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Revista Brasileira de História - Manoel Bomfim: "pensador da história" na Primeira República

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Revista Brasileira de História

On-line version ISSN 1806-9347

Rev. Bras. Hist. vol.23 no.45 São Paulo July 2003

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882003000100006 

DOSSIÊ

 

Manoel Bomfim, "pensador da História" na Primeira República*

 

 

Rebeca Gontijo

Doutoranda/UFF

 

 


RESUMO

Este artigo analisa algumas das idéias do intelectual Manoel Bomfim referentes à historiografia e aos historiadores do Brasil. A fonte principal é o livro O Brasil na História (1930), e a abordagem focaliza a tensão — presente em seus textos e em sua época — entre a busca da imparcialidade científica e as exigências de posicionamento intelectual em defesa da nação.

Palavras-chave: Manoel Bomfim; nação; história nacional.


ABSTRACT

This article examines Manoel Bomfim's intellectual ideas regarding historiography and Brazilian historians. Using as main source Bomfim's book entitled O Brasil na História (1930), this aproach focuses on the tension in his book, between the search of scientific imparciality and the demands for intellectual engagement in the defense of Nation.

Keywords: Manoel Bomfim; nation; national history.


 

 

Vimos as nossas tradições desnaturadas, os seus heroísmos infamados, falseada a essência da sua história (...) Inimigos, não caluniaram a Nação Brasileira como fizeram os seus historiadores, repetidos nos políticos. Em suas obras, confusas e opacas, desaparecem as qualidades características do povo, qualidades propositadamente escondidas, quando não são ostensivamente negadas. Histórias — essas páginas dadas ao registro dos nossos feitos?... Não: cavalariças... Um legítimo historiador teria de varrer tudo isso, expurgando, assim, os vícios e defeitos nacionais apontados, cotejando-os com a realidade, para, desassombradamente, limpar o passado nacional, e deixá-lo nos valores demonstrados pelos fatos

Manoel Bomfim, O Brasil na História, 1930

Essas palavras foram escritas na segunda metade dos anos vinte do século passado por Manoel Bomfim (1868-1932), intelectual sergipano, autor de A América Latina (1905), Através do Brasil (1910) — co-escrito por Olavo Bilac (1864-1934) — etc., além de uma trilogia composta por: O Brasil na América (1929), O Brasil na História (1930) e O Brasil Nação (1931). Livros dedicados à análise da formação da nacionalidade brasileira. O autor se empenhava em criticar os historiadores e os políticos do Brasil que, segundo ele, teriam deturpado a história nacional e contribuído para a "degradação" da nação. Interessado em resgatar as "qualidades características do povo" brasileiro — que considerava esquecidas pela historiografia —, ele desenvolveu uma reflexão sobre o País e seus habitantes, em que é possível identificar diálogos com pensadores de seu tempo e de outros tempos.

Este artigo tem por objetivo apresentar algumas das idéias de Manoel Bomfim presentes no livro O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política1, no qual se localiza uma crítica à escrita da história do Brasil, balizada pelos aspectos que seu autor valorizava e desprezava na produção dos historiadores. A partir da identificação desse conteúdo, a abordagem desenvolvida se aproxima de questões e problemas relativos à história da história no Brasil e das discussões sobre a chamada "questão nacional" na Primeira República, tecendo cruzamentos entre historiografia e nacionalismo.

É possível localizar, no livro em questão, articulações entre o modo como seu autor pensava na história — como passado vivido e como narrativa deste passado — elegendo temas, acontecimentos, personagens, intérpretes e chaves explicativas, a partir dos quais ele compreendia a nação. Deve-se observar que a reflexão de Manoel Bomfim não se apresenta como uma teoria da história ou um projeto historiográfico organizado em torno de proposições metodológicas sistematizadas. Seu texto apresenta considerações e posicionamentos sobre problemas de ordem epistemológica e política, formulados segundo pressupostos científicos norteados por noções extraídas da biologia, da psicologia, da sociologia e da história.

O texto que segue está dividido em três partes: a primeira fornece algumas indicações sobre o modo como Bomfim concebia a ciência e a relacionava ao estudo do social; a segunda parte explora a tensão, presente em seus textos, entre a busca de cientificidade e imparcialidade e a demanda pelo posicionamento intelectual, em um contexto marcado por paixões nacionalistas; a terceira focaliza aspectos da crítica à historiografia e aos historiadores, desenvolvida pelo autor. Considerando Manoel Bomfim como um "pensador da história", um crítico da historiografia e dos historiadores de sua época (e também do período monárquico), supõe-se que sua produção possui elementos que podem contribuir para a compreensão do ofício do historiador na 1ª República, pois seus textos apresentam alguns exemplos das críticas às quais os historiadores eram submetidos, das demandas que os pressionavam e dos problemas que deviam enfrentar.

 

SOBRE CIÊNCIA, PAIXÕES E INTERESSES

Para além das particularidades que distinguiam os paradigmas científicos difundidos entre os intelectuais brasileiros da virada do século XIX, observa-se a convergência de perspectivas no sentido de consagrar a ciência como o melhor meio para compreender e solucionar os problemas sociais. A ciência era tida como o caminho ideal para reduzir os fenômenos sociais a leis e informações objetivas, capazes de fomentar o desenvolvimento de instrumentos adequados a intervenções reformadoras na sociedade. Assim como grande parte dos intelectuais do início do século XX, Manoel Bomfim também valorizava o saber científico, considerando-o como um pressuposto legítimo e necessário para a apreensão da realidade. O papel da ciência seria explicar a origem dos males sociais e, ao mesmo tempo, propor soluções, sendo que:

A ciência alegada pelos filósofos do massacre é a ciência adaptada à exploração; a verdadeira, a pura, nos mostra a espécie humana progredindo sempre, em todas as suas variedades — com alternativas, sim, devidas à degeneração de grupos e parcialidades, que abandonaram o esforço e a vida. Ela nos ensina o caminho do progresso, e nos garante o êxito2.

Bomfim era médico, mas sua vida profissional foi dedicada à educação, sendo que sua produção pode ser caracterizada por dois aspectos: cientificismo e civismo. Ele acreditava que o conhecimento científico seria o ideal para curar os males sociais e avançar rumo ao progresso, pois "a primeira condição para conquistar a civilização é conhecê-la". Da ciência derivaria o progresso, tanto material quanto intelectual. Ao mesmo tempo, dava grande importância ao patriotismo, considerado fundamental para o fortalecimento do Brasil.

Como psicólogo, Bomfim valorizava os aspectos psíquicos — que se refletiriam tanto nas idéias quanto nas atitudes humanas — e os sentimentos na análise do social, sem abrir mão da razão. Em O Brasil na História, o homem é apresentado como um ser moral, cuja subjetividade lhe permitiria escapar das influências externas (do meio) e internas (da hereditariedade psíquica e/ou biológica), subordinando-as aos seus interesses. Existiriam interesses gerais da espécie humana — "moral, justiça, humanidade..." — em oposição a interesses particulares — "egoístas". Os primeiros teriam sido multiplicados através das relações sociais que, ao favorecerem "sentimentos socializadores", teriam contribuído para o predomínio de necessidades coletivas, necessárias para o progresso humano. É nos sentimentos que o autor vai buscar o como e o porquê da ligação entre os indivíduos. Essa valorização das emoções pode ser ilustrada pela importância que ele conferia à paixão. Em A América Latina, mesmo comprometido com a exposição de uma teoria nos moldes apresentados pela ciência, o autor já havia declarado que:

(...) certos comentários parecerão descabidos ou impróprios a uma demonstração que assim se fundamente (...). Seria preciso, acreditam certos críticos, uma forma impassível, fria e impessoal; para tais gentes, todo argumento perde o caráter científico sem esse verniz de impassibilidade; em compensação bastaria afetar [a] imparcialidade, para ter direito a ser proclamado — rigorosamente científico. Pobres almas!... Como seria fácil impingir teorias e conclusões sociológicas, destemperando a linguagem e moldando a forma à hipócrita imparcialidade, exigida pelos críticos de curta vista!... Não; prefiro dizer o que penso, com a paixão que o assunto me inspira; paixão nem sempre é cegueira, nem impede o rigor da lógica3.

A paixão é tida como uma espécie de força propulsora da vontade, capaz de controlar ou guiar os interesses, sendo que, neste caso, paixões e interesses estariam relacionados com o campo das práticas científicas e políticas das quais o autor participava. Para Bomfim, os interesses estariam referidos à comunhão de tradições — científicas e políticas (e, mais especificamente, nacionais) —, o que se opunha a uma prática científica neutra, uma vez que tais interesses continham em si mesmos as razões de uma parcialidade. O autor identificava dois modos de lidar com essa parcialidade: negando-a ou explicitando-a, sendo que ele defendia esta última opção.

