituíssem como blocos ecolálicos, em certos momentos, parecia haver quebras e recombinações desses blocos, assemelhando-se, de algum modo, ao movimento que ocorria na fala da criança considerada "normal". Tais quebras e recombinações poderiam indicar que, em algum instante, o autista teria sido afetado pelo funcionamento da língua e que não estaria, portanto, num limbo fora da linguagem, ou seja, num mundo não-humano.

Palavras-chave: Autismo, Subjetividade, Aquisição da linguagem.


ABSTRACT

The purpose of the present work is an attempt to relate children's language at an early stage of their linguistic course to teenage autists' utterances. Such attempt raises questions about the so polemic debate involving autism and subjectivity, taking for granted that the autist occupies a subjective position toward language. In this respect, one can propose that, although autistic utterances are made up of echolalic blocks, in some points there seem to be breaks and combinations of such blocks, in a way resembling the process occurring in "normal" children's speech. Those breaks and combinations might indicate that, at some time, the autist would be affected by the language functioning. Therefore, he/she would not live beyond language scope, i.e., he/she would not be in a non-human world.

Keywords: Autism, Subjectivity, Language acquisition.


 

 

Assumindo uma postura na qual a linguagem é considerada como estruturante, ou seja, constitutiva do sujeito, a presente investigação buscou tomar a linguagem como objeto de estudo para refletir sobre o processo de subjetivação. Para tanto, entrou-se no campo da aquisição de linguagem, seguindo a proposta de De Lemos, C. (1997, 2000 e 2002), e no da patologia, através do recorte do autismo, abordando uma questão polêmica que gera discussões e opiniões divergentes: Há uma subjetividade no autismo?

Dentro da perspectiva psicanalítica lacaniana, na criança autista, haveria uma falha no estabelecimento da relação especular com o Outro primordial, o que resultaria num fracasso da constituição do sujeito (eu). Convém destacar o fato de que Lacan (1986), ao analisar o caso Dick, criança autista, chega a colocar que essa criança viveria num mundo não humano devido ao fato de não ter atingido uma identificação primeira, que já seria um esboço de simbolismo; o autista estaria, nessa perspectiva, fora da linguagem.

Foram, então, levantadas algumas questões, tomando por base o próprio Lacan (1986), que nos ensina que a linguagem preexiste ao sujeito, isto é, o homem já nasce num mundo linguageiro e simbólico, sendo o termo linguagem, nesse enfoque, um conceito que remete a toda ordem da cultura, de um lugar e de uma época.

Questiona-se como os autistas poderiam estar fora da linguagem.

Não teria o autista sido afetado, mesmo que de forma singular, pelo funcionamento da língua?

Seria possível falar de um vazio subjetivo?

Estaria ele realmente reduzido a uma categoria não humana?

A proposta do presente trabalho não consiste em abordar essas questões a partir da dicotomia positivo versus negativo. Explicando melhor, não se trataria de considerar que o autista possui subjetividade ou, de forma excludente, como um ser que não possui subjetividade. Neste artigo, assumimos a hipótese de que o autista ocupa uma posição subjetiva diante da língua, como coloca Rodriguez (1999). Entretanto, trataremos posição subjetiva como mudanças qualitativas advindas do campo lingüístico do autista, as quais poderiam estar implicando uma mudança de posição do mesmo em relação à língua. Trata-se de um questionamento à afirmação categórica de que os autistas estariam num limbo fora da linguagem, num mundo não humano. Acreditamos que o autista se relacione com a linguagem de forma bastante singular, ocupando, portanto, uma posição subjetiva diante da língua. Isso posto, poderíamos nos questionar: Como se caracteriza essa posição subjetiva, ou seja, como um indivíduo diagnosticado como autista se relaciona com a língua?

Diante desse questionamento, procurou-se relacionar as verbalizações de um adolescente autista com a linguagem de uma criança em fase inicial de sua trajetória lingüística. O princípio que nortearia essa tentativa de relação seria o fato de que, no autista, a aquisição de linguagem se encontra significativamente afetada. Dessa forma, no grupo estudado, foi selecionado um adolescente que estava dando início ao seu percurso lingüístico. Embora tardio em comparação à criança sem obstáculo na sua trajetória lingüística, o processo desse adolescente era também inicial.

Outra questão importante a ser discutida diria respeito à razão de se estudar a linguagem para se discutir a subjetividade. Essa discussão se fundamenta, dentro da perspectiva estruturalista, na proposta de De Lemos, C. (1997, 2000 e 2002), para quem a aquisição de linguagem remete, em última análise, ao processo de subjetivação humana. Nesse sentido, a referida autora concebe as mudanças, na fala da criança, como conseqüentes à captura da criança pelo funcionamento da língua em que é significada. Tal captura colocá-la-ia numa estrutura em que o outro comparece como instância representativa da língua.

Diante do que foi explicitado, pode-se chegar ao cerne da questão aqui discutida:

Em que medida refletir sobre os efeitos do processo de aquisição de linguagem (pela criança), em relação com a verbalização de adolescentes portadores de autismo, poderia contribuir para esse polêmico debate em torno da subjetividade? Que reflexões o estudo da patologia da linguagem poderia trazer para o campo da aquisição da linguagem?

