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Educação e Pesquisa - Literacy and school failure: problematizing assumptions of the constructivist concept

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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702

Educ. Pesqui. vol.26 no.1 São Paulo Jan./June 2000

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022000000100005 

Alfabetização e fracasso escolar : problematizando alguns pressupostos da concepção construtivista

 

Sandra Maria Sawaya
Universidade de São Paulo

Correspondência para:
Sandra Maria Sawaya
Dep. de Psicologia e Educação
FFCLRP – USP
Av. Bandeirantes, 3900
14040-901 Ribeirão Preto – SP
e-mail: smsawaya@yahoo.com.br

 

 

Resumo

O objetivo deste artigo é contribuir com elementos para o debate das questões relativas à alfabetização e ao fracasso escolar das crianças de baixa renda. Parte-se de resultados de uma pesquisa que examina algumas teses que, tendo como uma das suas bases conceituais a teoria construtivista de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, vêm norteando as políticas públicas de alfabetização em nosso país desde a década de 1980. Levaram-se também em conta dados de pesquisas anteriores que estudaram a presença dos materiais escritos na cultura popular.
Os pressupostos construtivistas acerca do desenvolvimento cognitivo das crianças das camadas populares e suas relações com o texto escrito foram analisados a partir de uma linha de pensamento da História Cultural, que vê a leitura e a escrita como práticas culturais, ou seja, como forma de expressão do indivíduo na sociedade.
As conclusões a que se chegou são: não há marginalidade cultural no sentido de não participação na cultura escrita, pois numa sociedade letrada as práticas de escrita se impõem de diferentes maneiras nas formas de existência social, definindo relações sociais. As relações das crianças de camadas populares com o texto escrito só podem ser compreendidas em toda sua complexidade dentro do contexto e da diversidade das formas culturais da sua produção.

Palavras-chave

Fracasso escolar – Alfabetização – Classes populares – Cultura escrita.

 

Literacy and school failure : problematizing assumptions of the constructivist concept

Abstract

This article aims at contributing to the debate surrounding questions relative to literacy education and school failure of children from low-income families. It builds upon the results of a research conducted in 1999 in which some proposals based on the works of Emília Ferreiro and Ana Teberosky were analyzed. The proposals analyzed have been shaping public policies on literacy education in Brazil since the eighties. Various data from past researches that show the presence of written material in lower-class culture are also considered here.
Constructivist assumptions about the cognitive development of lower-class children and their relationship to the written text are analyzed from the point of view of socio-historical contributions which treat reading and writing as cultural practices – as one of many forms of self expression of individuals in society.
The following conclusions are reached: cultural marginalization based on the lack of participation in the written culture does not exist in a literate society because the practices of writing take on varied shapes in different instances of social activity, defining social relations. The relationship that lower-class children have with the written word cannot be understood in all its complexity without considering the context and the diversity of the cultural forms that mold this relationship.

Keywords

School failure – Literacy – Lower-classes – Literate culture.

 

 

O objetivo deste artigo é contribuir para uma melhor compreensão dos aspectos que envolvem a alfabetização das crianças de classes populares em nosso país. Para tanto, partimos de uma reflexão sobre algumas das teses que, tendo como uma das suas bases conceituais a teoria construtivista de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1979), vêm norteando as políticas públicas de alfabetização do nosso país desde a década de 1980 (SEE/CENP, 1990, p.14; PCN/MEC, v.2, 1997, p.21-22).

Ao trazerem mudanças nas concepções de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita a partir de uma visão psicogenética de aquisição da língua escrita, esses estudos levaram a novos entendimentos sobre as dificuldades escolares das crianças de classes populares, que vieram justificar a implantação, pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, do Ciclo Básico, no período de 1985-95 (SEE/CENP, 1990, p.14 ) e da sua ampliação, a partir de 1995, para todo o ensino fundamental por meio da política de Progressão Continuada (Silva e Davis, 1993; PCN/MEC, v.1 e v.2, 1997).

Uma das justificativas que orientam essas reformas pedagógicas, segundo consta nos documentos oficiais, é a de que a escola, ao se abrir às classes populares,

não se reformulou para atender uma clientela diferente da que estava acostumada a receber. Desprezando os diferentes níveis de conhecimento trazidos pelas crianças com experiências diversas das esperadas, a escola exige que todos percorram o caminho da mesma forma e ao mesmo tempo. (...). Não leva em conta as características culturais e do desenvolvimento individuais que atuam como variantes na determinação do tempo para aprendizagem da leitura e da escrita. (SEE/CENP, 1990, p.13-14)

Reconhecem, assim, que a escola pública tem fechado os olhos para as condições de vida dessas crianças, ou seja,

para a realidade e para as necessidades dos alunos (das populações menos favorecidas), que iniciam seu trajeto pedagógico com inúmeras deficiências de conhecimentos em áreas que a escola tradicionalmente valoriza (...). Assim, o aluno acaba sendo culpabilizado por se encontrar distante do ponto que se instituiu como início da aprendizagem escolar. (...) [e] ao apresentar as primeiras dificuldades em acompanhar o ritmo do ensino, é abandonado. (SEE/FDE, 1997, p.10-11)

Os pressupostos das diferenças socioculturais de desenvolvimento das crianças de camadas populares, baseados no modelo explicativo construtivista, auxiliaram na reflexão sobre as questões da avaliação escolar do aluno e no redimensionamento do problema da "patologia da aprendizagem" (SEE/CENP, v.1, 1990, p.14), ao se basearem na idéia de que as crianças fracassam na escola ao serem introduzidas na alfabetização inicial. Há, porém, uma nova maneira de considerar esse problema, que coloca no centro da discussão dois aspectos fundamentais: a competência lingüística da criança e suas capacidades cognitivas (Ferreiro e Teberosky, 1979, p.9 - 21; SEE/CENP, v.1, 1990).

