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Dados - Modus tollens, the holism of Duhem-Quine and the social sciences: le holisme de Duhem-Quine et les sciences sociales

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Dados

Print version ISSN 0011-5258

Dados vol.44 no.2 Rio de Janeiro  2001

http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582001000200006 

O Modus Tollens, o Holismo de Duhem-Quine e as Ciências Sociais

Renan Springer de Freitas
Ana Cristina Murta Collares

 

 

Em seu Constructing Social Theories, de 1968, Stinchcombe afirma que todo o edifício da inferência científica se funda em um único procedimento: dirigir o modus tollens a enunciados determinados. Dirigir o modus tollens a um enunciado é derivar conseqüências empíricas desse enunciado e testá-las. Se estas não resistem ao teste, o enunciado foi falseado1. Em termos gerais, a fórmula é: se p, então q; não q, logo não p. Essa concepção de inferência científica desfruta hoje de um status canônico nas ciências sociais. Ela é veiculada pelos livros-textos e ensinada nos cursos introdutórios de Metodologia (ver, p. ex., King, Keohane e Verba, 1994)2. Não obstante, ela tem sido alvo de críticas contundentes. Nos anos 60, Kuhn atacou-a com o argumento de que os cientistas não são treinados para dirigir o modus tollens a teorias, mas para ignorar as evidências que as contrariam (Kuhn, 1962). Nos anos 70, Feyerabend atacou-a com o argumento de que a ciência só pôde progredir porque apesar de os epistemólogos recomendarem o uso do modus tollens, os cientistas foram sábios o suficiente para não seguir tal recomendação (Feyerabend, 1977). Há, entretanto, uma objeção mais contundente porque, em lugar de envolver considerações sobre o comportamento dos cientistas, envolve uma rejeição radical da própria idéia de que é possível derivar conseqüências empíricas de enunciados determinados. Estamos nos referindo à crítica formulada pelo filósofo W. V. Quine, a partir de uma concepção holista do conhecimento - assim chamada porque postula que teorias encerram redes de enunciados que só podem ser aceitos ou falseados em bloco.

A pedra angular dessa concepção, que remonta a Pierre Duhem, é a idéia de que o significado de um enunciado reside na inserção deste último em um conjunto mais amplo de enunciados. Enunciados isolados, nesta perspectiva, nada significam. Se nada significam, não podem servir de ponto de partida para a derivação de conseqüências empíricas passíveis de teste e, daí, a própria noção de dirigir o modus tollens a enunciados determinados perde o sentido. No século XVIII, Hume recomendou a fogueira para os livros de Metafísica. Dois séculos mais tarde, os escritos de Quine parecem nos convidar a fazer o mesmo em relação aos livros-textos de Metodologia.

Neste artigo pretendemos discutir as implicações dessa crítica holista à noção de modus tollens para as Ciências Sociais, tendo em vista que duas das mais importantes obras que essa área de conhecimento já produziu, a saber, O Suicídio, de Émile Durkheim, e A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber, consistem, em larga medida, justamente, no exercício de dirigir o modus tollens a proposições teóricas determinadas - a serem, oportunamente, mencionadas. Posto que, nas obras citadas, tanto Durkheim quanto Weber se permitiram dirigir o modus tollens a proposições isoladas, isto é, posto que nenhum dos dois levou muito a sério o famoso aforismo de Quine de que "um enunciado sobre o mundo não tem freqüentemente um cabedal de implicações empíricas que possa ser isolado e dito próprio a ele" (1985:164)3, ambos se expuseram à crítica holista de que o que efetivamente fizeram, ao pretenderem estar falseando teorias alternativas e contribuindo dessa forma para o avanço do conhecimento a respeito de seus respectivos objetos de estudo, foi mascarar o fato de que suas respectivas teorias não são intrinsecamente melhores que as teorias que procuraram refutar mas, apenas, mais úteis para determinados propósitos. Embora, em linhas gerais, consideramos essa crítica improcedente, cabe-nos discutir se há algum benefício a ser extraído dela.

Antes, porém, cabe um breve comentário sobre a vulnerabilidade da visão canônica de inferência científica acima descrita à crítica holista de Duhem-Quine. Temos o palpite de que se a visão canônica é vulnerável à crítica holista é em razão de não ser possível abrir caminho para a primeira sem, ao mesmo tempo, abrir caminho também para a última. Trata-se, então, de saber o que foi que abriu caminho para ambas. Nossa resposta é: a crítica de Hume à visão indutivista do conhecimento e, principalmente, à concepção de causalidade subjacente a essa visão. Ousamos sugerir que, sem essa crítica, nem a visão canônica, nem a crítica holista seriam possíveis. Com efeito, ao propor que nenhum conjunto de observações de ocorrências particulares autoriza a formulação de uma lei geral, Hume abriu caminho para a idéia, que ele próprio jamais endossou, de que o conhecimento científico consiste na formulação de leis gerais cuja validade pode ser presumida enquanto as conseqüências empíricas dessas leis resistirem a testes - daí, a visão canônica. Por outro lado, ao propor, com base nessa crítica ao indutivismo, que não nos é dado saber se há conexões causais entre fenômenos no ambiente, mas, não obstante, estamos sempre presumindo a existência de tais conexões porque nossas mentes operam através da associação de idéias, Hume abriu caminho para outra tese que ele próprio jamais endossou, a saber, a de que nossas idéias estão necessariamente conectadas umas com as outras e, portanto, só se mantêm em bloco – daí, o holismo4. Assim, se por um lado a crítica de Hume ao anseio por conhecimento apodítico sobre conexões causais abriu caminho para a formulação do modelo canônico de inferência científica anteriormente descrito, por outro lado ela também abriu espaço para que esse modelo pudesse ser vulnerável à crítica holista de Duhem-Quine.

Explicada a vulnerabilidade da visão canônica à crítica holista, podemos discutir as implicações de tal vulnerabilidade para as ciências sociais. Para tanto, devemos logo sugerir que usualmente se concede uma atenção imerecida ao fato (em si mesmo, incontestável) de Durkheim e Weber defenderem posições metodológicas diametralmente opostas. Somos forçados a conceder que os escritos metodológicos de Weber estão em diametral oposição a prescrições como: "a sociologia é a ciência que trata dos fatos sociais", "os fatos sociais devem ser tratados como coisas", "os fatos sociais só podem ser explicados em termos de outros fatos sociais", "a ciência precisa de conceitos que descrevam as coisas tais como são", "o fim último de qualquer ciência é subordinar fenômenos a leis" etc. Por outro lado, somos também forçados a reconhecer o antagonismo existente entre as recomendações epistemológicas de Durkheim e a prescrição weberiana de que a sociologia é a ciência que busca compreender o sentido da ação através da construção racional de tipos ideais. Em conexão com tudo isso, enquanto, de um modo geral, Durkheim procurava legitimar seu estudo da sociedade equiparando as ciências sociais às ciências naturais, Weber, bom tributário do historicismo alemão que era, enfatizava o caráter específico das "ciências do espírito", entre as quais se incluiriam as ciências sociais.

Não obstante, se compararmos as discussões substantivas que Durkheim e Weber oferecem em suas obras mais notáveis, os já citados O Suicídio e A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (doravante, A Ética Protestante), os antagonismos acima mencionados mostram-se superficiais ou mesmo irrelevantes. Prestar atenção nessas diferenças obscurece o fato fundamental de que ambos estão, sobretudo, empenhados em refutar teorias bem estabelecidas, dirigindo-lhes o modus tollens. Antes de desenvolvermos esse ponto, precisamos nos deter um pouco mais na crítica holista de Quine.