O objetivo desta discussão é, portanto, a partir de uma análise empírica, lançar luz nos questionamentos acima citados, abrindo espaço para novas reflexões.

 

Sujeito e linguagem: apresentando a concepção estruturalista

Segundo estudiosos de disciplinas como a Filosofia, a Psicologia e a Lingüística, a linguagem pode ser considerada como aquilo que mais distingue o homem dos outros animais. Os seres humanos são dotados de um corpo frágil, mas, em contrapartida, possuem o atributo da linguagem, que lhes permite representar o mundo, entendê-lo e agir sobre ele, transformando a realidade. Portanto, falar em linguagem seria falar do que há de mais essencialmente humano.

Na filosofia clássica, o indivíduo possui a razão, que lhe trará a percepção e o conhecimento do mundo que está ao seu redor. Apoiados nessa concepção de sujeito, teóricos como Jean Piaget (1973) acreditam que, através de um processo de maturação/estruturação cognitiva, a pessoa vai tornando-se capaz de apreender a linguagem. Esse processo iniciar-se-ia através das ações da própria criança sobre o mundo, o que a levaria à construção de um simbolismo, uma capacidade de representar, de dar significados. Ainda dentro desse enfoque, é atribuída à linguagem a característica de meio de expressão, um instrumento que manifesta um conhecimento em construção. Implica-se, portanto, na concepção construtivista piagetiana, um sujeito que possui um saber prévio, interno, e, nesse sentido, manifestações lingüisticas seriam reflexos de um tal saber.

A perspectiva estruturalista-lacaniana vem subverter essa concepção, introduzindo, no campo de estudo da linguagem, o sujeito do inconsciente, destruindo a noção de sujeito da filosofia clássica, reflexivo, psicológico, que tem controle sobre si e sobre o mundo. O indivíduo não usa a língua como instrumento, mas sim, é assujeitado por ela, deixando-se muitas vezes surpreender pelos chistes, atos falhos e lapsos. Nessa perspectiva, o inconsciente é estruturado como linguagem, ou seja, "O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem" (Lacan, 1986, p. 139).

Seguindo esse pensamento, pode-se dizer que o ser humano é constituído a partir (da) e na linguagem, recorrendo a Brunetto (1999), que realça o fato de Lacan (1986) trazer, na sua obra, o versículo bíblico: No princípio era o verbo para explicar que somos imersos num mundo tomado de linguagem e que já nascemos inseridos no simbólico; a linguagem, nesse caso, preexiste ao sujeito. Portanto, pode-se concluir que, dentro dessa perspectiva, a linguagem abrange valores, ideais, direitos, deveres, a história de um povo, de um país e a própria cultura. Evocando, mais uma vez, um outro versículo bíblico do evangelho de São João: Do verbo se fez carne, a psicanálise lacaniana fala de um advento do sujeito, que não é apenas um corpo biológico, pois é preciso que haja um lugar, no universo simbólico, reservado à criança que nasce, para que ela venha subjetivar-se.

Entre outros autores, Lier-De Vitto (1994) se apóia nessa concepção, assumindo que a significação não é decorrente de um mecanismo fora da linguagem. Dessa forma, critica Piaget, que atribui o poder de significação à imagem mental ou à representação, não o concebendo como algo decorrente da linguagem. Segundo aquela autora, "a linguagem é força fundante não só para a significação mas também para o nascimento do sujeito" (p. 62). Dentro dessa perspectiva, Jeruzalinsky (1993) sustenta que, para se ser alguém, precisa-se da linguagem; ela é, portanto, condição sine qua non para a emergência do sujeito, ou ainda, parafraseando Lacan, para a humanização do homem.

 

A constituição da subjetividade numa perspectiva lacaniana: a importância da linguagem

Brunetto (1999) destaca que o sujeito, numa experiência psicanalítica-lacaniana, é fundamentalmente um ser de fala, tendo sido até criado um substantivo para isso: Parlêtre (ou ser falante). Portanto, nessa experiência, somente há o surgimento do sujeito a partir da introdução primeva de um significante - o significante mais simples - chamado de traço unário. Esse traço designa a identificação simbólica do sujeito, que somente poderá acontecer se a criança for apreendida no campo de Outro.

A fim de se entender melhor os processos de identificação e subjetivação, segundo Lacan (1998), faz-se necessária uma elucidação do que ele chamou de fase ou estádio do espelho. O ser humano é, fundamentalmente, um ser de relação e, desse modo, o eu se constituirá a partir da relação com o Outro Primordial. Esse Outro é, no pensamento lacaniano, uma presença real que responde a uma função simbólica. Explicando melhor, o bebê precisa de um olhar que o confirme, que lhe dê uma identidade e lhe diga quem é, viabilizando, assim, o seu ingresso no universo simbólico. Como já foi explicitado no item anterior, para subjetivar-se, é necessária a inserção da criança na linguagem, e essa operação somente se efetiva através de uma presença real, encarnada num semelhante - lugar normalmente ocupado pela mãe (mas não necessariamente).

No chamado estádio do espelho, a estruturação do eu irá depender da identificação primordial da criança com a própria imagem, o que acabará com a vivência singular designada fantasma do corpo esfacelado, através do qual a criança experimenta o seu corpo como algo disperso, não unificado.