As diferenças entre as crianças de camadas populares e as pertencentes a outras camadas da população decorrem, segundo as concepções construtivistas de desenvolvimento infantil, da inexistência ou da precariedade de experiências com a leitura e escrita nos meios populares. Provenientes de ambientes não-letrados, as crianças de classes populares não têm acesso a interações com situações de escrita e leitura, fato que as impede de atingir os níveis de conceitualização necessários à construção da escrita na escola e de compartilhar dos significados e dos usos sociais da escrita já adquiridos pelas crianças das classes médias. Justifica-se assim a necessidade de mudanças nas práticas de ensino da língua escrita e mais tempo para o domínio da leitura e da escrita pelas crianças de classes populares, uma vez que a escola pressupõe conhecimentos e estágio de desenvolvimento cognitivo que elas ainda não alcançaram (Ferreiro e Teberosky, 1979; PCN/MEC, v.2, 1997, p.20-21).

Um estudo que realizamos em 1992 (Sawaya, 1992 e 1995) junto a um grupo de 14 crianças com idade entre 3 a 12 anos, em um bairro da periferia de São Paulo, veio confirmar dados que já haviam sido apontados por algumas pesquisas desenvolvidas junto a grupos populares, tais como as de Ecléa Bosi (1986) e Merildes Miranda(1991). Ou seja, que a cultura escrita atinge os grupos populares por meio de práticas de leitura que ocorrem sob o efeito da circulação de uma grande diversidade de textos, folhetos, documentos etc., produzidos pelos meios de comunicação de massa que, no intento de atrair esses consumidores, produzem todo tipo de impressos (propaganda, folhetos de divulgação de produtos etc.) e outros materiais escritos afinados com o "gosto popular": jornais sensacionalistas, revistas de fotonovela, horóscopo etc.

Além desses resultados, uma releitura dos dados que coletamos em 1992, que apontavam a presença de materiais escritos e de práticas de leitura entre as crianças e famílias que se declaravam "analfabetas", nos levou a um trabalho de pesquisa mais amplo (Sawaya, 1999) em que, baseados num referencial da História Cultural da leitura e da escrita (Chartier, 1982; Hébrard e Chartier 1989; Certeau, 1990), analisamos criticamente os pressupostos téoricos que justificavam as afirmações da inexistência de práticas de leitura nos meios populares, suas conseqüências sobre o desenvolvimento cognitivo e lingüístico dos indivíduos e seus desdobramentos nas políticas de alfabetização no estado de São Paulo. Uma ampliação no quadro referencial e de análise da leitura e da escrita como práticas culturais permitiu questionar as teses de que os grupos populares estão excluídos das práticas de leitura e escrita, e que esse fato teria conseqüências sobre o desenvolvimento cognitivo das suas crianças.

Pretendemos, portanto, através deste artigo, chamar atenção para outros ângulos da análise na relação que os sujeitos-leitores estabelecem com o texto escrito, que têm sido desconsiderados pelas políticas de alfabetização no ensino fundamental. Há um privilégio de certo discurso escolar, das formas escolares de apropriação da leitura e da escrita (Lahire, 1993), isto é, de uma apreensão das competências do ler e do escrever construídas pelos grupos autorizados – pedagogos, lingüistas, gramáticos, estudiosos da linguagem etc. – que são consideradas como as relações legítimas com o objeto escrito. Essas competências apreendidas fora do contexto social, político e econômico onde são produzidas, são naturalizadas como medida de análise das relações que as crianças estabelecem com os textos escritos, sem ser questionadas. As relações de poder e violência simbólica, que constituem as formas de aquisição e transmissão da leitura e da escrita via escola – mas não só – e que são parte de um projeto político-pedagógico nas suas formas de dominação social, não são questionadas, o que leva novamente a imputar às populações pobres e suas precárias condições de vida a razão do fracasso escolar e da sua "marginalidade social" (Sawaya, 1999).

 

As práticas de leitura e escrita nas classes populares: alguns dados de pesquisas

Entre 1990 e 1992 realizamos um trabalho de pesquisa cujo objetivo era verificar a hipótese de deficiência no desenvolvimento cognitivo e lingüístico das crianças das camadas populares decorrente das suas precárias condições de vida, que se refletiriam em seu modo de pensar, de se expressar, perceber e aprender (Sawaya, 1992).

Um dos caminhos para o entendimento da linguagem verbal das crianças é aquele que, centrando o estudo nas situações de interação verbal adulto-criança, criança-criança busca a qualidade lingüística dessas emissões em seus aspectos cognitivos, semânticos, fonológicos etc. Partindo de um outro enfoque, baseado nos aspectos psicossociais dessas falas no contexto da socialização primária de um grupo de crianças de classes populares, buscamos compreender como elas usam a palavra como forma de expressão de suas percepções e relações com o mundo e com os outros. As maneiras através das quais elas utilizam a linguagem permitem perceber, para além da performance lingüística, a lógica das suas ações, na luta que essas crianças travam cotidianamente pela sobrevivência e na maneira como se movem dentro de um campo de sentidos caracterizado pelas contradições de uma sociedade autoritária e excludente.