Em sua época, a legitimidade da produção científica dependia da afirmação e do reconhecimento de um saber neutro, imparcial, porque baseado em métodos racionais e critérios controláveis. Ao mesmo tempo, supunha-se haver uma homologia entre os diversos níveis da realidade (o social, o biológico, o político, o econômico, etc.), o que permitia transpor categorias e afirmações de uma esfera de conhecimento a outra. Bastava afirmar que se uma produção científica era neutra (e neutra porque era científica) e, supunha-se, não haveria espaço para metáforas e analogias, mas apenas para relações homológicas e objetivas. Diferentemente de outros intelectuais de seu tempo, Bomfim não afirmava que a objetividade de suas formulações fosse decorrente de uma posição de imparcialidade diante dos fatos sociais, tomada como condição indispensável para uma abordagem que se pretendesse científica. De acordo com Flora Süssekind e Roberto Ventura, ele rompera com a exigência de neutralidade dominante no discurso cientificista de fins do século XIX e início do século XX, ao assumir sua vontade e interesses pessoais como sendo o próprio motor da análise a ser desenvolvida4. A objetividade da ciência estaria, pois, na localização dos interesses do cientista. Era a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em primeiro lugar, situar o cientista em relação a seu objeto; e, em segundo, identificar as verdades ditas ou omitidas. Mas, e no caso da história? Como Manoel Bomfim procurou solucionar o conflito produzido pela exigência de neutralidade e objetividade científica diante do reconhecimento da subjetividade, dos interesses e das paixões? Quais seriam as implicações dessas exigências e interesses para a escrita da história?

 

POR UMA HISTÓRIA CIENTÍFICA E APAIXONADA

A importância prática da história está, sobretudo, em multiplicar as forças dos que sabem utilizar as experiências do passado (KAUTSKY apud BOMFIM, O Brasil na História, 1930).

Durante o século XIX, na Europa teve início o processo de organização e institucionalização das disciplinas, inicialmente de acordo com os parâmetros de cientificidade ditados pelas ciências naturais. A história ganhou espaço nas universidades, aumentando a expectativa de profissionalização do trabalho do historiador, ao mesmo tempo em que se afirmava uma concepção moderna de história. Enquanto isso, no Brasil, os lugares da produção científica eram os institutos históricos e geográficos, os museus etnográficos e as faculdades de direito e medicina, onde a ciência — com suas diferentes teorias, interpretações e experimentos — dava lugar à discussão e divulgação de uma ética ou atitude científica possível de ser experimentada de modo genérico. A ciência era tida como um princípio que se estendia aos mais diversos ramos do conhecimento, orientando tanto a produção de estudos sobre a sociedade brasileira, quanto a literatura, as idéias políticas, a poesia, as artes, etc. Contudo, tanto aqui como na Europa, a reflexão sobre a história moderna acompanhou processos de construção do Estado Nacional, o que provavelmente contribuiu para uma permanente tensão entre a existente busca de imparcialidade — relacionada à difusão de ideais científicos e da moderna concepção da história — e a exigência de posicionamento dos intelectuais — relativa às discussões sobre o mundo do trabalho em transformação naquele momento, e também sobre a chamada "questão nacional".

Manoel Bomfim esteve na França entre 1902 e 1903 — período em que, inspirado pela leitura de Walter Bagehot (1826-1877), escrevera A América Latina. Vigorava, então, um amplo debate sobre o papel da ciência na universidade e na sociedade, em meio ao conflito produzido pela busca de imparcialidade e pela constante exigência de posicionamento intelectual diante dos problemas de seu tempo. O livro O Brasil na História foi escrito na segunda metade dos anos de 1920, motivado por algumas idéias desenvolvidas pelo autor no início do século — como ele mesmo afirma na nota de apresentação do livro — e interessado em discutir questões consideradas urgentes no Brasil, após a Primeira Guerra Mundial. Naquele momento havia certo empenho no sentido de delimitar o trabalho do historiador moderno; discussões sobre as formas de inserção do Brasil na modernidade; debates sobre a nação e seus habitantes, etc. Era significativa a demanda por interpretações da história do País. De acordo com Tânia Regina de Luca, a história brasileira apresentava-se "sem cor ou brilho, circunstância que causava uma sensação de profundo desconforto", uma vez que a essa disciplina atribuía-se a "nobre função de ensinar aos cidadãos a cartilha do patriotismo". Acreditava-se que a história deveria fornecer um conjunto coerente de tradições a serem partilhadas e, ao mesmo tempo, promover a ruptura com a tradição colonial que, a partir daquele momento, passaria a ser considerada como sinônimo de atraso. Conduzidos pela "mão firme da metodologia científica", os historiadores deveriam debruçar-se sobre o passado, privilegiando certos indivíduos e episódios num trabalho de consagração [e de exclusão] que correspondia à necessidade de definir a nacionalidade5. Tarefa vista como imperativa diante de um quadro que para alguns era caracterizado pela falta de patriotismo, e para outros, pela inexistência ou inviabilidade da própria nação.

Manoel Bomfim não pode ser considerado como um historiador, no sentido que, já em sua época, era atribuído a autores como Capistrano de Abreu ou João Ribeiro. O primeiro garantia sua identidade como historiador através de sua experiência no trato com fontes documentais em arquivos — o que era fundamental num momento em que se almejava conferir cientificidade à história. O segundo, através de sua atividade docente e, como observou Patrícia Santos Hansen, através da produção de "reflexões mais filosóficas" sobre a disciplina6. No entanto, é possível situá-lo como um "pensador da história", recuperando seu trabalho como crítico da historiografia, disposto a fazer reflexões sobre a matéria e provocar os historiadores, num momento em que estes podiam ser identificados não por formação ou titulação, mas devido a um conjunto de práticas autodidatas e tradições intelectuais.

De modo geral, a crítica literária em fins do século XIX e início do século XX caracterizava-se pelos seguintes aspectos: rigidez ética — expressa através da defesa de valores com base em critérios sociológicos e/ou retóricos; pragmatismo; ausência de teorização; indefinição de conceitos. Sobre esse quadro comum desenvolviam-se estratégias críticas diferentes, que circulavam em meio à demanda — por parte dos intelectuais e da elite letrada da época — de explicações sobre as particularidades do Brasil e a especificidade de ser brasileiro7. Supondo que a produção historiográfica estivesse submetida às mesmas exigências, é preciso considerar o lugar da crítica em geral — e do crítico Manoel Bomfim em particular — ao refletir sobre a questão da objetividade e do comprometimento e suas implicações para o ofício do historiador e para a escrita da história no País.

Enfocando a atividade crítica da historiografia — expressa, principalmente, no livro O Brasil na História —, é possível recuperar sua reflexão sobre a história, onde estão presentes observações sobre como a história deveria ser escrita, que não se referem unicamente à narrativa historiográfica, mas que também tocam em questões metodológicas referentes à relação entre objetividade e subjetividade no trabalho do historiador. É possível supor que esta atuação de Bomfim como crítico estivesse, ao menos parcialmente, relacionada à sua atuação no âmbito educacional. Esta suposição deriva da identificação em seu texto de elementos que permitem considerar sua crítica pedagógica e doutrinária; uma crítica que se dedicava a apontar equívocos na escrita da história e a propor soluções. É possível destacar alguns aspectos relativos a essa atuação como crítico e como educador, que deixam entrever problemas historiográficos e algumas de suas idéias sobre o ensino da história.

Entre 1898 e 1902, Bomfim atuou no magistério ensinando Moral e Cívica na Escola Normal, onde também foi professor de Pedagogia e Português. Nesta mesma escola, dirigiu o Pedagogium, instituição destinada à pesquisa educacional. Também foi membro do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal, sendo que, em 1899, assumiu a Diretoria da Instrução Pública, cargo que deixou em 1907. Neste mesmo ano, atuou como deputado federal, particularmente interessado em questões relativas ao ensino público. O cargo na Diretoria de Instrução Pública parece ter sido de suma importância, uma vez que cabia a esta instituição a definição dos conteúdos das disciplinas escolares, através da indicação dos livros didáticos a serem adotados em todas as escolas públicas; a fiscalização da atuação dos professores e a distribuição de recursos financeiros, etc. Ainda em 1899, Bomfim escreveu um parecer favorável sobre o Compêndio de História da América (1900), de Rocha Pombo (1857-1933), que disputava num concurso a chance de ser adotado nos cursos de História da América, da Escola Normal. Após essa fase de atuação na Instrução Pública e na política, o autor passou a se dedicar à produção de livros didáticos e paradidáticos, além de continuar a publicar na imprensa carioca. Esta trajetória, que vai da ocupação de cargos públicos ao trabalho de escrever livros educativos, pode ser vista como estando de acordo com a perspectiva de uma missão a ser cumprida pelos intelectuais em sua época, qual seja: a de lutar pelo projeto da "educação como redenção nacional", supondo que sua implementação seria capaz de garantir uma progressiva transformação da sociedade brasileira, contribuindo para a definição de algumas precondições indispensáveis para se pensar no Brasil como nação.