Vale destacar que, na concepção lacaniana, a fase do espelho ocorrerá basicamente nos três tempos que pontuam a conquista progressiva da imagem do corpo pela criança. No primeiro tempo, há uma confusão entre si e o outro, ou seja, inicialmente, a criança percebe a imagem do seu corpo como de um ser real com quem ela busca uma aproximação ou apreensão. Isso se confirma pela relação estereotipada que a criança tem com seus semelhantes. Nesse momento, fica claro que é no outro que a criança se vivencia: "A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora" (Lacan, 1998, p. 116), o que mostra um assujeitamento da criança ao registro do imaginário. No segundo momento, a criança descobre que o outro do espelho não é um outro real, mas sim, uma imagem. Desse modo, ela passa a distinguir a imagem do outro, da realidade do outro. O terceiro momento, mais importante, dialetiza os dois que o precederam, pois a criança não só está ciente de que o reflexo no espelho é uma imagem, mas reconhece-se através dela, recuperando, assim, a dimensão do corpo esfacelado.

A imagem desse corpo é decisiva para a estruturação da identidade do sujeito, sendo através dela que ele realiza sua identificação primordial. A partir do exposto, apreende-se que a fase do espelho simboliza a pré-formação do eu e pressupõe, em seu princípio constitutivo, a alienação no imaginário.

Entretanto, a criança somente entrará na fase do espelho (e depois no Complexo de Édipo), se houver, num primeiro momento, o olhar do Outro Primordial. O não olhar desse Outro - e um conseqüente fracasso na instauração da fase do espelho - acarretará, segundo a perspectiva lacaniana, na melhor das hipóteses, dificuldades da criança no nível da relação especular com o outro, ou poderá desembocar em algo infinitamente mais grave: uma síndrome autística. Faz-se necessária uma explanação muito breve do modelo etiológico lacaniano com que se possa abordar a constituição dessa patologia.

 

A abordagem do autismo: uma perspectiva lacaniana

Kanner (1943/1997) descreveu um quadro clínico a partir de um estudo com onze crianças gravemente enfermas e sua descrição permanece, em certos aspectos, válida até a atualidade. Essas crianças apresentavam, principalmente, uma incapacidade de se relacionar com as pessoas, um atraso na aquisição de linguagem, uma incapacidade de dar a essa linguagem um valor de comunicação e estereotipias gestuais.

Assumindo uma perspectiva lacaniana, Jeruzalinsky (1993) afirma que a mãe do autista é uma turista do desejo, pois o seu objeto de desejo - seu filho - está fora do seu olhar. Em outras palavras, essa mãe seria como um turista que, ao posicionar-se para uma fotografia de determinado monumento, volta as costas para ele. Nessa perspectiva, estar fora do olhar do Outro implica estar fora do simbólico. O olhar aqui referido significa investimento libidinal, e a não instalação da relação especular, por conta da ausência desse olhar, poderá acarretar patologias que traduzem a não instalação da relação simbólica fundamental. Fala-se, portanto, de uma síndrome autística.

Para o referido autor (Jeruzalinsky, 1993), enquanto a mãe do psicótico não deixa de contemplá-lo em função de ser essa criança a representação real do seu falo, falta, na criança autista, o olhar dessa mãe, esse primeiro olhar que lhe outorga uma identidade. Colocando em outros termos, na psicose há uma falha no tempo de ausência desse olhar, estacionando o sujeito no campo da alienação. Já no autista, há uma falta fundamental da própria presença original do Outro. Segundo Lasnik-Penot (1991), mesmo para haver uma ausência, é preciso que antes tenha havido uma presença, e é essa presença que falta no autista, colocando-o numa fase anterior à psicose.

Jerusalinsky (1993) ainda coloca que a psicose e o autismo são estruturas diferentes porque, num caso, opera-se o mecanismo da foraclusão do Nome do Pai (psicose), havendo uma inscrição no sujeito, mas fracassando a instauração da função significante. Já no caso do autismo, trata-se da exclusão, pois não há inscrição do significante primevo no sujeito; no lugar onde deveria estar a inscrição, encontra-se o Real, na concepção lacaniana, ou seja, a ausência de inscrição. Assim, diante da demanda do Outro, a criança autista só poderia colocar-se numa posição de repetição da exclusão. "O que lhe outorga seu ser é ficar de fora de um universo que ativamente o exclui, seja porque os outros não param de falar, embora ele não compreenda, seja porque a fala dos outros não reserva para ele um lugar" (p. 65).

O fracasso do tempo da alienação na constituição do sujeito equivale a um fracasso na constituição da imagem corporal, pela ausência do olhar na relação especular com o outro, o que, em última instância, resultará num fracasso da constituição do eu (sujeito).

Como já foi dito antes, Lacan (1986) analisa o caso de uma criança autista, Dick, atendida por Melanie Klein. Para o referido autor, nessa criança, não teria havido identificação primeira e a conseqüente introdução do traço unitário. Por isso, Dick viveria num mundo não humano e, portanto, não seria um sujeito. Faz-se necessária uma breve introdução sobre o mencionado caso.

Dick tinha quatro anos quando foi atendido por Melanie Klein. O amor era estranhamente ausente na sua família; não havia calor humano em torno dele, nenhum gesto de afeição por parte dos pais. "Um meio pobre de amor, relações imediata e profundamente perturbadas, sofrimentos corporais: foi esse o mundo hostil em que Dick se viu mergulhado e no qual continuou a se debater" (Garcia-Fons & Veney-Perez, 2001, p. 71).

