História, Ciências, Saúde-Manguinhos
Print version ISSN 0104-5970
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.6 no.2 Rio de Janeiro July/Oct. 1999
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59701999000300005
História da descoberta da Biomphalaria occidentalis Paraense, 1981 History of the discovery of Biomphalaria occidentalis Paraense, 1981
Este artigo faz parte da tese de doutoramento em saúde pública Biologia básica e saúde pública: evolução do conhecimento dos planorbídeos neotropicais, parcialmente financiada pelo CNPq.
Laïs Clark Lima Pesquisadora associada do Centro de
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Este artigo tem como objetivo reconstruir o processo de descoberta da Biomphalaria occidentalis Paraense, 1981 molusco de água doce pertencente à família Planorbidae. Pretende-se seguir o percurso de produção de conhecimento desenvolvido pelo dr. Wladimir Lobato Paraense1 pesquisador em malacologia e responsável por essa descoberta , demonstrando como a interveniência tanto de fatores sociais, políticos e biológicos, como de decisões circunstanciais referidas à história de vida e a um percurso individual de pesquisa, se concatenaram. A descoberta da Biomphalaria occidentalis reveste-se de importância fundamental, uma vez que entre as bionfalárias são encontrados os transmissores ou hospedeiros intermediários do trematódeo Schistosoma mansoni Sambon, 1907, parasita do sistema sangüíneo e causador da helmintose ou verminose denominada esquistossomose mansoni. Essa verminose, segundo cálculos conservadores, atinge oito milhões de pessoas no Brasil, onde podem ser encontradas as seguintes espécies vetoras do S. mansoni: Biomphalaria glabrata (Say, 1818); B. tenagophila (Orbigny, 1835) de concha idêntica à da B. occidentalis ; e B. straminea (Dunker, 1848); sem considerarmos a B. peregrina (Orbigny, 1835) e a B. amazonica Paraense, 1966, que, por serem suscetíveis ao referido trematódeo em infecções experimentais, podem ser consideradas hospedeiras em potencial do verme (Souza e Lima, 1997). A reconstrução da história dessa descoberta tenta superar a tradicional dicotomia entre externalismo e internalismo, ou seja, o "contexto de descoberta" e o de "justificação" (Reichenbach apud Gadelha, 1995, p. 3) ou, ainda, o processo pelo qual se chega à descoberta versus o processo de validação da mesma, face às teorias que lhe dão suporte e ao conhecimento científico da época. O conceito de espécie A definição de espécie é de fundamental importância quando se trata da sistemática dos seres vivos, uma vez que, por se basear em diferentes aspectos, é um conceito multidisciplinar, concernente a várias disciplinas, tais como: genética, ecologia, etologia, fisiologia, paleontologia, biogeografia, bioquímica, morfologia e outras. A opção teórico-metodológica multidisciplinar justifica-se, por um lado, pelo consenso já desenvolvido no meio científico de que os tão usados critérios morfológicos, quando isolados, não são uma prova, mas sinal do processo evolucionário de especiação (Descimon, 1977), ou, conforme Baker e Allen (1975, p. 506): "Nenhum critério único é suficiente para definir uma espécie." Por outro lado, justifica-se também pelo entendimento que alguns cientistas têm, de acordo com Wiley (1978), de que o conceito adotado pelo investigador influenciará sua percepção do processo de origem da espécie. Para que as modificações surgidas no seio de uma subpopulação possam ficar retidas como parte integrante do seu patrimônio genético particular, é preciso que a sua absorção por outras populações seja impedida pelo isolamento geográfico. Eis o componente geográfico da especiação. Tais modificações só poderão ser incorporadas ao patrimônio genético da subpopulação se possuírem valor seletivo ou adaptativo, pois do contrário sofrerão os efeitos da pressão de seleção. Eis o componente ecológico da especiação. Finalmente, entre as modificações assim acumuladas através do isolamento e da seleção, figuram aquelas que afetam a estrutura genética a ponto de tornarem incompatíveis os sistemas genéticos de duas subpopulações irmãs. Eis o componente genético da especiação (Paraense, 1957). Existem três tipos de sistemata (Mayr, 1976): os que trabalham com a taxionomia alfa, que enfatiza a descrição da espécie e sua inclusão no gênero cabível; os que empregam a taxionomia beta, trabalhando as relações mais cuidadosamente no âmbito da espécie; e aqueles que utilizam a taxionomia gama, trabalhando as variações intraespecíficas multidisciplinarmente. As obras de construção