 

A CRÍTICA HOLISTA DE QUINE

Considere-se o enunciado p: "A Terra é redonda" e o enunciado q: "Quando um navio se dirige à linha do horizonte, o mastro é a última parte a desaparecer". De acordo com a visão canônica mencionada na seção anterior, a inferência científica edifica-se a partir de procedimentos tão simples quanto o seguinte: se p, então q; se q é falso, então p também é falso. Quine tem duas grandes objeções a essa linha de raciocínio. Primeira: ela outorga a uma determinada experiência sensorial, a saber, a observação de que o mastro é a última parte do navio a desaparecer, a condição de árbitro de um enunciado, e experiências sensoriais não estão à altura de tal distinção. Aliás, um dos postulados centrais do holismo quiniano, e que o próprio Quine não conseguiu seguir consistentemente5, é que apenas a "fluência do diálogo" em uma comunidade está a altura de servir de árbitro entre teorias. Segunda objeção: a linha de raciocínio acima incorre no erro de tomar um enunciado isolado, "quando um navio se dirige à linha do horizonte, o mastro deve ser a última parte a desaparecer", como uma inequívoca conseqüência empírica de outro enunciado isolado: "A Terra é redonda". Este último, Quine diria, "não dispõe de nenhum cabedal de conseqüências empíricas que possa ser isolado e dito próprio a ele" porque só significa alguma coisa se considerado em sua relação com todo um conjunto de outros enunciados. Daí que, se a afirmação "quando um navio se dirige à linha do horizonte, o mastro é a última parte a desaparecer" se revelasse falsa, mesmo admitindo-se que o erro não está na observação, não poderíamos saber se o enunciado que está sendo falseado é "A Terra é redonda" ou qualquer outro ao qual este está conectado. O próprio Quine formulou esse ponto nos seguintes termos:

"[...] às vezes uma experiência implicada por uma teoria deixa de se produzir; e então, idealmente, declaramos a teoria falsa. Mas o insucesso falsifica apenas um bloco de teoria como um todo, uma conjunção de muitos enunciados. O insucesso mostra que um ou mais dos enunciados é falso, mas não mostra qual" (Quine, 1985:162).

De acordo com o exposto, nenhum modelo de inferência científica, seja o indutivista que Hume deixou para trás, seja o canônico, é capaz de estabelecer algum tipo de vínculo entre os enunciados p e q de forma a autorizar o falseamento de p a partir do falseamento de q. O que, então, nos permite estabelecer tal vínculo?

A resposta de Quine é: a mesma coisa que nos permite estabelecer um vínculo entre expressões aparentemente tão díspares como, por exemplo, "igual" e "número par", a saber, nossa capacidade de inserir expressões em contextos mais amplos à luz de nossos propósitos imediatos. Para esclarecermos esse ponto, solicitamos ao leitor que considere uma afirmação como "Dois é igual". Dificilmente o leitor verá algum sentido em tal afirmação. Façamos, entretanto, uma tradução literal dessa sentença para o inglês. O resultado será: Two is equal. De volta ao português, obteremos: "Dois é um número par." Há algum vínculo necessário, passível de ser detectado por algum modelo de inferência científica, entre as expressões "igual" e "número par"? Não. Mas podemos aprender a estabelecer tal vínculo se aprendermos a inserir, à luz dos nossos propósitos, os referidos termos em contextos mais amplos. Este, segundo Quine, é o princípio que rege o estabelecimento de qualquer vínculo entre enunciados. Para Quine, estabelecer vínculos entre enunciados, incluindo-se o vínculo que consiste em tomar um enunciado como uma conseqüência empírica do outro, é uma questão de aprender a fazer uso das potencialidades de uma língua.

Na verdade, Quine nunca se cansou de sugerir que a atividade científica não difere muito do aprendizado de uma língua. Grosso modo, tal aprendizado se dá por duas vias. A primeira, mais primitiva, é a via da ostensão. Esta se verifica quando um adulto aponta um objeto para uma criança e diz o nome desse objeto. Após algumas indicações, a criança saberá associar palavras como "água", "camisa", "meia" etc., aos objetos correspondentes. A outra forma de aprendizado, entretanto, é a que mais interessa no que concerne a seu argumento. Trata-se, agora, do processo de aprender a associar palavras e sentenças umas às outras – associar "igual" a "número par" seria um caso extremo. Nesse caso, em contraste direto com o que ocorre no caso anterior, o que conta não é a realidade externa, ou a experiência sensorial imediata, mas a capacidade de inserir o que se ouve em um contexto mais abrangente de enunciados, o que requer, fundamentalmente, interpretar o comportamento dos interlocutores.

O ponto importante em relação a isso é que quando o aprendizado não se dá mais no nível primitivo da ostensão, os significados das sentenças são sempre indeterminados. Nesse nível mais complexo, os significados deixam de ser imagens bem delineadas que produzimos em nossas mentes (imagens como, por exemplo, a de um cão, que produzimos mentalmente ao ouvir a palavra "cão") e passam a ser o conjunto de respostas que o ato em si mesmo de proferir uma sentença evoca em contextos específicos. Assim, um brasileiro que fala inglês pode, dependendo de seus propósitos, se dar por satisfeito com a expressão "dois é igual", se a ouvir de um inglês. Nesse caso, seu conhecimento do idioma inglês lhe permitirá associar "igual" a "par" e, a partir daí, saber que a sentença "dois é igual", quando dita com sotaque inglês, ou mesmo por algum brasileiro que tenha vivido muitos anos na Inglaterra, pode significar "dois é um número par". O argumento de Quine é que o ato de estabelecer um vínculo entre enunciados tais como os referidos p e q é da mesma natureza que o ato de estabelecer um vínculo entre os enunciados "dois é igual" e "dois é um número par". Em ambos os casos, o ato de vincular um enunciado a outro é contingente a um conhecimento anterior (o conhecimento da língua inglesa, no primeiro caso; o conhecimento de geografia e de navegação, no segundo) e a propósitos imediatos (qualquer coisa que ocorra ao leitor, no primeiro caso; fazer previsões, no segundo). Certamente, diria Quine, não estamos proibidos de conectar p a q, mas não devemos nos esquecer que o fazemos por uma mera questão de conveniência, isto é, apenas como um meio eficiente de fazer previsões. Não devemos nos esquecer que há maneiras alternativas de conectar o passado ao futuro e que, desde que uma determinada maneira se mostre eficiente na sua esfera específica de atuação, ela vale tanto quanto qualquer outra. Em seu controvertido Contra o Método, Feyerabend afirmou que não "há uma única teoria digna de interesse que esteja em harmonia com todos os fatos conhecidos que se situam em seu domínio" (Feyerabend, 1977:41). Quine parece nos dizer exatamente o oposto: qualquer teoria é digna de interesse desde que esteja em perfeita harmonia com todos os fatos conhecidos que se situam em seu domínio. Ou, melhor dizendo: uma teoria só é uma teoria na medida em que consegue se manter em harmonia com todos os fatos conhecidos do seu domínio.

Por outro lado, nos marcos da visão holista, manter-se em harmonia com os fatos conhecidos não é uma meta difícil de ser alcançada. Afinal, explica Quine, a ciência é sobretudo um "campo de forças" cujo contato com a experiência só se dá em sua periferia (1985:246-248)6. No exemplo em questão, o enunciado "A Terra é redonda" ocuparia uma posição mais central no "campo". O enunciado que descreve o que observamos quando um navio desaparece na linha do horizonte ocuparia uma posição mais periférica. Entre um e outro, é possível conceber a existência de uma miríade de outros enunciados, não explicitados, uns mais próximos do centro, outros da periferia, conectados entre si e aos dois enunciados em consideração. Se acontecer de a experiência sensorial contrariar um ou mais enunciados situados na periferia desse "campo de forças", não há razão para desespero. Nesse caso, os outros enunciados, quer os que estão a salvo do crivo da experiência sensorial em decorrência de ocupar uma posição central, quer os que tiveram que passar por esse crivo e conseguiram sobreviver, se redistribuem dentro do campo, isto é, deslocam-se para posições mais centrais ou mais periféricas, de forma a manter o sistema como um todo a salvo da experiência sensorial que contrariou um de seus enunciados periféricos. Quine estabeleceu esse ponto dizendo que "qualquer enunciado [não periférico] pode ser considerado verdadeiro, aconteça o que acontecer, se realizarmos ajustamentos suficientemente drásticos em outra parte do sistema" (idem:246).