Segundo Garcia-Fons e Veney-Perez (2001), o menino tinha tudo de um extra-terrestre: era como se pertencesse a uma outra realidade; ficava ausente para as pessoas e objetos que o cercavam e que, para ele, eram como transparentes, desprovidos de sentido. Será que isso, entretanto, permite falar-se em uma não humanidade de Dick, como afirmara Lacan (1986)?

Contrapondo-se, de algum modo, ao argumento lacaniano - mas apoiando-se no próprio Lacan (1986), - Brunetto (1999) vem realçar que Melanie Klein, analista que trata o menino, fala com ele, dá nomes, nomeia-o e, sobretudo, interpreta que a brincadeira que ele costumava realizar (o trem que entrava no túnel) representaria o ato de copular com a mãe. De certa forma, tal fato coloca Dick como participante do símbolo e, nesse sentido, o autista não estaria situado num limbo, num momento não humano, fora da linguagem. De acordo com Lacan (1988), embora os autistas não respondam, escutam a si mesmos, podendo ser definidos como personagens bastante verbosos. A partir disso, a mencionada autora (Brunetto, 1999) assinala que, embora os autistas não respondam, não deixam de estar inseridos na linguagem.

Entra-se, agora, num ponto fundamental para a presente investigação. Apoiando-se no pensamento brunettiano, acima exposto, toma-se por hipótese que o autista se relaciona com a língua, mesmo que de forma bastante singular. Retomando o objetivo do presente trabalho, questiona-se como o autista se relaciona com a língua e em que medida a tentativa de estabelecer uma relação entre dois sujeitos (uma criança em fase de aquisição de linguagem e um adolescente autista) poderia contribuir para a emergência de novas reflexões.

 

Linguagem e autismo

Relembremos que, no tocante à linguagem das crianças autistas, Kanner (1943/1997) a definia como tendo uma característica de auto-suficiência, sem valor semântico ou caráter de comunicação. Portanto, não haveria diferença entre aquelas que falavam e aquelas que apresentavam mutismo. Nesse sentido, pode-se concluir que o autismo se configuraria como um obstáculo ao desenvolvimento da linguagem.

Segundo Carvalho e Avelar (2002), nos autistas, as produções que causam o efeito de estranhamento seriam, sobretudo, as repetições - imediatas ou diferidas - da fala do outro. Essas repetições apresentam uma natureza ecolálica. Por sua vez, as ecolalias levaram Kanner (1943/1997) a afirmar que o autista, de forma imediata ou diferida, reproduz, como um papagaio, tudo aquilo que é dito.

Ainda no que se refere à linguagem no autismo, vários autores (por exemplo, Lasnik-Penot, 1997) observaram que as repetições, nos autistas, apresentavam um caráter rígido e estereotipado. Entretanto, isso não acontece com a criança que não apresenta esse distúrbio do funcionamento psíquico. Segundo Lasnik-Penot (1997), tais verbalizações dos autistas não poderiam, portanto, ser chamadas de repetições, no sentido metapsicológico do termo, uma vez que elas têm a tendência de se tornar estereotipias. Para a referida autora, "essas repetições consistem num esvaziamento do ato, de tudo o que é de um valor pré-simbólico, restando apenas o vestígio de um trabalho humano que apenas começou a acontecer" (p.16). Portanto, talvez não se pudesse nem falar em repetição e sim, em reprodução.

Ao discutir sobre a ecolalia, Rodriguez (1999) propõe que tal manifestação verbal estaria indicando, no autismo, uma posição diante da língua que se caracterizaria como um permanecer literalmente fora, isto é, uma posição subjetiva de exclusão. Diante disso, pode-se supor que, mesmo no sintoma, o autista estabelece uma relação singular com a língua. Vale ressaltar que esse permanecer fora não implicaria uma ausência de língua, mas sim, estaria significando uma determinada posição diante dela.

 

Aquisição de linguagem e subjetivação

Conforme já foi colocado anteriormente, a tentativa de relação, no presente trabalho, fundamenta-se, dentro da perspectiva estruturalista, na proposta de De Lemos, C. (1997, 2000 e 2002), que traz a concepção de sujeito da psicanálise e destaca o caráter constitutivo da linguagem, ou seja, que não há realidade anterior à linguagem; o mundo empírico, objetos pessoais e acontecimentos ganham significado e existência na e pela linguagem, e essa idéia se opõe ao sujeito prévio piagetiano.

Além disso, para De Lemos (op cit.), a aquisição de linguagem vai ocorrendo através do processo de mudança de posição da criança em relação à língua. Essa autora concebe que a criança é capturada pelo funcionamento da língua, na qual é significada, e, assim, as mudanças na fala da criança não se qualificariam nem como acúmulo nem como construção de conhecimento, mas como mudanças conseqüentes à captura do sujeito por tal funcionamento da língua.

