It is the cache of ${baseHref}. It is a snapshot of the page. The current page could have changed in the meantime.
Tip: To quickly find your search term on this page, press Ctrl+F or ⌘-F (Mac) and use the find bar.

Revista Eletrônica de Enfermagem
ree-banner-final   Início
Atual
Expediente
Instruções aos autores Sistema de submissão
 
Artigo de Atualização
 

Silva RMCRA, Pereira ER, Santo FHE, Silva MA. Cultura, saúde e enfermagem: o saber, o direito e o fazer crítico-humano. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2008;10(4):1165-71. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v10/n4/v10n4a30.htm.

 

Cultura, saúde e enfermagem: o saber, o direito e o fazer crítico-humano

 

Culture, health and nursing: knowledge, right and human critical making

 

Cultura, salud y enfermería: el saber, el derecho y el hacer crítico-humano

 

 

Rose Mary Costa Rosa Andrade SilvaI, Eliane Ramos PereiraII, Fátima Helena do Espírito SantoIII, Marcos Andrade SilvaIV

I Enfermeira. Filósofa. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense. Niterói/RJ. E-mail: rafamig@terra.com.br.

II Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense. Niterói/RJ. E-mail: eliaper@terra.com.br.

III Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense. Niterói/RJ.  E-mail: fatahelen@terra.com.br.

IV Enfermeiro. Mestre em Enfermagem. Professor Assistente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Gama Filho. Rio de Janeiro/RJ.

 

 


RESUMO

Trata-se de um trabalho que apresenta uma reflexão teórico-filosófica acerca da cultura, saúde e enfermagem. Selecionamos autores que entendem a filosofia como um saber que coloca os problemas do pensar e do agir como questão ou processo. Focalizamos três instâncias, a saber: a cultura, a saúde e a enfermagem como saber, direito e fazer crítico. A cultura é compreendida como resposta do homem ao desafio da existência onde o humano se realiza. A enfermagem é um fazer crítico humano e ao fazer, o enfermeiro se faz. O enfermeiro percebe-se como capaz de transformar a natureza e a si mesmo no trabalho. A saúde é um direito a ser conquistado e historicamente esta perspectiva passa a ganhar corpo, ainda que lentamente, na cidade moderna. Conclui-se que a cultura aparece como “seiva” que nutre a ação humana, a forma através da qual a humanidade se configura no triângulo: cultura, trabalho/enfermagem e saúde.

Palavras chave: Cultura; Ciências da Saúde; Filosofia em Enfermagem.


ABSTRACT

This paper presents a philosophical and theoretical reflection about culture, health and nursing. Three instances will be highlighted, such as: knowledge, right and human critical making. For this reason, we selected three authors that understand philosophy as knowledge which puts the acting and knowledge problems as question or process.The nurse realizes that he is able to transform the nature and that he is also capable to modify himself through his job. Health is a right to be conquered and historically, this view achieves a figure even if slowly in the modern society. We came to the conclusion that culture appears as an energy which feeds the triangle culture, health and nursing.

Key words: Culture; Health sciences; Philosophy in nursing.


RESUMEN

Se trata de un trabajo que plantea una reflexión teórico-filosófica en lo que se refiere a la cultura, salud y enfermería. Enfocaremos las tres instancias como saber, derecho y hacer crítico humano, respectivamente. Elegimos, para eso, autores que  entienden la filosofía como un saber que pone los problemas del pensar y del actuar como cuestión o proceso. La cultura es comprendida como respuesta del hombre al desafío de la existencia donde el humano se realiza. La enfermería es hacer crítico-humano y al hacer, el enfermero se hace. Al actuar el enfermero se realiza, se percibe capaz de transformar la naturaleza y a si mismo a través de su trabajo. La salud es un derecho a ser conquistado e históricamente, esta perspectiva pasa a ganar cuerpo, aunque lentamente, en la sociedad moderna. Se concluye que la cultura aparece como “savia” que nutre la acción humana, la forma a través de la cual la humanidad se configura en el triángulo cultura, salud y enfermería.

