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História, Ciências, Saúde-Manguinhos
Print version ISSN 0104-5970
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.7 no.1 Rio de Janeiro Mar./June 2000
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702000000200003
Alastrim, varíola é? Is allastrim small pox?
Luiz Antonio Teixeira Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
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1 À Marta agradeço as importantes informações e dicas de pesquisa, sem as quais esse trabalho não poderia ser finalizado.
2 Uma brilhante observação comparada dos limites e potencialidades das idéias de Latour e Bourdieu encontra-se na resenha sobre o livro A vida de laboratório de Kropft e Ferreira (1998). |
À medida que categorizamos, esperamos caracterizar novas propriedades ...; à medida que encontramos propriedades, tentamos uma reorganização da instalação categorial. Mas cada hipótese sobre o quadro categorial a ser assumida influencia o modo de fazer e de reconhecer como válidos os enunciados observativos (por isso, quem deseja o ornitorrinco como um mamífero não procura os ovos ou recusa-se a reconhecê-los quando entram em cena, enquanto que quem deseja o ornitorrinco como ovíparo procura desconhecer as mamas e o leite). Esta é a dialética do exame e do reconhecimento, ou do conhecimento e do saber (Eco, 1998, p. 211).
Nos idos de 1910, uma polêmica agitou importantes médicos e cientistas paulistas. Para os que não fazem parte do campo biomédico, onde, por procedimentos esotéricos, as enfermidades são classificadas em uma grande taxonomia, tratava-se de saber se duas perturbações de saúde muito parecidas, mas de intensidades diferentes, podiam receber o mesmo nome. Na verdade, até para alguns médicos, distantes do centro onde a controvérsia ocorria, ela parecia sem sentido. No entanto, para os protagonistas da contenda e seus aliados, a questão parecia vital: saber se a varíola e o alastrim eram doenças diferentes ou formas diversas de uma mesma enfermidade. Emílio Ribas, diretor do Serviço Sanitário do Estado, apostava todas as fichas na primeira possibilidade, já Antonio Carini, diretor do Instituto Pasteur de São Paulo, afirmava o contrário. A partir de um primeiro artigo que apresentava a questão, muitos outros surgiram em réplicas e tréplicas intermináveis. Logo, aliados e opositores entraram na disputa. Dos fóruns científicos o assunto migrou para os jornais; dos argumentos técnicos, logo passou para acusações de práticas desonestas. O que afinal estava em jogo, o que levou estes cientistas a defenderem, com tanto ardor, questões que a outros pareciam meros problemas semânticos? |
O objeto da controvérsia A varíola é uma doença conhecida de longa data. Na China, foi observada vários séculos antes de Cristo; em outras partes do mundo, apareceu em diversas épocas desde a Antiguidade. A partir do século XV, os textos médicos europeus passam a fazer constantes referências à doença, não deixando dúvidas sobre sua difusão em grande parte do Velho Mundo neste período; nos séculos seguintes, transformar-se-ia num dos principais problemas sanitários europeus, com o surgimento de epidemias que causavam um número de mortes comparável apenas à peste e à malária (Darmon, 1986). Os principais envolvidos A controvérsia sobre a identificação da varíola ao alastrim colocou em oposição duas figuras de destaque no campo médico paulista. De um lado estava Emílio Ribas, diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, do outro Antonio Carini, diretor do Instituto Pasteur de São Paulo. Eis os principais pontos de seus currículos. | |