Ao propor que a ciência é tal "campo de forças", potencialmente capaz de tornar qualquer enunciado imune à ação do modus tollens, Quine está deliberadamente reduzindo-a a um instrumento, dentre outros, do qual podemos dispor para estabelecer conexões entre a experiência passada e a futura, com vistas a realizar previsões acerca desta última. Nessa perspectiva, a única diferença entre a ciência e o senso comum estaria no grau em que a primeira "favorece nosso manuseio da experiência sensível" (idem:247).

Hilary Putnam (1992) explorou as implicações de tudo isso em um artigo intitulado "The ‘Corroboration’ of Theories", no qual procurou mostrar que não é possível fazer previsões a partir de teorias isoladas. Ele se valeu da teoria da gravitação universal de Newton para ilustrar seu ponto. Essa teoria consiste nas três conhecidas leis de Newton acrescidas da lei segundo a qual um corpo a exerce sobre outro corpo b uma força Fab que se orienta para a e cuja magnitude é a constante universal g vezes MaMb/d2. Putnam argumenta que, sendo a gravidade a única força presente, qualquer tipo de movimento pode ser compatível com essa teoria e, portanto, dela não se pode deduzir nenhuma predição. Se, não obstante, a teoria "funciona", é por estar inserida em um contexto mais amplo do qual faz parte todo um conjunto de hipóteses auxiliares. Remova-se esse contexto, Putnam sugere, e a teoria da gravitação universal vira pó. Assim, a teoria da gravitação só pode ser aplicada a problemas astronômicos se se tiver em conta sua dependência de todo um conjunto de hipóteses auxiliares. Se quisermos, por exemplo, calcular a órbita da Terra, teremos que assumir que: I) não existe nenhum corpo exceto a Terra e o Sol; II) o Sol e a Terra existem em um vácuo absoluto e III) o Sol e a Terra não estão submetidos a nenhuma força exceto às forças gravitacionais que exercem um sobre o outro. Se combinarmos a teoria da gravitação de Newton com as hipóteses auxiliares I, II e III seremos capazes de fazer algumas previsões. Se introduzirmos mais hipóteses auxiliares, as previsões podem ser ainda mais acuradas. Entretanto, as previsões jamais derivam apenas da teoria; elas derivam da teoria em combinação com as referidas hipóteses auxiliares. O caráter verdadeiro da primeira (ou, melhor dizendo, das leis que a compõem) pode ser presumido, mas as últimas são reconhecidamente falsas. Hipóteses auxiliares são idealizações necessárias à utilização, ou mesmo à compreensão, das referidas leis. Daí, o ponto de Quine: teorias sustentam-se porque supõem redes de enunciados que se protegem mutuamente, e não porque delas se podem derivar conseqüências empíricas isoladas passíveis de teste.

Exposta a crítica holista à concepção canônica de inferência científica, voltamo-nos agora para a discussão do débito, para com essa concepção, das sociologias de Durkheim e Weber. Iniciaremos por Durkheim.

 

O MODUS TOLLENS E A SOCIOLOGIA DURKHEIMIANA

Como é sabido, O Suicídio consiste em um esforço sem precedentes no sentido de rejeitar tudo o que até então havia sido dito a respeito de mortes voluntárias. O alvo principal de Durkheim foram as teorias de caráter individualista em voga no século XIX – notadamente, a teoria da imitação, segundo a qual o suicídio se explica pela existência de focos de propagação, e a teoria dos estados psicopáticos, segundo a qual o suicídio é uma conseqüência da loucura –, contra as quais ele opôs sua própria teoria de que o suicídio resulta da incidência de correntes sociais de egoísmo, altruísmo e anomia.

Apesar de utilizar um vocabulário nitidamente indutivista, que contraria o modelo canônico de inferência científica descrito na seção introdutória deste artigo, um exame superficial da argumentação desenvolvida por Durkheim na obra em consideração é suficiente para mostrar que o que ele de fato faz é dirigir o modus tollens a todas as teorias até então conhecidas, e à sua própria, para mostrar que só esta última pode resistir.

Vamos iniciar a discussão ressaltando que Durkheim estava, sobretudo, interessado em mostrar que os motivos até então apontados pelo senso comum como as verdadeiras causas do suicídio - motivos como doenças mentais, falência, ciúme, medo de ser condenado, dores físicas etc. - eram apenas manifestações superficiais de causas bem mais profundas, de origem social. As estatísticas oficiais da França e da Saxônia retratavam o suicídio como uma decorrência de motivos como os que constam no Quadro 1. A objeção de Durkheim é muito simples: para que os motivos constantes no referido quadro pudessem ser considerados as verdadeiras causas do suicídio, seria necessário que os números que constam ali fossem bem diferentes. Dito de outra forma: a tese de que o suicídio decorre de fatores como "miséria e reveses da sorte", "desgostos de família", "remorso, medo de condenação por algum crime" etc., demanda números bem diferentes daqueles que constam no Quadro 1. Demanda números tais como os que constam de um quadro com dados hipotéticos, como o Quadro 1a - ao qual oportunamente retornaremos. Tomemos o exemplo do item "miséria e reveses financeiros". As estatísticas oficiais dizem que esse item responde por 13,30% dos suicídios masculinos ocorridos na França no período 1856-60. Essa tese, diria Durkheim, demandaria que em algum período posterior, ou anterior, tanto faz, a porcentagem de suicídios por miséria e reveses financeiros fosse algo bem diferente de 13,30%. Que fosse 4,79%, como consta no Quadro 1a, ou 25%, ou, quem sabe, 19%, mas não algo tão próximo de 13,3% quanto o 11,79% que consta das estatísticas oficiais. O mesmo se aplica para qualquer outro item que consta do Quadro 1, com a única exceção do item "Remorsos, receio de condenação", que, na Saxônia, variou de 10,44% para 6,21% para as mulheres. Se o tempo passa e fatores como a "miséria", o "desgosto de família", o "receio de condenação" etc., não alteram seu impacto sobre a taxa de suicídios, então há algo por trás de cada um desses fatores explicando os números do Quadro 1. A conclusão parece inevitável:

"[...] somos, portanto, forçosamente levados a concluir que estão todas [as causas presumidas] na dependência de um estado mais geral de que são, quando muito, reflexos mais ou menos fiéis. É ele que faz com que estas razões se tornem mais ou menos suicidógenas e, por conseqüência, é ele a verdadeira causa determinante dos suicídios" (Durkheim, 1996:133).

 

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Uma vez estabelecido esse ponto, Durkheim, consistentemente com o modelo canônico de inferência descrito na seção introdutória, passou a dirigir o modus tollens às teorias até então existentes sobre o suicídio. Eram elas: a que concebia o suicídio como uma mania derivada da loucura; a que associava variações na "propensão ao suicídio" a fatores genéticos; a que explicava variações nas taxas de suicídio em termos de variações geográficas ou climáticas e, principalmente, a teoria da imitação. Não há mérito em examinar tudo isso. Vamos nos concentrar na teoria da imitação por ser a mais importante de todas. Vejamos como Durkheim lhe dirigiu o modus tollens.

