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Novos Estudos - CEBRAP - Preciosidades enterradas

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Novos Estudos - CEBRAP

Print version ISSN 0101-3300

Novos estud. - CEBRAP  no.75 São Paulo July 2006

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000200015 

CRÍTICA

 

Preciosidades enterradas

 

 

Rodrigo Lacerda

Escritor e editor, é doutor em Teoria Literária pela USP

 

 

Contos de Pedro, de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Um menino órfão, que vagava pelo Rio de Janeiro. Vivendo sem garantia de nada, sequer de casa e comida. De herança, recebera apenas a rua para andar. Então ele criou uma técnica.

Nas praias, muito brancas e extensas, a areia cobre, com seu movimento disseminado e imperceptível, pequenos valores ao longo de um dia cheio; relógios, pulseiras, anéis, brincos, moedas, coisas assim. Fica tudo lá, ao alcance da mão. Mas não é qualquer um que aprende a enxergar os pequenos brilhos escondidos.

Pois ele aprendeu. Às vezes, caminha pela areia, examinando-a ao comprido. Outras vezes, enquanto bóia no mar, de costas para o horizonte, encara-a de frente. Ao contrário da multidão barulhenta, ele não se deixa enganar. Seu olhar, extremamente atento, segue as instruções minuciosas de sua sensibilidade apurada. Pode parecer que está perdido, quando todos se encontram na algaravia da praia cheia. Ou que está condenado a morrer sozinho, quando finalmente a praia fica deserta. Mas, graças à técnica que inventou, ele enxerga os pequenos valores encobertos na areia, e deles tira sua sobrevivência.

Essa é a história de um dos personagens de Barco a seco, romance que Rubens Figueiredo publicou e teve premiado em 2001. Agora, no recém-lançado Contos de Pedro, ela continua ecoando, incessantemente, a ponto de, reforçada por alguns dos contos novos, se transformar em metáfora de todo o seu projeto literário.

Isto fica evidente já no título do livro. Em suas nove histórias, o protagonista se chama Pedro. O nome comum, quase banal, assim aplicado a nove personagens diferentes, é como uma camada de areia recobrindo os segredos, os valiosos traços de humanidade que os diferenciam, e que um olhar paciente, atento, precisa desvendar. O nome disfarça as individualidades. Da mesma forma, na literatura de Rubens, a realidade não se deixa capturar inteiramente pelas palavras.

E isso tem várias conseqüências.

Dos nove contos, em apenas um o protagonista narra sua própria história. O discurso direto, a narrativa em primeira pessoa, em que o narrador se revela por iniciativa também própria, quase inexiste no livro. E há apenas uma única outra narrativa feita por "alguém de dentro". Mesmo assim, neste caso, há dois protagonistas, o que narra e o que provoca neste narrador o impulso de fazê-lo. É o quanto basta para bifurcar o ponto de vista e evitar confissões diretas.

Por sinal, nos livros de Rubens, não é raro que personagens de comportamento misterioso e fugidio capturem a curiosidade de outros a ponto de transformá-los em narradores. Tal dinâmica já estava presente em contos, por exemplo, de As palavras secretas, livro publicado, e também premiado, em 1998, e cujo título expressa bem este desejo simultâneo e contraditório de esconder e instigar a curiosidade, equivalente ao de igualar e individualizar.

Nos outros sete Contos de Pedro, uma narrador distanciado vai como que sentindo a areia em busca das preciosidades enterradas. Seu faro para os elementos recobertos nos diversos personagens faz com que a substância primordial dos contos esteja na análise psicológica que empreende. O enredo brota da subjetividade dos protagonistas, e não o contrário. Ora porque se constrói a partir de fatos verdadeiramente pequenos e corriqueiros, ora porque os grandes fatos são transformados em matéria reflexiva.

Uma coisa, porém, é certa: não deve haver onisciência, nem por parte do narrador, nem do leitor, e talvez nem do próprio autor. Os contos, muitas vezes, têm um ar enigmático, que deixa significados difusos pairando no ar. Algumas de suas metáforas continuam vibrando após a leitura, exigindo mais do que a compreensão do leitor, exigindo a sua resignação. O motivo de ser da arte de Rubens Figueiredo não é o fim da busca pelas preciosidades escondidas. É a busca em si.

Diante disso, torna-se indispensável ou que seus protagonistas tenham um imenso potencial de elaboração interior; ou então que sejam gradativamente adensados por reflexos simbólicos atuando sobre eles. De preferência, as duas coisas.