A instrução popular foi um assunto intensamente discutido a partir de 1870 e durante as primeiras décadas da República. Dizia respeito às transformações sociopolíticas e econômicas do período, momento em que a educação passava a ser compreendida como um "problema social", devendo ser compatível com a inserção de homens livres (ex-escravos e imigrantes) num mercado de trabalho em expansão. Desde a virada do século, Manoel Bomfim defendia a instrução popular como precondição para o progresso humano que, por sua vez, conduziria ao progresso da sociedade. Esse papel progressista atribuído ao ensino lhe teria permitido afirmar a viabilidade do Brasil diante das teses deterministas que naturalizavam o atraso e o progresso das nações, orientando-se pelas noções de meio e raça8.

Mas, antes de tentar compreender o modo como esse autor concebia o ensino da história, é preciso lembrar que, no Brasil, a história foi introduzida no currículo escolar na primeira metade do século XIX — ou seja, no momento de afirmação do Estado Nacional. A história como disciplina escolar foi estabelecida com a criação do Colégio Pedro II, em 1837, e era guiada pelos parâmetros do ensino francês. Este determinava que a história da civilização fosse norteada pela história da Europa Ocidental. A história do Brasil, como disciplina distinta da história universal, só surgiu em 1895. Era caracterizada pela cronologia política e pelo estudo da biografia de brasileiros ilustres, além de acontecimentos considerados relevantes para a afirmação da nacionalidade. Cabia à história como disciplina escolar construir a memória da nação como uma unidade indivisível e fornecer os marcos de referência para se pensar no passado, no presente e no futuro do País.

A experiência de Bomfim como defensor da educação popular (como professor, jornalista, político ou escritor de livros didáticos) provavelmente contribuiu para que ele pudesse estabelecer relações entre o ensino da história e a instrução cívica. O autor compreendia a educação como uma tarefa "urgentíssima para a República e para a Pátria", sendo que o professor deveria utilizar elementos da vida nacional em todas as disciplinas:

Todos os exemplos de composição e redação, todos os problemas de matemática; todos os exemplos de moral, de política, e de sociologia podem ser referidos à vida nacional e são elementos de que pode se servir o professor inteligente e apto para dar à sua escola um caráter nacional9.

Para Bomfim, a história a ser ensinada baseava-se em antagonismos: o elemento nacional opunha-se ao estrangeiro (lusitano); o povo se opunha às classes dirigentes. A história deveria ser útil no sentido de formar tradições comuns, glorificando heróis e valorizando a consciência nacional. A tarefa específica do professor seria capacitar os alunos para julgar os fatos e os personagens, identificar causas e efeitos e incutir-lhe sentimentos de admiração, entusiasmo ou reprovação. Contudo, para além dessa visão da história — bastante informada por uma concepção clássica — como matéria submetida ao julgamento dos homens, Manoel Bomfim propunha que:

O estudo da história não se poderia limitar a simples enunciados dos fatos, que ficariam, deste modo, sem valor. No entanto, é esse o caráter que lhe dão em muitos casos; e, com isto, se torna o ensino inteiramente árido, estéril, difícil e inútil. É nessas condições que vemos reduzir-se a instrução histórica à crônica exclusivamente política, ou militar — recitação de nomes de príncipes, listas de datas, indicação de casas reinantes... (citadas sem discernimento, e onde se amontoam personagens banais, não permitindo ao aluno lobrigar uma seqüência racional de efeitos, nem descobrir a linha geral do desenvolvimento necessário ao grupo social, ou a evolução das respectivas instituições). Os personagens se tornam, então, inteiramente ilógicos; surgem como deuses, ou se movem como títeres, porque — ou não se destacam quase dos acontecimentos, ou são apresentados como a causa definitiva deles... Ora, uma das utilidades da história é mostrar-nos em que medida os indivíduos influem, realmente, sobre a marcha dos acontecimentos, e de que forma se refletem sobre a alma dos heróis as necessidades e as aspirações gerais. Do estudo da história deve o aluno trazer esta noção: de que um homem não cria uma época, mas pode concentrá-la, sendo o realizador de uma aspiração10.

Esta longa citação fornece algumas pistas importantes para compreender o modo como Bomfim pensava na história, assim como permite identificar aspectos que o autor provavelmente valorizava na historiografia, base para a formulação de suas críticas posteriores sobre o assunto. Logo de início, o texto indica sua rejeição da história factual, baseada em nomes e datas e na crônica política e militar. Nas entrelinhas está a crítica da narrativa que não é capaz, no seu entender, de estabelecer uma seqüência coerente de acontecimentos, uma linha geral de evolução, que permita acessar causas e efeitos. Do que se conclui que o autor valorizava a didática de uma história teleológica. Mas o ponto central dessa passagem parece ser a referência ao papel dos indivíduos na história. Estes embora não criassem uma época, concentrariam elementos que ajudariam a compreendê-la.

Dessa rápida apresentação da atuação de Bomfim como educador, passemos àquela que motiva este trabalho: a atuação como crítico da historiografia, destacando que ambas não se encontram deslocadas uma da outra.

Em O Brasil na História, Bomfim analisou a questão da objetividade versus subjetividade, em relação ao trabalho do historiador. Ele propôs avaliar as implicações para a escrita da história da dupla exigência de neutralidade científica e comprometimento intelectual, através de uma reflexão sobre o lugar dos interesses e das paixões. A história do Brasil teria sido deturpada à negação dos interesses por parte dos historiadores em busca da imparcialidade.

No segundo capítulo — Deturpações e Insuficiências da História do Brasil — ele se ocupou do que considerava como sendo as razões da deturpação da história do Brasil: a influência da sociologia francesa (com destaque para o positivismo) e a ação de historiadores considerados antinacionalistas. A história do Brasil teria sido "deturpada" devido a uma causa externa e a uma série de causas internas. A primeira possuiria o efeito negativo de diminuir os valores nacionais, assim como restringir o critério dos historiadores oficiais. Quanto às causas internas, teriam pervertido a opinião pública corrente, negando o valor "dos que fizeram o Brasil", ou seja, daqueles que teriam sido os verdadeiros responsáveis pela afirmação da tradição.

Como causa externa da deturpação, ele aponta a "deficiência de critério histórico" para registrar as tradições nacionais, o que teria ocorrido devido à influência francesa. Considera que, por causa da facilidade da língua e da relativa proximidade de tradições, essa influência ter-se-ia feito presente, de modo negativo, na historiografia brasileira. Esta, assim orientada, acabou sendo induzida a erros de julgamento sobre a história do Brasil, pois que "o francês é um critério sempre falho no julgar os outros povos, sobretudo no mundo moderno". Dois aspectos dessa influência negativa são destacados e atacados. O primeiro aspecto é a pouca "plasticidade" do francês. De acordo com o autor, pouco plásticos — qualidade "que permite a cada povo, sem sair de sua tradição, fecundá-la no contato com outros povos" —, os franceses teriam perdido a visão das distâncias em relação aos outros (os estranhos), não tendo sido capazes de reconhecer a realidade, desde que esta não dissesse respeito às suas "coisas próprias". Diante do exótico, acusa-os de terem perdido toda a lógica em busca de efeitos pitorescos ou de estranheza, o que os teria tornado capazes das mais "ventrudas inverossimilhanças". Bomfim considerava os estudos franceses como caracterizados pela ausência de rigor científico, uma vez que apresentavam, segundo ele, um reduzido critério de observação e, conseqüentemente, uma pouca noção da realidade11. Critérios de observação seriam, portanto, necessários para um estudo rigorosamente científico, sendo que este deveria se basear nos métodos da biologia e, também, no conhecimento psicológico, que o autor considerava capaz de orientar, de modo objetivo, o estudo das subjetividades.