O suicídio pode, sem dúvida, se propagar por imitação. Mas, pergunta Durkheim, que impacto tal propagação pode ter sobre a distribuição de suicídios em um determinado lugar, em um determinado tempo? Se pode ter algum, a melhor forma de saber é examinando a distribuição geográfica de suicídios em um determinado país e compará-la com a distribuição geográfica que a teoria da imitação demanda. Que distribuição esta última demanda? Não pode haver imitação sem um modelo a imitar. Não pode haver contágio sem "um fulcro do qual ele emane". Daí que, se examinarmos o mapa de algum país, digamos, a França, com suas repartições administrativas, este deveria apresentar um ou mais focos de suicídio exercendo sua influência sobre as repartições mais próximas. Quanto maior a distância de cada repartição com relação ao foco, menores teriam de ser as taxas de suicídio aí verificadas. Essa demanda, Durkheim explica, não foi satisfeita. A distribuição geográfica real de suicídios na França do século XIX não guarda nenhuma relação com a distribuição tal como demandada pela teoria da imitação. Passemos a palavra ao próprio Durkheim:

"O que afinal todos os mapas mostram é que o suicídio, longe de se dispor mais ou menos concentricamente em torno de determinados fulcros a partir dos quais diminuiria progressivamente, se apresenta, pelo contrário, por grandes massas mais ou menos homogêneas e desprovidas de um núcleo central. Tal configuração não tem, pois, nada que releve da influência da imitação. Apenas indica que o suicídio não tem origem em circunstâncias locais, variáveis de uma cidade para outra, mas que as condições que o determinam são sempre gerais. Não há aqui imitadores nem imitados, mas identidade relativa dos efeitos devido a uma identidade relativa nas causas. [...] É portanto natural que nas regiões com uma mesma constituição social se verifiquem conseqüências idênticas, e isto sem qualquer influência do contágio" (idem:119).

Ao constatar que não há focos de propagação de suicídio na França, o caminho está livre para que Durkheim corrobore sua própria teoria. A teoria da imitação demanda a existência de círculos concêntricos em mapas de distribuição de suicídio. A de Durkheim demanda manchas localizadas, representando taxas de suicídio características de meios sociais determinados. Durkheim se dá por vitorioso ao mostrar que, por um lado, aquilo que sua teoria proíbe e, ao mesmo tempo, a teoria da imitação demanda, a saber, os referidos círculos concêntricos, não se verificam, por outro, aquilo que sua teoria demanda e, ao mesmo tempo, a teoria da imitação proíbe, a saber, as referidas manchas localizadas, se verificam. Nada melhor que recorrer ao próprio Durkheim para observarmos o modus tollens em ação:

"O que logo chama a atenção é a existência, no norte, de uma grande mancha cuja parte principal ocupa o local da antiga Île-de-France, mas que penetra profundamente pela Champagne e se estende até a Lorena. Se ela fosse devida à imitação, o foco central deveria estar em Paris, que é o único centro em evidência por toda essa região. [...] Já em seu estudo sobre Le Suicide en Seine-et-Mairne, o Dr. Leroy assinalava com espanto o fato de que a circunscrição de Meaux registrava relativamente mais suicídios do que o Sena. [...] E a circunscrição de Meaux não era a única nesse caso. O mesmo autor nos dá o nome de 166 comunas do mesmo departamento nas quais houve nessa época mais suicídios do que em Paris. Fora do comum esse foco, tão inferior aos focos secundários que deveria alimentar! No entanto, exceto o Sena, é impossível perceber-se outro centro de irradiação, pois é mais difícil ainda subordinar Paris a Corbeil ou a Pontoise" (idem:114, ênfases no original).

Em conexão com tudo isso, Durkheim observa a relação entre o estado "endêmico" de suicídios na Alemanha e o protestantismo. Algumas regiões renanas, justamente os "bolsões" de catolicismo cercados por regiões protestantes, destacam-se por possuir as taxas de suicídio mais baixas de toda a Alemanha, destoando da média nacional. As altas taxas de suicídio que as cercam por todos os lados não puderam atingi-las, ou melhor, contaminá-las. O mesmo pode ser observado entre regiões católicas e protestantes de vários outros países, confirmando que a taxa de suicídios varia bruscamente quando ocorre uma variação brusca do meio social. A conclusão de Durkheim é taxativa: "se é certo que o suicídio é contagioso de indivíduo para indivíduo, nunca se vê a imitação propagá-lo de maneira a afetar a taxa social de suicídio" (idem:121).

Uma vez afastada a teoria da imitação, o caminho está livre para uma explicação de cunho sociológico. Os passos de Durkheim em direção a tal resultado podem ser reconstruídos nos seguintes termos. Primeiro: a elaboração da hipótese, de elevado nível de abstração, de que a explicação para taxas de suicídio deve ser buscada na natureza dos laços sociais. Segundo: a derivação, a partir daí, da hipótese, de nível mais baixo de abstração, de que o suicídio se explica pelo grau de coesão de um grupo social. Quanto mais coeso o grupo, menor a taxa de suicídios. Terceiro: a derivação, a partir de tal hipótese, de conseqüências empíricas do tipo "os protestantes devem se matar com mais freqüência do que os católicos"; "os judeus devem se matar com menos freqüência do que os protestantes e os católicos"; "os solteiros devem se matar mais que os casados" etc. Quarto: testar tais conseqüências. Durkheim concentrou-se na primeira. Ele supunha que havia menos coesão entre os protestantes do que entre os católicos e, por essa razão, que os primeiros fossem mais vulneráveis à ação de correntes suicidógenas. O argumento é bem conhecido. Cada protestante, ele diz, pode ler a Bíblia e interpretá-la como quiser. Os católicos, ao contrário, têm que se sujeitar à interpretação de uma autoridade central. Daí que os católicos são mais bem integrados entre si e, em decorrência, se matam menos.

Há, entretanto, uma séria objeção a ser considerada. Se os católicos se matam menos que os protestantes, pode-se argumentar, isto nada tem a ver com o fato de os católicos serem mais ou menos coesos que os protestantes, mas com aquilo que cada doutrina, a católica e a protestante, respectivamente, valoriza e condena. De acordo com tal argumento, se os católicos se matam menos do que os protestantes, seria simplesmente porque a doutrina católica condena o suicídio com mais veemência do que a doutrina protestante. Em uma palavra, se o protestante se mata mais, pode ser simplesmente por não ter tanto medo, quanto o católico, de que o suicídio possa resultar em severas punições para sua alma.

Para remover tal objeção, que reduziria sua visão sociológica a pó, Durkheim teria que mostrar que o fato de os protestantes se matarem mais que os católicos nada tem a ver com o que as doutrinas católica e protestante condenam ou recomendam. Eis, uma vez mais, o modus tollens em ação. Tal proposição demanda que se existir um país protestante que, não obstante seu caráter protestante, apresente, por qualquer razão, um grau de coesão tão elevado quanto o dos países católicos, então a taxa de suicídios nesse país deve ser tão baixa quanto a que se verifica em países católicos. Haveria tal país? Sim, responde Durkheim, a Inglaterra. A Inglaterra, embora protestante, apresentava taxas de suicídio semelhantes às dos países católicos. Por quê? Porque lá, em razão do anglicanismo, a estrutura hierárquica da Igreja era semelhante à estrutura hierárquica da Igreja Católica. Em ambos os casos, supunha-se a obediência a uma autoridade central, e é isto o que conta. Uma vez existente tal autoridade central, tanto faz o que as doutrinas condenam ou valorizam. Isso abriu o caminho para a tese fundamental de Durkheim: a de que a explicação para taxas de suicídio deve ser buscada no exame da natureza dos laços sociais e não em qualquer fator de natureza psicológica. A explicação para a taxa de suicídios entre os católicos, por exemplo, deve ser buscada na natureza dos laços sociais que se estabelecem entre eles, e não no conteúdo da doutrina católica. Uma implicação desta tese é que, ainda que a doutrina católica não condenasse o suicídio, os católicos se matariam pouco.

Para tornar tal afirmação empiricamente tratável, Durkheim voltou-se para os judeus. O judaísmo é extremamente tolerante com o suicídio. Ao contrário dos católicos do século XIX, os judeus não temiam arder no inferno caso se matassem. Por outro lado, pesquisas da época indicavam uma clara conexão entre o suicídio e três fatores: grau de instrução elevado, procedência urbana e dedicação ao comércio. Esta conjunção de fatores (estamos nos referindo aos quatro) faz do judeu um fortíssimo candidato ao suicídio. Se, entretanto, o que conta é a natureza dos laços sociais, é de se esperar, contra os quatro fatores acima, que os judeus se matem muito pouco – o que, aliás, é o caso. Que meio melhor pode haver de corroborar uma teoria do que derivar uma conseqüência empírica dessa teoria cuja negação é implicada por uma miríade de teorias alternativas? Esta pergunta parece estar subjacente a cada parágrafo de O Suicídio.