3 No texto transcrito, referia-me explicitamente à discordância de Carini com o Serviço Sanitário em relação à possibilidade de o leite ser um transmissor da tuberculose e da conseqüente necessidade de fiscalização do gado (1910); das críticas de Carini à atuação do Serviço Sanitário em relação à profilaxia da ancilostomose (1913) e à própria questão da varíola (Teixeira, 1995, p. 122). | Carini foi figura de destaque no desenvolvimento da instituição. Trabalhando com dois assistentes, rapidamente transformou o instituto: a partir de sua chegada o serviço anti-rábico foi ampliado para poder atender um maior número de pessoas, novas seções foram criadas e iniciou-se a produção de diversos imunizantes. Além disso, as pesquisas científicas multiplicaram-se, passando a cobrir diversas áreas do conhecimento biomédico. Sob sua orientação, os trabalhos do instituto passaram a ser publicados em diversas revistas nacionais e estrangeiras e apresentados nos principais fóruns científicos do estado. No campo da veterinária, Carini e seu instituto tiveram papel de destaque na resolução de problemas que afetavam os criadores de São Paulo. No que concerne à medicina não seria diferente, os trabalhos realizados no instituto mostraram-se em sintonia com os elaborados em instituições congêneres no país e não raro contribuíram para a resolução de problemas de saúde pública. Ao contrário de Ribas, Carini foi um pesquisador extremamente profícuo. De 1906 ano de sua chegada a São Paulo à época da controvérsia, ele já havia publicado mais de cinqüenta trabalhos. Além disso, era freqüentador assíduo da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, onde participava dos debates sobre as mais diversas questões médico-científicas. Sua atuação no periodismo médico e na Sociedade de Medicina eram a base do reconhecimento entre seus pares. No entanto, embora Carini e seu instituto tivessem papel destacado no campo médico paulista, sua atuação científica e na área da saúde pública muitas vezes colocou-o em desacordo com o Serviço Sanitário. Alguns de seus trabalhos "tiveram em comum o fato de colocar a instituição em uma situação complicada, à medida que criticavam disposições da saúde pública e demandavam novas medidas às autoridades governamentais. Essa situação foi se agravando continuamente à medida que Carini foi conseguindo prestígio científico tanto na área da medicina experimental como na da higiene. Embora possa parecer um contra-senso, este prestígio e as posturas dele decorrentes acabavam por transformar Carini e seu instituto numa pedra no sapato dos dirigentes de saúde pública paulista."3 |
A querela na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo A peça que deu origem à controvérsia foi a comunicação lida por Emílio Ribas na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo na sessão de 5 de setembro de 1910 e integralmente publicada, no dia seguinte, no jornal O Estado de S. Paulo. Versava sobre uma doença que grassava na região de Rio Claro e em várias outras cidades do interior do estado, e parece ter tido boa acolhida entre os médicos, pois as questões levantadas na sessão se resumiram a pedidos de maiores informações sobre a forma de entrada da enfermidade em São Paulo (Ribas, 1910a). | |
4 No jargão popular, quando o organismo apresenta reação à vacina causando infecção local, diz-se que a vacina pegou.
5 Segundo Carini, durante os sete anos que dirigiu o Instituto Vacinogênico Suíço de Lancy-Berne, ele teve ocasião de observar numerosos doentes de varíola. Sempre que havia epidemia de varíola na Suíça, ele era enviado para ver os doentes, registrar dados sobre os resultados das vacinações e colher material para pesquisas experimentais e histopatológicas. Dessa maneira, ele pôde fazer vários estudos sobre a vacina e experiências sobre a varíola (SMCSP, 1911b). | Após apresentar os pontos que o faziam discordar das opiniões de seus colegas, Ribas enumerava os motivos que o levaram a considerar a doença uma entidade mórbida diferente da varíola; observações de caráter clínico e dados epidemiológicos que pareciam se diferenciar dos que se relacionavam à varíola. Eram eles: a pequena mortalidade causada pela doença entre os não vacinados de todas as idades que foram atingidos esse fato contrastava com os relatos médicos sobre epidemias de varíola, que normalmente geravam grandes coeficientes de mortalidade; o fato de a doença ser menos grave entre as crianças que entre os adultos e freqüentemente não se desenvolver entre os lactentes; a ausência de febre no período de supuração e a formação mais rápida das pústulas, que não apresentavam o fedor característico das de varíola; a natureza da cicatriz menos profunda que a da varíola; a ação da vacina jenneriana sobre a doença. Neste último ponto, Ribas postulava que a vacina antivariólica