Palabras clave: Cultura; Cience de la salud; Filosofia de la enfermeria.


 

 

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Este artigo visa refletir acerca da cultura, da saúde e explicitar em que medida estas concepções permeiam a enfermagem. Mister se faz dizer que a reflexão que iremos nos pautar é a filosófica e esta reflexão possui três características que a distingue das demais. A reflexão é propriamente filosófica quando é radical, rigorosa e de conjunto(1).

A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamentos”, “base”. Portanto, a filosofia é radical enquanto explicita os fundamentos do pensar e do agir.

A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia da vida não leva suas conclusões até as últimas conseqüências, a reflexão filosófica dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambigüidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, a reflexão filosófica inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido das palavras usuais.

A reflexão filosófica é aquela que desenvolve uma reflexão de conjunto porque é global, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Neste sentido a filosofia visa o todo, a totalidade. Daí sua função de interdisciplinaridade, que permite estabelecer o elo entre as diversas formas do saber e do agir humano(2).

Diante destes considerandos compreendemos a partir da reflexão filosófica, que devido à interferência do homem sobre a natureza, por meio do trabalho e das inter-relações entre os homens, surge o mundo dos bens simbólicos, dos saberes sobre as coisas e sobre os próprios homens, configurando assim o mundo da cultura. A enfermagem está dentro do contexto saúde como profissão, prática social, arte, fazer humano. Desta forma, o homem, individualmente ou em associação com outros homens, intervém na natureza para transformá-la em seu benefício mediante o trabalho: ação deliberada, intencional e consciente por meio da qual ele responde aos desafios da natureza. Assim, o homem cria o mundo das coisas, condição necessária para garantir sua existência material(3).

Neste trabalho procuramos focar a reflexão na cultura enquanto saber humano; a enfermagem como fazer crítico-humano e a saúde como direito fundamental do cidadão e como tal, ligada à política. Para isso, selecionamos autores que entendem a filosofia como um saber que coloca os problemas do pensar e do agir como questão ou processo. Nesta perspectiva, este é um saber onde somos desafiados a “aprender a pensar”(4), e aqui prima-se pelo desenvolvimento da capacidade de questionar, de rejeitar como dado inequívoco a evidência imediata.

É preciso dizer também que o importante da trajetória deste pensamento não é conhecer apenas as respostas que outros deram, mas tentar alcançar, através da questão posta por eles, uma nova resposta, a qual por sua vez abrirá o caminho a novas questões.

Assim, a enfermagem é o fazer crítico-humano por meio do qual o homem produz bens materiais e se auto produz; a cultura é o saber humano que resulta da intervenção do homem na natureza através do trabalho, da técnica e das idéias, bem como os produtos que resultam dessa intervenção transformadora. A saúde é o direito do cidadão, mas também uma dimensão que abarca a política enquanto poder humano que emerge das relações entre os homens e destes com a natureza.

Cremos poder dizer que este artigo se justifica na medida em que a cultura, a saúde e a enfermagem são elementos fundamentais para se galgar um cuidado humanizado dentro de um sistema que pretende promover saúde e qualidade de vida e assim, é preciso que a enfermagem lance olhar atento para tal conjuntura.

 

CULTURA: A RESPOSTA DO HOMEM AO DESAFIO DA EXISTÊNCIA

A palavra cultura deriva do verbo latino colere, que significa “cultivar”; “criar”; “honrar”; “tomar conta”; e “cuidar”. Foi empregada inicialmente no final do século XI, para indicar o cuidado dos homens com os deuses (culto), bem como o cuidado dos homens com a natureza (agricultura). Além do culto religioso, cultura designa o trabalho da terra para se produzir bens comestíveis (verduras, legumes, frutas, grãos). Assim, o termo cultura é empregado até hoje quando se fala em cultura do café, da soja, do trigo(3).