As questões que nos serviram de ponto de partida foram: como se dão as práticas da linguagem dessas crianças no seu contexto sociocultural? Sobre o que conversam? Que usos fazem da linguagem (descrever, analisar, comparar, instruir)? O que o conteúdo verbal de suas brincadeiras nos informa a respeito das suas percepções de fatos e aspectos da realidade? Partimos do princípio de que o estudo dos usos da linguagem verbal seria um caminho privilegiado para verificarmos a tese da deficiência cognitiva e de linguagem.

A escolha da amostra para a realização do trabalho se deu pela constatação da existência de um grupo de crianças já constituído no bairro e que reunia as características que queríamos investigar: crianças em sua maioria com história de fracasso escolar e que passavam o dia juntas, conversando, brincando e passeando. Através de uma perspectiva metodológica proveniente dos estudos etnográficos sobre a vida cotidiana dessas crianças e os usos de sua linguagem oral, buscamos dar voz a suas questões sobre a escola, a vida, os amigos, o bairro, a casa, as famílias, os desejos, os medos etc. Nossos encontros aconteciam duas vezes por semana durante 6 horas, cada vez, em que gravávamos suas falas durante brincadeiras, conversas e passeios, deixando que o gravador servisse de microfone para brincadeiras de rádio, programas de auditório, opiniões sobre a escola etc. e fazendo-lhes perguntas através de um roteiro semi-estruturado aplicado aos pais, a cada criança e ao grupo.

O grupo de crianças, que circulava cotidianamente pelo bairro, se impôs às nossas demandas de separação por idades ou por estágios de desenvolvimento, nos solicitando um outro tipo de relação com o campo da pesquisa, na qual era impossível separar participação de observação. Isso fez de todos nós – crianças e pesquisador – não apenas informantes, mas cúmplices e testemunhas do que vivemos juntos nesses dois anos de trabalho.

Uma das principais características que encontramos nesse grupo foi a complexidade com que as crianças se utilizam da linguagem oral: elas fazem usos identificados com formas de abstração, como o uso de metáforas, trocadilhos, piadas e gozações para dissuadir o adulto das agressões, para convencer o interlocutor do que está sendo dito; conquistar seu lugar no mundo dos adultos; construir sua história pessoal e sua identidade.

Construir a história do bairro, cartografá-lo, é mais uma das funções da palavra para as crianças, o que acaba por transformá-las em porta-vozes, em memória viva e coletiva da vida do bairro e das pessoas que nele moram: são informantes, pombos-correio, delatores e testemunhas, pois foram lá ver o acidente e conhecer os detalhes. Através das histórias contadas pelas crianças sobre o bairro e as famílias, elas traçam o percurso existencial da vida daquelas pessoas, situando-as no espaço e no tempo:

Sabe a Dona Nezinha, aquela que mora ali naquele quintal atrás da bananeira? Ela vai mudá de lá, o filho dela vai casá dia de sábado e vai precisá do cômodo. Ela é madrinha do Rafael. (Drianinha, 8 anos)

Essa função de faladores e informantes é também reconhecida e utilizada pelos moradores do bairro. É para elas que se pergunta se o lixeiro já passou, se a venda já abriu, é a elas que se pedem pequenos favores ou informações, como, por exemplo, onde mora determinada pessoa ou a que horas costuma chegar do trabalho.

Faladores e andarilhos, esse grupo de crianças passava o dia indo às casas uns dos outros, reunindo histórias, acontecimentos, incidentes, desgraças, contando a uns o que fazem os outros. Como representantes vivazes dos velhos contadores de história, são leitores da vida do bairro, narram as histórias que dão um sentido particular a um espaço fragmentado e em constante mobilidade – há enchentes, batidas policiais, despejos, mortes etc. Como vínculos aglutinadores desse bairro e dessas vidas, as falas das crianças cumprem um papel análogo ao que o escrito assumiu na sociedade letrada: registrar, informar, tornar presentes acontecimentos passados, reconstituir a história do lugar e das pessoas, permitindo que a identidade do bairro e das famílias se reconstrua, revelando que muitas funções sociais da escrita já estão presentes nas suas falas (Sawaya, 1995).

Mas, nas falas e narrativas, as crianças também recorrem a documentos, por terem necessidade de atestar, comprovar, mostrar a veracidade do que está sendo dito. Os documentos a que recorrem são escritos e fotográficos, aliás, elas têm verdadeira fascinação pelas fotos que testemunham sua vida pregressa: o batizado, os padrinhos, a festa de aniversário, o bolo. Organizados algumas vezes em álbuns que trazem legendas engraçadas (piadas, interferências na própria foto), eles evidenciam que passam por várias mãos que lhe imprimem marcas, interferindo na interpretação do leitor. Numa foto, por exemplo, podia-se ler: "cara de pidão vai lambê sabão".

