It is the cache of ${baseHref}. It is a snapshot of the page. The current page could have changed in the meantime.
Tip: To quickly find your search term on this page, press Ctrl+F or ⌘-F (Mac) and use the find bar.

Educação e Pesquisa - Memories of Mathematics from students of Youngster and Adult Programs

SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27 issue2Decentralization and partnership: an assessment of the education of youngsters and adults in the Brazilian educational reformEducation of adults in prison author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702

Educ. Pesqui. vol.27 no.2 São Paulo July/Dec. 2001

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022001000200010 

Lembranças da matemática escolar: a constituição dos alunos da EJA como sujeitos da aprendizagem

 

Maria da Conceição F.R. Fonseca
Universidade Federal de Minas Gerais

Correspondência:
Maria da Conceição F.R. Fonseca
R. Conceição do Mato Dentro, 250
apto. 1203A
31310-240 – Belo Horizonte – MG
email: mcfrfon@net.em.com.br

 

 

Resumo

Pouco se tem refletido sobre a incorporação da experiência escolar anterior de alunos adultos que se re-inserem na Educação Básica. Este artigo focaliza a enunciação de reminiscências da matemática escolar protagonizada por alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), procurando revelá-las como um componente fundamental na constituição do aluno adulto como sujeito não só da aprendizagem da matemática, mas do próprio processo de escolarização.
Mais do que meras referências a conceitos ou procedimentos de matemática aprendidos em outras oportunidades, compreendem-se, aqui, as reminiscências como efeitos da memória que permeiam a produção de sentido. O texto focaliza sua enunciação no âmbito das práticas discursivas que conformam os (e se conformam nos) processos de ensino-aprendizagem da matemática na EJA, tomando-a como ação social organizada, que institui a lembrança compartilhada da matemática escolar como árbitro da legitimidade coletiva.
Ao se analisarem trechos de interações entre a pesquisadora e alunos que cursam o equivalente à 5ª série do ensino fundamental num projeto de EJA, destacam-se as dimensões semântico-pragmáticas da rememoração que nesse contexto se manifesta e que se considera autoconsciente, metacognitiva, e estruturada no discurso e pelo discurso. Por sua natureza sociocultural, essa rememoração, ao se fazer coletiva, atende a um chamado do presente, re-significando o passado.

Palavras-chave

Educação de Jovens e Adultos – Memória – Discurso.

 

Memories of Mathematics from students of Youngster and Adult Programs

Abstract

Little reflection has been devoted to the incorporation of previous school experiences of adult students that reenter basic education. This article focus on the communication of reminiscences of Mathematics made by students of Youngster and Adult Education, trying to reveal them as a fundamental component in the constitution of adult students as subjects not only of their learning of Mathematics, but of the schooling process itself.
More than as mere references to concepts or procedures of Mathematics learned in other opportunities, reminiscences are viewed here as memory effects that permeate the production of meaning. The text focus on their communication in the context of discursive practices that shape (and take shape in) the teaching-learning processes of maths in Youngster and Adult Education, taking it as an organized social action that institutes the shared memories of school mathematics as arbiter of collective legitimacy.
In analyzing excerpts of interactions between the researcher and students of Youngster and Adult Education from an class equivalent to the 5th grade of basic education, the semantic-pragmatic dimensions of the remembrance manifested in this context are highlighted, a remembrance that is considered conscious of itself, metacognitive, and structured in and by the discourse. By its sociocultural nature, this remembrance, turned collective, answers to a call of the present, rebuilding the meaning of the past.

Keywords

Education of youngsters and adults – Memory – Discourse.

 

 

Diversas propostas e estudos para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) reconhecem a necessidade de se considerarem (e, algumas vezes, até mesmo partir de) as experiências que o aluno traz de sua vida cotidiana. No caso do ensino de matemática, por exemplo, diversos trabalhos se dispõem a investigar esses conhecimentos e engrossam fileiras na defesa de sua integração ao trabalho pedagógico que se vai desenvolver (Acioly, 1985; D’Ambrosio, 1985; Duarte, 1986; Abreu, 1988; Souza, 1988; Carraher, 1988; Monteiro, 1991; Knijnik, 1993; Avila, 1995; Lima, 1995; Carvalho, 1995; Soto, 1995). Pouco ou nada se tem dito, porém, sobre as experiências escolares anteriores do público da EJA, muito embora a maioria de nós, professores que trabalhamos com adultos, e principalmente os que trabalham com o ensino da matemática, não raro nos refiramos à insistência de nossos alunos em tentar resgatar essas experiências.

No desenvolvimento dos processos de ensino-aprendizagem, temos sido, no mais das vezes, tímidos, quando não resistentes, ao lidar com essas lembranças. Se não as ignoramos, ou mesmo as reprimimos, em geral, limitamo-nos a interpretá-las como parte de uma estratégia empreendida, quase sempre com pouco sucesso, pelos alunos da EJA com a intenção de abreviar o processo de aprendizagem. Como se tecer emendas em fragmentos de lembranças fosse um processo diverso da – e mais ágil do que a – atribuição de significados a novos conteúdos e procedimentos. Concorre para essa resistência ou reducionismo uma certa insensibilidade ou despreparo que não nos permite sequer reconhecer as lembranças, muito menos integrá-las à dinâmica de ensino-aprendizagem atual.

Na investigação que empreendemos sobre as reminiscências da matemática escolar enunciadas pelos alunos da EJA (Fonseca, 2001), porém, sua enunciação revelou-se como um componente fundamental na constituição do aluno adulto como sujeito não só da aprendizagem da matemática, mas do próprio processo de escolarização. Essa perspectiva, embora tenha sido construída a partir da análise de situações específicas em que os enunciados emergiram, não poderia circunscrever-se a elas, uma vez que é a íntima relação da enunciação com o interdiscurso que lhes confere historicidade e que nos faz compreender as reminiscências não como meras referências a conceitos ou procedimentos de matemática aprendidos em outras oportunidades, mas como efeitos da memória que permeiam a produção de sentido.