protegia contra o alastrim por um período menor que o faria em relação à varíola. Isto poderia ser uma evidência da identidade das duas entidades, no entanto ele explicava esse fato mostrando que a vacina evoluía quando aplicada em pessoas já acometidas pelo alastrim, o que parecia provar que se tratava de doenças diferentes, pois, do contrário, o acometimento pelo alastrim daria imunidade aos organismos em relação à vacina, impedindo que ela pegasse.4 Ribas (1910a, p. 339) concluía sua comunicação acrescentando: "O alastrim, apresentando uma fisionomia clínica muito característica, difere de todas as febres eruptivas descritas em nosso país. Qual seja, entretanto, a sua natureza, a sua etiologia, só as investigações de laboratório, só os competentes em medicina experimental poderão oportunamente dizer." O trabalho de Ribas chamou atenção de Carini, que viajou para Rio Claro com o fito de observar a doença in loco. De volta ao Instituto Pasteur de São Paulo, ele elaborou um novo diagnóstico, diametralmente oposto ao de Ribas. Uma pergunta que logo vem à cabeça é: por que Carini se interessou tão vivamente pela questão a ponto de refazer o trajeto de Ribas? Vamos buscar nas idéias de Bourdieu elementos que possam nos ajudar nessa reflexão. Para este autor, o campo científico caracteriza-se como um espaço onde as relações entre os cientistas são marcadas por uma luta em busca do monopólio da autoridade científica, luta essa que não se reduz à busca do poder político, mas engloba também a capacidade de impor a sua forma de fazer ciência como a mais legítima. Nessa busca, os interesses individuais se misturam aos científicos, de acordo com os cálculos de possibilidades de ganhos relativos de cada pesquisador. Assim, ao se voltar para o objeto de estudo de Ribas, Carini buscava a obtenção de mais autoridade em seu campo de atuação. O próprio Ribas acenava com essa possibilidade ao assinalar em seu trabalho que só as investigações de laboratório, só os competentes em medicina experimental poderiam oportunamente definir a natureza e a etiologia do alastrim. Para justificar a iniciativa frente a seus pares, Carini valia-se de sua experiência profissional, adquirida no Velho Mundo, que o tornava apto a contribuir nessa relevante discussão. Ou melhor, valia-se de uma autoridade científica adquirida anteriormente que o capacitava a disputar novas posições na hierarquia científica com Ribas nos estudos concernentes à varíola.5 |
Voltemos ao trabalho de Carini. Em sua primeira comunicação sobre o tema, lida na sessão da Sociedade de Medicina e Cirurgia de 3 de novembro, ele apresentou suas conclusões sobre a doença. Suas observações clínicas faziam-no crer, de início, que se tratava de uma moléstia semelhante à varíola, embora de menor gravidade. No entanto, seus trabalhos laboratoriais mostravam o contrário. Ele partia de estudos que tomavam por base o fato de que, aplicando-se fragmentos da pústula variolosa do homem na córnea do coelho, obtinha-se uma reação que se caracterizava pela presença de alguns corpúsculos nas células epiteliais do animal. Como o exame por este método se mostrou positivo, Carini passou a defender a tese de que se tratava de uma epidemia benigna de varíola. Ao colocar em discussão a breve comunicação de Carini, Rubião Meira, presidente da sessão e da sociedade, deu início ao primeiro round da luta. Como esperado, Ribas foi o primeiro a tomar a palavra. De início, colocou-se na discussão com extremo cuidado, não querendo ir contra os resultados laboratoriais, que, segundo ele próprio, não dominava tanto como seu contendedor. Além disso, naquele momento, Ribas parecia querer chegar a um consenso negociado com seu oponente: "Pede a palavra o dr. Ribas e diz que pode parecer que há contradição entre o seu trabalho e a comunicação do sr. Carini. Entretanto não há, porque só estudou o tipo clínico, deixando justamente a questão da etiologia para ser resolvida pelos experimentadores" (SMCSP, 1910b). | |