As fotos, vistas em conjunto pelos companheiros de andança, suscitam o aparecimento de outros documentos ou o registro da ausência deles, como a certidão de nascimento acompanhada do constrangimento da mãe que alega não ter o dinheiro para registrar o menor. Mas há, para algumas crianças, o registro de batismo, a certidão de casamento dos pais, receitas médicas, recortes de jornal, poemas, frases, orações etc. Mostrar que a família é gente decente, que os pais não são amasiados, motiva o vasculhar das crianças embaixo da cama, no meio das roupas, à procura de registros escritos de sua existência, história e de seus relatos.

Entre as crianças também circulam livros (alguns livros de histórias infantis, vários escolares), álbuns de figurinhas, folhetos de todos os tipos (elas são constantemente solicitadas a distribuir material de propaganda entre os moradores do bairro, pois andando por toda parte, fazem também circular informações). Uma curiosidade que chama a atenção é que muitas crianças vivem em um "ambiente circundado de escrita": o jornal e as revistas estão por toda a parte, vedam o barraco, frestas, revestem paredes, decoram ambientes, de maneira que é possível ler uma reportagem inteira deitado na cama. O jornal, além dos seus múltiplos usos, inclusive na favela, é objeto de leitura. Muitos estudos apontam a enorme tiragem dos jornais sensacionalistas e seu consumo pelas camadas populares (Bosi, 1986). Há grande curiosidade pela vida alheia e pelas desgraças comuns, que a leitura do jornal e da revista parece satisfazer. Vários leitores se declaram analfabetos, incapazes de ensinar os filhos e ajudá-los a fazer a lição, mas lêem para si, ainda que declarem não saber escrever.

Ademais, várias crianças, assim como seus pais, reclamam da distância entre a escrita escolar (as lições, os exercícios) e aquelas que experimentam em casa. Muitas vezes fomos solicitados a auxiliar nas lições escolares e pudemos constatar que os pais se mostravam e se diziam incapazes de compreender o que era pedido. Verificamos que eram capazes de ler, mas os exercícios da lição eram apresentados em uma linguagem que suscitava dúvidas em qualquer leitor. Numa lição das crianças, por exemplo, podia-se ler: "cópia: horóscopo, livro, jornal, revista". Impossível saber se a cópia se refere às palavras ou ao texto contido em cada um desses suportes.

Os textos e as situações de leitura que surgiram estavam sempre atrelados às circunstâncias da vida cotidiana das famílias e das crianças: o recorte de jornal noticiando o incêndio que houve na favela, a revista de propaganda e a oferta de produtos a serem vendidos – Avon, lingerie, potes plásticos etc.- ,que as crianças oferecem, atestando práticas de leitura e acesso ao texto, e revelando que, mesmo entre os analfabetos, a leitura é de alguma forma praticada.

O bairro tem escribas e leitores oficiais, aos quais se recorre para ler uma carta, uma receita médica ou uma notícia de um jornal. Há escritores que muitas vezes, munidos de boa caligrafia, boa retórica e até mesmo de uma máquina de escrever, produzem ofícios, pedidos de emprego, registram nomes, escrevem cartas etc. para solicitantes que ditam como se escrevessem, indicando uma certa familiaridade com as formas do texto escrito, trazidas pela convivência com o texto falado, encenado, cantado, mostrando que as formas do texto escrito também atingem o leitor analfabeto.

Os leitores oficiais nem sempre são escribas, pois as habilidades solicitadas ao segundo podem ser distintas das requeridas ao primeiro. Para ser leitor, é preciso ser capaz de ler nas entrelinhas os sentidos de um texto que exige conhecimentos além da competência do ler e escrever. Pede-se algo mais de quem lê: que seja o intermediário, o interlocutor entre o texto escrito, seu pretenso autor e o solicitante da leitura, que restabeleça na leitura o diálogo entre texto, autor e leitor, e que o sentido seja construído nessa interseção. Funções e formas de leitura que restituam as características das relações orais da interlocução, cujo sentido é negociado entre os leitores e o texto. Assim, em um pedido de leitura de uma receita médica, solicita-se ao leitor informações que não só transcendem o que está no texto como permitem contextualizar o sentido do que está lá: saber se o autor da receita é confiável, bom médico etc. Tais leitores não são escolhidos apenas porque sabem ler, mas também porque são pessoas de confiança, conhecidas no "pedaço", "estudadas", isto é, capazes de interpretar os vários sentidos explícitos ou implícitos, a veracidade, a autoria e a confiabilidade do que está escrito. Há uma compreensão de que a escrita foi produzida por alguém e com alguma intenção, que a simples leitura não basta para apreender.

Se esses dados abalam as afirmações da inexistência de situações de leitura e de escrita entre as crianças de classes populares, há também um longo caminho a percorrer no entendimento da natureza desse contato e dos usos e apropriações que delas fazem, e dos materiais escritos que vão constituir a bagagem que elas levam para a escola na aquisição da leitura e da escrita escolares.

Esses dados nos levam a questionar as teses das deficiências de linguagem. O conceito de carência cultural mais uma vez mostra sua inadequação ao afirmar a inexistência de participação dos grupos não alfabetizados na cultura escrita. As formas narrativas de que as crianças se servem para contar histórias e acontecimentos revelam uma busca de compreensão do sentido do que vivenciam cotidianamente, uma tentativa de descrever, informar, comparar, traçar para o ouvinte o percurso da sua curta existência, seus medos e desejos infantis, revelando que, se a leitura pode ser entendida como o trabalho intelectual do leitor para compreender, analisar, simbolizar, interpretar, classificar, ela já está presente na relação dessas crianças com o mundo.