Tomar a enunciação das reminiscências no âmbito dos esforços para a produção de sentido do aprender matemática e da matemática que se aprende na escola, obriga-nos a ultrapassar uma compreensão de sua contribuição apenas num nível informativo, restrito à possibilidade de trazer "à tona" conteúdos da matemática aprendidos numa experiência anterior de escolarização, agora revisitados na matemática da EJA. Não se trata aqui de analisar enunciados como expressão daquilo que os alunos foram capazes de recordar. Cabe-nos, antes de mais nada, reconhecer que ao enunciar reminiscências da matemática escolar num contexto de EJA, indivíduos ocupam posições de sujeito, e é isto que põe a memória em funcionamento "por afetá-la pelo interdiscurso, produzindo sentidos" (Guimarães, 1995, p. 69).

É, portanto, quando o indivíduo se encontra interpelado como sujeito e se vê como identidade que ele se empenha na busca do sentido e exercita a rememoração, dando-lhe expressão. O sentido da matemática, aqui indissociável do sentido que se constrói no processo de ensino-aprendizagem, incorpora os efeitos da enunciação de suas lembranças e constitui-se como efeito de interdiscursos que mobilizam personagens, cenários e enredos da matemática acadêmica, das representações e propósitos da instituição escolar, das demandas da vida social, das histórias individuais compartilhadas. Assim, o sentido não se estabelece apenas como efeito da circunstância enunciativa e nem é só memória. "O sentido são efeitos da memória e do presente no acontecimento: posições de sujeito, cruzamento de discursos no acontecimento" (Guimarães, 1995, p. 70).

 

As reminiscências como práticas discursivas

Para desenvolver uma reflexão sob essa perspectiva, convidamos o leitor a proceder conosco a uma análise de situações de ensino-aprendizagem em que as tais reminiscências emergem, mas tomando-as como arena de negociação de sentidos, numa concepção de significação que a admite histórica e, portanto, constituindo sujeitos. Para isso, será preciso encará-las como fenômeno social, de interação verbal, que se realiza em sua enunciação (Soares, 1998, p. 72).

Assumir essa natureza interacional das reminiscências leva-nos a uma visão da enunciação como um "produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados" (Bakhtin, 1992, p. 112), cujos conteúdo, significação, forma e estilo são definidos

pela situação imediata, pelos participantes e pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística, as pressões sociais mais substanciais e duráveis a que estão submetidos os interlocutores. (Costa Val, 1996, p. 92)

Dessa maneira, as reminiscências da escolarização anterior, de início flagradas como manifestações de lembranças individuais de tópicos, termos ou procedimentos da matemática escolar, passam a ser consideradas como interação entre sujeitos e entre discursos. Interlocução e interdiscursividade, tomadas como constitutivas das reminiscências que queremos analisar, são modos de percebermos nelas "as palavras dos outros" (Authier-Revuz, 1982, p. 140), que ecoam naquilo que é dito e no que é calado, no contexto da aula de matemática.

O outro com quem interagem os sujeitos e cujos discursos permeiam a enunciação de suas lembranças são seus colegas adultos que, como ele, retornam à Escola e a professora que ali e naquele momento os acolhe. Mas são também outros tantos alunos e professores com quem interagiram diretamente em sua trajetória escolar ou indiretamente pelos relatos de familiares, amigos, colegas, literatura; são também modelos de alunos e professores, de Escola e livros didáticos, e de uma concepção do que seja "matemática", em geral identificada com a matemática escolar. Todos esses modelos são construções culturais, marcadas pela inserção histórica dos sujeitos e dos discursos.

Assim, o enunciado de uma reminiscência revela "ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal" (Bakhtin, 1997, p. 316), esfera que, no nosso caso, se conforma na atividade de ensinar e aprender matemática escolar, que baliza as possibilidades de interdiscursividade. A interação proporcionada pela (e que constitui a) situação de ensino e aprendizagem da matemática forjará, ainda, um contexto de interlocução, o que nos leva a considerar o enunciado das reminiscências "acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores" (Idem, p. 316) dentro dessa esfera de comunicação. Bakhtin (1997) emprega aí a palavra "resposta" no sentido lato: responder aos enunciados anteriores pode ser refutá-los, confirmá-los, completá-los, basear-se neles, supô-los conhecidos e, de um modo ou de outro, contar com eles.

 

Dimensões semântico-pragmáticas da rememoração coletiva

Alguns trabalhos têm mostrado como processos da memória se forjam socialmente por meio da conversação (cf. Edwards & Middleton, 1986, 1988; Middleton & Edwards, 1990; Billig, 1990): lembranças se reconstroem conjuntamente mediante um discurso que supõe que os sujeitos que dele participam também as compartilhem. Com efeito, se Bartlett (1932) considerava que mesmo o processo mais interno dos indivíduos que recordam é, na verdade, um processo construtivo, Shotter (1990, p. 148) proporá que "esse processo construtivo não é apenas formalmente de tipo social, mas também está estruturado como processo retórico (ou argumentativo)". O autor refere-se aí não apenas ao aspecto da retórica que costuma ser mais familiar e que tem relação com sua função persuasiva; ele dá um destaque especial aos poderes poéticos (do grego, poiesis: criação, processo de dar forma) da linguagem, que lhe permitem "‘dar’ ou ‘emprestar’ uma primeira forma ao que, de fato, são apenas sentimentos ou atividades parcial ou vagamente ordenados, para dar um sentido compartido a circunstâncias já compartidas" (p. 141).

Essa dimensão semântico-pragmática da rememoração coletiva, ou da interação discursiva que rememora, pede, pois, que ultrapassemos a mera identificação do tema de cada enunciação ou mesmo uma eventual avaliação de seu respectivo rema (cf. Castilho 1989, p. 266). Somos incitados a focalizar a própria tematização, ou seja, "o processo pelo qual o falante escolhe o tema, a partir dos referentes que supõe partilhados pela audiência, em função da análise que faz da situação" (Costa Val, 1996, p. 128), articulada ao "processo de construção das asserções a respeito do tema" que constitui a rematização. Com efeito, é na análise desses processos, no seio das interações discursivas em que emergem as reminiscências da matemática escolar, que se revela o caráter coletivo (sociocultural) das lembranças que, à primeira vista, suporíamos de responsabilidade de um único indivíduo.