O segundo aspecto atacado é o positivismo da escola sociológica francesa. Para Bomfim, "apesar do nome, nada menos positivo do que essa construção", que faz da ordem a condição essencial da evolução. O autor critica a rigidez da obra de Comte (1798-1857), que considera incompatível com a "maleabilidade da vida". Tal rigidez seria expressa através de generalizações preconcebidas, que conduziriam a uma fórmula evolutiva: a lei dos três estados. O Positivismo seria, então:

A doutrina mais antipática e mais avessa à verdadeira humanização da espécie; doutrina sem ductibilidade para corresponder aos imprevistos e novos aspectos da evolução social, doutrina onde as qualidades gerais de uma mentalidade média dominaram o gênio do indivíduo, pervertendo-o, esterilizando-o no abuso das generalizações à outrance, e no exagero das fórmulas, tão nítidas quanto vazias. Essas qualidades formam uma ambiência, ou gênio coletivo a que se subordina toda atividade12.

Crítico das generalizações, não conseguia evitá-las quando, por exemplo, empregava aspectos localizados em alguns estudos para caracterizar o francês e seu olhar sobre a realidade. Mas ele criticava, principalmente, as generalizações que teriam contribuído para "erguer construções, para o total da humanidade, com induções havidas somente da história francesa", o que corresponderia a "minguar o Homem, para metê-lo num bolso de calça". O autor via como contribuição positiva dos franceses a luta pelas liberdades políticas; a herança intelectual dos enciclopedistas e das reivindicações revolucionárias. No entanto, observava que tais influências sobre "um país desamparado mentalmente, na degradação bragantina que o guiava" produzira, sobretudo, maus resultados: distorções dos julgamentos sobre a própria tradição brasileira, sem critérios de observação próprios. Devido à influência de tal fator externo, uma história deturpada teria sido produzida, orientada a partir de um "critério de empréstimo", "insuficiente" e incompatível com uma tradição genuinamente brasileira. Uma história consagradora de grandes personagens assim teria sido feita, desprezando aqueles que, segundo o autor, verdadeiramente teriam constituído a "gente do Brasil", e que seriam os legítimos responsáveis pelas tradições.

Quanto às causas internas da "deturpação" da história, é possível sintetizá-las em três procedimentos: 1) a negação ou camuflagem de interesses; 2) a "perversão" das fontes; 3) a redução da história à enunciação de fatos e à listagem de nomes. Para Manoel Bomfim, a história teria sido deturpada, inicialmente, através da negação dos interesses nada neutros do historiador. A depuração dos fatos, em busca da suposta verdade, equivaleria a percorrer a escrita da história sobre o referido fato identificando, antes de tudo, os interesses daqueles que a escreviam. Seria a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em primeiro lugar, situar o historiador em relação aos fatos e, em segundo, identificar as verdades ditas ou omitidas. O bom historiador seria aquele capaz de valorizar a tradição brasileira (sendo brasileiro ou não), enaltecendo-a de acordo com certo rigor investigativo. Também seria aquele capaz de reconhecer que a escrita da história era movida por interesses e paixões dos quais não era possível escapar, não valendo a pena tentar. Ou seja, o autor considerava a dificuldade, senão a impossibilidade de obter que os historiadores apreciassem e avaliassem as situações históricas de acordo com um critério absolutamente objetivo. Este somente poderia ser dado mediante a adoção de pontos de vista universais, representados pela idéia de humanidade, de progresso e de justiça, e não pela perspectiva nacional.

Como foi visto antes, Bomfim utilizava a noção de interesse como perspectiva de análise social. Procurava mostrar como a pretensão à neutralidade e objetividade da ciência era negada pelo emprego não explícito de analogias e metáforas. Quer dizer, criticava os procedimentos discursivos da ciência, observando que eles não eram assumidos como tal, sendo camuflados, naturalizados e legitimados como conclusões derivadas da observação e comprovação experimental. Contrariando a postura de ocultamento das práticas discursivas, dizia que "toda doutrina que se apóia sobre a observação, e se acorda com as leis gerais do universo, deve ser tida como verdadeira até prova do contrário". Tal prova não se daria somente através da experiência e da observação, mas também da explicitação — através dos procedimentos discursivos — do interesse por trás da prática científica.

A segunda causa da "deturpação" da história dizia respeito à "perversão" das fontes em que ela estaria baseada, sendo necessário que elas fossem reexaminadas. Contudo, sua história do Brasil fundamentava-se não na descoberta de filões documentais, mas na revisão historiográfica. Trata-se, portanto, de um autor que embora estivesse preocupado com o uso das fontes, não se dedicava à pesquisa arquivística e pouco utilizava documentação primária.

No início do século, a utilização de fontes primárias constituía um pressuposto importante para o trabalho do historiador, visto que prevalecia a história metódica, orientada pela crítica documental. Vigorava o "preconceito do inédito", que supunha a utilização de fontes arquivísticas, compreendidas como indícios seguros para uma informação correta e, conseqüentemente, para o estabelecimento da verdade histórica. Por trás desse preconceito haveria a suposição idealista de uma realidade preexistente imutável, à espera da correta identificação pelo investigador13. A afirmação da história como ciência, num momento em que as fronteiras disciplinares eram pouco definidas, passava, portanto, pelo estabelecimento de um conjunto documental a partir do qual seria possível construir o conhecimento histórico, definir o fazer historiográfico e, deste modo, a identidade do historiador como um tipo de especialista. Sendo assim, compreende-se — em parte — a não-inclusão de Manoel Bomfim entre aqueles que, naquele momento, se moviam no sentido de definir o campo historiográfico. Porém, é possível argumentar que a não-inclusão desse autor entre os historiadores, mais que indicar um tipo de falta no trabalho produzido por ele (falta que o excluía), indicaria a existência de diferentes discursos sobre o conhecimento e a prática historiográfica. Discursos que nem sempre estariam de acordo com aquele que lentamente se consolidava.

Bomfim esquivou-se da pesquisa documental (arquivística), optando por se dedicar à crítica da historiografia. Este discurso, todavia, não foi suficiente para incluí-lo entre aqueles que criticava — os "historiógrafos oficiais". O que em parte pode ser atribuído ao fato de que esse discurso possuía, como eixo norteador, a afirmação do interesse nada neutro por trás da prática de escrever a história. Ao optar pela crítica historiográfica, em vez do trabalho com fontes primárias, o autor procurou contrapor, de um lado, uma escrita da história considerada oficial; e de outro, as fontes em que essa se baseava. O objetivo era claro: desconstruir o discurso historiográfico minando-lhe as bases. Mostrar que a "deturpação" da história ocorria através do estudo que "pervertia" as fontes, porque — supunha o autor — não era capaz de "depurar" (filtrar) a tradição que tais fontes expressavam.

Quanto à terceira e última causa da "deturpação" da história — a redução da história à enunciação de fatos e à listagem de nomes —, referia-se à influência positivista associada à opção de escrever uma história "vista de cima". Manoel Bomfim se posicionou contra uma historiografia "oficializada", que se limitava a enunciar fatos, reduzindo a história à crônica política ou militar, expressa através da recitação de nomes e datas. Essa escrita da história valorizava personagens que, "inteiramente ilógicos; surgem como deuses, ou se movem como títeres, porque — ou não se destacam quase dos acontecimentos, ou são apresentados como a causa definitiva deles...". Pelo contrário, o estudo da história deveria desenvolver a noção de que "um homem não cria uma época, mas pode concentrá-la, sendo o realizador de uma aspiração"14. Ele sugeriu acreditar que uma das utilidades da história seria mostrar em que medida os indivíduos poderiam influir sobre a "marcha dos acontecimentos", e de que forma esses indivíduos seriam capazes de articular necessidades e aspirações gerais. A crítica à oposição entre indivíduo e sociedade está presente. O autor os observa como aspectos complementares dizendo que:

Indivíduo e sociedade, egoísmo e simpatia, organização e revolução..., combinam-se na realização da vida social, como em cada personalidade se combinam — hábito e iniciativa, conservação e reforma, consciente e inconsciente, aspiração de repouso e horror à monotonia, disciplina e exigência de liberdade..15

Tendo em mente a relação entre ciência e história, lembra que, se era da primeira que derivaria o progresso, seria nas páginas da segunda, quando se registrasse "sinceramente a verdade", que se encontrariam os "motivos de confiança coletiva" capazes de fundamentar o desenvolvimento social. Herdeiro de uma tradição iluminista, Bomfim concebia a história como orientadora, capaz de valer como "demonstração de mérito e capacidade de realização", que ele considerava como fundamentais para o progresso nacional. Também defendia a existência de uma humanidade universal, assim como de valores e objetivos considerados válidos para todos: a liberdade e a felicidade, por exemplo.