6 Vale notar que a parte referente ao perigo à saúde pública não aparece nas atas da sessão publicadas no Archivo da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, nem na sua costumeira republicação no jornal O Estado de S. Paulo. Só sabemos de sua existência por ser citado pelo próprio Carini (SMCSP, 1910b). | Mas Ribas também não dava o braço a torcer em relação aos aspectos clínicos da doença, insistindo que eles eram inteiramente diferentes dos da varíola. Em alguma medida, tratava-se de uma conversa de surdos, onde Ribas, tomando por base os conhecimentos do diagnóstico clínico, se recusava a aceitar as conclusões puramente laboratoriais, mas não deixava claro sua posição para não contrariar os dominantes preceitos da bacteriologia, em que ele mesmo dizia não ser especialista. Já o bacteriologista Carini fazia vista grossa às observações clínicas de seu oponente. Num referencial de análise ao estilo de Kuhn, poderíamos dizer que era realmente uma conversa de surdos, pois a incomensurabilidade entre esses paradigmas impedia qualquer acordo sobre o assunto. Isto porque a comunicação entre proponentes de diferentes teorias é sempre incompleta, conforme o que é considerado fato por cada um depende do quadro teórico utilizado (Kuhn, 1991). O aspecto que Carini postulava como central o aparecimento dos corpúsculos de Guarnieri na córnea do coelho era visto como um ponto secundário para Ribas, que, seguindo o paradigma clínico, colocava em primeiro plano as diferenças entre os sintomas encontrados em seus doentes. Esquecendo a comunidade e ingressando no mercado de interesses, poderíamos ampliar a intencionalidade dessa mútua incompreensão, pois, sem dúvida, ela se ligava a apostas dos atores na escolha de caminhos e aliados que pudessem maximizar seus dividendos. A intervenção de Ribas tinha ainda outro aspecto interessante: ele fazia menção ao "receio que o dr. Carini revelou de ser um perigo para a saúde pública o não se considerar como varíola vera a moléstia ... levando o povo a abandonar a vacinação".6 A seu ver, tal receio era infundado, pois todos os clínicos, e mesmo a população, sabiam que a vacina jenneriana era o melhor profilático contra a doença. Voltaremos a esse ponto mais adiante. |
Logo entraram em cena os aliados das duas partes. Adolfo Lindemberg, pesquisador do Instituto de Bacteriologia, entrou na polêmica defendendo a posição de Ribas. No entanto, sua posição de homem de laboratório lhe permitia contrariar as posições de Carini. A seu ver, o diagnóstico da doença não podia se reduzir ao aspecto bacteriológico. Não seria correto afirmar que o alastrim fosse varíola benigna só porque foram encontrados os corpúsculos de Guarnieri na córnea dos coelhos injetados com o pus das pústulas. Deveria ser observado que o quadro clínico do alastrim, sempre benigno, era inteiramente diverso do da varíola, não havendo epidemia de varíola com tão baixa mortalidade como a do alastrim. Voltando à questão do laboratório, ele asseverava que o fato de os tais corpúsculos só terem sido encontrados até aquele momento na varíola não impediria que eles também fossem encontrados, posteriormente, em outras doenças até então desconhecidas (SMCSP, 1910a). Alexandrino Pedroso, bacteriologista do laboratório da Santa Casa da Misericórdia era favorável a Carini; em sua opinião, os dados experimentais bastavam para resolver a questão, e a benignidade não podia ser usada como prova contrária às posições de Carini, pois em outras epidemias, ocorridas nos Estados Unidos, a varíola já havia se manifestado desta forma (SMCSP, 1910b). Por último, pediu a palavra o médico Resende Puech, que fez objeções a Carini e Pedroso, voltando aos mesmos aspectos clínicos da questão, e a discussão foi remetida à sessão seguinte da sociedade. Um aspecto salta aos olhos nesse primeiro round: ele diz respeito à importância relativa atribuída às conclusões dos trabalhos de laboratório. Os trabalhos de Bruno Latour, sobre o desenvolvimento da medicina pasteuriana, a partir das últimas décadas do século passado, ressaltam o surgimento de uma nova ciência das doença, onde o laboratório adquire destaque como espaço de produção de verdades irretorquíveis, uma vez que produzidas de forma experimental e controlada. Foi a partir dos laboratórios que surgiram os profiláticos e terapêuticos capazes de dar fim às doenças, em especial às epidêmicas, relacionadas aos microrganismos. Essa nova ciência logo se difundiria pelo mundo, desembarcando no Brasil