Que os alunos de uma turma de EJA jamais tenham convivido uns com os outros, antes de serem reunidos numa mesma classe, não impede que suas lembranças da vivência escolar sejam compartilhadas e tomadas como lembranças do grupo: as vivências lembradas não se referem a fatos de interesse exclusivamente pessoal, mas são justamente aquelas "que se encaixam no marco aportado por nossas instituições sociais – aquelas em que temos sido socializados – caso contrário, não se recordariam" (Shotter, 1990, p. 148). Será, pois, na relação do sujeito sociocultural com essas instituições que irão se forjar os princípios de seleção do que é lembrado e do que é esquecido, do que se diz do que é lembrado e do que se silencia, e dos modos do dizer e do não-dizer.

A despeito das diversidades das histórias individuais, a identidade sociocultural dos alunos da EJA é tecida na experiência das possibilidades, das responsabilidades, das angústias e até de um quê de nostalgia, próprios da vida adulta; delineia-se nas marcas dos processos de exclusão precoce da escola regular, dos quais sua condição de aluno da EJA é reflexo e resgate; aflora nas causas e se aprofunda no sentimento e nas conseqüências de sua situação marginal em relação à participação nas instâncias decisórias da vida pública e ao acesso aos bens materiais e culturais produzidos pela sociedade.

A essa identificação sociocultural corresponderá também uma identidade nos modos de relação com as instituições sociais. Em particular, nas interações que aqui focalizamos, que tiveram lugar, ocasião e estrutura oportunizadas pelo contexto escolar, e, mais do que isso, num contexto de retomada da vida escolar, os sujeitos privilegiarão os modos de relação com a Escola, modos de relação socioculturalmente compartilhados, nos processos de tematização e rematização pelos quais se construíam suas participações naquelas interlocuções. Se, pois, como postula Ilari (1992, p. 134), "os conteúdos temáticos são aqueles que o falante julga presentes na memória imediata do ouvinte", nossa análise deverá considerar que os alunos da EJA compartilham uma memória matemática coletiva, sociocultural, ao mesmo tempo presumida e construída no âmbito das interações discursivas, e que informa e recorta a (mas também alimenta-se da) constituição dos conteúdos remáticos, que "são aqueles que ele (o falante) julga que aparecerão na atenção do ouvinte por efeito da interação verbal" (Ilari, 1992, p. 134).

Esse é um aspecto fundamental da análise a que nos propomos, e que a justifica, na medida em que insere a reflexão sobre as reminiscências da matemática escolar de alunos adultos da escola básica num conjunto de esforços de caracterização do alunado da EJA como um grupo sociocultural. Como tal, esse grupo tem perspectivas e expectativas, demandas e contribuições, desafios e desejos próprios em relação à educação escolar. Cabe, pois, às instituições educacionais se comprometerem com uma política de inclusão e de garantia do espaço do adulto na Escola, o que implica uma disposição para a reflexão e para a consideração dessas especificidades no delicado exercício de abandono e de criação, de reordenação e de (re)significação das práticas pedagógicas da EJA.

 

A recordação como ação social organizada

A opção por focalizar as reminiscências da matemática escolar de alunos da EJA no contexto de interações que elas suscitam e/ou alimentam, e nas quais as próprias lembranças se constroem, é motivada, pois, por essa compreensão da recordação como ação social organizada. Os conceitos e as proposições, as estratégias e os procedimentos, os termos e as representações gráficas, as aplicações e as avaliações do conhecimento matemático que se resgatam e se reestruturam no discurso dos sujeitos serão aqui tomados como versões pragmáticas que, em sua realização, ultrapassam a natureza e as vicissitudes da cognição individual, para apresentarem-se como versões coletivas, porque forjadas num modo de conceber e lidar com a matemática construído histórico-culturalmente, com a mediação decisiva da instituição escolar, e por essa mesma mediação, tematizadas (e matizadas) numa atividade discursiva que organiza e justifica a ação presente.

Este estudo quer tomar a própria enunciação dos fatos lembrados e interpretá-la como uma demanda do presente, do jogo interlocutivo, que pede uma reativação seletiva do passado. Significação e contexto são aspectos intrínsecos dessa atividade discursiva, dela constitutivos e por ela constituídos (Middleton & Edwards, 1990, p. 42). Sob sua influência é que se exerce a seletividade marcadamente sociocultural da memória – também, e especialmente, da memória da matemática escolar, socioculturalmente construída pelos alunos da EJA.

Tomemos um pequeno trecho de uma discussão sobre as expressões aritméticas, que teve lugar numa sessão realizada com alunos que cursavam o equivalente à 5ª. série, no Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos da UFMG.1 Os alunos haviam resolvido a expressão proposta pela pesquisadora sem que qualquer um deles tivesse logrado chegar ao resultado correto. Atendendo a solicitação desses alunos, a pesquisadora pôs-se a orientá-los sobre os procedimentos para resolvê-la:

20/5/98
943. Pesq.: Primeiro, eu faço as contas de dentro dos parênteses, tá vendo?
944. Orlanda: (...) que, às vezes, pode ser outra...
945. Pesq.: É, faz as contas de dentro dos parênteses.
946. Lu: (sussurrando) Elimina os parênteses.
947. ZE: Em qualquer hipótese você tira, faz primeiro os parênteses?
948. Pesq.: Os parênteses.
949. Lu: Tinha isso mesmo: "primeiro eliminar os parênteses".
950. ZE: Anrã!
951. Orlanda: Depois, multiplico!
952. Pesq.: Não, depois os colchetes, depois as chaves.
(...)
955. Pesq.: Agora, entre as operações, ...
956. Orlanda: Eu sempre multiplico.
957. Pesq.: Não, resolvo os parênteses, por exemplo, (no quadro) dois mais três vezes cinco.
958. Lu: Prá eliminar os parênteses.
959. Pesq.: Pois é, mas como é que você vai "eliminar os parênteses" aqui nesse caso? Primeiro eu faço a conta de vezes.

[Na seqüência, discute-se o papel das convenções na matemática. Algumas intervenções adiante, AC e Lu voltam aos comentários sobre a lembrança dos procedimentos para resolver expressões aritméticas.]