Ao produzir sua crítica historiográfica em plenos anos vinte do século passado, o autor apresentou um ponto de vista que correspondia a uma concepção clássica da história, em vias de ser ultrapassada. Sua preocupação em destacar os interesses e paixões por trás das práticas historiográficas ia de encontro à perspectiva de que a imparcialidade do historiador — pressuposto da moderna concepção de história — estaria articulada ao desvendamento de uma verdade empírica, através da aplicação de um método crítico na análise de fontes primárias. Como observa Angela de Castro Gomes, a moderna concepção de história buscava um critério de verdade afastado de pressupostos éticos e políticos, de modo a permitir a associação entre historiadores — compreendidos como produtores de bens culturais — sem a exigência de engajamento16. Contudo, entre os elementos valorizados por Bomfim como importantes para a boa escrita da história, encontra-se a objetividade e o "rigor investigativo" na busca da verdade; a imaginação e a segurança de conceitos; a erudição e a lógica; o senso crítico e o afastamento de preconceitos, além da arte, elegância e leveza da narrativa. Trata-se, portanto, de aspectos comuns à moderna concepção da história.

Pode-se concluir que a aplicação de ambas as concepções — a clássica e a moderna — precisa ser vista em relação à complexidade dos fenômenos experimentados durante as primeiras décadas do século XX, quando a busca de objetividade por parte de intelectuais e cientistas convivia com a demanda por uma atuação social e política engajada. Para compreender as representações de Bomfim sobre a história, torna-se necessário demarcar quanto as chamadas concepções clássica e moderna da história são construídas historicamente, a partir das experiências vividas e das demandas sociais, não podendo ser compreendidas como modos de pensar na história absolutamente estanques e impossíveis de serem associados.

 

BONS E MAUS HISTORIADORES

Considerando a crítica que fez aos historiadores do Brasil e acreditando que ela possa fornecer pistas para a compreensão do modo como ele pensou na história, proponho observar como estão representadas em seu texto as imagens do que identifico como sendo o bom e o mau historiador, vinculando-as às características de suas obras. Tal construção implicava ressaltar certos aspectos do historiador-alvo, omitindo outros tantos, de modo a elaborar uma imagem suficientemente ilustrativa, ou exemplar, para sua argumentação.

Ele criticou, entre outros com menos destaque, o trabalho de Gilbert Chinard — apresentado como mestre de conferências da Brown University, autor de L'Exotisme Americain (s/d) — passando rapidamente pela obra de dois professores de universidades belgas de tendências francesas — C. de Lannoy e H. Van-der Linder (Histoire de l'Expansion Coloniale des Peuples Europeans, 1907). E, finalmente, abordando A Terra e a Evolução Humana (1922), de Lucien Febvre (1878-1956), apresentado como professor da Universidade de Strasburgo. Observemos mais de perto suas críticas a esses autores, tendo em mente que elas podem contribuir para a compreensão da historiografia que Bomfim considerava ideal, demarcando-a, ainda que por oposição.

Gilbert Chinard — "uma bela inteligência francesa, dilatada por uma segura cultura norte-americana" — foi criticado porque, segundo Bomfim, além de dedicar páginas e páginas aos sucessos dos franceses no Brasil, incorrera em diversos erros: localizar o forte de Villegagnon ora na beira de um rio, ora no Maranhão; identificar Caramuru como "um rei com os seus súditos"; confundir a Flórida com o Brasil. Em suma, a crítica de Bomfim a Chinard resume-se na identificação de erros considerados como indícios de pouco critério científico e pouca noção da realidade, ou melhor, pouco rigor com as informações.

Quanto a Lannoy e Van-der Linder — "uma literatura rigorosamente objetiva, científica" —, o autor considerou-os alheios à história da colônia devido à afirmação de que "a colonização portuguesa [foi] antes de tudo costeira". E mais não disse, passando a uma obra que interpretou como sendo "mais ostensivamente científica": A Terra e a Evolução Humana, de Lucien Febvre, que "transuda ciência positiva". O único ponto de discordância em relação a Febvre diz respeito ao uso do meio ambiente como chave explicativa do social. No livro analisado, o historiador francês defendia a idéia de que o meio tropical seria um obstáculo definitivo à exploração humana, estando o Brasil condenado por "uma natureza vegetal sem sorrisos para o homem". Febvre serviu como exemplo da inexatidão dos franceses, que

Contam e julgam por preconceitos literatizados, a que subordinam a própria fantasia (...) Fechados em casa, os franceses como que perderam a capacidade de estender os olhos por outros horizontes, e são inacessíveis às outras realidades. Possuídos da manière, eles são inverossímeis, quando não puramente convencionais17.

Como foi dito anteriormente, a crítica aos estudos franceses sobre o Brasil pode ser resumida em três pontos interligados: um reduzido critério de observação, que resulta na pouca noção de realidade, indicativa da ausência de rigor científico. A exigência de rigor científico — relacionada ao ideal de objetividade e distanciamento que a concepção moderna de história exigia — fazia parte, portanto, das preocupações de Manoel Bomfim. Contudo, sua crítica foi pontual, não se estendendo de modo analítico sobre a história escrita por outros autores, mas sim sobre pontos considerados vagos ou errôneos. Pontos que servem para ilustrar sua própria argumentação, muito mais do que para consolidar um contradiscurso crítico. Apesar disso, ele se empenhou em criticar os historiadores do País (brasileiros e estrangeiros) e, mais especificamente, se opôs a um modelo historiográfico vigente durante o século XIX, cujo maior exemplo terá sido Varnhagen. No momento em que escreveu O Brasil na História, a obra de Varnhagen estava sendo retomada e submetida a leituras das mais diversas, entre as quais a de Manoel Bomfim, que segundo Arno Wehling, foi seu crítico mais radical18.

Mas além da preocupação com o rigor científico, o trabalho de articulação das informações através da narrativa parece-me importante para pensar no caso de Manoel Bomfim. No terceiro capítulo de O Brasil na História — intitulado "Os que fizeram a História do Brasil" —, o autor identifica parte da produção historiográfica brasileira que considera ilegítima, através de uma crítica aos historiadores que responsabiliza pela deturpação da história do País. Também apresenta, de modo sucinto, aqueles que considerava como os verdadeiros historiadores nacionais: frei Vicente do Salvador, Robert Southey, Capistrano de Abreu e João Ribeiro.

O principal alvo do seu ataque foi a história portuguesa do Brasil escrita por historiadores que Bomfim considerava como ilegítimos representantes da nação brasileira porque seriam legítimos representantes da Coroa portuguesa. Foi por isso que incidiu ferozmente sobre Rocha Pitta (1660-1738), o "digno súdito do trono bragantino"; Alves Nogueira (m.1913), o "pró-holandês"; e, sobretudo, Varnhagen, para quem reservou uma série de adjetivos injuriosos: "historiador mercenário"; o "menos humano dos homens"; "brasileiro de encomenda"; "sem bondade"; "patriotismo de convenção"; "deturpador da história do Brasil". "Historiadores por encomenda, opacos refratores, sem outro maior valor que o da distorção", teriam produzido, para ele, uma história sem grande preocupação com a crítica e a doutrina nacionalista. Teriam optado por valorizar a erudição escrevendo vastas histórias, desenvolvidas em pormenores que revelaram tão somente as

(...) futilidades desencabidas (sic), inertes, indigestas, próprias somente, para abafar, do passado, o que tenha valor (...). Tentam, com esse esforço erudito, encher o vazio de pensamento e a nulidade de lógica19.

Bomfim identificou a construção de um "ortodoxismo histórico" em correspondência com a política imperial. Ortodoxismo que consistia em "dar corpo a tudo que pudesse valer como prestígio para os que exploravam esta pátria, contrariando mesmo, explicitamente, a expressão dos seus legítimos sentimentos, velando as verdadeiras glórias da sua história". Para ele, Varnhagen teria sido, se não o primeiro, pelo menos o principal historiador a dar o Brasil à Casa portuguesa reinante. Teria valido como "escarafunchador de arquivos", mas esse mesmo valor ele o teria perdido ao apossar-se da história de frei Vicente do Salvador, "para torná-la coisa sua, e fazê-la nos interesses da sua ambição". Neste ponto, acusa-o de haver se apropriado da obra do frei sem citá-lo. Varnhagen aparece como exemplo máximo do mau historiador:

Historiador — grande historiador, não tinha nem a capacidade reconstrutora de Mommsem, nem o poder evocador de Thierry, ou a ciência estilizada de Taine, ou o tom humano de Michelet e Gibson (sic). Hirto, nos desvãos em que se meteu, sem pensamento para suster um passado, foi um panorama de cemitérios: fez obra de secador absorvente, e ressequiu os assuntos, ao mesmo tempo em que velava os documentos. Quando chega o momento de dar de si mesmo, quando não podia ser, apenas, inerte e opaco, encontramo-lo — o menos humano dos homens, brasileiro de encomenda, sem bondade, num patriotismo de convenção20.