ainda no século passado. Sobre sua égide seriam fundados vários institutos biomédicos, criadas novas linhas de pesquisa e renovado o ensino médico. No entanto, ela não se imporia sem encontrar resistências. Embora vários outros aspectos estivessem em jogo, fica claro que a discussão tinha como ponto focal o deslocamento do monopólio da autoridade científica de opinar sobre as questões relativas às doenças. Que tipo de estudo teria legitimidade para definir a especificidade da enfermidade, as pesquisas laboratoriais ou a clínica e os dados da epidemiologia clínica? Deixemos essa questão para voltar a nossa narrativa. A controvérsia estendeu-se por vários meses na ordem do dia da Sociedade de Medicina. Na sessão seguinte (16 de novembro), Carini apresentou a seus colegas as preparações com os tais corpúsculos, mas em virtude do adiantado da hora não se voltou a discutir o assunto. Dias depois, ele publicou artigo sobre o tema, reafirmando suas posições. De forma inversa ao artigo de Ribas, que foi apresentado sob a forma de estudo preliminar, a ser discutido pelos especialistas, Carini construiu sua réplica com o intuito de não deixar dúvidas sobre sua posição. Tal qual a imagem elaborada por Latour (1989), onde os textos científicos se comparam a rios por sólidos argumentos que determinam seu curso, o artigo de Carini (1911c, p. 25) procurava forçar o leitor a aceitar como lógica a sua conclusão. Tomando por base a existência de consenso na comunidade científica sobre a aceitação dos corpúsculos de Guarnieri como prova da existência da doença e outros pontos da questão onde não existia discordâncias, ele concluiu: | |
7 Carini escreveu: "Em uma nota lida perante a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo ele (Ribas) conclui que a nova moléstia (que no sertão da Bahia se chama alastrim), apresentando uma fisionomia clínica muito característica, difere de todas as febres eruptivas até agora conhecidas em nosso país" (Carini, 1911c, p. 25). Esse parágrafo apresenta uma pequena diferença entre o publicado por Ribas. O texto era, na verdade, assim: "Em vista de todas as considerações é forçoso concluir que o alastrim, apresentando uma fisionomia clínica muito característica, difere de todas as febres eruptivas até agora conhecidas em nosso país" (Ribas, 1910a, p. 336).
8 O médico e bacteriologista francês Charles Louis Alphonse Laveran alcançou celebridade por ter descoberto o hematozoário causador da malária plasmodium em pesquisas realizadas na Argélia, em 1878. | Se consideramos que a afecção referida não ataca senão quase que exclusivamente os não vacinados, que apresenta pústulas cuja estrutura histológica é idêntica à das pústulas variólicas e finalmente que com o conteúdo destas pústulas se reproduz sobre a córnea dos coelhos a reação de Guarnieri, parece que não se pode duvidar que se trata de varíola vera, mesmo se o quadro clínico não seja exatamente o que habitualmente observa-se nessa moléstia. O referido artigo colocou mais lenha na fogueira. A Sociedade de Medicina e Cirurgia escalou uma comissão, chefiada pelo médico Affonso Azevedo, para visitar a região de Rio Claro e elaborar um parecer sobre a questão. Além de acirrar os ânimos do debate científico, o artigo serviu também para levar a controvérsia para um campo bem menos nobre. Nas primeiras linhas de seu trabalho, Carini fazia uma citação incorreta do texto de Ribas, atribuindo o termo nova moléstia ao que ele chamou de alastrim.7 Para Ribas, essa denominação fazia muita diferença, pois dava a idéia de que ele tinha o propósito de incluir questões de caráter etiológico em sua comunicação, que se pautava em questões clínicas. Ribas foi a público protestar contra o que ele considerava uma modificação proposital de seu texto com objetivos escusos, sendo respondido por Carini que o erro havia sido acidental e da lavra do tipógrafo. Nesse momento, os ânimos já estavam bastante alterados e as discussões ultrapassavam de longe os limites dos fóruns científicos, sendo que cada declaração se transformava em manchete de jornal. En face dun pareil tableau et sans meconnaître limportance de lobservation faite par M. Carini, je crois quon peut hésiter à suivre dans son diagnostic le directeur de lInstitut Pasteur de S. Paulo. La simple observation de la presence de corps de Guarnieri dans la cornée danimaux inoculés avec le liquide des pustules ne suffit pas à entraîner lopinion. Cette réaction de la cornée du lapin ne peut réveler quune parenté entre les deux affections. On observe, en effet, la formation des corps de Guarnieri avec la vacine et aussi avec lymphe de varicelle. Il ne peut, cependant, être question de confondre ces deux affections avec la variole. Dautre part, si le laboratoire joue un rôle de plus en plus important pour le diagnostic des maladies, on ne peut cependant faire abandon des données cliniques. La faible mortalité (1/2 0/0) constatée dans cette épidémie est tout à fait en contradiction avec ce quon sait sur la gravité de la variole parmi des populations non vaccinées. Enfin M. Carini nattache pas assez dimportance, il me semble, au fait signalé par M. Ribas, que certaines personnnes récemment guéries dalastrim ont été vaccinées avec succés. Si elles avaient eu de la variole même légère, il est douteux quelles eussent pris la vaccine. |
Marchoux colocava por terra as opiniões de Carini sobre a especificidade dos corpúsculos de Guarnieri, assim como o irrestrito poder do laboratório na identificação da doença. Na verdade, embora o médico francês enfatizasse a importância do diagnóstico clínico, ele destacava um argumento de base laboratorial como ponto último para invalidar a postulação de Carini: se as enfermidades fossem as mesmas, o alastrim deveria imunizar contra a vacina. De qualquer forma, as coisas não andavam boas para o médico italiano, que começava a perder terreno em sua contenda. Meses depois, outro cientista de peso se voltaria para a questão. Era Henrique Aragão, pesquisador da instituição biomédica de maior renome no país naquele momento, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Especialista em estudos sobre a varíola, em 1908, ele havia publicado um trabalho em que afirmava ter conseguido observar o até então invisível micróbio causador da doença. Tomava como base as opiniões de Marchoux e novas pesquisas por ele realizadas que se centravam na imunidade que o alastrim proporcionava em relação à vacina. Embora concordasse com a opinião de Ribas, ele procurava estabelecer uma solução de consenso para a questão. A seu ver, as duas doenças tinham filiação comum, diferenciando-se com o passar do tempo, transformando-se em entidades autônomas. Assim, se deveria criar para englobá-las o grupo variólico, como o já existente grupo tífico: "Ora se o grupo tífico é hoje universalmente aceito, com igual direito e com bases seguras se pode estabelecer um grupo variólico constituído desde já pela varíola como tipo e por duas paravaríolas, o alastrim e a varicela" (Aragão, 1911, p. 103). Acuado pelas opiniões dos prestigiosos cientistas do Instituto Pasteur de Paris e do IOC, Carini compareceu a uma nova sessão da Sociedade de Medicina e Cirurgia (15 de maio), onde a discussão estava na ordem do dia. Dessa vez, tratava-se de discutir o relatório do dr. Affonso Azevedo sobre o tema, encomendado pela Sociedade de Medicina alguns meses antes. Seu estudo, elaborado a partir de observações clínicas realizadas em Rio Claro, era mais uma peça de apoio a Ribas que, aliás, não compareceu à sessão , contendo as mesmas divergências sobre as formas clínicas da doença e resenhando as opiniões contrárias de Marchoux e Aragão. Aberta a discussão, no plenário começou um intenso bate-boca, onde as questões de sempre foram radicalmente defendidas: para Carini, já isolado no debate, a presença de granulações idênticas nos filtrados das culturas das pústulas; a identidade das estruturas anatomopatológicas nas duas infecções e as reações de imunidade recíprocas eram provas suficientes da identidade entre os dois males. O fato de a vacina antivariólica pegar em alguns doentes curados de alastrim não deveria ser dado como prova contrária a sua posição, pois poderia se tratar de um simples processo alérgico. Os números ainda não autorizavam a generalização. Já Affonso Azevedo acusava Carini de fazer tábula rasa da sintomatologia da doença e de desconsiderar as opiniões dos diversos clínicos que haviam estudado a questão (SMCSP, 