da represa de Itaipu,2 iniciadas em meados de 1975 e, desde então, causadoras de impactos sociais, econômicos e sanitários, devido à imensa intervenção sobre o ambiente, fizeram com que a cidade de Guaíra (PR) se tornasse o centro de confluência dos imigrantes que iam trabalhar nessa área. Operários ali chegavam, de toda parte, à procura de serviço. Nos acampamentos, eles iam sendo selecionados e mandados para o canteiro de obras. Funcionários da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) faziam exames nesse pessoal para detectar os que estavam aptos a enfrentar um trabalho pesado. Um alto índice de esquistossomose mansoni apareceu nos exames de fezes. Como ali havia grande quantidade de planorbídeos, o ministro da Saúde, dr. Paulo Machado, ficou preocupado com a possibilidade de introdução dessa doença no oeste do Paraná. Tanto quanto estou informado, o primeiro registro da B. glabrata no Paraná consta da coleção de Adolpho Lutz, no Instituto Oswaldo Cruz, na qual encontrei quatro exemplares, com 21 a 26mm de diâmetro, coletados por Souza-Araújo em 5 de maio de 1919 na localidade de Jatahy. Esses exemplares foram etiquetados por Lutz como Planorbis confusus, mas sem a menor dúvida pertencem à espécie B. glabrata. A localidade referida, que não aparece nos mapas atuais do Paraná, era na época, segundo Souza-Araújo (1954, p. 478), "distrito judiciário da comarca do Tabagi, situado à margem direita do rio deste mesmo nome, a 300m de altitude e a cerca de 100km do rio Paranapanema". Essa situação corresponde ao atual município de Jataizinho, em plena zona endêmica do norte do Paraná, onde a B. glabrata parece estar avançando decididamente para o oeste. Até 1960, sua posição mais ocidental estava em Londrina (Lima e Luz, 1960) a 23o 18S e 51o 09W, correspondendo a um salto de 40km para sudoeste. Em Apucarana não tinha sido encontrada pelos autores referidos, durante cuidadosas pesquisas feitas em 1957, e, em 1961, apuraram ter sido a espécie trazida de Londrina em 1959 por uma criança que a introduziu nas valas de uma fazenda. Em 1972, Luz, Kotaka e Baranski (1973-74) estudaram um caso autóctone do município de Moreira Sales, encontrando vários criadouros de B. glabrata, algumas eliminando cercárias de S. mansoni, no distrito de Paraná do Oeste (24o 07S, 52o 50W), 130km a sudoeste de Apucarana. Em julho de 1975, recebi da Sucam do Paraná, para identificação, um lote de B. glabrata de Maringá (23o 25S, 51o 55W), situada a 50km a oeste de Apucarana. Finalmente, em 1976, a espécie foi encontrada pela Sucam em Goio-Erê (24o 12S, 53o 01W), a 20km a sudoeste de Paraná do Oeste, supondo-se que se disseminou a partir de um ranário então desativado. Tanto Paraná do Oeste como Goio-Erê estão situados na bacia do rio Piquiri, que deságua no rio Paraná cerca de 120km a oeste das duas localidades (Paraense, 1986). O primeiro contato Wladimir Lobato Paraense, tendo em vista sua trajetória profissional,3 foi chamado pelo ministro da Saúde, para averiguar a questão da esquistossomose na região de Guaíra. Eu estive lá, e realmente fiquei impressionado com a quantidade de caramujos parecendo Biomphalaria tenagophila. Estavam nas margens dos criadouros. Baixando a água, aparecia uma quantidade enorme de moluscos, que me fez pensar que ali, mais cedo ou mais tarde, ia haver introdução de esquistossomose. Então, peguei um bocado de caramujos, levei para o laboratório, em Brasília, e examinei. Estavam todos negativos. Dissequei e identifiquei como B. tenagophila. Aliás, o mapa de distribuição daquela época, que eu tinha preparado, dava a região toda como de tenagophila. A região era potencialmente esquistossomótica de acordo com ele. Com isto fiz o meu relatório oral justificando o receio da Sucam e do ministro em relação à introdução da doença no oeste do Paraná. Passados um ou dois anos, eu não pensei mais no assunto (Paraense, entrevista pessoal). Pelo relato, percebe-se que o primeiro momento da história da descoberta da Biomphalaria occidentalis foi de erro, levando a uma hipótese e predição incorretas. A identificação dos planorbídeos encontrados em Guaíra, como Biomphalaria tenagophila, vetora natural do trematódeo S. mansoni, levou à suspeição de introdução da esquistossomose na região, pelos imigrantes doentes. No entanto, aqueles moluscos pertenciam à espécie nova B. occidentalis que, até então, não havia sido identificada como tal e que não é transmissora do referido trematódeo de acordo com os trabalhos de infecção experimental de Paraense e Corrêa (1982) e Coimbra e Engel (1982).