A comparação de Varnhagen com Mommsen (1817-1903), Thierry (1795-1856), Taine (1828-1893), Michelet (1798-1874) e Gibbon (1737-1794) abre espaço para comentários sobre algumas das fontes nas quais Bomfim, provavelmente, encontrava inspiração para suas representações sobre a escrita da história e os historiadores. Tais fontes eram, sobretudo — como o trecho citado demonstra — historiadores do início do século XIX. Thierry, Michelet e Taine fizeram parte da geração de historiadores franceses que viveram um período marcado por paixões literárias e políticas. Ao recuperar em plena década de 1920, os nomes de historiadores da primeira metade do século XIX — momento marcado pela difusão de uma espécie de sensibilidade romântica — Manoel Bomfim apresentou alguns parâmetros para o trabalho a que se propunha ao escrever sua trilogia sobre o Brasil: "depurar" a história nacional, livrando-a do que considerava como entraves ou obstáculos ao pleno desenvolvimento da nacionalidade. Parte desse esforço de "depuração" pode ser percebido em O Brasil na História, mais especificamente no capítulo intitulado "O patriotismo brasileiro", quando o autor destaca a importância dos escritores e poetas românticos: Castro Alves (1847-1871), Álvares de Azevedo (1831-1852), Fagundes Varella (1841-1875), José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), tidos como os melhores representantes do País nas letras. Cabe ressaltar que não se pretende aqui classificar Manoel Bomfim como um autor romântico. Em vez disto, o que se procura é tentar compreendê-lo como um pensador dotado do que pode ser identificado como uma sensibilidade romântica, sendo que esta teria sido informada por suas leituras dos historiadores europeus e escritores brasileiros do início do século XIX.

Voltando à crítica de Bomfim ao visconde de Porto Seguro, considera-se que ela possa servir como uma espécie de chave para a compreensão de O Brasil na História, uma vez que grande parte deste livro dedica-se a atacar a perspectiva historiográfica de Varnhagen, através da utilização de argumentos extraídos do romantismo e do cientificismo. Bomfim escolheu a História da Independência (1916) como livro exemplar de Varnhagen. Observou que o fato de se tratar de um período curto, com fatos precisos, ter-lhe-ia permitido documentá-lo relativamente bem. Porém, destacou a obra do visconde — que considerava um "reacionário bragantista" — como deturpadora da história do Brasil, expressa num estilo "pesadão, deselegante, sem arte". Uma das temáticas favoritas de Bomfim parece ter sido justamente a história da Independência, configurada como uma simples transmissão de domínio "do rei ao imperador". Para ele, "adotamos o Estado português-bragantino, trazido com os fujões de 1808, e que, pulando sobre 1831-32, veio a ser a miserável e feia tradição política em que ainda vivemos". A perspectiva é de continuidade, restando ao historiador resgatar o legítimo movimento de independência ocorrido desde os primeiros tempos da colônia e que teria sido promovido por colonos, "portugueses de nascimento", mas "brasileiros em tudo mais".

Outro historiador alvo da crítica foi Pereira da Silva (1817-1897), no seu livro História da Fundação do Império Brasileiro (1864/1868). Para Bomfim, esse historiador teria seguido a trilha de Varnhagen ao escrever uma história cheia de "malevolências" sobre a Revolução Pernambucana de 1817. Além disso, não teria tido nenhum respeito pela verdade ao se dizer imparcial, construindo a versão de uma Revolução Pernambucana sem raízes, como resultado do imprevisto — o que, segundo Bomfim, contribuíra para a construção de uma história antibrasileira. A importância de criticar Pereira da Silva, um historiador que ele próprio considerava menor, deve-se ao fato de que seus muitos e espessos volumes teriam atingido um amplo público, para o qual não haveria outras obras que servissem como medida comparativa. Daí a necessidade de criticá-lo. No seu dizer, Varnhagen e Pereira da Silva fizeram escola, onde se destacariam Fernandes Pinheiro (1825-1876), Mecedo (sic) e Moreira de Azevedo (1832-1903), pobres de espírito, "legítimos continuadores desse historiar", que não possuiriam critérios históricos, substituindo-os por epítetos. E assim tais historiadores teriam construído uma narrativa pontuada por termos que desqualificariam personagens históricos, denegrindo-os sem explicação. Para Manoel Bomfim,

Foi nos esconderijos de tais histórias que desapareceram os grandes mártires e verdadeiros precursores da independência do Brasil, aqueles cuja existência, mesmo com a derrota em que se lhes tirou a vida, tornou impossível a submissão, ou ainda, a simples união do Brasil a Portugal (...)21.

O autor alegou que através da pena desses historiadores a história nacional fora escrita e deturpada, difamando os heroísmos genuinamente nacionais e consagrando aquilo a que esses se opunham: a política imperial. O "coro dos historiadores bragantinos" teria se ocupado em falsificar a história do Brasil, relegando a segundo plano os acontecimentos que para ele possuíam significado relevante no rol das tradições nacionais. Deste modo, a Insurreição Pernambucana teria sido esquecida; a unidade nacional, confirmada como resultado da independência promovida pela monarquia bragantina; e os bandeirantes paulistas, difamados.

Bomfim acreditava que, "contra a natureza, contra o espírito americano, contra a própria história" — portanto, contra as tradições nacionais — fora construída uma história do Brasil com o intuito de demonstrar que a nação deveria pertencer à dinastia que fizera a Independência. "Empreiteiros dessa história", os historiadores teriam deturpado ou esquecido qualidades essenciais do caráter brasileiro, "inventando vícios e crimes por conta da nação". No seu dizer, uma "história triste" assim foi feita, merecendo "exclamações de protestos, repugnâncias, cólera, motejo, repulsa..."; contudo, o intuito da crítica era destacar na historiografia (ou, nas "historiagens") os "hiatos, acasos, erudições chulas e elogios parvos" que constituíram efeitos antinacionais.

De acordo com o autor, os primeiros e legítimos historiadores do Brasil teriam sido dois: frei Vicente do Salvador e Robert Southey. Frei Vicente (c.1567-c.1636) escrevera a História da América Portuguesa (1627), considerada a "primeira e genuína história do Brasil", onde se encontraria "um testemunho de fé, em depoimento pitoresco e expressivo, insubstituível quanto ao que foi diretamente conhecido pelo autor", constituindo "a aurora da mentalidade brasileira e da história nacional...". Mas o primeiro crime da historiografia teria sido deixar desconhecida para o público nacional a obra que considerava como a primeira apresentação do Brasil ao mundo: a História do Brasil, do historiador inglês Robert Southey (1774-1843), publicada entre 1810 e 1822 na Inglaterra. Foi traduzida para o português e publicada em seis volumes em 1862, ou seja, após a publicação da História Geral do Brasil, de Varnhagen, lançada entre 1854 e 1857.

Southey — "nosso amigo", "historiador poeta", "grande coração" — era o exemplo máximo do bom historiador que, segundo Bomfim, o Brasil ainda não produzira. Considerava-o assim porque acreditava que, ao valorizar a história brasileira que "em nenhuma outra de Portugal é inferior", o inglês havia se orientado por um "critério de verdade". Ele identificou no historiador inglês a valorização da nação brasileira, aspecto que considera raro na historiografia que criticava e caro na que propunha. Valorizar a nação era, por si só, suficiente como um indício de verdade histórica. A depuração dos fatos, em busca da suposta verdade, equivaleria a percorrer a escrita da história identificando, antes de tudo, os interesses daqueles que a escreviam. Seria a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em primeiro lugar, situar o historiador em relação aos acontecimentos; e, em segundo, identificar verdades ditas ou omitidas. O bom historiador seria aquele que valorizasse a tradição brasileira (sendo brasileiro ou não), enaltecendo-a de acordo com certo rigor investigativo. Também seria aquele que fosse capaz de reconhecer que a escrita da história era movida por interesses e paixões dos quais não era possível escapar.