 

A produção do discurso da exclusão da cultura escrita

Uma literatura relativamente recente, tal como textos de Michel de Certeau (1990) e de Roger Chartier (1982), bem como algumas das contribuições de Pierre Bourdieu (Bourdieu e Chartier, 1993) relativas às práticas de leitura e à compreensão da construção social das formas de produção e interpretação da escrita, tem levado, do ponto de vista conceitual e metodológico, ao questionamento dos processos de alfabetização que constituem o "trabalho escolar sobre a língua escrita " (Lahire, 1993).

Um primeiro aspecto a se considerar na análise das relações que os leitores estabelecem com o objeto escrito é a necessidade de se interrogar sobre os pressupostos que estão implícitos na operação de decifrar e dar sentido às palavras escritas (Bourdieu, 1987). Ou seja, o estudo da leitura e da escrita, como objeto de conhecimento, precisa partir da análise da relação do pesquisador, enquanto leitor, com seu objeto de estudo e interrogar sobre as condições sociais da produção da sua leitura e das condições em que ele lê, caso contrário, projeta, no entendimento que pretende obter, a relação que mantém com o objeto.

A pesquisa objetivista trata o texto escrito como objeto de conhecimento e nele busca suas objetivações (regularidades, regras, gramática, formas textuais, usos, estilos). Compreender a escrita como um sistema é estabelecer uma relação teórica de um leitor letrado que não tem nada de natural nem de universal. No entanto, essa não é a única relação possível historicamente. Sendo portadora de um status social e de uma legitimidade social, essa relação com o texto escrito é, freqüentemente, tida como universal. A pesquisa assim concebida leva-nos a esquecer nossas próprias condições sociais de produção e a universalizar inconscientemente as condições de possibilidade de sua leitura (Bourdieu,1987, p.135).

A história das práticas de leitura tem revelado que não só as capacidades de ler, como também as situações de leitura são historicamente variáveis: a leitura nem sempre foi algo de foro privado, íntimo, que remete à individualidade e à relação íntima do leitor com um texto escrito e sua capacidade de decifrá-lo. Outras formas de leitura e de relação com o texto tornam a leitura uma atividade coletiva, em que os leitores manipulam juntos, decifrando-os e elaborando-os em conjunto. Atividades essas, portanto, que ultrapassam a capacidade individual de ler, incluindo indivíduos que não sabem decifrar os códigos escritos, mas que nem por isso estão excluídos das atividades e dos usos da leitura (Chartier, 1982).

O que esses autores revelam é que há uma multiplicidade de formas de existência social da leitura e da escrita numa sociedade cuja escrita, cujo texto escrito, penetrou nos vários domínios da vida social dos indivíduos, sejam eles alfabetizados ou não. Usos e práticas distintos, apropriações múltiplas e heterogêneas, formas distintas de se fazer uma leitura caracterizam esses leitores desconhecidos.

Mas para que seja possível a compreensão das atividades de leitura dos diferentes grupos sociais é preciso situar as suas formas de leitura e o texto lido numa história da produção, da transmissão cultural, das condições sociais que os produziram leitores (Bourdieu, 1987, p.138).

As relações de poder, de força simbólica, ao se apoderarem da produção lingüística de sentidos e dos modos de transmissão e aquisição das competências do ler e do escrever, definiram as práticas de leitura legítimas, formas de apropriação e produção textual tidas como únicas, desconsiderando do universo dos leitores os grupos sociais que não dominam as habilidades de ler e escrever e que, no entanto, possuem práticas de leitura.

Foram determinados processos sócio-históricos e relações de poder que associaram práticas distintas – ler e escrever –, redefiniram os usos, as funções, o lugar da escrita na sociedade e as formas de sua aquisição através da institucionalização da sua transmissão via escola (Certeau, 1990). Também definiram uma concepção de cultura escrita como o legado dos textos produzidos por determinados grupos sociais, restringindo assim o próprio conceito de cultura, desconsiderando-a como expressão do universo simbólico e material dos diferentes grupos na sociedade.

Decorre daí que a única maneira de escapar dos efeitos das forças de imposição sobre os modos de análise das relações dos leitores com sua leitura e da naturalização das práticas dominantes é fazer a análise crítica dos processos socio-históricos e das relações de poder que impuseram os discursos, as práticas letradas de leitura e suas formas de aquisição numa cultura escrita e que excluíram das possibilidades de análise as práticas de leitura e aquisição dos não-letrados.

Para compreender as relações que as crianças de camadas populares estabelecem com o objeto escrito – suas formas de atribuição de sentido, de percepção do código escrito, suas maneiras de ler etc. – é imprescindível, nessa visão ampliada do que é ler e escrever, analisar as formas de imposição das ações sociais e simbólicas (que constituiriam as formas de leitura, numa sociedade determinada por relações de poder e que tende a se impor ao todo social na cultura escrita), no seu confronto com formas de apropriação (dos grupos sociais que não adquiriram as habilidades de ler e de escrever via escola) que, não se submetendo totalmente às forças de imposição social e simbólica, fazem da leitura outros usos, relacionam-se com os textos através de outras práticas e sentidos – leituras autodidatas, decifrações coletivas etc.