Programa do Trópico Úmido O decreto 70.999, de 17 de agosto de 1972, criou o Programa do Trópico Úmido, a ser executado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), interessando à região da Amazônia. A finalidade do programa era fazer o estudo da região visando ao aproveitamento das várzeas da Amazônia, ou seja, das áreas inundadas pelos rios na época das cheias e fertilizadas com os nutrientes trazidos com as águas, tornando-se excelentes para a agricultura. O programa foi criado para o desenvolvimento de tecnologia desse tipo de trabalho e para a facilitação da ocupação com a migração, que ocorreu principalmente onde é o atual estado de Rondônia. Como eu já tinha um pouco de experiência, assumi o trabalho. Lá não havia foco de esquistossomose autóctone. O que poderia acontecer é que, se este pessoal chegasse lá com Schistosoma, poderia encontrar hospedeiros capazes de transmitir a esquistossomose e aí alastrar. Então, a coisa principal a fazer seria saber quais os moluscos planorbídeos existentes na Amazônia, para ver se havia transmissores potenciais. Então me surpreendi com a presença dessa tenagophila que eu achava que era tenagophila no Acre, no Amazonas, em Rondônia e em outras áreas da Amazônia; desde o rio Amazonas, um trecho do Amazonas descendo pelos afluentes, até entrar pelo Mato Grosso e pelo que é hoje o Mato Grosso do Sul. Nesse tempo, Mato Grosso era um só, durante o trabalho ele foi dividido. Mas, como eu estava trabalhando na área, resolvi ver também o Mato Grosso do Sul e o Maranhão, do qual só uma parte é Amazônia, a parte oriental é Nordeste. E fui encontrando essa espécie em todas essas regiões, do oeste no Acre, descendo pelo Mato Grosso, e em lugares que para mim não tinha dúvida, no meu mapa de distribuição eram áreas de tenagophila (Paraense, entrevista pessoal). Observa-se que Paraense, em seus estudos preliminares à des-coberta da nova espécie de planorbídeo, continua identificando os moluscos como B. tenagophila, devido à extrema semelhança entre ela e a B. occidentalis que estava por ser descoberta. Vale ressaltar ainda que Paraense visitou Guaíra antes de 1975, ano do início da construção da represa, e que seu trabalho para o Programa do Trópico Úmido foi posterior a essa visita. O acaso A convivência com o erro, experiência comum da prática científica, se associa a outro componente essencial, qual seja, retirar as melhores conseqüências oferecidas pelo acaso. Esse foi um elemento essencial da produção de conhecimento no caso da Biomphalaria occidentalis. Eu não soube responder... olhei o caramujo e... de tanto olhar, e de tanto ter visto caramujo de Guaíra, fiquei com aquilo no inconsciente; não sabia por que eu tinha dito que era de Guaíra. Mas aí fiquei com essa coisa na cabeça. Se eu disse que esse caramujo era de Guaíra deve ter alguma razão e eu vou procurar, vou prestar mais atenção (Paraense, entrevista pessoal). É interessante notar que o acúmulo de experiência tanto pode ser visto como um fator essencial para a capacidade analítica de distinção classificatória, como pode funcionar pela repetição de padrões, como obstáculo para perceber a novidade científica. As conchas não apresentavam diferenças Pensando que os espécimes de Guaíra podiam ser de outra espécie, Paraense utilizou o albinismo como marcador genético, e fez cruzamentos entre os planorbídeos suspeitos de Guaíra e B. tenagophila de vários outros lugares. Como já sabia que, com a distância, a fertilidade pode ser diminuída (Paraense, 1959), o pesquisador utilizou exemplares provenientes de locais distantes de 200 a 1.800km de Guaíra. Todos os cruzamentos foram inférteis (Paraense, 1981). Ele, então, concluiu que essa era uma espécie diferente e a nomeou Biomphalaria occidentalis por ela ter sua distribuição no Ocidente. As B. tenagophila, que ele vinha encontrando na Amazônia para o trabalho do Programa do Trópico Úmido, pertenciam, na verdade, a essa espécie nova (Paraense, 1983). O estado de São Paulo No estado de São Paulo, segundo revisão (Piza e Ramos, 1960) de trabalhos de vários pesquisadores, a referida helmintose avançava para o oeste graças à migração interna, isto é, ao deslocamento, dos focos autóctones para outros municípios, de trabalhadores rurais doentes. A doença resistia às medidas de contenção realizadas pelos serviços de saúde a expensas, muitas