Essa captura, proposta por De Lemos, C. (1997, 2000, 2002), colocaria a criança em uma estrutura, na qual comparecem: o outro, como instância representativa da língua, a língua e a relação do sujeito com a sua fala. A predominância de uma dessas três instâncias (outro, língua e fala do sujeito) evidencia as três posições pelas quais a criança passa no seu percurso rumo à aquisição de linguagem. Na primeira posição, há um predomínio da fala do outro, que é concebido como representante da língua, isto é, o sujeito falante. Nessa posição, a fala da criança espelha a fala do outro, caracterizando-se, portanto, como repetições, ou melhor, sendo constituída de fragmentos dos enunciados do adulto. Nesse sentido, as repetições da fala do outro deslizam, podendo tal deslizamento ocorrer num mesmo fragmento ou através de um processo metonímico que proporciona ligação entre os fragmentos do enunciado atual do adulto e outros fragmentos (também do enunciado do adulto) explicitados na fala da criança.

A segunda posição se constitui pela dominância do próprio funcionamento da língua. Nesse momento, o que se coloca é o funcionamento da língua - na fala da criança -, evidenciado no cruzamento de cadeias verbais, através dos processos metafóricos e metonímicos. Esses últimos estão circunscritos a um efeito de espelhamento que, embora originário da fala do outro, ganha seu estatuto de língua - por um processo de subjetivação - colocando-se para além da esfera desse outro. Ainda nessa posição, os enunciados da criança são cadeias verbais permeáveis a outras cadeias, o que faz com que ocorram deslocamentos, condensações e ressignificações. Esse movimento faz com que as cadeias se decomponham e se recomponham, dando lugar ao aparecimento dos erros na fala da criança, erros esses que indicam a segunda posição.

A terceira posição se caracteriza pela dominância da relação do sujeito com a sua própria fala. Nesse momento, os erros vão desaparecendo para que dêem lugar à presença de correções (provocadas pela fala do outro) e de autocorreções. Assim, haveria maior homogeneidade da fala da criança, homogeneidade essa que, entretanto, nunca seria completamente atingida.

Baseando-se na psicanálise e na proposta de aquisição de linguagem de De Lemos, muito sucintamente aqui explicitada, a presente investigação buscou relacionar as produções verbais de uma criança em fase inicial de aquisição de linguagem (momento em que está se subjetivando) com as produções de um adolescente diagnosticado como autista. Com essa tentativa de relação, objetivou-se refletir sobre o debate em torno da questão: autismo e subjetividade, sustentando a hipótese de que o autista assume/ocupa uma posição subjetiva diante da língua, possuindo, portanto, uma subjetividade, mesmo que bastante singular.

 

Indicações metodológicas

Para atingir o objetivo proposto, foi constituído um corpus a partir de dois grupos (A e B).

O Grupo A é constituído por um acervo de registros em vídeo de cinco adolescentes - diagnosticados como portadores de autismo - com idade média de 12 anos e de ambos os sexos. Ao longo de seis meses, foram filmadas, quinzenalmente - durante trinta minutos, em média - sessões de terapia em grupo (numa instituição especializada no atendimento de autistas, na cidade de Recife-Pernambuco), das quais também participavam duas terapeutas e uma estagiária. Vale ressaltar que foi feito um recorte da fala de um dos adolescentes (daqui por diante, chamado de Pedro - 13 anos), pela peculiaridade da sua verbalização, marcantemente ecolálica.

O Grupo B é composto de gravações em áudio de uma díade (mãe-filho) que fazem parte do banco de dados do Projeto de Aquisição de Linguagem do Instituto de Estudos da Linguagem-IEL/UNICAMP. A criança (daqui por diante, chamada de Cristina) é do sexo feminino, e estava com 01 ano e 02 meses quando se iniciaram as gravações, que ocorreram semanalmente, estendendo-se por dois anos.

 

Sujeito A ( Pedro )

A produção verbal de Pedro é caracterizada por uma rigidez expressa através da ecolalia. Essas verbalizações ecolálicas podem ser metaforizadas como blocos aparentemente cristalizados e impenetráveis, apresentando, portanto, pouca mobilidade e um suposto caráter de imutabilidade. Por sua vez, tais blocos se configuram como expressões que se repetem insistentemente e que aparecem, na maioria das vezes, desvinculadas do contexto e do discurso do seu interlocutor, o que estaria indicando, de forma subliminar, uma aparente ausentificação.

Nesse sentido, as destacadas produções parecem desempenhar uma função de exclusão, isto é, elas estariam impedindo a entrada do outro; isso poderia ser observado no extrato seguinte:

Episódio 1

T= Terapeuta P= Pedro (*)

(*) nomes fictícios

T: Botar brinco, cortar cabelos.......

P:Vidróóó. Viiiiidro. Vriiiidróóóóó.

P: Luííza, Luíííza. (*)

T: Chama Pedro para brincar. Chama João (*) para brincar.

P: Vríído. Vídroo...

P: Vríiiido. Vídroo. Vrído.Vvídroo. O vidro do carro. Viiiiidroooooo, vídro, vidro, vidro.