É o bastante para Durkheim. Passemos a Weber.

 

O MODUS TOLLENS E A SOCIOLOGIA WEBERIANA

Se Durkheim, em O Suicídio, dirigiu o modus tollens a uma miríade de proposições, Max Weber, em A Ética Protestante, concentrou-se em uma só. Ele dirigiu o modus tollens à tese, que constitui a viga mestra do pensamento marxista, de que a evolução tecnológica está na raiz do processo de mudança social. Weber lançou-se em tal exercício para corroborar sua tese fundamental de que o que difere o capitalismo, tal como hoje o conhecemos, de toda ordem precedente, não é seu caráter de classe, mas o caráter racionalizado da empresa capitalista moderna – o qual, por sua vez, é apenas um sintoma de um processo muito mais amplo: o de racionalização em todas as esferas da vida social7.

Talvez a principal linha de ataque de Weber ao pensamento marxista possa ser resumida assim: explicar a emergência do capitalismo moderno requer explicar o prévio desenvolvimento das estruturas racionais do direito e da administração, e a ênfase marxista no papel evolucionário das mudanças tecnológicas é simplesmente incapaz de oferecer tal explicação. Essa ênfase nos proíbe de perceber, por exemplo, que a busca irrefreável do lucro, a auri sacra fames, não é um traço característico do capitalismo e, mais importante, que seu papel no desenvolvimento das referidas estruturas racionais foi, se tanto, secundário. Citando o próprio Weber:

"[...] o moderno capitalismo racional baseia-se, não só nos meios técnicos e de produção, como num determinado sistema legal e numa administração orientada por regras formais. Sem esta, seriam viáveis o capitalismo mercantil aventuroso e especulativo, e ainda toda espécie de capitalismos politicamente determinados, mas não o seria empresa racional alguma sob iniciativa particular, com capital fixo e baseada num cálculo seguro. Esse tipo de direito e de administração foram válidos para a atividade econômica, em grau de relativa perfeição, somente no Ocidente. Deve-se perguntar agora onde é que se originou esse Direito. Entre outras circunstâncias, como se percebe por qualquer pesquisa, interesses capitalistas contribuíram para abrir caminho à predominância do direito e à administração de uma classe de juristas especialmente treinados na legislação racional, não sendo entretanto os únicos, e nem sequer os principais. Forças inteiramente diversas também atuaram no seu desenvolvimento. Se não, por que não fizeram o mesmo os interesses capitalistas na China ou na Índia? Por que lá não alcançou o desenvolvimento científico, artístico, político ou econômico, o mesmo grau de racionalização que é peculiar ao Ocidente?" (Weber, 1981:10).

Na passagem acima Weber procede exatamente como Durkheim o fez ao formular a tese do caráter social do suicídio. O alvo do modus tollens, nesse caso, é a proposição: os interesses capitalistas abriram caminho para o desenvolvimento das estruturas racionais do direito e da administração no Ocidente. A conseqüência empírica dela derivada é: tais estruturas racionais deveriam ser encontradas na China e na Índia. Como tal conseqüência não se verifica, a proposição da qual ela foi derivada foi falseada. Contrariando a visão holista de Duhem-Quine, Weber transferiu o caráter falso de um enunciado, considerado isoladamente, para outro.

Mas, voltando ao argumento substantivo, Weber estava empenhado em mostrar que a busca irrefreável do lucro nada tem de especificamente capitalista. Peculiar ao capitalismo ocidental moderno, ele dizia, é exatamente o oposto: é a disciplina auto-imposta; é o caráter metódico da acumulação. Isto levanta a questão: qual a origem desse traço peculiar do capitalismo? Weber buscou respondê-la a partir da formulação da hipótese de que existe uma relação causal entre o ethos religioso de determinadas sociedades e os padrões de conduta econômico-racionais adotados em momentos históricos determinados. Acreditamos que não seria um exagero afirmar que A Ética Protestante consiste, em larga medida, em um esforço no sentido de explorar as implicações de tal proposição. Em primeiro lugar, essa proposição demanda, em direta contraposição à visão marxista, que a disciplina auto-imposta típica do capitalismo seja determinada "pela capacidade e disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional" (idem:11)8. Em segundo, que tal capacidade e disposição sejam maneiras de pensar e agir induzidas por determinadas religiões. Em terceiro, que forças mágicas e religiosas, e os ideais éticos de dever delas decorrentes, tenham sempre estado no passado entre os mais importantes elementos formativos da conduta tradicionalista (veja-se nota 8). Em quarto lugar, que onde as condutas racionais foram obstruídas por tais obstáculos espirituais, o desenvolvimento do capitalismo também se viu obstruído.

As "forças mágicas e religiosas" e os ideais éticos delas decorrentes seriam, dessa perspectiva, capazes de impedir o desenvolvimento de uma economia racional. Com base nesse pressuposto, Weber vai procurar, dentre os princípios religiosos, quais deles não teriam tal efeito, isto é, quais deles poderiam predispor os homens a adotar condutas racionais. A resposta é bem conhecida: a ética do protestantismo ascético. Segue daí a formulação de uma nova hipótese, de grau menos elevado de abstração, que associa a ética protestante ao "moderno ethos econômico" do capitalismo ocidental. De acordo com essa hipótese, deveria haver um maior desenvolvimento do capitalismo nos países cuja maioria da população pertencesse ao credo protestante. Dela, também, é possível derivar que "os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como dos níveis mais altos da mão-de-obra qualificada, principalmente o pessoal técnica e comercialmente especializado das modernas empresas, [deveriam] ser preponderantemente protestantes" (idem:19). Weber encarregou-se então de testar tudo isso.

Há, entretanto, um problema. Toda a argumentação de Weber está ancorada na premissa de que os protestantes ficam ricos e influentes. Ora, não poderia ser exatamente o oposto? Não poderia ser que quem já era rico e/ou influente tivesse posteriormente aderido ao protestantismo para se livrar do dízimo cobrado pela Igreja católica? Afinal, a Reforma foi promovida por grupos economicamente privilegiados e, por outro lado, a participação nos altos escalões capitalistas requer a posse de um capital prévio, ou um alto investimento em educação, fatores que dependeriam de riquezas herdadas ou de uma boa condição material prévia. O que fazer diante de tal objeção? Resposta: dirigir-lhe o modus tollens. Foi o que Weber fez. Se tal objeção procede, ele raciocina, os protestantes, tanto quanto os católicos, só podem prosperar quando encontram condições materiais favoráveis. Trata-se, então, de saber se tal conseqüência empírica se verifica. Se a resposta for positiva, a teoria de Weber está seriamente golpeada. Se for negativa, a objeção está afastada.

Conheçamos imediatamente a resposta. Em todas as épocas e lugares, argumenta Weber, observa-se o fato de que as minorias social e politicamente discriminadas se empenham extraordinariamente em desenvolver e demonstrar suas habilidades no campo econômico. Na maior parte das vezes, elas são bem-sucedidas. É o que se verifica entre os poloneses na Rússia e na Prússia Oriental (que prosperam mais nesses países que na própria Polônia), os huguenotes na França de Luís XIV, os quakers na Inglaterra, e os judeus em qualquer lugar. Entre os católicos, entretanto, isto não se verifica, nem na Alemanha, nem em outros lugares e ocasiões em que foram minoria. Em compensação, os protestantes, quer sendo minoria, quer sendo a maioria dominante, sempre demonstraram uma tendência específica para o racionalismo econômico - isto é, para a busca disciplinada do lucro concebida como um fim em si mesma; como um ideal de conduta a ser perseguido, afim ao capitalismo moderno.