1023. AC: Você fazendo aí que eu lembrei vagamente, assim muito por alto.
1024. Lu: Tinha isso mesmo: "o que fazer primeiro".
1025. AC: Tinha isso. Eu lembrei, mas aguça a memória fazer também.
1026. Lu: Você lembrou disso aí também porque viu em algum lugar.
1027. AC: Porque eu vi fazendo. Fazer eu não sabia.
1028. Lu: Isso é da quarta série.
1029. Pesq.: Às vezes não se vê isso na quarta série.
1030. AC: A única escola que eu voltei.

Logo na primeira seqüência, é interessante observar que, apesar da afirmação da pesquisadora no turno 943, garantindo a prioridade para a resolução da expressão entre parênteses, ainda paira dúvida sobre a correção ou, ao menos, sobre a universalidade desse procedimento: Em qualquer hipótese você tira, faz primeiro o parênteses? (José Eustáquio (ZE), no turno 947). O jogo interlocutivo, entretanto, se redesenha a partir da lembrança de Luduvina (Lu), ensaiada timidamente no turno 946 (Elimina os parênteses) e afirmada na formulação consagrada: "primeiro eliminar os parênteses", veiculada num enunciado evocativo que ao mesmo tempo a resgata e a confirma: Tinha isso mesmo (turno 949). É essa enunciação, mais do que o enunciado informal escolhido pela pesquisadora no turno 943, que confere ali legitimidade ao procedimento de priorizar as operações entre parênteses, introduzindo no discurso uma voz que não é a de uma professora, de um livro didático ou de uma anotação no caderno, mas é a voz do ensino escolar da matemática, a voz e a autoridade culturalmente constituídas da memória da matemática escolar.

Da mesma forma, um argumento legitimado pela memória coletiva seria arrolado como justificativa para a preservação do resultado de uma adição, independente da ordem das parcelas:

02/6/98
130. Pesq.: Vamos lá... Aqui vocês estão vendo, está escrito aí sete mais oito é igual a quinze...
131. Lu: E invertido.
132. Pesq.: ...e oito mais sete é igual a quinze... Esse negócio acontece sempre?
133. Lu: Não.
134. Pesq.: Isso, o que que está acontecendo aí?
135. Lu: Só invertido, ficou o invertido, o... como é que chama? O ...
136. Orlanda: A ordem?
137. Seu Antônio: A ordem.
138. Lu: A ordem dos fatores. A ordem dos fatores?...
139. Pesq.: Espera aí...
140. Cezá: Tem aquela que fala: ‘a ordem...
141. Lu, Cezá, Orlanda e ZE: (em coro): ...dos fatores não altera o... (alguém estala os dedos tentando se lembrar, mas só Cezarina completa)
142. Cezá: ...produto’, ah!
143. Pesq.: Então a pergunta é, isso aí se eu inverter isso aí, vai dar sempre a mesma coisa ou é só com esses números que dá certo?...
144. Cezá: Dá...
145. ZE: Vou responder, a resposta dela é a certa.
146. Pesq.: Hum, vai lá.
147. Lu: A ordem dos fatores não altera o produto.

02/6/89
189. Pesq.: Depende? O resultado depende do jeito que eu coloco, ou não depende do jeito que eu coloco?
190. Orlanda: Depende.
191. Seu Antônio: Depende da sua colocação. ...
192. Pesq.: Depende da minha colocação?
193. Seu Antônio: É, da minha colocação.
194. Pesq.: Pois é, eu eeehhh...
195. Seu Antônio: É que se eu pôr sete mais oito vai dar quinze, se botar oito mais sete vai dar os quinze a mesma coisa.
196. AC: A ordem dos tratores não altera o viaduto.

02/6/89
217. Cezá: Essa frase ‘a ordem dos fatores não altera o produto’, isso desde criança a gente ouve. Quando se troca é isso aí, que ‘a ordem dos fatores não altera o produto’, sempre do mesmo jeito, isso gravou.
218. AC: Depende, né...
219. Pesq.: Ãh?
220. AC: Não, é piada, então deixa.
221. Pesq.: Ah... é piada!

Provocados por uma ocorrência da propriedade comutativa da adição, os alunos mobilizam o enunciado consagrado (e, como observa Cezarina (Cezá), no turno 217, incorporado à linguagem cotidiana) da Propriedade Comutativa da Multiplicação. O que ali se ouve, em uníssono, não é apenas uma frase; é a voz do conhecimento matemático, formatado pela abordagem escolar, recortado pela memória coletiva, resgatado pragmaticamente pela situação discursiva. O conhecimento matemático compartilhado é a percepção da comutatividade, propriedade aplicável a determinadas operações matemáticas. Na (e pela) interação discursiva, os alunos não apenas constatam o fenômeno como uma eventualidade; eles recordam sua ocorrência e a compreendem como acontecimento típico de (certas) operações, motivo pelo qual existe uma formulação própria, preservada pela memória coletiva, para a ele se referir.

Essa compreensão compartilhada, ao mesmo tempo em que se apóia na rememoração coletiva do fato e do argumento, institui seu "contexto", considerado aqui como "algo intersubjetivo dos participantes, mais do que algo existente em um informe objetivo do analista – na parte de trás de uma transcrição – ou nas circunstâncias que rodeiam o ato de fala". Se os falantes atuam nesse contexto "a partir do que entendem e recordam" (Middleton & Edwards, 1990, p. 42), fazem-no, pois, pela compreensão compartilhada que lhes permite perceber e identificar a manutenção do resultado da soma independente da ordem das parcelas, e pela rememoração (e enunciação) coletiva de um significado e do enunciado da Propriedade Comutativa da Multiplicação, tomado como argumento definitivo para justificar o fenômeno.

Que a formulação resgatada seja a da propriedade da multiplicação não nos parece surpreendente. É essa formulação que ultrapassou os limites do cenário escolar e adquiriu tonalidades proverbiais – e versões em paródia (Antônio Carlos (AC), no turno196) – inseridas em situações discursivas as mais variadas. A maior "fama" da Propriedade Comutativa da Multiplicação em comparação à de sua correlata da Adição se deve, provavelmente, ao fato de ser a primeira muito mais surpreendente do que a segunda, dado que multiplicando e multiplicador desempenham funções diferentes na multiplicação, ao contrário das parcelas que, em geral, têm papéis muito semelhantes na interpretação de uma operação de adição. Importa-nos, pois, que a popularidade e a versatilidade do enunciado da Propriedade Comutativa da Multiplicação o tenham mantido acessível à memória e à compreensão desses alunos que, ao inseri-lo em seu discurso, fazem-no instituindo a lembrança compartilhada da matemática escolar como um árbitro da legitimidade coletiva.