Pode-se indicar que esses blocos, no episódio acima, têm uma função de exclusão, pois, embora a terapeuta faça tentativas, a expressão estereotipada vidro se constitui como uma barreira que estaria impedindo o estabelecimento de um diálogo. Para Bettelheim (1987), a criança autista está alienada numa lógica de sobrevivência que implica um afastamento do mundo externo, que representa algo ameaçador. Nesse sentido, o outro seria, para o autista, algo extremamente agressivo. Esse autor coloca, ainda, que o autista tende a repetir certos movimentos que delimitam uma fronteira que o protege das intromissões do mundo externo. Pode-se supor, então, que a verbalização ecolálica de Pedro representaria uma defesa contra esse mundo, insuportavelmente ameaçador, incorporado na presença desse outro que lhe fala. Ao abordar a ecolalia, Rodriguez (1999) propõe que tal manifestação verbal estaria indicando, no autismo, uma posição diante da língua que se caracterizaria por um permanecer literalmente fora, uma posição subjetiva de exclusão. Jeruzalinsky (1993) concebe que o autismo é marcado pela lógica da exclusão. A ecolalia, portanto, excluiria o outro como representante da língua. Seguindo esse raciocínio, pode-se dizer que o autista assume uma posição diante da língua, mesmo que essa posição seja de exclusão, como propôs Jeruzalinsky (1993). Em outras palavras, através da sua linguagem rígida, estereotipada e repetitiva, Pedro excluiria, afastaria o outro, dificultando ou inviabilizando a fluidez do diálogo e a emergência de algo novo na relação dialógica. Poderíamos dizer que Pedro possui uma relação com a linguagem bastante singular. Essa relação singular fica mais visível à medida que se volta para os dados do sujeito B, que não apresenta um obstáculo no seu percurso lingüístico.

 

Sujeito B (Cristina)

Cristina faz verdadeiras transformações nas cadeias verbais através de cruzamentos e recombinações de significantes, fazendo uso dos processos metafóricos e metonímicos. Um aspecto que merece ser destacado é que nessa (segunda) posição, a menina realiza uma desestruturação das cadeias verbais da mãe e uma posterior reestruturação das mesmas, tendo, algumas vezes, como resultado, as produções estranhas de caráter bastante singular, as quais foram concebidas por Lemos, M.T. (2002). Nesse sentido, De Lemos, C. (2002) indica ainda que é nos intervalos, entre a desestruturação e a reestruturação, que aparece o sujeito. Além disso, pode-se ainda destacar, nessa criança, num momento anterior, o espelhamento da fala do adulto (mãe), como propôs essa autora, isto é, não há, inicialmente, uma dissociação entre a sua fala e a do adulto, na medida em que ela repete fragmentos da fala da mãe. Assim, todos esses movimentos da criança diante da língua permitem que tenha lugar o seu processo de aquisição da linguagem.

Pode-se apreender que esse processo é correlato ao processo de subjetivação, numa perspectiva psicanalítica em que, num primeiro momento, há uma indissociação entre a criança e a mãe, experiência essa fundamental e constitutiva do sujeito, para que depois ocorra a separação e a sua constituição como sujeito. Pode-se dizer, então, que o sujeito surgiria como efeito desses movimentos na língua, onde a criança se constituiria diferenciando-se do outro materno.

Nesse sentido, um extrato das produções estranhas - retirado do corpus das transcrições - ilustra os cruzamentos realizados pela criança que não apresentam obstáculo na sua trajetória lingüística. Tais cruzamentos caracterizam-se, sobretudo, pela fragmentação da fala inicial da criança (C - 2 anos) e pelo seu caráter equívoco.

Episódio 2

M= Mãe C= Cristina (*)

(*) nome fictício

C: Qui, Qui,Qui, aqui é sagado. Qui o tio Marcio?

M: O tio Mácio tá guiando o carro.

C: Tá?

M: Tá.

C: A tia Lílian tá qui, guiando o carro?

M: Não. A tia Lilian tá conversando cum

C: Onde ela tá? Onde, ela tá fazendo?

No episódio acima, a cadeia verbal destacada refere-se a uma produção estranha de Cristina, a qual estaria expressando as características apontadas por De Lemos, C. (1997, 2000 e 2002). Tal produção poderia ser concebida como resultado de um cruzamento das cadeias verbais (da mãe) na fala da menina, permitindo ilustrar uma relação em que teria lugar tanto o seu processo de aquisição da linguagem quanto a sua subjetivação. Pode-se indicar que a criança realiza uma desestruturação das cadeias verbais presentes na fala da mãe para, posteriormente, reestruturá-las, tendo como resultado uma produção estranha, singular, de caráter equívoco, que, segundo Milner (1989), é a possibilidade de um mesmo termo assumir mais de um sentido. Nesse episódio (2), por exemplo, a criança parece ter cruzado a expressão onde ela está com outra: o que ela está fazendo, tendo sido através da desestruturação dessas duas cadeias que ela formou uma nova estrutura: onde ela tá fazendo.

 

Relacionando Pedro e Cristina

O bloco compacto e rígido das verbalizações ecolálicas de Pedro, enquanto excluiu o outro, tornou visível a importância da fragmentação do enunciado do outro, na fala inicial da criança, para que tivesse lugar o processo de aquisição de linguagem e, portanto, de subjetivação em Cristina. Pôde-se apreender que a maneira como esses dois sujeitos se relacionam com a língua remonta a sua forma de se relacionarem com o outro. Supõe-se, portanto, que a fragmentação da fala inicial de Cristina teria permitido que ela fizesse uso das cadeias verbais presentes na fala da sua mãe, transformando-as e reestruturando-as. Já em Pedro, a relação com o outro seria caracterizada por uma exclusão e a rigidez, a fixidez das suas produções ecolálicas seriam os representantes emblemáticos dessa exclusão. Assim, a posição subjetiva de Pedro seria de exclusão desse outro representante da língua, e a de Cristina, de inclusão, pois ela permite a entrada desse outro, incorporando fragmentos da sua fala e transformando-os, fragmentando-os. Além disso, Cristina também cruza e recombina as cadeias verbais, movimento segundo o qual estariam operando a subjetividade e singularidade da criança, caracterizando a sua captura pelo funcionamento lingüístico.