A tese de Weber de que o racionalismo econômico, isto é, de que a conversão da busca do lucro em uma máxima de conduta, antecede o capitalismo moderno, e foi uma condição para o seu desenvolvimento, é particularmente visível na célebre passagem de A Ética Protestante em que Weber não faz outra coisa senão dirigir o modus tollens à então inovadora tese de que a "superestrutura" política, social e cultural das sociedades é um reflexo das condições materiais de produção. Cabe reproduzi-la prontamente:

"Como é que uma atividade [a busca do lucro], que era, na melhor das hipóteses, eticamente tolerada, transformou-se em uma vocação no sentido de Benjamim Franklin? Como se explica historicamente o fato de no centro mais altamente capitalista daquela época, em Florença, nos séculos XIV e XV – o mercado de dinheiro e de capital de todos os grandes poderes políticos – fosse considerado eticamente perigoso, ou fosse quando muito tolerado, aquilo que, nas retrógradas circunstâncias pequeno-burguesas da Pensilvânia do século XVIII, onde a economia se via ameaçada, pela simples falta de dinheiro, a regredir ao primitivo estágio de troca, onde dificilmente havia um sinal de grande empresa, onde podiam ser encontrados apenas os primórdios de um sistema bancário, a mesma coisa fosse considerada moralmente digna de louvor e pudesse mesmo equivaler a uma norma de vida? Falar aqui de um reflexo das condições ‘materiais’ sobre a ‘superestrutura ideal’ seria patentemente insensato" (idem:49).

Uma vez afastada a idéia de "reflexo das condições materiais", o caminho está preparado para a formulação daquilo que veio a ser o principal legado do pensamento weberiano: a tese da autonomia das esferas, isto é, de que a história do racionalismo em seu desenvolvimento não segue linhas paralelas. Uma vez mais, o modus tollens entra em ação. Se a história do racionalismo em seu desenvolvimento não segue linhas paralelas, isto é, se, ao contrário do que o pensamento marxista sugere, a racionalização de cada esfera da vida social, seja a economia, seja a política, seja o direito, seja a religião etc., tem a sua própria dinâmica, então uma determinada esfera da vida social, digamos, o direito, ou a religião, ou mesmo as artes, pode passar por um processo de racionalização sem que o mesmo aconteça em outras esferas, sobretudo a da economia. Derivada a conseqüência empírica, trata-se, agora, de saber se ela se verifica ou não. A resposta de Weber é um inequívoco sim. A racionalização da economia e a do direito, ele ensina, seguem caminhos independentes: a racionalização do Direito Privado foi atingida em seu mais alto grau pelo Direito Romano da baixa Antiguidade Clássica. Em outras palavras, o Direito Romano encontrava-se em seu mais alto grau de racionalidade justamente em uma sociedade da Antiguidade, que não pode ser exatamente chamada de capitalista. Por outro lado, nas sociedades de mais alto grau de racionalização econômica, notadamente na Inglaterra, o renascimento desse Direito racionalizado não encontrou campo fértil, tendo sido superado pelo poder das grandes corporações e, nos países católicos da Europa meridional, como por exemplo a França, era notória a supremacia do Direito Privado racionalizado.

É o suficiente para Weber. Esperamos ter mostrado quão parecidos Durkheim e Weber são quando se trata de defender teses substantivas determinadas. Nas obras de ambos evidencia-se o papel crucial desempenhado pelo uso do modus tollens.

 

DISCUSSÃO

Que interesse tem O Suicídio e A Ética Protestante se desconsiderarmos as passagens destes livros que consistem no exercício de dirigir o modus tollens a proposições determinadas? Por tudo o que dissemos até aqui, nossa resposta seria: muito pouco, ou nenhum. A crítica holista, entretanto, não aceita tal resposta.

Talvez a melhor maneira de iniciar a discussão seja retomar uma afirmação de Durkheim que expressa particularmente bem aquilo que o holismo de Duhem-Quine enfaticamente rejeita. Referimo-nos à afirmação, já reproduzida anteriormente, de que somos forçosamente levados a concluir que todas as razões presumidas do suicídio [miséria, ciúme etc.] dependem de um estado mais geral de que são, quando muito, reflexos mais ou menos fiéis. Dificilmente se pode conceber algo tão antitético ao holismo de Duhem-Quine quanto a afirmação de que há algum raciocínio que possa nos forçar a concluir que alguma coisa é causa de outra. No caso em consideração, diria Quine, se os dados encontrados por Durkheim contrariassem sua visão de que há correntes suicidógenas operando por trás de fatores como "miséria" ou "ciúme", bastaria a esse sociólogo fazer "ajustamentos suficientemente drásticos" em outras partes de seu sistema teórico para manter sua conclusão intacta.

Embora concordemos com Quine que não há conclusão que não seja passível de revisão - ponto, aliás, que nada tem de especificamente holista - , e embora sejamos forçados a admitir que há uma dose considerável de ingenuidade na afirmação de Durkheim que reproduzimos acima, receamos que a crítica holista não possa ser, pelo menos nesse caso, levada demasiadamente longe. Durkheim, em aquiescência à concepção canônica de inferência científica que Quine rejeita, tomou os dados presentes no Quadro 1 como um árbitro para a sua tese de que o suicídio decorre de causas sociais. Nesse sentido, ele operou com base no pressuposto de que se os dados ali presentes fossem outros, sua tese do caráter social do suicídio entraria em colapso. Assim, se os dados a que Durkheim teve acesso tivessem sido, em lugar daqueles que constam do Quadro 1, os que constam do Quadro 1a, já apresentado ao leitor, ele não teria como sustentar sua tese de que há correntes suicidógenas operando por trás de fatores como miséria, ciúme etc. Não conseguimos conceber algum "ajustamento drástico" que pudesse manter tal conclusão.

Seja como for, afirmar que "ajustamentos drásticos" podem salvar qualquer teoria implica afirmar que uma tese como a do caráter social do suicídio não representa nenhum ganho real de conhecimento sobre o suicídio. Implica afirmar que esta última é apenas um "expediente" a mais para "introduzir uma estrutura manipulável no fluxo da experiência" (Quine, 1985:247), isto é, é apenas uma maneira eficiente a mais de estabelecer conexões entre experiências passadas e futuras.

Não podemos descartar a possibilidade de que, de fato, O Suicídio, ou mesmo A Ética Protestante, não representem qualquer ganho real de conhecimento sobre os fenômenos aos quais se dedicam. Entretanto, não precisamos transformar, como o holismo de Quine nos convida a fazer, essa possibilidade em uma necessidade lógica. A implicação mais imediata, para as ciências sociais, da tese holista de que teorias são sobretudo "campos de forças" suficientemente bem estruturados para não se deixarem abalar quando alguns dos enunciados que se situam em sua periferia são contrariados, é recuar diante da tarefa de detectar os erros de uma teoria. Afinal, para que nos empenharmos em detectar erros em uma teoria, se já sabemos de antemão que tudo o que podemos identificar são erros periféricos, os quais podem ser facilmente absorvidos pela teoria como um todo, dado o seu caráter de "campo de forças"?

Essa linha de raciocínio torna sem sentido qualquer esforço no sentido de detectar erros tópicos nas obras paradigmáticas aqui consideradas. Não podemos, nos limites deste artigo, inventariar todos os custos que isso pode acarretar. Vamos, entretanto, destacar um deles: ficar impedido de fazer uma crítica parcial do trabalho de Durkheim; mais especificamente, de discutir proveitosamente os erros metodológicos por ele cometidos. Poppel e Day (1996) nos brindaram com tal discussão e, no que se segue, vamos reproduzi-la sinteticamente, como um exemplo de discussão a que o holismo de Quine nos veda o acesso por considerar, de antemão, irrelevante.

Os referidos autores estão particularmente empenhados em questionar a própria constatação de Durkheim de que os protestantes se matam mais do que os católicos. Esta constatação, eles dizem, se apóia na premissa, não analisada por Durkheim, de que os protestantes e os católicos produzem dados sobre o suicídio da mesma forma. Este, conforme se verá, não é o caso.