 

Metacognição discursiva

Em ambas as situações que focalizamos na seção anterior, flagramos formulações metacognitivas, por meio das quais os sujeitos organizam e expressam sua compreensão e observações sobre suas reminiscências da matemática escolar e sobre os processos que as desencadeiam. Nos comentários que os sujeitos fazem naquelas duas situações, três hipóteses emergem com clareza considerável: aquela que reconhece no aprendizado escolar uma fonte privilegiada das lembranças (veiculada por Lu: turnos 1026, 1028); a que enfatiza a influência do fazer ou do ver fazer, no presente, "aguçando a memória" (defendida por AC: turnos 1023, 1025, 1027); e a terceira, que aponta a recorrência, inclusive em contextos não-escolares, como principal responsável pelas lembranças (introduzida por Cezá: turno 217).

Segundo considerações motivadas por diversos estudos (Edwars & Mercer, 1987; Edwards & Mercer, 1989; Edwards & Middleton, 1986), as formulações metacognitivas não se produzem apenas como compreensão ou observações do sujeito sobre a natureza de seus próprios processos mentais, mas "emergem de forma intencional em certos tipos de contextos discursivos" (Middleton & Edwards, 1990, p. 44). Nos contextos aqui analisados, em geral, os sujeitos mobilizam essa ou aquela formulação sobre o processo de rememoração diante de uma situação de alguma forma conflitiva, envolvendo dificuldades, divergências ou estranhamento em relação ao material lembrado ou ao fato de lembrá-lo. Dessa maneira, a formulação metacognitiva insere-se no discurso para justificar, socializar ou domesticar os processos e os produtos da rememoração (e do esquecimento).

É nesse sentido que Middleton & Edwards (1990) fazem restrições ao uso do termo "consciência metacognitiva" – que parece tratar a metacognição como se fosse "apenas uma questão de se fazer consciente da natureza real dos processos mentais preexistentes" – e preferem falar em construção metacognitiva, adotando "um vocabulário e um discurso convencional da vida mental, desenhado para servir à pragmática social da conversação" (p.45).

Na perspectiva da construção metacognitiva, a valorização do passado escolar ("Tinha isso mesmo: ‘o que fazer primeiro’"; "Você lembrou disso aí também porque viu em algum lugar"; "Isso é da quarta série."), a experiência do aprender-fazendo ("Você fazendo aí que eu lembrei vagamente, assim muito por alto"; "...aguça a memória fazer também"; "Porque eu vi fazendo. Fazer eu não sabia.") e a imersão num mundo de influências culturais ("Essa frase ‘a ordem dos fatores não altera o produto’, isso desde criança a gente ouve. Quando se troca é isso aí, que ‘a ordem dos fatores não altera o produto’, sempre do mesmo jeito, isso gravou.") são argumentos a partir dos quais, como vimos, se edificam hipóteses metacognitivas sobre a rememoração e a memória matemáticas.

As formulações metacognitivas são também oportunidades de posicionamentos dos sujeitos. Atentemo-nos para as posições assumidas pelos alunos na cena que a seguir transcrevemos, na qual discutem seu desempenho na atividade em que se pediu que indicassem os nomes dos termos das operações aritméticas. A maioria dos alunos se lembrara do nome de pelo menos um dos termos da divisão, mas apenas uma aluna soube indicar os termos da adição. Destacamos, aqui, a seqüência em que esses sujeitos procuram explicar esses resultados, a princípio, surpreendentes:

2/6/98
297. Pesq.: Fala Luduvina... Por que que você acha. Luduvina tem umas histórias muito boas!
298. Lu: Eu estava brincando, eu estava brincando!
299. Aux. Pesq.: Não, mas é importante...
300. Pesq.: Então fala, fala a sua brincadeira.
301. Seu Antônio: Nós aprendemos com a sua brincadeira...
302. Lu: É?...
303. Seu Antônio: É, uai...
304. Lu: Porque a que nós mais usamos é a divisão, não é não?... [risos]
305. Seu Antônio: Nós usamos divisão e somamos, né. A soma e divisão...
306. Lu: Nós dividimos tanto...
307. Seu Antônio: Pra você dividir você está somando... (...)
308. AC: É, eu não sei se é porque é mais ... é mais bonitinho o nome, talvez seja por isso a gente lembra não adição, subtração...
309. Pesq.: Não de ..., eu digo na hora de colocar os termos...
310. AC: ...então da, da divisão a gente lembra mais...
311. Cezá: Eu acho que é...
312. AC: ...eu acho que lembra mais...
313. Cezá: Por causa da facilidade...
314. AC: ...que é resto, quociente, não é?
315. Cezá: ... é diante da facilidade que é a soma. É, é, e aí nós largávamos muitas vezes o nome dessas coisas da, da, da, da soma e você pegava mais na ... multiplicando, multiplicador...
316. Pesq.: ... na divisão.
317. Cezá: ...na divisão é... aí você pegava mais.

São aqui apresentadas várias hipóteses metacognitivas por meio das quais os sujeitos não apenas expressam opiniões sobre o fato específico que desencadeou a discussão dos motivos pelos quais se lembram dos nomes dos termos da divisão, mas também, e principalmente, assumem posições na interação discursiva. Temos, então, Luduvina valendo-se do fato como um recurso metafórico pelo qual traduz uma perspectiva das condições de vida dos indivíduos daquele grupo social: "Nós dividimos tanto ...". Seu Antônio, defendendo a construção coletiva do conhecimento na partilha despojada das contribuições de cada um ("Nós aprendemos com a sua brincadeira."), embarca nas possibilidades da mesma metáfora, assumindo, entretanto, um posicionamento diferente do de sua colega em relação àquelas condições ("Nós usamos divisão e somamos ..."). Ao argumento, apresentado por AC, da sedução dos termos por sua sonoridade ou grafia por algum motivo agradáveis, Cezá responde com uma hipótese bem mais pragmática, a qual atribui a lembrança privilegiada dos termos da multiplicação e da divisão ao destaque que lhes era dado em virtude das dificuldades no aprendizado daquelas operações. Com efeito, no ensino dos algoritmos da multiplicação e, principalmente, dos da divisão, não raro se lança mão da nomeação dos termos para a descrição de cada uma das etapas do procedimento. Cezarina traz, pois, para a interação discursiva também uma avaliação de estratégias de ensino-aprendizagem próprias da educação escolar a que foram submetidos.