vezes, dos próprios fazendeiros, como, por exemplo, a aplicação do lança-chamas após a colheita do arroz e drenagem das valas. Conclusão Verifica-se por este relato que o conhecimento da biologia e a correta identificação dos planorbídeos são de fundamental importância na epidemiologia da esquistossomose. Através de estudos malacológicos, é possível explicar ou prever os surtos da doença, sua transmissão ou ausência, como no caso dos municípios que, devido à presença dos moluscos e à quantidade de imigrantes com alta prevalência da doença, eram considerados de alto risco com relação à endemia, mas nos quais, no entanto, não havia a transmissão. De acordo com a distribuição geográfica da B. occidentalis (Lima, Soares e Guimarães, 1993), essa espécie é encontrada no caminho das massas de ar polar corredor que passa por Foz do Iguaçu e Guaíra que causam forte resfriamento noturno (Serra e Ratisbonna, 1942). Esse fato nos leva a pensar numa superioridade adaptativa dessa espécie, o que a torna mais resistente aos resfriamentos bruscos. |
NOTAS
1 Wladimir Lobato Paraense nasceu em 16 de novembro de 1914, em Igarapé-Mirim (PA). Atraído pelas ciências biológicas "por um impulso interno" (Schwartzman, 1979, p. 223), iniciou em 1931 o curso médico na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, onde foi auxiliar acadêmico da cadeira de histologia, ministrada pelo prof. Jayme Aben-Athar. Graduou-se em 1937 pela Faculdade de Medicina de Recife, onde foi auxiliar técnico do Serviço de Verificação de Óbitos do Departamento de Anatomia Patológica e interno do Hospital Oswaldo Cruz do Departamento de Saúde Pública do Estado de Pernambuco, por concurso. Um ano depois, em 1938, recebeu uma bolsa de estudos concedida por Assis Chateaubriand dos Diários Associados em anatomia patológica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em 1939, Paraense foi convidado por Evandro Chagas para organizar o laboratório de patologia do Serviço de Estudo das Grandes Endemias (Sege) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e entrou como assistente no Sege, sendo designado biologista do quadro permanente do IOC em 1945 (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1984, p. 201; Nara Britto (org.), 1991, p. 84).
2 A Usina Hidrelétrica de Itaipu é um empreendimento brasileiro-paraguaio localizado no rio Paraná, 14km acima da Ponte da Amizade, que liga as cidades de Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad del Leste (antiga Presidente Stroessner), no Paraguai. O reservatório da Central Hidrelétrica, com 29 bilhões de m3 de água represada, se estende da usina até o famoso Salto das Sete Quedas, formando um imenso lago com cerca de 1.400km2. A comercialização da energia produzida nas suas 18 unidades geradoras, de 700kW cada, está regulamentada pelo tratado de Itaipu e é dividida entre os dois países (Michalany, 1991, p. 86).
3 A partir de 1950, Paraense inicia os trabalhos que irão ordenar a sistemática dos planorbídeos (Katz, 1992) e assume vários cargos e funções que irão qualificá-lo como referência para as autoridades sanitárias nessa área, tais como o de pesquisador associado do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) para o estudo de moluscos planorbídeos do Brasil (1954-56); o de comissionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1956, e pelo Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), em 1959, para coletar planorbídeos em localidades-tipo lugares geográficos de origem das espécies nominais que são os tipos ou padrões de referência para a classificação dos seres vivos nos seus taxons, tais como família, gênero, espécie (Papavero, 1983, p. 234) , em diversos países das Américas do Sul e Central, e do Caribe; o de consultor temporário da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) para Desenvolvimento das Diretrizes para a Identificação dos Planorbídeos Americanos (1961); e o de membro do Quadro Permanente de Peritos em Doenças Parasitárias da OMS, desde 1964, quando seu laboratório foi indicado por esse órgão centro de referência de identificação de planorbídeos (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, op. cit., pp. 201-2; Nara Britto (org.), op. cit., p. 84).
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Recebido para publicação em fevereiro de 1998
Aprovado para publicação em outubro de 1998.