Em linhas gerais, a crítica de Poppel e Day a Durkheim pode ser descrita assim. Durkheim, na verdade, jamais comparou taxas de suicídio entre católicos e protestantes. O que ele, de fato, comparou, foram taxas de suicídio entre distritos de maioria católica e de maioria protestante. Ora, não se pode descartar a possibilidade de que aqueles que se matam em um distrito de maioria católica sejam justamente os indivíduos provenientes da minoria protestante, e vice-versa. Como a natureza dos dados disponíveis para Durkheim permitiam apenas o exame de mortes por composição religiosa dos distritos onde essas mortes ocorriam (ou onde o morto havia habitado), sem trazer informação sobre a religião de cada indivíduo falecido, naturalmente esses dados poderiam apresentar distorções, sobretudo se levarmos em conta a possibilidade de haver maior número de suicídios entre as minorias religiosas.

Posto o problema, a solução é comparar a taxa de suicídios de indivíduos sabidamente católicos com a taxa de suicídios de indivíduos sabidamente protestantes. Poppel e Day o fizeram considerando as estatísticas sobre causa mortis de homens e mulheres, na Holanda, no período 1905-1910. Tais estatísticas discriminavam, além do suicídio, sete categorias de morte, duas das quais são especialmente relevantes para a presente discussão: "mortes súbitas" e "mortes cujas causas foram mal definidas ou não especificadas". Essa maneira de categorizar as mortes conduziu a resultados surpreendentes. Se nos restringirmos a comparar as taxas de "suicídio" entre católicos e protestantes, constataremos, de fato, uma incidência maior de suicídio entre os protestantes. Mas, se aos números referentes à categoria "suicídio", somarmos aqueles referentes às outras duas categorias mencionadas, observa-se que a taxa de morte é 44% mais alta entre católicos do sexo feminino e 65% mais alta entre católicos do sexo masculino.

Como explicar que os católicos se matam menos que os protestantes, mas, em compensação, morrem subitamente e/ou de "causas desconhecidas" com muito mais freqüência? Poppel e Day (e, a propósito, os autores deste artigo também) só concebem uma resposta: os católicos, na verdade, se matam tanto ou mais que os protestantes, mas empenham-se, mais que os protestantes, em esconder seus suicidas, valendo-se, para tanto, de categorias alternativas como "morte súbita" e morte por "causas não definidas ou mal especificadas". As razões para tal dissimulação são bem conhecidas: a Igreja católica condenava fortemente o suicídio, chegando mesmo a proibir que o suicida fosse enterrado em um cemitério cristão. Para evitar tal transtorno, as famílias dos suicidas procuravam, muitas vezes, ocultar a verdadeira causa da morte. Provavelmente, nesse caso, contavam com a ajuda do médico da família para que a morte pudesse ser classificada como "súbita" ou de "causa desconhecida". De tudo isso resulta que a diferença entre as taxas de suicídio dos protestantes e dos católicos, sem a qual quase tudo o que Durkheim escreveu sobre a relação entre suicídio e grau de integração social vem abaixo, pode muito bem ser apenas o resultado das diferenças nos modos como as mortes dos católicos, e as dos protestantes, eram então registradas.

O que Quine teria a dizer sobre tudo isso? Se o entendemos bem, seria algo como o seguinte: "Poppel e Day se limitaram a falsear um enunciado periférico, o de que os protestantes se matam mais que os católicos. Tal falseamento, certamente, se transmite para outros enunciados da teoria durkheimiana, mas não temos como saber quais. Seja como for, alguns ‘ajustamentos’ é tudo o que a teoria durkheimiana precisa para se manter em harmonia com todos os fatos conhecidos. Portanto, foi em vão que Poppel e Day se empenharam em mostrar que Durkheim errou ao supor que os protestantes se matam mais que os católicos."

Não duvidamos que um pouco de engenho é tudo o que a teoria de Durkheim precisa para sair ilesa dessa descoberta de que os protestantes não se matam mais que os católicos. Entretanto, a pergunta crucial a ser feita é: vale a pena ela sair ilesa? Neste ponto, receamos dizer, a visão holista desaba, porque só admite duas alternativas: ou a teoria sai ilesa, ou rui em bloco. Ela não admite a possibilidade, sobre a qual nos deteremos na seção conclusiva, de uma teoria prosperar sem precisar sair ilesa de uma crítica. Na medida em que tal possibilidade é admitida, um exercício como o de Poppel e Day recupera sua dignidade.

 

CONCLUSÃO

Autores como Popper e Stinchcombe, provavelmente, nos repreenderiam por dar tanta atenção ao ataque do holismo de Duhem-Quine à visão canônica. Para o primeiro, a neutralização de tal ataque não requer mais que alguns poucos parágrafos. Para sermos precisos, não requer mais que a seção XVI do capítulo 10 de seu Conjecturas e Refutações (cuja extensão não é superior a uma página), acrescida do último parágrafo da seção XIX do mesmo capítulo. Na referida seção XVI, Popper argumenta que o holismo de Duhem-Quine é um equívoco simplesmente porque muitas vezes é perfeitamente possível saber qual hipótese (qual enunciado não periférico) de um sistema teórico está sendo refutada pela ação do modus tollens. No referido parágrafo da seção XIX, ele ilustra esse argumento. As "antipartículas" de Dirac, ele diz, "têm sobrevivido ao abandono de outras partes de sua teoria" (Popper, 1972:269). Da mesma forma, a teoria atômica não precisou ser rejeitada em bloco porque uma de suas partes, a chamada lei da paridade, foi refutada. A esses exemplos, gostaríamos de acrescentar que a teoria da evolução de Darwin não precisou ruir em bloco porque uma de suas partes, a teoria da pangênese, foi refutada, nem a teoria imunológica de Pasteur precisou ruir em bloco porque uma de suas partes, a teoria da depleção, foi refutada.

Como explicar que uma parte de uma teoria desabe sem que a teoria como um todo venha também a desabar? Nos marcos de uma concepção holista do conhecimento não há como responder a tal questão. Nos marcos da nossa velha amiga, a concepção canônica, em compensação, a resposta pode ser dada facilmente. Uma teoria não precisa ruir em bloco quando uma parte dela se revela falsa por causa dos êxitos, ainda que provisórios, dessa teoria em resistir a testes que teorias alternativas não resistiram e, principalmente, em conquistar o desconhecido, isto é, em prever corretamente algo nunca antes imaginado.

Neste ponto, entretanto, entra a objeção do anteriormente citado Putnam. Seu argumento, conforme vimos, é o de que teorias, por si mesmas, não são capazes de realizar previsões. Previsões só podem ser feitas por blocos monolíticos compostos de teorias + hipóteses auxiliares. A resposta a essa objeção é que o fato de teorias geralmente requererem o auxílio de hipóteses adicionais para se tornarem capazes de fazer previsões não as torna menos bem-sucedidas. Por outro lado, a visão canônica não demanda que teorias isoladas impliquem previsões (ela admite que, em geral, previsões requerem mesmo teorias + hipóteses auxiliares ou condições iniciais). O que ela demanda de teorias isoladas é a existência de enunciados incompatíveis com elas, e essa demanda pode ser facilmente satisfeita. A impossibilidade de derivar previsões de teorias isoladas (a necessidade, por exemplo, de juntar à teoria da gravitação universal as três hipóteses auxiliares que Putnam mencionou para tornar a primeira capaz de prever a órbita do nosso planeta) não implica a impossibilidade de conceber enunciados básicos que a contrariem. Um enunciado como: "A Terra se chocará com Marte dentro de uma hora" contraria a teoria da gravitação universal independentemente do fato de esta teoria ser incapaz de fazer previsões sem o auxílio das três hipóteses que Putnam mencionou.