Vê-se, portanto, que a interlocução não se compõe apenas de uma sucessão de (fragmentos de) lembranças, encaixando-se como peças de um quebra-cabeça. Cada enunciado se realiza imbuído de uma função retórica, pragmática, que constitui e denuncia posições. Ao procurar apontar essas posições assumidas pelos sujeitos na e pela mobilização de enunciados metacognitivos, queremos, pois, mais uma vez, assinalar a base retórica e argumentativa do processo de rememoração e do pensar sobre a rememoração da matemática escolar. Assim, temos analisado a metacognição como "o desenvolvimento de um discurso culturalmente compartilhado que serve para fazer afirmações sobre os processos mentais, para argumentar, justificar e dar conta aos demais do que pretendemos saber" (Middleton & Edwards, 1990, p. 45) e do que confessamos não saber. Nesse sentido, aproximamo-nos da reflexão sobre a plausibilidade de uma base dialógica do pensamento humano (cf. Vygotsky, 1993, 1998; Wertsch, 1988); mas, particularmente, definimo-nos pela consideração de uma rememoração autoconsciente, metacognitiva, que se estrutura pragmaticamente no discurso e pelo discurso, e que tem na construção das reminiscências da matemática escolar um momento privilegiado de constituição e manifestação de sua natureza sociocultural.

 

Recordar, reconsiderar, re-sentir

Vejamos agora uma breve manifestação de Cezarina que, envolvida no esforço de rememoração do conceito de número primo, refere-se não apenas à lembrança desses conteúdos matemáticos, mas também a sentimentos forjados no seu processo de aprendizagem e à (re)consideração dessa relação do passado, na oportunidade que a interação presente lhe oferece:

3/6/98
622. Pesq.: Mas se lembra de já ter ouvido falar disso?
622. Cezá: Já lembro sim. Eu tinha uma dificuldade danada ... Eu falava "ai meu Deus", eu quebrava a cabeça ... Agora que eu estou entendendo um pouco número primo. Ai, ... que legal!

Há umas outras tantas passagens em que os sujeitos se remetem à mobilização das reminiscências matemáticas não só como um exercício de resgate de conceitos, procedimentos, diagramas, termos ou proposições da matemática, mas como oportunidades de reviver os sentimentos que envolveram sua relação com aquela matemática e os (re)elaborar a partir de uma reconstrução coletiva, realizada na interação discursiva. A recorrência dessas manifestações leva-nos a fazer, ainda, uma última observação sobre a memória da matemática escolar como processo e objeto do pensamento.

No ensaio, já citado aqui, sobre a reconstrução da lembrança e do esquecimento, Shotter (1990) identifica na consideração da "recordação prática cotidiana" mais do que "uma questão de recordar fatos de forma autoconsciente". O autor toma essas situações como "ocasiões de ‘re-sentir’ certos acontecimentos, às vezes de ser capaz de re-ordenar esses sentimentos para imaginar novas relações entre coisas conhecidas ou mundos completamente novos" (p. 152). Esse aspecto do processo de rememoração adquire, entretanto, um sentido particularmente relevante quando se revela nas reminiscências da matemática escolar dos alunos da EJA.

Falamos aqui de adultos que se dispõem a um novo esforço de aprendizagem, que não pode, naturalmente, desconsiderar seu passado escolar. O desafio de retomar esse passado não deverá, no entanto, identificar-se com um esforço de resgatar fatos matemáticos como se esses se encontrassem depositados nas memórias individuais, desligados uns dos outros e não envolvidos no emaranhado de relações tecidas por fatores ideológicos, pragmáticos, cognitivos, afetivos, lingüísticos, culturais, históricos. São essas múltiplas inter-relações, processadas e (re)elaboradas na participação do sujeito nas interações discursivas de ensino-aprendizagem da matemática na escola, que, conferindo à rememoração o caráter retórico (persuasivo e poético) de que nos fala Shotter, compõem o conteúdo temático do gênero discursivo da matemática escolar.

Se na escolarização de jovens e adultos se busca garantir um espaço de conquista, manifestação, confronto e exercício desse gênero, cabe, portanto, aos educadores reconhecê-lo como tal para que possam potencializar os esforços nesse sentido, coletivos e individuais, mas sempre socioculturais, dos educandos jovens e adultos.

 

A memória como sentido do passado

Além de fatos matemáticos, representações da matemática e modos de matematicar, não raro as reminiscências da matemática escolar terão como objeto os processos de ensino-aprendizagem no contexto escolar, ou a própria escolarização, como um passado que se compartilha, uma história que se co-memora. Nessas situações, manifesta-se um outro aspecto retórico do processo de rememoração coletiva: ali, segundo Billig (1990), "o que se evoca não é um fato, seja histórico ou místico, mas o sentimento de que a coletividade possui uma história" (p. 79).

27/5/98
182. Cezá: Hein, Lu, agora falando assim eu, quando pede pra eu lembrar, eu vou na sala de aula... buscar lá na sala de aula ... Lembro da professora Lurdinha, ainda lembro do pedreiro, lembrei até das Chiquititas, do pedreiro que eu fiquei até encantada com ele... (risinhos)
183. ZE: Hum...
184. Cezá: ...acho que eu, agora eu, eu visualizo...
185. ZE: ...entregou o ouro.
186. Cezá: ...que eu vejo... Não, é verdade, eu ... quase que eu me apaixonei por ele. (risos)
187. ZE: Olha, olha... Olha, olha...
188. Cezá: Olha só o que que vem na memória, olha que que eu vou buscando. Eu achava ele um encanto, era um senhor. Agora eu vejo que eu via nele um pai, né. Então vem isso: ele lá no canto lá, trabalhando do lado de fora e eu lá aprendendo a poesia: "A rolinha fez seu ninho/ para os seus ovos chocar./ Veio a cobra e os comeu/ a rola pôs-se a chorar./ Cala a boca minha rola/ que a cobra eu vou matar./ Os ovos que ela comeu/ ela há de me pagar". Ô gente, eu estava no segundo ano. Estou lembrando das "Mais Belas Estórias", de Lúcia Casassanta...
189. Lu: Não estou dizendo que você não lembra...
190. ZE: Com Rapunzel e tudo?
191. Cezá: ...com Rapunzel, exatamente.