Mas as formas de imposição social e simbólica das aquisições da escrita, historicamente constituídas, definiram o "trabalho escolar sobre a língua escrita" (exercícios, ditado, cópia, tratamento autônomo do texto, exercícios de compreensão textual etc.), que transcende a questão do método de aquisição empregado – tradicional ou moderno. Produzidas pelas relações objetivistas, as práticas escolares estão implícitas na operação de decifrar e atribuir sentido às palavras escritas. Todavia, as relações objetivistas com os textos não são as únicas possíveis do ponto de vista histórico, de vez que constituem a leitura de um leitor produzido pelas instituições modernas – as instituições escolares – que, apoderando-se do ensino da língua escrita por razões sociais, políticas, religiosas etc., conduziram as formas de ensino e de apropriação dos textos escritos (Certeau, 1990).

Tratar o texto como auto-suficiente, buscando nele sua verdade e fazendo abstração de tudo o que está ao seu redor, é uma invenção histórica relativamente recente. "A essa maneira de ler um texto, sem se referir a nada a não ser a ele mesmo, nós estamos tão habituados que o universalizamos inconscientemente" (Bourdieu e Chartier, 1993, p.270).

É preciso, portanto, tomar consciência de que a escrita foi um dos dispositivos de que o poder se serviu para a constituição das formas de dominação nas sociedades burocráticas modernas, através não só de materiais escritos e seus usos, mas também das relações sociais geradas pela escrita, que veiculam determinadas formas de relações sociais, as quais, objetivando-se através da escrita, da circulação de papéis, do discurso escrito, obedecem a uma ordem simbólica que disciplina, organiza e exerce poder sobre o todo social (Bourdieu, 1987, p.103). Todos os indivíduos de uma sociedade de cultura escrita estão sob o efeito das transformações práticas e simbólicas operadas pelos discursos escritos, por certos usos da escrita nos mais diversos domínios da vida social. Esses argumentos mostram por que não se pode pode afirmar que as diferenças entre os grupos em uma cultura escrita podem ser colocadas em termos de ter ou não ter contato com a escrita, entre ser alfabetizado ou não.

A pergunta que decorre disso é: como as classes populares, mal alfabetizadas, se apropriam das formas e dos textos escritos, como se relacionam com "os papéis" que hoje fazem parte da vida de todos? (Chartier, 1995)

 

Uma distinção necessária: a interpretação antecede o trabalho de decifração na leitura

Uma primeira distinção que se faz necessária ao entendimento das diferentes formas de apropriação social da língua escrita, e que foi confundida em nossa cultura letrada, é aquela entre construção das hipóteses de sentido de um texto escrito e aquisição da habilidade de decifrá-lo (o processo de aquisição do código escrito). O levantamento de hipóteses de sentido de um texto escrito antecede a interrogação dos códigos escritos, ou seja, a leitura como formulação de hipóteses de interpretação e de sentido, originadas na memória social, de tradição oral, antecede o trabalho de decodificação do texto escrito, que depende do trabalho de interiorização de competências específicas, feito pela escola ou pelos escolarizados (Certeau, 1990).

No ato de leitura, as formas de percepção socialmente constituídas permitem a antecipação do sentido do texto em que a decifração do código escrito apenas corrige as hipóteses formuladas de sentido (Certeau, 1990). Mas um jogo de forças aí se interpõe, definindo a atividade leitora como uma atividade de "táticas" entre um sistema escrito imposto e a atividade do sujeito leitor que, circunscrito num campo de significações, percepções e relações sociais, produz sua atividade leitora.

Os grupos sociais que têm um grau precário de escolarização não se inserem no sistema escrito da mesma forma que os grupos escolarizados, pois não mantêm com o escrito as mesmas formas de relação com o texto que a escola produziu nos escolarizados. "Relações orais estruturantes" também estão incluídas entre as formas de apropriação dos materiais escritos. Procedimentos refinados e "artimanhas poéticas" se mantiveram através dos séculos, e ainda se infiltram na atividade leitora. Assim, se a leitura moderna se tornou um gesto do olho, restringindo a leitura à relação entre o leitor e o texto, rumores de uma articulação vocal, movimentos de uma manducação muscular e leituras em voz alta, do leitor que interioriza o texto fazendo da sua voz o corpo do outro (o escritor), transformam o leitor ainda em ator, recriando o texto lido à sua maneira, compartilhando o texto coletivamente e fazendo com que o escritor se manifeste através da voz do leitor (Certeau, 1990, p.243).

A identificação entre decifrar e construir sentido no texto escrito, operada pela escolarização no ocidente, pressupõe que só é possível exercer atos de leitura àqueles capazes de decodificar um texto escrito (Certeau, 1990). A essa visão acrescentou-se uma outra, segundo a qual a aquisição da habilidade de leitura e escrita e seus usos exigem do leitor o desenvolvimento de capacidades cognitivas mais complexas.

Mas qual seria o peso, nas aprendizagens da leitura e da escrita, das estruturas perceptivas e cognitivas do homem, tendo em vista os condicionamentos, histórica e socialmente variáveis, que regem essas aquisições? A aquisição das competências do ler e do escrever exigiriam formas de pensamento mais avançadas? Promoveriam o desenvolvimento cognitivo mais evoluído, mais reflexivo e abstrato no homem? É essa a questão subjacente às afirmações acerca das diferenças entre as crianças de diversos níveis socioeconômicos apresentadas na proposta de alfabetização construtivista, que discutiremos a seguir.