É o bastante para Popper. Passemos a Stinchcombe. Este nos oferece uma maneira ainda mais econômica de remover as objeções da visão holista à visão canônica:

"[...] como analisar mais exatamente o que acontece com uma estrutura teórica como um todo quando alguma de suas conseqüências foi falseada[?]. Uma ferramenta importante para analisar o que acontece é a classificação dos elementos de uma teoria de acordo com seu nível de generalidade, variando de pressuposições filosóficas gerais a afirmações sobre o que acontece em uma determinada observação. Um argumento teórico pode ser atacado em qualquer um desses níveis, mas muitas das confusões no discurso científico têm sua origem na crença de que, se refutarmos uma hipótese em um nível, estaremos também refutando uma proposição teórica em outro nível" (Stinchcombe, 1968:56).

Se Stinchcombe fosse convidado a se pronunciar sobre Quine, talvez ele pudesse se limitar a dizer que a tese de que teorias são redes de enunciados que ou bem se protegem mutuamente, ou bem desabam em bloco, é apenas uma variante da crença acima descrita e, portanto, que o holismo de Duhem-Quine é apenas um exemplo da "confusão" a que a passagem acima se refere.

Embora seja tentador remover as objeções de Quine apenas com tal argumento, e embora consideremos o argumento de Popper sobre o holismo impecável, não devemos dispor da crítica holista com tanta facilidade. Afinal, não se deve dispor de uma crítica, por mais improcedente que pareça, sem antes investigar se dela pode resultar algum benefício9. Haverá algum benefício a ser extraído da crítica holista ao modus tollens? Apesar de tudo o que dissemos até aqui, nossa resposta é afirmativa. Acreditamos que a crítica holista, ao postular que ou bem uma teoria sofre ajustamentos para acomodar os dados da experiência sensorial que contrariam os enunciados situados em sua periferia, ou bem desaba em bloco, abriu caminho, ainda que involuntariamente, para a tese muito mais interessante, e inteiramente incompatível com ela, de que há teorias capazes de ter parte de seus enunciados refutados sem que, por isto, tenham que desabar em bloco. Parafraseando Brecht, diríamos que essas são as indispensáveis, porque é necessário ter muito êxito para poder exibir tal capacidade. Será este o caso da teoria de Durkheim de que o suicídio decorre do desequilíbrio entre correntes de egoísmo, de altruísmo e de anomia? Ou da teoria de Weber de que a emergência do capitalismo moderno demandou racionalizações prévias nas esferas do direito e da religião? Esperamos que a resposta seja, em ambos os casos, um inequívoco sim, porque, do contrário, as referidas teorias perderiam muito de seu interesse. Do contrário, tais teorias se limitariam a ser aquilo que a visão holista afirma que todas as teorias necessariamente são, a saber, maneiras eficientes e autocontidas de ligar o passado ao futuro e, como tais, nem melhores nem piores que as teorias que procuram refutar - posto que estas últimas também são maneiras eficientes e autocontidas de ligar o passado ao futuro.

Embora a crítica holista ao modus tollens implique a impossibilidade de comparar teorias, pois tudo o que ela requer de uma teoria é sua coerência interna, sem ela talvez não fosse possível indagar se as teorias de Durkheim e de Weber fazem parte daquele seleto grupo de teorias suficientemente bem-sucedidas para poder ter alguns de seus enunciados não periféricos falseados sem que, por isto, tenham que ruir em bloco. Isto equivale a dizer que, a despeito de se opor à qualquer pretensão normativa, a crítica holista pode ser vista como um pontapé inicial em direção a uma teoria normativa do conhecimento, isto é, uma teoria sobre como estimar, por exemplo, o valor das teorias apresentadas por Weber e Durkheim em, respectivamente, A Ética Protestante e O Suicídio. Contra tudo o que o holismo de Duhem-Quine admite, ele próprio abre caminho para a tese normativa de que devemos indagar se tais teorias fazem parte do seleto grupo de teorias a que acabamos de nos referir. Essa tese é, sem dúvida, uma contribuição nada negligenciável. É bem possível que ela seja o benefício que as ciências sociais têm a extrair da crítica holista à visão de que a inferência científica consiste no exercício de dirigir o modus tollens a enunciados determinados.

(Recebido para publicação em maio de 2001)

 

NOTAS

1. Ver Stinchcombe (1968) e o livro seminal de K. Popper, A Lógica da Pesquisa Científica (1999), cuja primeira publicação, em alemão, é de 1934.

2. Cabe-nos reproduzir a seguinte passagem: "We need to be able to give a direct answer to the question: What evidence would convince us that we are wrong? If there is no answer to this question, than we do not have a theory. […] to make sure a theory is falsifiable, choose one that is capable of generating as many observable questions as possible. This choice will allow more tests of the theory with more data and a greater variety of data, will put the theory at risk of being falsified more times, and will make it possible to collect data so as to build strong evidence for the theory" (idem:19).

3. Referimo-nos ao artigo "Epistemologia Naturalizada", publicado originalmente em 1969.

4. Somos gratos ao prof. Ricardo Fenati, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, por nos ter alertado para o fato de que o pensamento de Hume, em si mesmo, não é holista. Para Hume, a junção de idéias é restrita a associações bem determinadas (juntamos fumaça ao fogo que não vemos; o som que ouvimos ao carro que não vemos) e podemos perfeitamente abrir mão de uma associação sem que isto repercuta sobre as demais.

5. Ver, a respeito, Gellner (1979: esp. p. 211). Gellner chama a atenção para o fato de que Quine, em seu Word and Object, sucumbe à tentação de oferecer uma filosofia primeira, e acaba encontrando um meio de conceder ao método científico o status de "the last arbiter of truth".

6. Referimo-nos ao artigo "Os Dois Dogmas do Empirismo", publicado originalmente em 1953.

7. A expressão "o que difere o capitalismo de toda ordem precedente não é seu caráter de classe [...]" é roubada, de memória, de Anthony Giddens. Não podemos deixar de dar o crédito.

8. O termo "conduta racional" deve ser aqui entendido em oposição à idéia de conduta "tradicionalista". Suponha que alguém esteja acostumado a ganhar uma certa quantia, digamos, R$ 50,00 por dia e, por qualquer razão, tem a oportunidade de passar a ganhar R$ 100,00. A conduta tradicionalista consiste, nessas circunstâncias, em trabalhar dia sim, dia não, uma vez que isto seria suficiente para manter o rendimento a que já se estava acostumado.

9. Não podemos deixar de mencionar que a própria idéia de uma teoria se beneficiar de alguma crítica é inteiramente estranha ao holismo de Duhem-Quine. Ironicamente, temos que rejeitar o holismo até para perguntar se há algum benefício a ser extraído dele.

 

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ABSTRACT
Modus Tollens, the Holism of Duhem-Quine and the Social Sciences
The idea that scientific interference consists of the exercise of directing the modus tollens to given statements currently enjoys canonical status in the social sciences. This idea requires that statements about the world have a supply of empirical consequences that can be isolated and referred to as proper to them. However, according to Duhem-Quine’s holistic vision of knowledge, such a demand cannot be met. This article discusses the implications, for the social sciences, of the holistic critique towards the canonical model of scientific interference, given that two pillars of this area of knowledge, i.e., Suicide, by Émile Durkheim, and The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, by Max Weber, are tributaries of said canonical model.
Key words: epistemology; modus tollens; Duhem-Quine’s holism

RÉSUMÉ
Le Modus Tollens: Le Holisme de Duhem-Quine et les Sciences Sociales
L’idée que l’inférence scientifique revient à appliquer le Modus Tollens à des énoncés donnés jouit aujourd’hui d’un statut canonique dans les sciences sociales. Cette idée demande que des énoncés sur le monde disposent d’un capital de conséquences empiriques capable d’être isolé et dit comme leur étant propre. Mais, selon la vision holistique des connaissances proposée par Duhem-Quine, cette demande ne peut pas être satisfaite. Dans cet article, on discute les implications, pour les sciences sociales, de la critique holistique du modèle canonique d’inférence scientifique, compte tenu que deux ouvrages essentiels dans ce domaine des connaissances, Le Suicide, d’Émile Durkheim, et L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme, de Max Weber, sont tous deux tributaires du modèle canonique cité.
Mots-clé: épistémologie; modus tollens; holisme de Duhem-Quine