Na Grécia Antiga o termo cultura adquiriu uma significação especial, ligada à formação individual do homem. Correspondia à chamada paidéia, processo pelo qual o homem realizava sua verdadeira natureza desenvolvendo a filosofia (conhecimento de si mesmo e do mundo) e a consciência da vida em comunidade. Em todas essas acepções de cultura podemos perceber uma idéia básica de desenvolvimento, formação e realização.

Usada por antropólogos, historiadores e sociólogos, a palavra cultura designa o conjunto dos modos de vida criados e transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de determinada sociedade. Nesse sentido, abrange conhecimentos, crenças, artes, normas, costumes e muitos outros elementos adquiridos socialmente pelos homens.

A cultura pode ser considerada, portanto, um amplo conjunto de conceitos, símbolos, valores e atitudes que modelam uma sociedade e abrange o que pensamos, fazemos e temos como membros de um grupo social. Desta forma, todas as sociedades humanas, da pré-história aos dias atuais, possuem, uma cultura. E cada cultura tem seus próprios valores e sua própria verdade. Podemos acrescentar, por fim e numa abordagem mais filosófica, que cultura é a resposta oferecida pelos grupos humanos ao desafio da existência. Uma resposta que se manifesta em termos de conhecimento (logos), paixão (pathos) e comportamento (ethos). Isto é em termos de razão, sentimento e ação(5).

Diante desta conjuntura o arqueólogo norte americano Robert Braidwood procurou indicar os principais elementos que caracterizam a cultura: adquirida pela aprendizagem, e não herdada pelos instintos; transmitida de geração a geração, através da linguagem, nas diferentes sociedades; criação exclusiva dos seres humanos, incluindo a produção material e não-material; múltipla e variável, no tempo e no espaço, de sociedade para sociedade. Quando falamos de cultura, estamos pensando em algo que perdurou através do tempo(6); de algo que herdamos e transmitimos a outros.

Enfim, a cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado grupo desapareçam. No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e os entendimentos(6)

O homem é um ser que se distingue dos demais por transformar a natureza, criando para si uma “segunda natureza”, a cultura.

Evidencia-se uma concepção fundamentalmente bipolar, em que um momento subjetivo (o homem) entra em contato com um objetivo (o mundo, a natureza e o ambiente), construindo fonte de significado na relação do homem com ele mesmo, com os outros e com a natureza(7).

Se a intervenção do homem na natureza trouxe, ao longo dos séculos, melhorias à vida humana, não se pode negar que provocou também grandes problemas ambientais, em virtude da forma e da intensidade com que se deu essa intervenção, sobretudo no século XX.

Durante mais de 99% da história da humanidade, vigorou a concepção de que o mundo era encantado e o homem se sentia como parte integrante dele. Nos últimos quatro séculos, a total reversão dessa concepção destruiu, no plano psíquico e físico, o sentimento de integração do homem em relação à natureza. Isso foi responsável pela quase-destruição ecológica do planeta. Mister se faz que atentemos para uma postura ética e estética que venha a corroborar para um mundo mais solidário e amoroso. A enfermagem através do fazer crítico humanizado muito tem a contribuir nessa era e na vindoura.

A cultura envolve aspectos que levam gerações para serem constituídas, impregnando as formas de agir e compreender o mundo dos grupos sociais. No entanto, essa mesma construção demonstra que o desenvolvimento de uma cultura é vivo, em permanente e constante transformação e significação, o que possibilita o avanço de práticas, sua validação ou não, entre as diferentes gerações(8).

 

O HUMANO SE REALIZA PELA CULTURA

A ação humana não se esgota na sua dimensão prática. O homem também produz símbolos, isto é, valores, idéias, leis, linguagem, sonhos e fantasias. É assim que o homem se liberta da natureza, rompe as cadeias que o prendem à animalidade, subtrai-se de uma região onde tudo se realiza imperativamente pela voz silenciosa do instinto e inaugura o mundo da liberdade, da indeterminação, da linguagem, da educação.