Outro tipo de historiador que mereceu sua crítica foi aquele que mesmo sem a pretensão da imparcialidade (impossível, conforme Bomfim), apoiava-se em alegadas competências e no peso de uma multiplicada produção para defender determinadas opiniões. Assim ele criticou Oliveira Lima (1867-1928) — autor de D. João VI (1909) e a História do reconhecimento do Império (1901). Considerou-o um bom exemplo dos "historificantes contemporâneos", que a título de objetivismo se sentiriam desobrigados da tarefa de alcançar a verdade histórica, desobrigados de assumir os interesses por trás da prática historiográfica.

Outro que não lhe escapou foi Euclides da Cunha. Mesmo reconhecendo o desenvolvido prestígio intelectual em torno de seu nome e predispondo-se a considerar seus conceitos com atenção, afirmou que ele abusara do seu "enorme e justo prestígio literário" para, a pretexto de resumir os antecedentes da República, recapitular a história bragantina até o ponto de relacioná-la com a unidade nacional brasileira.

Capistrano de Abreu e João Ribeiro representariam exceções dignas de destaque, pois "não se confundem na mentalidade dos clássicos deturpadores". O primeiro foi considerado por Bomfim como "um grande pensamento votado à história do Brasil, superior a doutrinas e a consagrações", que "timbra em ser apenas, um lúcido e incansável pesquisador, a organizar bom material para a verdadeira história do Brasil". Porém, Capistrano não foi poupado da observação de que, embora pudesse ter aceito ser o autor da "verdadeira história nacional", a "modéstia e um rigoroso objetivismo o tem afastado de tal tarefa". Disse a seu respeito:

Não que lhe falte horizonte de idéias, nem capacidade de generalização e segurança de conceitos, ou senso crítico, para estender o pensamento por toda a realidade do Brasil (...). No entanto, quem tenha tratado com esse puro espécime de homem de ciência — a sua ciência, guarda a convicção de que ele jamais se atirará a uma obra de conjunto, que tanta vez exige — afirmar por simples dedução, ou compor em imaginação, a projetar conceitos sem outro sustentáculo além da pura lógica. Pesquisador intransigente, prendeu-se ao regime mental do rigoroso objetivismo. Eis a significação da sua obra22.

Quanto a João Ribeiro (1860-1934) — "historiador por direito de magistério, historiador por direito, principalmente, de muito saber, na lucidez de um descortino seguro" — Bomfim destacou que preferiu limitar-se ao didaticismo escrevendo uma série de manuais. Apesar disso, "sua obra tem sido de boa orientação, lineada com coragem e precisão". Considerava-o como uma "inteligência ávida, perenemente incorporada à atividade do pensamento moderno" que,

Sob a máscara de displicência ou de impassibilidade, tem como característica mental o gosto pelas generalizações e o pendor pelas doutrinas. Dest'arte, rara será a conjuntura histórica em que ele não engaste uma teoria, muitas vezes original, ou, pelo menos, um julgamento pessoal, penetrante, apesar de quanta convencionice possa haver em contrário23.

Contudo, Ribeiro também não escapou de ser criticado. Apesar de ter seu valor reconhecido, foi acusado de "na rapidez de páginas exíguas, as generalizações e as doutrinas lhe dão um caráter esquemático que, algumas vezes, aproveita a preconceitos em que se amparam os que deturpam a história nacional". Bomfim criticou suas afirmações de que "mesmo hoje, se não fora a monarquia, a Independência seria um problema insolúvel" e que "sem os exaltados, é impossível fazer revoluções e, com eles, é impossível governar",24 retrucando com os exemplos da Inglaterra, em 1645, da França em 1789 e da Rússia de 1917.

Escrevendo sobre a história em momentos distintos, no contexto de 1903-1905 e no de 1925-1931, Bomfim discordava das explicações vigentes sobre o atraso do País. Nos dois períodos, tais explicações relacionavam como razões do atraso: a fatalidade do passado colonial e os determinismos naturais — traduzidos pelo meio (não tão ressaltado no segundo momento) e pela raça. Bomfim, no entanto, seguiu outro caminho ao privilegiar os conteúdos históricos. Na concepção deste "pensador da história", os problemas sociais, os "males" da nação brasileira originaram-se das relações históricas que aqui se desenvolveram e cuja compreensão só poderia ser alcançada pelo conhecimento da história. Tal conhecimento teria adquirido, em seu pensamento, os contornos e conteúdos de uma consciência histórica — à medida que à historiografia caberia registrar e consolidar aspectos do passado capazes de construir um sentido para o futuro.

O autor escreveu O Brasil na História num momento em que havia a percepção de que a história estaria por ser feita. Essa perspectiva ajuda a entender sua crítica a Capistrano de Abreu e a João Ribeiro — tidos por ele como dois dos mais aptos historiadores de sua época — mas que ainda não teriam realizado a "verdadeira história do Brasil". O primeiro devido a um "rigoroso objetivismo", que o teria impedido de fazer uma "obra de conjunto". E o segundo, devido às generalizações e às doutrinas, que o teriam conduzido a uma interpretação esquemática, pouco atenta às especificidades locais.

Pode-se concluir, então, que o bom historiador também estaria por ser feito, e para tanto seria preciso critério histórico orientado pela objetividade e pelo "rigor investigativo" na busca da verdade. Além disso, precisaria desenvolver a capacidade de assumir posicionamentos claros em relação ao fazer historiográfico, ou seja, a capacidade de explicitar interesses e paixões, além de ampliar o horizonte de idéias. A bondade e a humanidade seriam favoráveis, assim como a erudição, desde que posta a serviço da valorização da história brasileira. A erudição pela erudição não lhe interessava, pois escrever a história teria um único sentido: resgatar as tradições e enaltecer os valores nacionais de modo a situar o Brasil, com suas particularidades, no âmbito de uma história geral. Dizia Bomfim que para nada serviria uma escrita que só provocasse "indigestão de erudição para mostrar: como arrotavam os Etruscos, e a que horas se benzia Camarão..."25. A lógica, a capacidade de escarafunchar arquivos e organizar material (fontes) para a escrita da história também seriam bem-vindas, assim como a "capacidade reconstrutora", que em termos de narrativa exigiria o que o autor denominava de "poder evocador". Este último estaria relacionado ao estilo, caracterizado pela arte, elegância e leveza da narrativa, que também deveria possuir um "tom humano". A segurança de conceitos é valorizada como importante, assim como o senso crítico. A superioridade em relação a doutrinas e consagrações poderia ser um valoroso atributo, da mesma forma que a ausência de preconceitos. Por fim, a confiança no próprio mérito e na importância da tarefa a cumprir — sinais de consciência das tradições — complementariam aquilo que foi identificado aqui como o historiador ideal, segundo Manoel Bomfim.

Esta espécie de receita para o bom historiador não se encontra sintetizada desta forma em seus textos. Trata-se de uma interpretação baseada na identificação dos pressupostos para a boa historiografia, recolhidos nos três primeiros capítulos de O Brasil na História. Considera-se que a história tenha sido pensada por Bomfim de modo a avaliar o fazer dos historiadores a partir de seu produto: o texto histórico. Mais do que qualquer instituição concreta, a história seria a depositária dos "desejos" e das "realizações", através dos tempos e das classes sociais. Tais "desejos" e "realizações" representariam, para o autor, um estímulo à consciência — considerada fundamental para a afirmação do passado e implementação do futuro. O papel da história seria construir a consciência da nação sobre si mesma, a partir dos fatos coligidos e interpretados. Por isso ela deveria ser: "sincera, purificada, vivaz, exata... capaz de orientar, estimular e defender o desenvolvimento nacional de que participamos, e que se torna cada vez mais consciente nas aspirações comuns"26.

Diante desse papel atribuído à história, Bomfim refletiu sobre as possibilidades de uma história universal, considerando que bastaria justapor as histórias nacionais para se obter a total historificação dos povos. Tal procedimento somatório produziria o que o autor considerava como uma "verdadeira monstruosidade, visto que as histórias parciais não se completam, nem coincidem — nos limites de umas com as outras". Este uso da história teria permitido que alguns povos — considerados de grande prestígio intelectual e político e para afirmação desse mesmo prestígio — elaborassem uma história universal como complemento da nacional, organizando-a de modo a constituir um fundo onde se destacaria a história das nações mais poderosas. Resultaria, finalmente, na existência de várias histórias universais, conforme a predominância de grandes tradições nacionais, que assim apareceriam como centros de gravitação das outras tradições27.