 

As fissuras nos blocos ecolálicos de Pedro: a emergência de uma subjetivação?

Vale destacar que o primeiro contato com as produções verbais de Pedro gerou uma espécie de subordinação às suas verbalizações ecolálicas. Colocando em outros termos, essas verbalizações causaram um grande impacto nas investigadoras, de forma que se tornara difícil perceber algo diferente de sua marca de ecolalia. Entretanto, durante o confronto com essas produções, pôde-se apreender um aspecto que merece ser discutido: foram indicadas quebras ou fissuras nos blocos, aparentemente cristalizados, das produções verbais de Pedro. Por sua vez, após a quebra, parecia haver tentativas de recombinações desses blocos, tendo também, como resultado, produções bastante singulares. O extrato abaixo parece poder ilustrar o que foi explicitado:

Episódio 3

P: O relógio, o relógio tá tudo quebrado.

P: Tá tudo quebrado.

T: O relógio não está quebrado, não.

P: O carro quebrou, o carro de mainha quebrou.

P: O carro quebrou.

P: O carro quebrou.

T: O carro quebrou.

P: O carro todinho.

T: O carro da sua mãe não quebrou e você vai deixar de vir prá cá não.

P: O carro tá tudo quebrado.

T: Tá nada.

P: Quebrou.

P: O carro quebrou.

P: Tá tudo quebrado.

Nesse momento, Pedro desloca a expressão tá tudo quebrado, usada em várias outras ocasiões, e faz uma cisão na expressão ecolálica o carro quebrou, realizando o que estamos chamando de uma junção desses blocos, tendo como resultado uma expressão estranha: O carro tá tudo quebrado. O interessante é que, embora haja uma indicação de movimento na fala de Pedro, talvez ainda não se possa falar em mobilidade; a linguagem ainda seria rígida, como se os blocos estivessem movimentando-se e juntando-se, formando uma nova expressão, diferente daquelas normalmente encontradas na sua fala, mas retendo seu estatuto de rigidez. Indaga-se, então: Não se estaria, no episódio 3, diante de um paradoxo, ou seja, uma mobilidade rígida ?

Mobilidade, porque Pedro parece conseguir quebrar os blocos, fazendo uma recombinação, porém rígida, pois o resultado dessa operação ainda possui um caráter de rigidez que se diferencia das produções de Cristina. Um indicador dessa rigidez, no menino, poderia ser o retorno ecolálico dos dois blocos (o carro quebrou e tá tudo quebrado) - em várias sessões seguintes - após ter havido a sua junção (o carro tá tudo quebrado). Por sua vez, a própria junção também retorna como um bloco, embora compondo um novo episódio característico daquilo que estamos chamando de mobilidade rígida, como pode ser ilustrado por outros exemplos:

Episódio 4

T: Ah, tu queres aprender, Pedro.

P: Quebrou o carro de mainha quebrou.

T: Oh, Luíza, toda vez que Pedro fala, do jeito que ele fala, da vontade dele de aprender a dirigir esse carro do pai e da mãe, ele vem logo com essa história de quebrar o carro.

(.......)

P: Quebrou o carro, o carro tá tudo quebrado, quebrou Pedro quebrou, de jeito maneira.

Novamente, Pedro traz a mesma expressão do extrato 3 (o carro tá tudo quebrado); no entanto, ele inclui a expressão de jeito maneira, bloco que aparece insistentemente nas suas produções. Essas inclusões rompem, de certa forma, com o padrão ecolálico da sua fala, produzindo uma espécie de desarmonia e permitindo supor que o menino teria realizado quebras e junções nas suas verbalizações.

Episódio 5

P: Quebrou! O carro tá tudo quebrado...

T: Como é essa história?

P: Acenda, Pedro, o vidro do carro, o ônibus quebrou o vidro.

Assim como nos episódios 3 e 4, Pedro traz a expressão acenda e - do mesmo modo que apague a luz - insiste ecolalicamente na sua verbalização. A junção desse bloco (acenda Pedro) com outros (o vidro do carro, o ônibus quebrou e vidro), embora pareça preservar o caráter rígido de cada um dos blocos, viria, momentaneamente, quebrar um padrão verbal ecolálico.

Em contraposição às junções apresentadas acima, pode-se sugerir que, em relação a Cristina, a característica de fragmentação - apontada por De Lemos, C. (2001) - num momento anterior da fala da menina, teria permitido que ela estabelecesse relações, isto é, que fizesse combinações, entre as palavras, de forma mais fluida. Entretanto, neste momento do trabalho, trata-se apenas de uma sugestão para futuras investigações.

 

Algumas considerações finais: a linguagem do autista comporta uma subjetividade?