 

Domínio das habilidades de ler e escrever e desenvolvimento cognitivo: problematizando alguns pressupostos

Nem mesmo os recentes estudos sobre a natureza da linguagem humana autorizam afirmações no sentido referido acima. Não há evidências de que a forma escrita afeta a mente, mesmo que haja uma concordância geral de que a cultura escrita, a imprensa e o alfabeto tenham papel decisivo nas mudanças sociais e cognitivas na modernidade (Olson, 1986, apud Feldman, 1995, p.55). Muitas das mudanças lingüísticas, cognitivas e sociais atribuídas à aquisição da escrita também foram encontradas nas culturas de tradição oral. Pattanayak (1995), ao se referir à tradição védica da Índia e ao papel dos historiadores orais da África, fala sobre a existência de

um sistema de recitação, memorização e acumulação de textos; a criação de instituições para usos dos textos; evolução e aquisição de uma metalinguagem para a interpretação e explicação dos textos; e escolas para a introdução dessas práticas orais. (p.118)

Algumas pesquisas revelaram, também, que a presença e o uso da escrita em algumas culturas não as levaram a desenvolver idéias, formas de discurso e pensamento que, na sociedade ocidental moderna, costumam estar associadas ao desenvolvimento da escrita (Olson, 1995, p.268), nem provocaram alterações nos processos cognitivos individuais em relação àqueles dos grupos de tradição oral: não há diferenças nas estruturas léxicas, sintáticas e discursivas, e os processos lógicos não variam (Olson, 1995, p.163). A referência a todos esses aspectos, no entanto, não tem por intenção negar que as condições socioeconômicas e os processos de exclusão social a que as camadas populares estão submetidas lhes restringem o acesso aos bens culturais e aos usos que deles fazem as outras classes em nossa sociedade, nem que essa restrição deixe de ter efeitos sobre as suas formas de participação na cultura e na sociedade.

Não há consenso nos estudos que buscam explicar como a experiência cultural se traduz em comportamento cognitivo. Além desse fato, alguns estudos sobre a natureza da linguagem humana afirmam que ela é inteiramente abstrata, montada sobre conceituações e generalizações e a ela só temos acesso através de suas formas expressivas, sonorizadas ou escritas.

As noções de tempo, espaço, linearidade, causalidade são ingredientes tão profundamente enraizados na linguagem que sem eles o falante não é capaz sequer de abrir a boca para falar e conversar. (Cagliari, 1997, p.52)

Desse modo, passam a ser questionáveis as afirmações de que o fracasso escolar das crianças de camadas populares é decorrente do fato dessas crianças não terem atingido certos níveis cognitivos e conceitualizações que as crianças de outras camadas sociais já atingiram ao chegar na escola.

As contribuições da psicolingüística também revelam que a atribuição das capacidades de abstrair ao domínio da escrita, por uma certa tradição de estudos em ciências humanas, é na verdade decorrente do desconhecimento de que o uso da própria linguagem, por qualquer falante de uma língua, é inerente a um sistema de classificação, de ordenamento, isto é, já é uma forma de pensamento abstrato que se utiliza de taxinomias e de categorias (Goody, 1979, p.32). Os esquemas de assimilação das crianças das habilidades do ler e do escrever são, portanto, inerentes à capacidade cognitiva e de linguagem de todo ser humano, que a cultura lapida à sua maneira.

 

A escola e seus modos de alfabetizar as crianças de camadas populares: problemas de método ou de concepções de aquisição da língua escrita?

Um outro pressuposto que norteia as reformas pedagógicas é o de que "a escola não leva em conta as características culturais e o desenvolvimento individual que atuam como variantes na determinação do tempo para aprendizagem da leitura e da escrita e pressupõem conhecimentos que as crianças de classes populares não possuem" (SEE/CENP, 1990, p.14). Em documento recente, no qual explicita sua proposta pedagógica da escola, a Secretaria de Educação de São Paulo busca esclarecer esse pressuposto ao afirmar que se trata "de fazer o inverso do que fazíamos anteriormente, quando esperávamos que os alunos se ajustassem aos nossos métodos, procedimentos e, mais grave ainda, aos nossos critérios de excelência" (SEE, 2000, p.8).

O pressuposto, nessa visão, é que a escola pública de ensino fundamental paulista ensina segundo modelos adequados a um aluno ideal, que não encontra correspondência nas crianças das camadas populares. Entretanto, segundo várias pesquisas sobre as práticas pedagógicas das escolas públicas em São Paulo, a realidade escolar contradiz essa afirmação (Patto, 1990; Cagliari, 1997; Collares e Moyses, 1996).

Mais grave ainda, é que esse mesmo pressuposto serve de explicação para o fracasso escolar das crianças das camadas populares, pois o professor valer-se-ia das experiências prévias dessas crianças com a leitura e a escrita – que segundo essa visão são pré-requisitos escolares – como se fossem uma bagagem já adquirida, sem se dar conta que a falta dela caracterizaria um nível de desenvolvimento cognitivo insuficiente para a aquisição do sistema escrito. Isso se evidencia, sobretudo, quando se leva em conta certas afirmações que constam nos Parâmetros Curriculares Nacionais, tais como:

O que o aluno pode aprender em determinado momento da escolaridade depende das possibilidades delineadas pelas formas de pensamento de que dispõe naquela fase do desenvolvimento, dos conhecimentos que já construiu anteriormente e do ensino que recebe. (PCN/MEC, Vol. 1, 1997, p.51)

Nos PCNs encontram-se ainda as seguintes observações:

Sabe-se que, fora da escola, os alunos não têm as mesmas oportunidades de acesso a certos objetos de conhecimento que fazem parte do repertório escolar. Sabe-se também que isso influencia o modo e o processo como atribuirão significados aos objetos de conhecimento na situação escolar: alguns alunos poderão estar mais avançados na reconstrução de significados que outros. (v.1, p.60)

A adoção de ciclos, segundo o mesmo documento, possibilitaria trabalhar melhor com a diferença existente entre os alunos, adequando o ensino aos diferentes ritmos de aprendizagem e em função do estágio de desenvolvimento da língua escrita em que se encontra a criança.

Muitos trabalhos de pesquisa têm vindo mostrar que ainda é a visão da criança pobre, portadora de inúmeras deficiências e defasagens, que organiza a ação pedagógica do professor, as relações que a escola estabelece com os grupos que atende, desde o seu ingresso e que produzem dificuldades de aprendizagem. O conhecimento que orienta a ação pedagógica do professor e da escola está profundamente marcado pela visão arraigada das famílias pobres como portadoras de todas as deficiências morais e psíquicas, o que oferece uma justificativa para a oferta de um ensino precário e de má qualidade (Patto, 1990, 2000; Machado e Souza, 1997; Cagliari, 1997; Sawaya et al. 1997; Collares e Moyses, 1996; Cruz, 1994, dentre outros).

Esses estudos têm revelado que os métodos pedagógicos utilizados, sejam eles construtivistas ou tradicionais, são re-funcionalizados pelo professor e pela escola em razão de uma multiplicidade de fatores e interesses que não os de necessariamente procurar responder melhor às necessidades de aprendizagem da língua escrita pelas crianças. As propostas pedagógicas têm sido apropriadas pelos professores em função da lógica que organiza a vida cotidiana da escola: a fragmentação do trabalho, a alienação do sujeito em prol do cumprimento de papéis idealmente constituídos (necessidade de responder às expectativas da escola por alunos disciplinados, limpos e arrumados; necessidade de se enquadrar nos critérios muitas vezes arbitrários de bom professor: o que enche a lousa de lição, o que obtém dos alunos os melhores cadernos), as intempéries do próprio sistema de ensino (mudanças repentinas das regras do jogo, do sistema de avaliação, dos conteúdos pedagógicos a serem ministrados, da metodologia de ensino empregada, mudanças das crianças de classe durante o ano letivo etc.). Esses aspectos acabam por fazer das atividades escolares, nos seus mais diferentes níveis, atividades cotidianas em que vigora a lei do salve-se quem puder e se recorre a formas de comportamento comprometidas não com a razão objetiva, mas com a razão pragmática da vida cotidiana, na qual os preconceitos, as ações irrefletidas passam a ser o eixo orientador das práticas que se dão na escola, gerando obstáculos à realização dos objetivos escolares.

Uma das razões que levam os professores, segundo nossos dados e de outros (Sawaya, 1999; Cruz, 1994), a não mudarem a percepção que têm das crianças e os impedem de vê-las como seres inteligentes – condição imprescindível à adoção do construtivismo como concepção teórica e como ação pedagógica – é a de que a política educacional vigente não tem conseguido romper com a visão enraizada na escola a respeito das crianças de camadas populares como incapazes, pois tem deixado intacto o cerne da questão – a lógica que organiza o sistema de ensino no Brasil, que se utiliza de princípios que transformam o usuário em responsável por todos os males da escola pública.

Apesar das novas orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais ampliarem a visão construtivista de alfabetização proposta pelo Ciclo Básico em 1990, buscando corrigir distorções, incompreensões, revendo concepções e incluindo as contribuições trazidas pela visão sociointeracionista do desenvolvimento humano, da linguística, das contribuições sóicio-históricas etc., elas ainda têm oferecido brechas para que a compreensão das crianças das camadas populares e suas famílias como grupos sociais que se constituem à margem da cultura permaneça na visão que a escola tem das camadas populares.

 

Considerações finais

Uma das conclusões a que se chega, diante do estado de coisas vigente no campo da alfabetização, é que ainda não conhecemos a criança brasileira, ignoramos o que ela sabe e conhece, suas capacidades e habilidades, e continuamos a adiar a implantação de um projeto político comprometido com as classes populares e com a reformulação das visões ideológicas que organizam a vida cotidiana da escola e a prática escolar. Ainda estamos protegidos pelo discurso ideológico sobre as supostas defasagens cognitivas das crianças pobres, as supostas diferenças de socialização e inadequação da escola para recebê-las, por serem possuidoras de pretensos ritmos diferentes, de uma linguagem que ninguém entenderia e de comportamentos desadaptados às exigências escolares.

 

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Recebido em 28.06.2000
Aprovado em 08.03.2001

 

Sandra Sawaya é Professora Assistente Doutora no Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP. Fez o mestrado e o doutorado no Instituto de Psicologia da USP, sob a orientação da professora Maria Helena Patto. Foi também assistente de pesquisa na Fundação Carlos Chagas.