Uma cultura nunca é estática, isso determinaria sua extinção; seus símbolos são reconstruídos com a participação de diferentes atores. Cabe aos profissionais de saúde desenvolver conscientemente seu papel, como preservador de valores e comportamentos culturais(8).

A ação humana é consciente, guiada por finalidade. Se a natureza não equipa o homem, tal como os animais, para dar conta da tarefa de permanecer vivo, ele, associando-se aos outros homens, toma consciência de que está vivo e inventa algo novo que ultrapassa a natureza.

Ele aprofunda essa consciência no trabalho, que é ação para a sobrevivência material. Percebe-se como capaz de transformar a natureza e a si mesmo no trabalho. E essa transformação ganha consistência à medida que, pelo trabalho, ele se apossa do mundo e o transforma.

Sua consciência também se aprofunda na linguagem, que lhe permite uma comunicação ampla, diversificada e aberta com outros homens(3).

Na verdade, nenhum pensamento individual cria idéias, sem referência a um alicerce mental formado social e culturalmente. Por mais individual que sejam as experiências, outras pessoas as compartilharam de alguma forma(7).

 

TRABALHO / ENFERMAGEM: PRODUÇÃO DE OBJETOS E SABERES

É interessante ressaltar que, etimologicamente, o termo trabalho vem do latim tripalium, um instrumento de tortura feito de três paus. Quando pensamos sobre o papel do trabalho em seu aspecto individual, percebemos que ele pode permitir ao homem expandir suas energias, desenvolver sua criatividade e realizar suas potencialidades. Pelo trabalho o ser humano é capaz de moldar e mudar a natureza e ao mesmo tempo, transformar a si próprio, ou seja, trabalhando podemos modificar o mundo e a nós mesmos(5).

O enfermeiro ao cuidar do outro, cuida também de si mesmo. A mão que toca é também tocada. Em seu aspecto social, isto é, como esforço conjunto dos membros de uma comunidade, o trabalho teria como objetivos últimos à manutenção da vida e o desenvolvimento da sociedade.

A intervenção de enfermagem é sinônima de interação humana na qual “é preciso que os atos de cuidar sejam articulados com os princípios de conservação de energia e integridade pessoal, social, política e estrutural”(9).

Marx(10) afirmava que o trabalho é a “eterna necessidade natural da vida social”. O trabalho é um fazer exclusivo do ser humano, por isso, determinado materialmente como corpo, como organismo, ele é dotado de vida. E a vida humana suplanta a sua dimensão biológica, corpórea, orgânica e deixa de ser somente um fato para ser também um valor.

A dimensão valorativa evidencia-se no aparecimento da consciência, o homem não é dotado pela natureza de uma capacidade de adaptação limitada às cercanias do ambiente. Ele é o mais frágil dos animais. Entretanto essa fragilidade lhe abre o espaço da ação indefinidamente. O enfermeiro, especificamente cria, inventa os seus modos de vida, de fazer enfermagem, e pela interferência da consciência, constrói, elabora, vislumbra os alvos da sua ação enquanto ser enfermeiro, desenhando o horizonte de sua própria vida, auto-criando-se.

O trabalho da enfermagem é, pois, realizado no campo do fazer humano. Quando o enfermeiro age, cria, empreende, produz objetos e saberes, bens materiais e bens simbólicos.

Desta forma, a Enfermagem é compreendida como uma "ciência em construção" ou seja, um conhecimento que se justifica não por absoluta precisão, mas pela necessidade mesma de buscar respostas para a questão de elevar o alcance epistemológico dos resultados das investigações na enfermagem - seu saber e seu fazer(11).

Esses objetos e saberes são produzidos, distribuídos, apropriados socialmente, e a produção, a distribuição e a apropriação desses objetos e saberes desenham não só o campo do fazer, isto é, o âmbito da enfermagem, do trabalho, mas também o campo da cultura e da política. Tais dimensões estão intrinsecamente entrelaçadas.

 

TRABALHO: OBJETIVAÇÃO X ALIENAÇÃO

Em Marx(12), o trabalho é processo de exteriorização da criatividade humana e possui dois momentos distintos. O primeiro seria da objetivação, que se refere especificamente à capacidade de o homem se objetivar, se exteriorizar nos objetos e nas coisas que cria, o que é algo próprio do saber – fazer humano. O segundo momento, para o qual Marx(12) reserva o termo alienação, seria aquele em que o homem, principalmente no capitalismo, após transferir suas potencialidades para os seus produtos, não os identifica como obra sua.

Os produtos “não pertencem” a quem os produziu. Com isso são “estranhos” a quem os produziu, seja no plano econômico, psicológico ou social. Marx(12) está se referindo ao processo de perda de si mesmo que o trabalhador experimenta em relação ao produto de seu trabalho. Este momento pode também ocorrer com o enfermeiro.

Na sociedade atual, o processo de alienação atinge múltiplos campos da vida humana, impregnando as relações das pessoas com o trabalho, o consumo, o lazer, seus semelhantes e consigo mesmas. O enfermeiro precisa estar atento, a fim de não abrir mão de sua capacidade de crítica e auto-crítica, a fim de não enveredar pelo trabalho alienado.

O trabalho ocupa um lugar de grande relevo no processo de viver humano sendo pertinente dar lugar à expressão da subjetividade dos trabalhadores e permitir a participação destes no planejamento e organização do trabalho. Essa participação pode aproximar os trabalhadores do conhecimento global do processo de trabalho evitando a alienação e o sofrimento e promovendo o prazer e o bem-estar na atividade laboral(13).

Marx(12) diz que o caráter alienado desse trabalho é facilmente atestado pelo fato de ser evitado como uma praga, desde que não haja imposição de cumpri-lo. Afinal, diz Marx, o trabalho alienado é um trabalho de sacrifício, de mortificação. É um trabalho que não pertence ao trabalhador, mas sim à outra pessoa que dirige a produção.

Enquanto atividade humana, o trabalho não pode ser reduzido a um processo alienante onde o trabalhador se limita a cumprir normas e prescrições alerta Almeida (13). O trabalho compreende a subjetividade de cada sujeito e pode ser fonte de sofrimento e de fadiga para uns e de prazer para outros.

 

SAÚDE COMO DIREITO E A QUESTÃO DA SAÚDE

Nem sempre se delegou à cidade a responsabilidade de proteger a saúde como direito fundamental do cidadão. “Quem tem acesso, na cidade, às ações e serviços de saúde?” A resposta a essa pergunta deu-se de formas diversas na história conforme o “interesse” da cidade. Como fenômeno coletivo, entretanto, a saúde torna-se objeto de cuidado dependendo sempre do modo como atinge o cidadão e interfere na vida “harmoniosa” ou no “equilíbrio da cidade”.

Na polis grega era necessário cultivar a saúde do cidadão como forma de manutenção da ordem política da cidade. Cultiva-se a saúde como quem cultiva uma planta, para que crescesse bonita e com todo viço.

A saúde era, portanto um dom natural. Hipócrates, médico grego, afirmava que a natureza condicionava a saúde do indivíduo. Portanto, sua medicina procurava não intervir na harmonia do corpo, deixava-o refazer-se naturalmente, reequilibrar-se. Perder a saúde significava perder um elemento integrante da natureza, condição de reconhecimento do cidadão e, portanto, isto implicava como conseqüência na perda da cidadania. No caso de doenças graves e contagiosas havia a prática do isolamento: o ostracismo.

Platão no seu livro “A República” justifica o afastamento de velhos senis e doentes. Importante é o cultivo do corpo belo, harmonioso e conseqüentemente saudável. Essa preocupação fazia parte do código ético – político de Atenas. E toda a medicina grega mantém uma série de prescrições (alimentação, sono, exercícios), sempre procurando conter os excessos, submetendo o cuidado com a saúde, à Razão (logos)(14).  

Se analisarmos a saúde na Idade Média, veremos que ela não se constituía num direito, pois não era uma preocupação da época, nem dos governantes, nem dos padres da igreja, já que o corpo é preterido com relação à alma. A saúde, portanto, dom natural na Antiguidade, preterida aos cuidados do espírito da Idade Média, só passará a ser compreendida como um direito, na modernidade.

É somente na cidade moderna que a saúde aparecerá lenta, mas definitivamente, como um direito a ser conquistado. A partir da ascensão da burguesia até nossos dias, quando o corpo passa a ser encarado como força de trabalho, do momento em que perder a saúde significa debilitar esta mesma força de trabalho, a questão da saúde passa a ser preocupação coletiva. Surgem então, os sistemas de prevenção da doença e recuperação da saúde(15).

O processo saúde/doença é resultante da relação do homem com a natureza que se dá de modo satisfatório ou não, através da produção da vida material, do trabalho, da técnica, das relações com os outros homens(15).

Hoje, direito à saúde passa pela garantia de vida digna para a população e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de preservação e recuperação da saúde. Esse direito é o que se passou a denominar de consciência sanitária(15).

As nuanças da pós-modernidade têm exercido influência, e o ser humano está mais aberto para receber e solicitar que seja cuidado na sua condição de humano(16). O marco que precisamos alcançar é a saúde promovida de forma coletiva abrangendo todas as classes sociais e faixas etárias englobando os mais variados assuntos direta ou indiretamente o que contribuirá para a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. Isto é o anseio de toda e qualquer sociedade, e constitui a expressão maior da cidadania(17).

A saúde está diretamente ligada à política, pois política é poder humano. O campo da política se configura na existência do conflito entre a dimensão privada e a pública, na medida em que o homem é um ser social.  Essa configuração inclui a realidade da intersubjetividade, posto que a sociabilidade não apaga a subjetividade, o caráter individual das singularidades. A questão da saúde está ligada ao âmbito da política porque:

  • Não é possível ao homem, nem o setor saúde, prescindir da política; e,

  • Não se pensa a saúde pública atual sem se pensar a realidade política hodierna e considerar as influências de toda carga histórica e política legada à humanidade.

Quanto à dimensão humana dos sujeitos, não só os que oferecem sua atenção específica como os que demandam e recebem os cuidados de enfermagem têm o direito inalienável à saúde. Um direito de todos, e por isso mesmo, tão universal quanto o direito à vida e à felicidade(11).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura aparece, então, como a “seiva” que nutre a ação humana. A forma através da qual a humanidade se configura no triângulo: cultura (saber humano), trabalho / enfermagem (fazer crítico-humano) e política (poder humano). Dentro desta conjuntura temos a saúde como direito, mas também dependente da esfera política.

Esse conceito dinâmico de cultura como resultado das interações constantes, possibilita ao enfermeiro uma compreensão de que o “ser humano é um ser que percebe e age”. Nessa ótica, o cliente é um “ser ativo que traz suas experiências provenientes dos demais subsistemas de cuidado à saúde”(18).

O trabalho viabiliza a interferência consciente do homem na natureza; a cultura resulta da capacidade de reter e classificar, sob a forma de idéias, os resultados dessa interferência na natureza; e a política refere-se ao ordenamento do mundo dos bens e dos saberes, estabelecendo a dinâmica da produção, da circulação e do usufruto desses bens e desses saberes.

Finalmente, cultura, saúde e enfermagem são instâncias profundamente imbricadas. Não há como se falar em saúde sem se referenciar a enfermagem. Não há como se falar de enfermagem se não considerarmos a cultura e as políticas de saúde. Fazer enfermagem é fazer-se dentro do contexto da saúde e da cultura.