O autor compreende que uma "história geral da humanidade" deveria ser uma "obra de socialização humana, preparadora da inteira solidariedade da espécie: a conquista completa do planeta, e a aproximação da humanidade, mediante o relacionamento das suas diferentes partes". Ele diferia, portanto, da perspectiva das histórias universais européias, por considerá-las como estando submetidas aos interesses de cada nacionalidade.

Pode-se afirmar que Bomfim deslocou o eixo de abordagem do ponto de vista da história nacional, inserida e determinante da história universal, para uma compreensão de tais histórias nacionais em suas particularidades. Essas histórias constituiriam uma história geral não submetida aos desígnios nacionais, mas capaz de incluí-los e relacioná-los a partir de valores que seriam — ou deveriam ser, para ele — comuns à humanidade. Consoante o autor, as histórias universais constituiriam um "alegado de fatos banais" sendo necessário tornar evidente a deturpação constante da história — "ora podada, ora exagerada, segundo convém às tradições dominantes" — com o objetivo de valorizar sucessos exclusivos de determinadas nações, sem maior preocupação com a evolução geral da humanidade. Ele identificou como "egocêntrica" a história escrita "no critério de quem a faz", correspondendo ao que cada grupo via e compreendia de si para si, deturpando aspectos da sua própria tradição, contribuindo para a degeneração do próprio grupo nacional. Na escrita dessa história "egocêntrica" a escolha seria tudo. Daí a importância de investigar as circunstâncias em que se fazia — fazer que deturpava ou enaltecia — a história nacional, a fim de inseri-la na "história geral da humanidade".

Bomfim acreditava que o valor geral da história seria deturpado na medida do valor que cada historiador atribuísse ao seu povo em relação a uma "escala da civilização". Deste modo, a história ficaria a serviço das civilizações que, num determinado momento, apresentassem um maior "valor ativo de contribuições" na escala da evolução humana; valor que nada mais seria que uma diferença de poder. Ou seja, as histórias construídas sob medida para determinadas nações fundamentar-se-iam no ponto de vista exclusivo dessas mesmas nações. "Mentira verificada, mas, consentida, e aplicada no valor de exatidão" — assim o autor considerava as histórias construídas sob o "julgamento francês" ou a "presunção germânica", em detrimento daquelas que seriam escritas por outros povos. Nada mais difícil, segundo ele, do que achar o limite justo entre "povos grandes" e "pequenos", "fortes e fracos". Contudo,

Os mais poderosos abusando da superioridade relativa, desnaturam a situação, atribuem a si mesmos toda a força, e dividem as nações em — grandes e pequenas. No domínio da história, elas ainda procedem mais desafrontadamente, que não há meio de pedir contas do abuso de prestígio. Nem, mesmo, devemos estranhar que seja assim28.

Ao mesmo tempo, Bomfim ressaltou a importância da subjetividade do historiador, que imbuído de valores advindos da tradição que o inspirava, deveria ser capaz de apreciar e registrar os valores morais e mentais de um povo, utilizando como medida sua própria consciência e tradição. Para ele, "pretender, no caso, o efetivo objetivismo, é pretender que o indivíduo saia de si mesmo, que se dispense todo um critério de julgamento, como o de visar fora de qualquer horizonte". Em suas palavras,

A história nos responde (...) no critério de quem a faz, pois que, de fato, cada grupo vê e compreende a civilização de si para si, e deturpa os apreços gerais, como nas consciências se deturpa a noção de próprio valor pessoal (...). E aí está — a escolha, que é tudo. Verificadas as condições em que se faz a história para o uso universal, cabe a cada povo defender a própria história, num esforço que deve ser proporcional ao valor aparente das histórias deturpadoras29.

Seria verificando as falsidades e distorções históricas que seria possível adquirir a "liberdade de espírito" necessária "para elevar o julgamento por sobre preconceitos, e estimar, das histórias contadas, o que merece estima e apreço". Tal programa se imporia como condição essencial para os povos/nações "humildes", vale dizer, aqueles cujas tradições se encontrassem extremamente deturpadas (caso do Brasil). Somente assim tais povos/nações "poderão verificar conscientemente o valor da sua tradição nacional, proclamá-la desassombradamente, e tirar dessa mesma tradição indicações e estímulos, para a sua plena expansão". Bomfim argumentou sobre os usos e funções da história, não apenas apontando sua importância como registro das tradições que configuram o caráter nacional, mas criticando a história universalizante, além de chamar a atenção para a existência de interesses individuais (subjetivos) e políticos no fazer historiográfico.

O caso de Manoel Bomfim, um autor que não fazia parte do "pequeno mundo dos historiadores" — demarcado por atividades docentes, exercício do jornalismo e, sobretudo, pesquisas em arquivos — ajuda a compreender algumas das idéias sobre como, por quê e por quem a história deveria ser escrita. Também ajuda a avaliar a existência, em um mesmo período, de diferentes percepções do trabalho historiográfico e, conseqüentemente, de diferentes usos da história. As interpretações do autor a respeito da história, da historiografia e dos historiadores de seu tempo não podem ser separadas de suas representações sobre o fazer político. Esta associação é que permite analisar sua atitude crítica, assim como possibilita recuperar a função que era atribuída à escrita da história, em seus textos. Em sua época, a historiografia e os historiadores eram avaliados em meio à tensão entre uma ciência que se queria neutra e imparcial e interesses particularistas; entre a demanda por uma concepção moderna de história — fundada na crítica dos documentos, da memória e da tradição — e as constantes exigências de posicionamento intelectual, em defesa da nação. Para Bomfim, escrever a história era uma tarefa ao mesmo tempo científica — sendo que o autor rejeitava a idéia de uma ciência neutra e imparcial — e patriótica, sendo que o compromisso com a verdade histórica identificava-se com o compromisso com a nação.

 

NOTAS

* Este artigo é uma versão de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado, que tem o mesmo título, defendida na UFF, em dezembro de 2001. A pesquisa teve apoio do CNPq, no primeiro ano, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), na etapa final.

1 BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930, p.139.        [ Links ]

2 Idem, A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p..329.

3 Idem,, pp. 35-6.

4 SÜSSEKIND, Flora e VENTURA, Roberto. História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, 1981, pp.12-5.        [ Links ]

5 DE LUCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: UNESP, 1999, pp.86-7;         [ Links ] ver também OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.        [ Links ]

6 HANSEN, Patrícia Santos. Feições & fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000.        [ Links ]

7 LIMA, Luiz Costa. "A crítica literária na cultura brasileira no século XIX". In: _____. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, pp.. 30-55.        [ Links ]

8 Segundo André Pereira Botelho, a idéia de uma reforma social como resultado da ação educativa permitiu a Bomfim ultrapassar uma explicação biológica da sociedade e construir outra, de ordem histórico-cultural, através da qual o autor pôde enfatizar a possibilidade de mudança histórica. BOTELHO, André Pereira. O batismo da instrução: atraso, educação e modernidade em Manoel Bomfim. Campinas, SP: UNICAMP/Dep. de Sociologia, dissertação de mestrado, 1997, pp. 71 e 74-5.        [ Links ]

9 BOMFIM apud SILVA, José Maria de Oliveira. Da educação à revolução: radicalismo republicano em Manoel Bomfim. São Paulo: USP/Departamento de História, 1990, dissertação de mestrado, p..23.        [ Links ]

10 BOMFIM apud ALVES FILHO, Aluízio. Pensamento político no Brasil — Manoel Bomfim: um ensaísta esquecido. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979, p.42.        [ Links ]

11 BOMFIM, O Brasil na História.... op.cit., pp..56 e 63-68.

12 Idem, pp. 64-5.

13 WEHLING, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.153.        [ Links ]

14 BOMFIM apud ALVES FILHO. Op. cit., p.42.

15 BOMFIM, O Brasil na História..., Op. cit., p.172.

16 GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996.        [ Links ]

17 BOMFIM, O Brasil na História... Op. cit., pp.62-3.

18 WEHLING. Op. cit., p.205.

19 BOMFIM, O Brasil na História..., op. cit., pp. 111 e 120.

20 Idem, pp.122 e 132.

21 Idem, p.132.

22 Idem, p. 137, nota 1.

23 Idem, p. 137.

24 RIBEIRO apud BOMFIM, pp. 137-8.

25 BOMFIM, idem, p.53.

26 Idem, pp. 37-8.

27 Idem, p. 39.

28 Idem, pp. 39-40.

29 Idem, pp. 41-2.

 

 

Artigo recebido em 2/2003
Aprovado em 4/2003