Rubens atua nessa dupla frente de maneira hábil e democrática, visto que seus protagonistas inserem-se em diferentes classes sociais, inclusive nas mais humildes. As reflexões mais "sofisticadas" soam espontâneas nas cabeças mais simples. Isto graças a três fatores: o caráter essencial, existencial, "humano", destas reflexões; o poder que o autor demonstra de conferir individualidade às suas manifestações; e, finalmente, graças à escolha adequada dos termos com que são expressas. Afinal, para a essência do projeto se cumprir, também no campo semântico Rubens precisa de palavras simples, que possam ir além do que dizem.

Um exemplo deste personagem humilde, pessoalmente simplório, mas com poder de catalizar um universo simbólico, assim ganhando densidade própria, é Pedro, o porteiro do conto de abertura do livro, "O dente de ouro". O homem se constrói por entre ecos bíblicos. A começar pelo seu nome e por sua profissão. Mas também por seu desejo profundo de comunhão, por sua inocência, sua crença no semelhante, por suas condições de vida monásticas, seu respeito pelas coisas do mundo – a "cautela diante de uma garrafa plástica cheia de água sanitária", que "era da mesma natureza do temor que lhe inspirava o morador mal-encarado do oitavo andar" –, por seu culto às igrejas televisivas, pelos hinos que escrevia, por sua identificação com o cordeiro de Deus, e até pelas inúmeras evocações da serpente que inspirou o pecado capital, quando, por exemplo, são mencionadas as "cobras enroladas" nos galhos de uma árvore, ou a "pele vazia, despida por inteiro", e a "forma de serpentes em muda, que deixavam para trás, suspensa no espaço, a pele vazia, a casca de escamas translúcidas".

Além do desafio que é, com verossimilhança, dar profundidade literária a personagens extremamente humildes, o fato de muitos dos protagonistas deste livro habitarem as camadas sociais menos aparentes implicaria o risco de um certo maniqueísmo barato. Mas Rubens evita-o com elegância. Morem seus personagens em quartinhos no sub-solo dos edifícios da Zona Sul carioca, ou nas periferias mais sórdidas, onde as ruas são locais de desova e as casas são palafitas; não há, nos textos, a intenção explícita de fazer denúncia social, nem mesmo de provocar um efeito imediato de revolta, ou repulsa. A realidade não deve ser descrita de forma a chocar. O que se quer é que o leitor sinta a humanidade dos personagens pulsando por baixo das circunstâncias.

O sofisticado projeto literário que rege Contos de Pedro não pára por aí. Sua atenção voltada para as preciosidades subjetivas que estão encobertas tem ainda outras conseqüências.

O leitor não encontrará aqui uma narrativa em ritmo de aventura. A ficção de Rubens, no geral, não gira em alta velocidade, assim como, em geral, não explora a violência, mesmo em cenas que serviriam perfeitamente para que se obtivesse efeitos dessa ordem, tão ao gosto do público e tão verossímeis nesse mundo periférico e marginalizado em que está situada a maioria de seus contos. Isso fica evidente, por exemplo, em "O nome que falta". Neste, a mira infra-vermelha de um rifle começa a lamber o corpo do protagonista na página 81, e os tiros só partem na 86. A dúvida quanto à sua eficácia também é elaborada e prolongada ao máximo. O autor opta por esfumaçar e estender a ação, até transformar o tempo do tiro numa cena em câmera lenta, até transformar o susto em suspense.

Essa estratégia de prolongamento da ação é possível, em parte, porque a seqüência narrativa vai e volta no tempo. Mas esse recurso, muito comum, não é o que distingue, primordialmente, o método de composição de Rubens.

Seria até compreensível se esta tendência a prolongar a narrativa decorresse da incrível fartura de belas imagens que o leitor encontra nos textos: "o grão negro de um abutre revelava distâncias que um minuto antes não se imaginava existirem", "dezenas de pessoas encostavam no balcão para mastigar as empadas. Cada um equilibrava sua jóia quebradiça entre os dedos", "e o pulso estala à toa por dentro feito caco de vidro", "uma espécie de coração se remexia também lá dentro. Parecia rolar até perto da superfície do céu e logo depois fugia para o fundo outra vez – os movimentos de um ovo dentro de uma sopa de fervura". A lista de exemplos poderia se estender quase indefinidamente; melhor deixar que os leitores completem-na por sua conta.

Mas também não é pela "simples" abundância de inspiradas formulações literárias, como as acima citadas, que se explica a ligação entre sua necessidade de prolongamento da ação e o intuito deliberado de disfarçar, de recobrir o sentido de tudo.