Os alunos dessa turma, que não vivenciaram juntos suas experiências anteriores de escolarização, compartilham, entretanto, um sentido desse passado, uma compreensão socioculturalmente partilhada dos papéis, dos rituais, das relações que compõem o universo escolar. Por isso, a lembrança de Cezarina a leva para a sala de aula, que não é apenas o palco de um episódio fortuito de sua trajetória escolar: aquele é o espaço em que aqueles papéis se definem, aqueles rituais se instituem e aquelas relações se realizam.

São essas relações, personagens e enredos que a aluna vai buscar. A sala de aula é território em que todos pisara; algo de seu relevo, clima e limites foi experimentado por ela e por seus colegas; seus acidentes e fronteiras são de alguma forma conhecidos. E é porque presume coletivas essas trilhas, essas experiências e esses conhecimentos, que Cezarina se considera autorizada a acreditar que os sentidos, por ela atribuídos ao seu e no seu movimento de "ir na sala de aula", e de "buscar lá na sala de aula" lembranças aparentemente pessoais, possam ser também compartilhados.

Cezá assume a autoria e a dinâmica processual do exercício de rememoração: o que lhe "vem na memória" é ela quem vai "buscando". Mas o que "vem" como sentimento individual de sua intimidade de menina torna-se, na elaboração da mulher que lembra, pela mobilização do arquétipo da figura paterna, fenômeno da experiência humana. "Vem", ainda, inserido num contexto de expressivas marcas culturais: embalam-no as palavras e a cadência dos versos do livro de leitura – lembrança que é datada, nomeada, assinada e ilustrada!

Para Bartlett (1932), os objetos desempenham seu papel na recordação através de sua função de imagens. Raddley (1990, p. 72) explica que "as imagens – enquanto construtos mentais – servem para recolher traços significativos da experiência, mediante a coloração afetiva de certos interesses relacionados". O autor alerta ainda para o caráter coletivo e cultural dos "interesses e atitudes" que determinam a adoção desses objetos como "símbolos condensados" (p. 72). Assim é que a menção ao livro de leitura soa como um convite "a permitir que [tais] interesses e atitudes evocados sejam revividos mediante a elaboração de significados possibilitada no falar com os outros sobre" (p.73) (e de) lembranças agregadas àquele objeto, inserido no âmago da cena escolar. No reconhecimento desse livro, que ZE manifesta em tom jocoso e Cezá confirma com entusiasmo, explicita-se, afinal, que há ali tantos sentidos coletivamente construídos por sujeitos que partilham uma história!

Desse modo, o que se resgata nessas reminiscências não são apenas lembranças individuais da vida escolar. Enunciados com verbos em geral conjugados no pretérito imperfeito sugerem que os sujeitos as tomam e as fazem soar como interpretações de experiências replicadas (na sua trajetória pessoal e/ou na de seu grupo social). Essas interpretações, mais do que narrar as experiências, prestam-se à sua tipificação, à caracterização de um tempo passado, à construção de um sentido da história.

Lembranças de alunos adultos da EJA falam de uma escola em que se cantava o Hino Nacional, ensinava-se Língua Pátria e Aritmética, avaliava-se com argüição e dava-se nota. A memória garimpa ainda materiais e recursos didáticos e pontua sua modéstia; resgata a ênfase conferida à nomeação de conceitos e procedimentos e o cuidado com o qual se normatizava a grafia de letras, números, símbolos e diagramas. São, além disso, recordações datadas: do tempo que ainda tinha Admissão; da época em que estava inaugurando o Mineirão; quando passava aquela tal novela... .

Uma consciência histórica informa essas lembranças e se conforma nelas. Ela se plasma na tensão entre passado e presente que permeia o discurso quando se mobilizam tais lembranças. Com efeito, o sentido do passado que nelas emerge é por vezes eivado de sentimentos nostálgicos, que "constituem uma argumentação formulada no presente em favor do passado e contra aquele" (Billig, 1990, p. 90): Seu Antônio louva o espírito cívico cultivado nas escolas de antanho; ZE decepciona-se por não ver registrada uma "nota" em seu trabalho; enumera também, e com certo orgulho, o muito que se aprendia no curso primário. Mas o presente, "que estrutura a argumentação, retém algumas críticas ao passado com as quais se pode defender" (Billig, 1990, p. 90): Seu Antônio aponta precariedades materiais; Cezarina permite-se relativizar o rigor na grafia de letras e números; Orlanda confessa o imediatismo que a inspirava na execução das tarefas escolares; e o próprio ZE é reticente quando descreve os modos de interlocução estabelecidos na situação de "argüição".

Essas reminiscências, porque conformam as (e se conformam nas) interações discursivas de alunos e professores da EJA, motivadas e realizadas justamente numa nova oportunidade escolar de aprendizado da matemática, instituem a uns e outros como atores sociais, e os constituem como sujeitos dos processos de ensino-aprendizagem. Se o fazem, é porque se reportam a "referentes que [o falante] supõe partilhados pela audiência, em função da análise que faz da situação" (Costa Val, 1996, p. 128). Os sujeitos mobilizam suas lembranças da vida escolar não porque sejam inusitadas, ou surpreendentes. O que as faz memoráveis é serem típicas, passíveis de serem reconhecidas pelos interlocutores, e traduzirem e/ou construírem percepções, opiniões, argumentos e sentimentos que alunos (e professores) assumem como sujeitos e, como tal, julgam-os, ou os tornam, coletivos.