Quando começamos a estudar o autismo infantil, não foi difícil apreender que o universo teórico que compõe essa síndrome, que vai desde a psiquiatria até a psicanálise, parece atravessado por concepções que acentuam o déficit, a insuficiência, a ausência e a impossibilidade. Estar diante da lista dos traços tomados como sintomas indicadores do autismo dos modernos manuais de classificação de doenças da psiquiatria infantil poderia levar-nos a pensar que esses indivíduos não possuem linguagem, não falam, não têm sentidos, não mantêm relações com as pessoas, não olham, não entendem e mais uma infinidade de nãos que lhes são atribuídos. Por sua vez, a psicanálise os presenteia com metáforas como fortalezas vazias e os coloca num limbo fora da linguagem.

Dessa forma, podemos concluir que essas concepções parecem defender a existência de um vazio subjetivo; o autista seria um ser de comportamentos bizarros e linguagem rudimentar impossíveis de serem compreendidos. Entretanto, o objetivo deste artigo foi, através de evidências empíricas, abrir uma fenda nesse circuito teórico fechado que compõe o autismo infantil, pois acreditamos na existência de uma singularidade autista persistente e até mesmo profunda, sendo a linguagem uma das formas de manifestação dessa singularidade.

Numa conferência em Caracas, Lacan (1988) confronta-se com a seguinte indagação de Lagache: "como o Sr. vê a questão da criança autista?" Lacan responde: "não tenho experiência com a criança autista, mas, em algum lugar, a língua aconteceu nessa criança" (p.04). Acredita-se que este estudo nos tenha fornecido alguns elementos para se pensar nesse algum lugar referido por Lacan, onde o autista teria sido, de alguma forma, afetado pelo funcionamento da língua. Parece-nos que os esboços de mobilidade, na verbalização ecolálica de Pedro, poderiam estar indicando esse algum lugar, onde Pedro teria conseguido realizar, de forma bastante singular, a quebra e a recombinação dos blocos ecolálicos.

Vale ressaltar ainda que as fissuras encontradas nas rochas das verbalizações de Pedro permitiram-nos vencer a visível subordinação às reproduções ecolálicas, surpreendendo-nos e permitindo talvez que percebêssemos o que Lasnik-Penot (1997) chama de vestígio de trabalho humano ou de um trabalho da língua que começou a acontecer.

A questão da linguagem/subjetividade no autismo se impõe a qualquer pesquisador que se interesse em estudar o grande mistério que representa essa patologia. Ousamos tentar abordá-la não tomando por base um falso objetivismo ou uma postura dicotômica, mas a partir da reflexão de que o autista de fato possui uma relação peculiar com a língua, evidentemente diferente da relação estabelecida pela criança considerada normal. Entretanto, essa relação do autista com a língua não deixa de ser um fenômeno humano, e, como tal, apresenta as suas peculiaridades e diferenças. Com fundamento nisso, propõe-se uma reformulação na pergunta inicial - há ou não um sujeito no autismo? - nos seguintes termos:

 

Quem é esse sujeito que nos fala nessa voz aparentemente vazia e desabitada?

Fica a sugestão de que este trabalho se desdobre em outros que procurem discutir, mais profundamente, essa questão, e de que os achados que puderam ser aqui apontados sejam os embriões de uma investigação futura, investigações que visem a criar um espaço de interlocução não só entre a clínica e a pesquisa como também entre os campos da patologia da linguagem e da aquisição da linguagem.

Dessa forma, há uma necessidade cada vez mais crescente de estudos que coloquem em discussão a relação entre subjetividade e linguagem, no caso do autismo. Para tanto, sugerimos estudos longitudinais que fujam do encapsulamento do autista na lista de sintomas característicos da síndrome e que procurem explicações que não se restrinjam a aspectos descritivos e nosográficos situados na polaridade normal versus patológico. Como procuramos apontar neste artigo, existiriam elementos, nas produções verbais dos autistas, que poderiam vir esclarecer como esses indivíduos se relacionam com a linguagem e talvez indicar que a sua fala não seja vazia nem desabitada, mas esteja comportando uma subjetividade.

A clínica do autismo nos interroga, surpreende-nos e impulsiona-nos a repensar as certezas teóricas. Dessa forma, somos convocados a sair da posição de clínicos e entrar na de pesquisadores para que possamos revisitar as teorias, dando-lhes vida, dinâmica, e assim, depois desse exercício, retornar à clínica, mas agora de forma diferente, abrindo a possibilidade para um novo olhar.

Guerra e Carvalho (2002) levantam uma questão interessante, com a qual gostaríamos de encerrar este artigo: qualquer produção cujos postulados ou totalizações a tornem fechada sobre si mesma está, na verdade, protegendo-se de uma possível angústia suscitada pela idéia de mudança ou quebra das certezas. Essa postura, entretanto, acarretaria um bloqueio à oxigenação/renovação do saber. Algo novo/diferente somente poderá emergir através das fendas que possam vir a ser abertas mediante o permanente movimento de se colocar em questão o estabelecido.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fabiana Lins Browne Rêgo
Rua Irmã Maria David , 155, apto. 1501, Casa Forte
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Recebido 04/05/04
Reformulado 07/05/05
Aprovado 09/02/06

 

 

* Psicóloga clínica pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialidade no atendimento de crianças portadoras de autismo. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.
** Professora e pesquisadora (CNPq) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP.