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Jornal de Pediatria - Visceral leishmaniasis: clinical and laboratorial aspects

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Jornal de Pediatria

Print version ISSN 0021-7557

J. Pediatr. (Rio J.) vol.78 no.2 Porto Alegre Mar./Apr. 2002

http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572002000200010 

Leishmaniose visceral: aspectos clínicos e laboratoriais

Visceral leishmaniasis: clinical and laboratorial aspects

Antonio C. Pastorino1, Cristina M.A. Jacob2, Gabriel W. Oselka3, Magda M.S. Carneiro-Sampaio4

 

 

RESUMO ABSTRACT
Objetivo: comparar os dados clínicos e laboratoriais no pré e pós-tratamento de pacientes portadores de leishmaniose visceral (LV), admitidos em hospital pediátrico localizado em área não-endêmica, destacando a importância do reconhecimento da LV na faixa etária pediátrica.

Métodos: avaliação dos dados clínicos, laboratoriais e de tratamento de pacientes portadores de LV no período compreendido entre 1981 e 1992, comparando-se os valores médios de hemoglobina, leucócitos, neutrófilos, plaquetas, albumina, gamaglobulina, classes e subclasses de imunoglobulinas, tamanho do fígado e baço antes e após o tratamento, utilizando-se o teste "t" para amostras pareadas.

Resultados: foram incluídos 78 pacientes, com idade variando entre 8 meses e 13,5 anos, sendo 44 casos do sexo masculino e 61 provenientes da Bahia. Febre e esplenomegalia estavam presentes em 96,1% e 100% dos casos, respectivamente. O diagnóstico parasitológico foi obtido em 74/78 pacientes, com positividade pelo mielograma e/ou mielocultura em 67 casos (85,7%), 5 pela biópsia hepática e 2 pela punção esplênica. Os valores hematológicos e a albumina sérica apresentaram melhora significante ao término do tratamento (p<0,001), o mesmo não ocorrendo com a gamaglobulina sérica (p=0,087). Houve predomínio da subclasse IgG1, com dois pacientes apresentando níveis reduzidos de IgG2. O tratamento inicial utilizou antimonial em 67 casos e Anfotericina B em 5. Onze pacientes (15,7%) necessitaram segundo esquema de tratamento, com resolução em todos os casos. Houve melhora significativa do tamanho do fígado e baço ao término do tratamento (p <0,001). Um paciente apresentou resolução espontânea, e cinco faleceram por sangramento.

Conclusões: os autores alertam para a inclusão da LV na suspeita diagnóstica de pacientes pediátricos apresentando febre e visceromegalia, provenientes de áreas endêmicas, para a adequada abordagem diagnóstica e tratamento, especialmente em serviços de saúde de regiões de baixa incidência desta endemia.

leishmaniose visceral, calazar, infância, diagnóstico, tratamento

Objective: to compare the clinical and laboratorial data before and after the treatment of patients with visceral leishmaniasis admitted to a pediatric hospital in a nonendemic area, highlighting the importance of recognizing visceral leishmaniasis in pediatric patients.

Methods: clinical, laboratorial and treatment data of 78 patients with visceral leishmaniasis were evaluated from 1981 to 1992. We analyzed the average level of hemoglobin, leukocyte, neutrophil, platelet, albumin, gammaglobulin, class and subclass of immunoglobulin, size of the liver and spleen during the pre- and post-treatment using the paired t test.

Results: we included 78 patients with visceral leishmaniasis, 44 males, with age ranging from 8 months to 13.5 years. Sixty-one patients were from Bahia. Fever and splenomegaly were present in 96.1% and 100% of the cases, respectively. The parasitological diagnosis was obtained in 74/78 patients: 67 patients through smear and/or culture of bone marrow (85.7%), five through liver biopsy and two through spleen puncture. The hematological findings and serum albumin presented significant improvement at the end of treatment (P<0.001), differently from serum gammaglobulin levels (P=0.087). There was predominance of IgG1 subclass, with two patients presenting low levels of IgG2. Initial treatment used antimoniate in 67 cases and amphotericin B in five. Eleven patients (15.7%) needed a second treatment, and were considered cured after it. There was significant improvement in the liver and spleen size at the end of the treatment (P<0.001). One patient presented spontaneous remission and five died due to bleeding.

Conclusions: in order to obtain accurate diagnosis and treatment, especially regarding health services of areas with low-incidence of visceral leishmaniasis, the diagnosis of patients with fever and visceromegaly, who come from endemic areas, should include visceral leishmaniasis.

visceral leishmaniasis, kala-azar, infancy, diagnosis, treatment

 

 



Introdução

As leishmanioses (cutânea e visceral) têm sido reconhecidas no homem desde a antigüidade. Na Índia, a leishmaniose visceral (LV) era conhecida como uma doença de alta letalidade e denominada de Kala-azar (doença negra) pela freqüente pigmentação escurecida da pele nos acometidos.

O protozoário causador da LV nas Américas é um parasita intracelular obrigatório, da família Trypnosomatidae, gênero e subgênero Leishmania e espécie chagasi-L. (L.) chagasi(1).

A estimativa da população mundial de risco para aquisição da LV atinge 182 milhões de pessoas, sendo considerada endêmica em 47 países(2). Nas Américas, o Brasil representa o país de maior endemicidade para a LV, sendo responsável por cerca de 97% de todos os casos nesse continente. A região nordeste brasileira concentra 90% das notificações. A taxa de incidência nacional foi de 7,8 por 100 mil habitantes em 1995(3,4).

A LV brasileira se comportava como uma antropozoonose rural até recentemente, mas, após a década de 80, observou-se sua expansão também para as regiões periurbanas de grandes cidades(4).

Estudos experimentais e também em humanos demonstraram uma resposta imunológica, após a infecção por Leishmania, com predomínio dos linfócitos T auxiliares do tipo 2 (Th-2) e inadequada produção de interleucina-2 (IL-2) e gama-interferon (gama-INF) na fase de estado da LV, tendo sido observada restauração de seus níveis após adequado tratamento(5,6).

A LV americana acomete crianças da faixa etária de um a quatro anos de vida, sendo considerada uma doença espectral, cujas apresentações clínicas variam de formas assintomáticas até o quadro clássico da doença que, no período de estado, é caracterizado pela presença de febre, anemia, hepatoesplenomegalia, manifestações hemorrágicas, além de linfadenomegalia, perda de peso, taquicardia e, menos freqüentemente, tosse seca e diarréia. Os sinais e sintomas de desnutrição se desenvolvem com a progressão da doença, incluindo edema periférico, queda de cabelos e alterações de pele e das unhas(7,8).

A suspeita diagnóstica da LV deve ser baseada em dados epidemiológicos e nos achados clínicos e laboratoriais, mas o diagnóstico de certeza só pode ser firmado através do encontro do parasita em tecido infectado.

Os exames sorológicos, como a IFI, possuem boa sensibilidade, mas podem apresentar reações cruzadas com antígenos de outros organismos, como Trypanosoma, Mycobacterium, Plasmodium e Schistosoma(9). A pesquisa de antígenos de leishmania pela técnica de PCR (polymerase chain reaction) apresenta alta sensibilidade e especificidade, mas deve ser considerada com cuidado, principalmente nos pacientes provenientes de áreas endêmicas, com alta exposição antigênica(10,11).

Os compostos antimoniais, descobertos no início do século, permanecem como tratamento de escolha para várias leishmanioses, e são os recomendados pela Organização Mundial da Saúde(12).

Os autores comparam os dados clínicos e laboratoriais no pré e pós-tratamento de pacientes portadores de leishmaniose visceral (LV) admitidos em hospital pediátrico, localizado em área não-endêmica, destacando a importância do reconhecimento da LV na faixa etária pediátrica.

Casuística e métodos

Foram incluídas no estudo 78 crianças matriculadas no Instituto da Criança do Departamento de Pediatria da FMUSP, no período de janeiro de 1981 a julho de 1992. Os dados foram obtidos pela análise retrospectiva de prontuários até 1984 (29 crianças) e, posteriormente, foram incluídos prospectivamente 49 pacientes.

Todos os pacientes foram encaminhados para esclarecimento diagnóstico por apresentarem aumento do fígado e/ou baço (febril ou não), sendo que 10 pacientes já haviam recebido tratamento para LV, sem melhora clínica. Todos os pacientes foram submetidos a protocolo clínico que incluía: identificação, procedência, queixas principais e tempo de duração, história de tratamento anterior para LV e exame físico completo realizado pelo mesmo examinador no grupo prospectivo, com exclusão de outras patologias. O fígado foi palpado na linha hemiclavicular (LHC) direita e considerada sua medida abaixo do rebordo costal direito (RCD), fixando-se como limite superior o 5º espaço intercostal direito na LHC. A medida do baço foi obtida pela palpação de seu maior eixo abaixo do rebordo costal esquerdo (RCE).

Foram realizados os seguintes exames, segundo as metodologias discriminadas: hemograma com contador automático (TOAMicrocell, Counter CC-108) e coloração de esfregaço pelo método de Leishman; eletroforese de proteínas pelo método de biureto e fracionamento eletroforético em acetato de celulose, sendo considerados normais os valores de albumina maiores ou iguais a 3,5g/dl e de gamaglobulina menores ou iguais a 1,6g/dl; sorologia pelo método de imunofluorescência indireta (IFI), utilizando-se antígenos de promastigota de L.(L.) chagasi (considerados positivos títulos ³ 32); dosagens séricas das classes e subclasses de imunoglobulinas por imunodifusão radial, sendo utilizados anticorpos monoclonais para cada uma das subclasses de IgG provenientes da UNIPATH (UK), utilizando-se o padrão de referência OMS 67/97, sendo comparadas com valores de subclasses de crianças brasileiras sadias(13); mielograma realizado na crista ilíaca póstero-superior com coloração de Leishman; cultura de aspirado de medula para a pesquisa de Leishmania em meio bifásico (fase sólida - NNN - Nicole, Novy, McNean(14) e fase líquida - BHI - brain-heart-infusion), mantidas por 10 dias em estufas em temperatura adequada; biópsia hepática realizada com agulha Tru-cut e submetida à coloração pela hematoxilina-eosina e/ou imunoperoxidase para antígenos de Leishmania; punção aspirativa de baço pela técnica descrita por Ho et al.(15), com coloração de Leishman e a quantificação das formas amastigotas realizada pela técnica de Chulay et al.(16) ; outros exames foram realizados atendendo às necessidades de cada paciente e como controle de tratamento e dos efeitos colaterais das medicações empregadas.

Foi obtido consentimento informado, seguindo os preceitos éticos do Depto. de Pediatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.

Os dados analisados mostraram distribuição normal (teste de Kolmogorov-Smirnov), sendo utilizado o teste "t" para amostras pareadas, comparando-se as médias das variáveis pré e pós-tratamento. Os valores de albumina e gamaglobulina foram comparados pelo teste de Fisher, levando-se em conta os valores de normalidade pré e pós-tratamento. Valores de leucócitos inferiores a 5.000 mm3, neutrófilos inferiores a 500/mm3 e plaquetas inferiores a 100.000/mm3 foram também comparados no pré e pós-tratamento. Foram comparadas as médias do tempo de duração da doença, hemoglobina, leucócitos totais, neutrófilos, albumina e tempo de internação entre os pacientes que desenvolveram ou não infecção secundária, utilizando teste "t" para amostras não pareadas. Em todos os testes estatísticos, utilizou-se o nível de significância de 5% (p <0,05).

Resultados

A procedência dos pacientes foi predominantemente da Bahia (61 casos), sendo os outros casos do Piauí (6), Minas Gerais (4), Pernambuco (3), Ceará (2), Mato Grosso e Goiás (um caso cada).

A média da idade foi de 4 anos e 10 meses com variação de 8 meses a 13,5 anos. A distribuição quanto ao sexo mostrou discreto predomínio do sexo masculino (1,29 masculino/1 feminino).

A avaliação das medidas antropométricas no momento da inclusão demonstrou percentis <10% para peso e estatura em 66% e 77,4% dos pacientes, respectivamente.

As queixas iniciais, referidas pelos familiares, e as principais manifestações clínicas, no momento do diagnóstico, estão apresentadas na Tabela 1. O tempo médio de duração das queixas foi de 5,6 meses, sendo a esplenomegalia, a hepatomegalia, a anemia e a febre os achados clínicos mais comuns.

 

 

Todos os pacientes foram submetidos a diferentes métodos para o diagnóstico parasitológico, sendo que em 74 pacientes (94,5%) a pesquisa do parasita foi positiva (Tabela 2). A positividade do mielograma e da mielocultura foi de 77% e 66,6%, respectivamente. Em 7 casos, a mielocultura foi o único método que demonstrou a presença de leishmanias, em que repetidos mielogramas não detectaram o parasita. O diagnóstico parasitológico foi possível em 67 casos (85,7%), associando-se os dois métodos acima descritos (mielograma e mielocultura). Nos casos onde não se obteve inicialmente o diagnóstico parasitológico (11 pacientes), procedeu-se à realização de biópsia hepática em 5 pacientes e punção aspirativa de baço em dois casos, com detecção do parasita. Em quatro pacientes, não foi possível a confirmação parasitológica devido à contra-indicação clínica ou laboratorial para a realização de punção e aspirado de medula, pela presença de sangramentos, plaquetopenia e/ou alterações do coagulograma. Nesses casos, a análise dos dados epidemiológicos, clínicos e laboratoriais foi suficiente para a instituição da terapêutica, seguida de resposta clínico-laboratorial. Os valores médios de hemoglobina, assim como o número total de leucócitos, neutrófilos, plaquetas, albumina e gamaglobulina séricas dos 78 pacientes, pré e pós-tratamento, estão descritos na Tabela 3. O nível de hemoglobina pré-tratamento variou de 3,3 a 11,1g/dl e de 4,8 a 13,1g/dl no pós-tratamento, sendo necessárias transfusões de papa de hemácias em 19 pacientes, antes ou durante o tratamento.

 

 

 

 

Foi realizada a contagem do número de leucócitos totais em 78 pacientes, no período pré-tratamento, sendo seu número menor do que 5.000/mm3 em 67 casos (85,9%). A contagem de neutrófilos totais no pré-tratamento mostrou valores inferiores a 500 /mm3 em 14/78casos (18%) e em 4/67 pacientes (6%) no período pós-tratamento (p<0,001). A contagem do número de plaquetas no período pré-tratamento foi menor ou igual a 100.000/mm3 em 47/71 casos (66,2%), e, no pós-tratamento, em 4/65 (6,1%), com diferença estatisticamente significante (p <0,001).

As dosagens séricas de albumina e de gamaglobulina foram realizadas em 77 e 74 pacientes no período pré-tratamento, respectivamente, e em 38 pacientes no pós-tratamento. Houve diferença estatisticamente significante entre os valores médios de albumina do pré e pós-tratamento. A variação da dosagem de gamaglobulina no pré-tratamento foi de 0,91 g/dl a 8,89 g/dl e, no pós-tratamento, de 0,90 g/dl a 6,42 g/dl, sem diferença estatisticamente significante entre seus valores médios (p=0,087). Os níveis séricos normais de albumina e gamaglobulina foram comparados no pré e pós-tratamento e estão apresentados nas Tabelas 4 e 5.

 

 

 

 

A sorologia pelo método de IFI revelou-se positiva em 40/41 pacientes.

Os resultados dos níveis séricos das classes de imunoglobulinas e das subclasses de IgG no pré e pós-tratamento mostraram valores elevados (>97,5 percentil) para IgG e IgM em 18/18 e 13/18 casos, respectivamente, não sendo verificada redução significativa de seus níveis no período pós-tratamento imediato. O nível de IgG1 se mostrou elevado (>97,5 percentil) em todos os pacientes, tanto no pré-tratamento (10/10 casos) como no pós-tratamento (16/16 casos). Foram encontrados níveis séricos reduzidos (<2,5 percentil) de IgG2 no pré-tratamento em 2/10 casos, e no pós-tratamento, em 2/16 casos; quanto aos níveis de IgG3, esses foram considerados reduzidos (<2,5 percentil) em 2/10 casos no pré-tratamento e em 1/16 casos no pós-tratamento.

Infecção secundária ocorreu em 41 pacientes da casuística (52,5%), sendo detectados 61 processos infecciosos diferentes. As pneumonias bacterianas e as infecções de pele (impetigo, erisipela) e subcutâneo (celulites) foram responsáveis por 59% de todos os processos infecciosos encontrados, sendo utilizados antibióticos usuais para a faixa etária pediátrica, sem complicações ou óbitos decorrentes dessas infecções. Não houve diferença significante entre a duração da doença, número de leucócitos totais, neutrófilos e albumina iniciais com o desenvolvimento ou não de infecções secundárias. Quanto à média do tempo de internação, nos pacientes que desenvolveram infecção (35,7 dias) ou não (27,9 dias), essa comparação também não se mostrou significante (p=0,05).

O tratamento de escolha para a LV foi a N-metil glucamina (Glucantime®), sendo que, no início da casuística (1981 a 1984), foram utilizadas doses de 10mg/kg/dia, via endovenosa, a cada 2 dias, em 25 pacientes. Após esse período, foram empregadas as doses recomendadas pela OMS (de 20mg/kg/dia de Glucantime® endovenoso, diariamente, por período não inferior a 20 dias) em 42 pacientes. Cinco pacientes receberam Anfotericina B devido a tratamentos prévios com Glucantime® ou por apresentarem níveis elevados de transaminases. O paciente VGS foi diagnosticado apenas pela técnica de imunoperoxidase para leishmania em tecido hepático e apresentou melhora clínica espontânea, sendo considerado curado, não recebendo tratamento. Cinco pacientes faleceram por sangramentos associados ou não a infecções, sem terem iniciado qualquer tratamento.

O tempo médio de internação foi de 29 dias nos 72 pacientes que receberam algum tipo de tratamento. Houve regressão da febre em 58/67 pacientes, com tempo médio de desaparecimento de 10 dias. Onze pacientes não apresentaram febre em nenhum momento da internação, mas oito destes apresentavam história de febre na queixa inicial.

A evolução do tamanho médio do fígado e baço está representada na Figura 1, com diminuição significante nos valores medidos (p<0,001), logo após o término do tratamento. Houve redução de 27% no tamanho do fígado, sendo mais evidente a redução do baço (38,9%).

 

 

Onze pacientes (15,7%) permaneceram sintomáticos após o primeiro esquema terapêutico empregado, mas foram considerados curados após o segundo esquema com Anfotericina B (10 casos) ou novo esquema de Glucantime® diário (um caso).

Discussão

As leishmanioses são consideradas doenças tropicais ou subtropicais, mas ocorrem também em países do Mediterrâneo ou que recebem viajantes provenientes de áreas endêmicas(17,18). No Brasil, apenas os estados do sul do país não apresentam casos autóctones, e muitos pacientes acabam se deslocando para hospitais gerais e terciários de áreas de baixa incidência e devem ser adequadamente diagnosticados e tratados. A LV é uma protozoose sistêmica grave, que pode acarretar a morte nos pacientes não tratados.

Nesta casuística, a maioria dos casos era proveniente da Bahia pelas facilidades de chegada e permanência em domicílios de familiares que já residiam em São Paulo. A Bahia constitui o estado de maior número de casos notificados, sendo o estado do Piauí o de maior taxa de incidência no país (28,9/ 100 mil habitantes em 1994)(4).

A análise do quadro clínico mostrou a grande variabilidade clínica dessa doença, comprovada pela presença de pacientes com percentis normais para peso (26 casos) e estatura (17 casos). A desnutrição tem sido considerada como um dos principais fatores de risco para a LV, mas, no presente estudo, notamos casos típicos de LV com percentis normais de peso e especialmente de estatura, salientando a possibilidade deste diagnóstico mesmo na ausência de desnutrição crônica. Por outro lado, o prolongamento do período de estado na LV pode afetar o estado nutricional dos pacientes infectados, com grande diminuição dos estoques de gorduras e da massa muscular19. Nesta casuística, a duração média das queixas foi de 5 meses, tempo que pode não ter sido suficiente para alterações nutricionais crônicas decorrentes da LV. A história de febre estava presente na maioria dos casos, sendo constatada sua ausência, tanto na queixa como durante todo o período de tratamento, em 3 pacientes. A ausência de hepatomegalia e anemia ocorreram em apenas um caso cada.

Chamamos a atenção para um paciente que apresentava quadro clínico clássico da LV, com diagnóstico parasitológico obtido apenas pela biópsia hepática, que apresentou regressão espontânea da LV enquanto aguardava resultados dos exames. Essas situações devem chamar a atenção dos pediatras de áreas não-endêmicas, seja pela possibilidade da regressão da doença sem tratamento, como pela presença de casos que não apresentem todos os sinais e sintomas clássicos da LV.

Nesta casuística, a utilização das técnicas clássicas de pesquisa parasitológica (mielograma e mielocultura) foi suficiente para o adequado diagnóstico da LV, na maioria dos casos, reservando-se outros exames mais invasivos para aqueles casos duvidosos e nos quais a epidemiologia, o quadro clínico e os exames inespecíficos não permitiram o diagnóstico(20).

Os mecanismos envolvidos na hipergamaglobulinemia, assim como nas diferentes classes de imunoglobulinas presentes na LV, têm sido pouco relatados, mas já se observou relação direta entre a duração do período de estado com o valor atingido pela gamaglobulinemia sérica(21). A manutenção da hipergamaglobulinemia ao final do tratamento nesta casuística pode estar relacionada ao valor inicial de gamaglobulina sérica e à persistência do estímulo antigênico meses após o tratamento da LV. Já a rápida melhora dos valores de albumina, observados ao final do tratamento de nossos casos, pode ser decorrente do melhor aporte alimentar durante a internação ou da redução do catabolismo observada nestes pacientes.

Os relatos sobre as diferentes subclasses de IgG presentes na LV ativa mostraram nítidas elevações de IgG1, mas são conflitantes quanto às demais subclasses. El Amin et al. só encontraram diferenças significantes entre os controles e os pacientes portadores de LV para IgG1(22). Zwingenberger et al. demonstraram valores mais baixos que os controles para IgG2 e IgG4 e sem diferenças significantes para IgG3, quando comparados com controles normais da mesma região(23). As médias dos valores obtidos, tanto para os controles como para os portadores de LV nos dois relatos anteriores, não levaram em conta a idade dos mesmos, o que consideramos inadequado. A comparação dos valores normais de classes de imunoglobulinas e subclasses de IgG para as diferentes faixas etárias da população pediátrica deve ser ponderada, já que os seus níveis atingem valores de adultos em épocas diferentes. Em nosso estudo, houve predomínio nítido de IgG1, tanto no pré como no pós-tratamento, mas com apenas dois pacientes mostrando níveis reduzidos de IgG2 e outros dois de IgG3, levando-se em conta os níveis para cada faixa etária envolvida.

Cabe ressaltar que a utilização da técnica de imunodifusão radial foi considerada adequada neste estudo, pelos altos níveis séricos das imunoglobulinas encontradas na LV, não sendo necessárias técnicas mais sensíveis e sofisticadas.

Vários fatores foram implicados na maior incidência de processos infecciosos bacterianos e virais durante a fase aguda da LV, destacando-se a desnutrição, a anemia, a leucopenia e as possíveis alterações na função de neutrófilos (diminuição da quimiotaxia ou de sua capacidade bactericida) ou na produção de anticorpos contra novos antígenos.

Em nossos pacientes, vários destes fatores, isolados ou associados, poderiam estar presentes, merecendo destaque para os valores médios da hemoglobina, leucócitos e neutrófilos no início do diagnóstico, que não apresentaram diferenças estatisticamente significantes no grupo que desenvolveu infecção, coincidente com o observado por Andrade et al.(24)

O tempo médio de internação de 29 dias poderia favorecer a exposição a germes hospitalares, mas as infecções secundárias, presentes em cerca de metade de nossos casos, foram causadas por processos infecciosos de fácil resolução com esquemas rotineiros de antibioticoterapia, coincidindo com os achados de Nicodemo(25) e reforçando a necessidade de observação atenta da deterioração clínica e a busca ativa de agentes infecciosos nos pacientes portadores de LV. No relato de Andrade et al.(24), os autores observaram quatro vezes mais infecção bacteriana em pacientes internados com LV, quando comparados a um grupo controle constituído de desnutridos por outras causas, levando-se em conta o tempo de internação. Em nossos casos, a comparação do tempo médio de internação com a presença ou não de infecção secundária também não mostrou diferença estatisticamente significante (p=0,05).

O antimoniato pentavalente N-metil Glucamina (Glucantime®) é utilizado em nosso meio desde a década de 50 e permanece como tratamento inicial de escolha, sendo descritos 10% de casos resistentes. Nestes casos, a Anfotericina B pode ser empregada, e, mais recentemente, a Anfotericina B incorporada a partículas lipídicas artificiais (lipossomos) vem sendo utilizada, com vantagens, na redução de seus efeitos sistêmicos e no tempo de internação(12),(26).

Badaró et al., em 1990, relataram a utilização de gama-interferon recombinante associado a antimoniato pentavalente em 17 pacientes com LV, com ou sem tratamento antimonial prévio, com falhas terapêuticas em 17% dos casos(27).

Novas drogas de uso oral e vacinas para a LV vêm sendo desenvolvidas, com resultados animadores, mas, enquanto não dispomos destes avanços, devemos estar atentos para o diagnóstico da LV e utilizarmos as formas habituais de diagnóstico e tratamento, altamente eficientes no controle desta endemia(28,29).

O presente relato se reveste de importância como alerta aos pediatras que atuam em regiões de baixa incidência de LV, pois, com os constantes deslocamentos populacionais que ocorrem em nosso país, a LV deve ser sempre incluída no diagnóstico diferencial de pacientes com achados epidemiológicos, clínicos e laboratoriais característicos, ou mesmo nos pacientes oligossintomáticos, especialmente se apresentarem febre e visceromegalia. Destacamos, também, que o mielograma e/ou mielocultura permanecem como os métodos diagnósticos parasitológicos de escolha, assim como o tratamento com antimoniato continua sendo a primeira indicação na terapêutica da LV, em nosso meio.

Agradecimentos

Aos integrantes do Laboratório de Patologia das Moléstias Infecciosas (LIM-72), dos Laboratórios Central e do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP e do Laboratório de Imunologia das Mucosas do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo, pela orientação e realização dos exames desta pesquisa.

 

Sobe

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Endereço para correspondência:
Dr. Antonio C. Pastorino
Rua Dona Luiza Tole, 519 - apto 22 – Santana
CEP 02406-000 – São Paulo, SP
Fone: 11 9933.71.12 – Fax: 11.6950.8481
E-mail: antoniocp@icr.hcnet.usp.br

 

Sobe

1 Antonio C. Pastorino – Mestre em Medicina pela Fac. de Medicina da USP - SP. Assistente da Unidade de Alergia e Imunologia do Dep. de Pediatria do HCFMUSP, São Paulo.
2 Cristina M.A. Jacob – Doutora em Medicina pela Faculdade de Medicina da USP - SP. Chefe da Unidade de Alergia e Imunologia do Dep. de Pediatria do HCFMUSP, São Paulo.
3 Gabriel W. Oselka – Professor Associado do Dep. de Pediatria do HCFMUSP, São Paulo.
4 Magda M.S. Carneiro-Sampaio – Titular do Dep. de Imunologia da Universidade de São Paulo. Chefe do Lab. de Imunologia de Mucosas, Dep. de Imunologia - ICB IV - USP, São Paulo.

Fonte financiadora: Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
Artigo submetido em 06.09.01, aceito em 09.01.02