 

Referências bibliográficas

ABREU, G.M.C.P. O uso da matemática na agricultura: o caso dos produtores de cana de açúcar. Recife; 1988. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Pernambuco.        [ Links ]

ACIOLY, N.M. A lógica matemática no jogo do bicho: compreensão ou utilização de regras? Recife; 1985. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Pernambuco.        [ Links ]

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, Paris, Centre de Recherche de l’Université de Paris VIII, n.26, p.91-151, 1982.        [ Links ]

AVILA, Alicia . Um curriculum de matemática para a educação básica de jovens e adultos - dúvidas, reflexão e contribuição. In: JORNADA DE REFLEXÃO E CAPACITAÇÃO SOBRE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA DE JOVENS E ADULTOS, 1, 1995, Rio de Janeiro. Anais. Brasília: MEC/Unesco/Orealc, 1997.        [ Links ]

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 1992.        [ Links ]

________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.        [ Links ]

BARTLETT, F. Remembering: a study in experimental and social psychology. London: Cambridge University Press, (1832) 1977.        [ Links ]

BILLIG, Michael. Memoria colectiva, ideología y la familia real británica. In: MIDLETON, David & EDWARDS, Derek (Org). Memoria compartida: la naturaleza social del recuerdo y del olvido. Barcelona: Paydós, 1990. p.77-96.        [ Links ]

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.        [ Links ]

CARRAHER, David & outros. Na vida dez, na escola zero. São Paulo: Cortez, 1988.        [ Links ]

CARVALHO, Dionne Luchesi de. A interação entre o conhecimento matemático da prática e o escolar. Campinas; 1995. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas.        [ Links ]

CASTILHO, Ataliba T. de. Para o estudo das unidades discursivas no Português Falado. In.:________. (org.). Português Culto Falado no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989. p. 249-280.        [ Links ]

COSTA VAL, Maria da Graça F. Entre a oralidade e a escrita: o desenvolvimento da representação de discurso narrativo escrito em crianças em fase de alfabetização. Belo Horizonte; 1996. Tese, (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais.        [ Links ]

D’AMBROSIO, Ubiratan. Socio-cultural bases for mathematics education. Campinas: Unicamp, 1985.        [ Links ]

DUARTE, Newton. O ensino de matemática na educação de adultos. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1986.        [ Links ]

EDWARDS, Derek & MERCER, Neil M. Common Knowledge: the development of Understanding in the Classroom. Londres: Methuen, 1987.        [ Links ]

EDWARDS, Derek & MERCER, Neil M. Reconstructing context: the conventionalization of classroom knowledge. Discourse processes. n. 12, p. 91-104, 1989.        [ Links ]

________ & MIDDLETON, David. Joint remembering: constructing an account of shared experience through conversacional discourse. Discourse processes, 9, p. 423-459, 1986.        [ Links ]

________. Conversacional remembering and family relationships: how children learn to remember. Journal of Social and Personal Relationships, 5, p. 3-25, 1988.        [ Links ]

GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 1995.        [ Links ]

FONSECA, Maria C.F.R. Discurso, memória e inclusão: reminiscências da matemática escolar de alunos adultos do Ensino Fundamental. Campinas, 2001. 446 pp. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação da Unicamp.        [ Links ]

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.        [ Links ]

ILARI, Rodolfo. Perspectiva funcional da frase portuguesa. 2a ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.        [ Links ]

KNIJNIK, Gelsa. O saber popular e o saber acadêmico na luta pela terra: uma abordagem etnomatemática. A Educação matemática em revista: Etnomatemática, n. 1, 2o sem., 1993.        [ Links ]

LIMA, N.C. Aritmética na feira: o saber popular e o saber da escola. Recife; 1985. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Pernambuco.        [ Links ]

MIDDLETON, David & EDWARDS, Derek. Recuerdo conversacional: un enfoque socio-psicológico. In:________. (org.). Memoria compartida: la naturaleza social del recuerdo y del olvido. Barcelona: Paydós, 1990. p. 39-62.        [ Links ]

MONTEIRO, Alexandrina. O ensino de matemática para adultos através do método da modelagem matemática. Rio Claro; 1991. Dissertação (Mestrado em Educação matemática) – Universidade Estadual Paulista.        [ Links ]

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. Revista Brasileira de Educação. n. 12. São Paulo: Anped – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação. p. 59-73, 1999.        [ Links ]

RADDLEY, Alan. Artefactos, memoria y sentido del passado. In: MIDLETON & EDWARDS. Memoria compartida: la naturaleza social del recuerdo y del olvido. Barcelona: Paydós, 1990. p.63-76.        [ Links ]

SHOTTER, John. In: MIDLETON, David & EDWARDS, Derek (Org.). Memoria compartida: la naturaleza social del recuerdo y del olvido. Barcelona: Paydós, 1990. p. 137-156.        [ Links ]

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.        [ Links ]

SOTO, Isabel. Aportes do enfoque fenomenológico das didáticas no ensino da matemática de jovens e adultos. In: JORNADA DE REFLEXÃO E CAPACITAÇÃO SOBRE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA DE JOVENS E ADULTOS, 1, 1995, Rio de Janeiro. Anais. Brasília:MEC/UNESCO/OREALC, 1997        [ Links ]

SOUZA, Ângela Maria Calazans. Educação matemática na educação de adultos e adolescentes segundo a proposta pedagógica de Paulo Freire. Vitória: 1988. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo.        [ Links ]

TEIXEIRA, Mário Tourasse. Notas de aula. (não publicadas) Disciplina: Idéias essenciais da matemática. Mestrado em Educação Matemática. Rio Claro: IGCE/UNESP, 1º semestre, 1986.        [ Links ]

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.        [ Links ]

________. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.        [ Links ]

WERTSCH, James V. Vygotsky y la formación social de la mente. Barcelona: Paidós, 1988.        [ Links ]

 

Recebido em 16/10/2001
Aprovado em 05/12/2001

 

Maria da Conceição F.R. Fonseca é integrante do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da Universidade Federal de Minas Gerais e do Círculo de Estudo, Memória e Pesquisa em Educação Matemática da Unicamp.

 

 

1. Com a autorização dos alunos e, em alguns casos, por solicitação deles, seus nomes reais foram mantidos neste artigo. Na identificação dos turnos, foi preservada a numeração que receberam na transcrição completa das sessões em que se deram as interações aqui apresentadas.