A enfermagem vem construindo uma nova cultura profissional apoiada sobre bases mais solidárias, o que propicia emergir outros valores, novas maneiras de pensar e agir em saúde(19). Assim, a reflexão apresentada neste estudo soma-se àqueles que desejam “dominar conhecimentos capazes de apoiar a construção científica, seja como meta para atingir o status das ciências seja para definir de vez o valor do corpus doutrinae da profissão”(20).

 

REFERÊNCIAS

1. Saviani D. Educação Brasileira; estrutura e sistema. São Paulo: Saraiva; 1973.

2. Aranha MLA. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna; 1996.

3. Souza SMR. Um outro olhar: filosofia. São Paulo: FDT; 1995.

4. Buzzi AR. Introdução ao pensar. Petrópolis: Vozes; 1987.

5. Cotrim G. Fundamentos da Filosofia: história e grandes temas. São Paulo: Saraiva; 2002.

6. Braidwood R. Homens pré-históricos. Brasília: Ed Universidade de Brasília; 1985.

7. Oliveira BGRB. A passagem pelos espelhos: a construção da identidade profissional da enfermeira [thesis]. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ.

8. Müller CP, Araujo VE, Bonilha ALL. Possibilidade de inserção do cuidado cultural congruente nas práticas de humanização na atenção à saúde. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2007 [cited 2008 ago 25];9(3):858-65. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v9/n3/v9n3a24.htm

9. Lima MJ. O que é enfermagem? Cogitare Enferm. 2005;10(1):71-4.

10. Max EF. A ideologia alemã. Lisboa: Martins Fontes; 1974.

11. Carvalho V. Acerca de las bases teóricas, filosóficas, epistemológicas de la investigación científica – el caso de la enfermería. Rev Latino-am Enfermagem. 2003;11(6):807-15.

12. Max EF. Manuscritos econômicos – filosófico. Lisboa: Edições 70; 1989.

13. Almeida PJS, Pires DEP. O trabalho em emergência: entre o prazer e o sofrimento. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2007 [cited 2008 ago 25]:9(3):617-29. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v9/n3/v9n3a05.htm

14. Platão. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural; 1997.

15. Solis DE. Cidade e cidadania. In: Olinto AP, Hühne LM. Fazer filosofia. Rio de Janeiro: UAPÊ; 1994. p. 213-78

16. Silva LC, Terra MG, Camponogara S, Erdmann AL. Pensamento complexo: um olhar em Busca da solidariedade humana nos Sistemas de saúde e educação. Rev. enferm. UERJ. 2006;14(4):613-9.

17. Barbosa MA, Medeiros SM, Prado MA, Bachion MM, Brasil VV. Reflexões sobre o trabalho do enfermeiro em saúde coletiva. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2004 [cited 2008 ago 25];6(1):9-15. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/revista6_1/f1_coletiva.html.

18. Boehs AE, Monticelli M, Wosny AM, Heidemann IBS, Grisotti MG. A interface necessária entre enfermagem, educação em saúde e o conceito de cultura. Texto contexto-enferm. 2007;16(2):307-14.

19. Bellato R, Pereira WR.  Enfermagem: da cultura da subalternidade à cultura da solidariedade. Texto contexto-enferm. 2006;15(1):17-25.

20. Carvalho V. Sobre construtos epistemológicos nas ciências – uma contribuição para a enfermagem. Rev Latino-am Enfermagem. 2003;11(4):420-8.

 

 

Artigo recebido em 27.11.06.

Aprovado para publicação em 31.12.08.

 

Creative Commons LicenseA Revista Eletrônica de Enfermagem está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

 

Faculdade de Enfermagem/UFG - Rua 227 Qd 68, S/N, Setor Leste Universitário. Goiânia, Goiás, Brasil. CEP: 74605-080.
Telefone: (55 62) 3209-6280 Ramal: 218 ou 232 - Fax: (55 62) 3209-6282