O que, em última instância, confere ao projeto literário de Rubens um peso especial, uma densidade rara na literatura brasileira contemporânea, e lhe possibilita prolongar a ação segundo sua conveniência, é o fato de o repertório de metáforas utilizado para cada história – reforçando a subjetividade dos personagens – ser apenas o ponto de partida para a superposição de várias camadas de significados. Como se para cada conto ele montasse um elenco de símbolos, de leitmotifs, que se repetem, mas a cada vez ligeiramente modificados. O significado, de início claro, vai se tornando complexo, envolto numa sucessão de outras interpretações de si mesmo. E o autor precisa espaçar essas ocorrências, para que tenham o efeito desejado. Daí o andamento vagaroso e o prolongamento da ação. Eles são necessários para que os significados se misturem e flutuem, com maior potencial de sugestão. Enquanto flutuam, a ação pode até se arrastar, no limite pode até inexistir, pois o encadeamento das metáforas resulta num outro tipo de enredo. Ao final, o leitor não deve ter compreensão exata, estática, dos leitmotifs.

"O nome que falta", o melhor conto do livro, é novamente um excelente exemplo. Nele, Pedro é um jovem imigrante, favelado na metrópole, que ao sair de madrugada para jogar seu saquinho de lixo na caçamba mais próxima, e assim diferenciar-se da imundície geral, percebe um facho de luz vermelho e brilhante apontado para o seu corpo. No tempo longo da cena – cheia de idas e vindas cronológicas, na qual a presença sonolenta de um cachorro é uma inspirada marcação da própria passagem do tempo –, a literatura movediça de Rubens Figueiredo superpõe sucessivamente determinado conjunto de metáforas.

A luz da mira infra-vermelha é sobreposta à luz dos objetos brilhantes e coloridos que Pedro, em seu trabalho de faxineiro de churrascaria, costuma resgatar dos sacos de lixo. Uma bola quebrada de árvore de Natal, um caco de cinzeiro de vidro colorido, metros de fio com pequenas lâmpadas de Natal, são seus tesouros, que neste caso não vêm da areia da praia, vêm do lixo. Mas os sacos de lixo, não contêm apenas lixo. São os mesmos sacos que embrulham os cadáveres tão freqüentemente abandonados na favela onde mora. Mas os corpos que não são reclamados também são jogados fora como lixo, numa nova sobreposição de significados. E o pequeno saco de lixo que o protagonista carrega em direção à caçamba, cujo nome está repuxado e ilegível pelo nó das alças, está furado e deixa escorrer um caldo malcheiroso, assim como do faxineiro escorrerá o sangue caso os tiros prometidos pela mira vermelha rasguem sua pele. E Pedro, quando está em casa, faz suas necessidades em sacos plásticos, transformando-os em sacos de lixo. E os objetos brilhantes que o faxineiro tira do lixo são feito mortos que ele ressuscita, fachos de luz colorida e viva com os quais se tranca no escuro para fazê-los dançar pela casa, povoando-a e tornando-a um espaço distante da brutalidade, a seu modo também um espaço de comunhão. E homens e lixo são a mesma coisa, desde que estejam dentro dos sacos pretos ou brilhando no escuro. E os olhos petrificados da menina que, durante um tiroteio, irrompe pela casa do faxineiro e se joga no chão, são brilhos que ele também não consegue esquecer. E os estampidos ecoam nas balas, e as balas, nas luzes, as luzes, nos brilhos, e os vivos, nos mortos, num acúmulo impressionante de significados. A sensação de Pedro de que sua coleção de objetos brilhantes não estava completa acaba quando o saco de lixo que ele havia atirado na caçamba rola e revela um cadáver. O ciclo entre a vida e a morte se fecha no dia em que ele vê um brilho de ouro na caçamba, e de lá retira uma bala, uma bala com seu nome nela, o que faltava, como no saco de lixo.

"O que quer um morto?", pergunta o faxineiro em vários momentos, e a cada momento a resposta muda.

Seria exagero dizer que todas as histórias em Contos de Pedro têm um repertório simbólico tão poderoso e coeso. Parece haver, sobretudo no terço final do livro, uma certa queda de tensão. Mesmo assim, o projeto literário de Rubens Figueiredo é tão sofisticado, no melhor sentido do termo, tão finamente executado, que este novo livro deve repetir o destino dos últimos dois, merecidamente, e acabar premiado.