1911b). Mais uma vez a discussão foi interrompida sem se chegar a nenhuma conclusão. Na sessão de 1º de junho, o assunto foi retomado com a leitura de uma comunicação do médico João Teixeira, que postulava a identidade entre as duas doenças. Emílio Ribas foi o primeiro a falar, voltando a protestar contra a generalização das conclusões de seu trabalho, que a seu ver se limitavam aos aspectos clínicos da doença, não querendo enveredar pelas questões etiológicas. Logo o dr. Affonso Azevedo pediu a palavra para voltar à carga contra Carini, criticando sua convicção de que os aspectos etiológicos da doença deveriam determinar sua classificação. Seu argumento consistia no fato de que, muito antes de se conhecer a etiologia de várias enfermidades, elas já estavam classificadas de acordo com seus sintomas. Mais uma vez a questão que se colocava era se a classificação da doença deveria ser feita por procedimentos laboratoriais ou pela observação de caracteres clínicos a partir de então esse ponto será central em toda a discussão. Agora Carini também era combatido em seu próprio campo, pois Affonso Azevedo jogava com o fato de que, mesmo no que tange à bacteriologia, importantes pesquisadores como Marchoux e Aragão se negaram a aceitar sua opinião. Logo a discussão se desviou, com Ribas criticando as generalizações de Carini sobre a existência do mesmo mal em diversas partes de São Paulo, fato que comprometia a situação sanitária do estado e do serviço que dirigia. Apesar de Carini afirmar que suas observações só eram válidas para Rio Claro, região que estudou in loco, a discussão ficou cada vez mais tensa, perdendo-se em aspectos insignificantes e picuinhas sem sentido. De volta ao tema central, foi o pesquisador Adolfo Lindemberg quem jogou a última cartada contra Carini, ao afirmar que o dr. Adolfo Lutz, observando doentes no Hospital de Isolamento de Rio Claro, havia declarado: "Isto é bem diferente de varíola" (SMCSP, 1911a, p. 235). Mais uma vez o apelo a aliados externos, ou, nas palavras de Bourdieu, a detentores de melhores posições no campo científico, reorientava a discussão. Lutz era um cientista de grande prestígio em São Paulo, por ter comandado a série de experiências sobre a teoria culicidiana da febre amarela e também por ter diagnosticado diversas doenças epidêmicas que assolaram a capital na virada do século. Sua opinião deu o fecho à discussão. Não havendo como se chegar a uma conclusão, a sessão foi encerrada, ficando no ar as últimas palavras sobre a controvérsia, pronunciadas pelo dr. Walter Seng: "Deve-se esperar até que venham novos fatos dar razão a um ou outro dos que discutem." E dessa forma foi finda a discussão na Sociedade de Medicina e Cirurgia. A controvérsia evade a Sociedade de Medicina Embora parecesse, a discussão não havia terminado. Tal qual a Fênix da mitologia egípcia, ela renasceria das cinzas diversas vezes em diferentes fóruns e situações. Seu primeiro ressurgimento foi nas páginas de O Estado de S. Paulo, onde, em 18.8.1911, foi publicado um artigo que historiava os principais fatos da controvérsia e, no final, se propunha a resumir as discussões ocorridas na Sociedade de Medicina Tropical de Londres, em junho de 1911, quando da discussão da comunicação apresentada por Emílio Ribas. Os drs. Daniels e Low, que discutiram a comunicação, foram ambos de opinião que a moléstia descrita pelo dr. Ribas era idêntica aos casos benignos de varíola ocorridos nas Índias Ocidentais em 1902 e 1904. A mortalidade nessas irrupções foi igualmente muito baixa, o que não obstou que se fizesse o diagnóstico de varíola. Osler verificou a mesma coisa para os Estados Unidos, onde recentes epidemias de varíola foram indevidamente consideradas como varicela (chicken-pox), havendo mesmo prevalecido a crença de se tratar de uma nova moléstia, que batizaram de sarna cubana ou filipina. Se bem que a benignitude (sic) de todos esses casos seja muito acentuada, não há dúvidas que eles são apenas formas de varíola e não uma moléstia nova, conforme o dr. Ribas se esforçou em estabelecer. O artigo irritou Ribas profundamente, que em longa carta ao jornal também publicada na Revista Médica de São Paulo acusava o autor de distorcer as opiniões dos médicos ingleses sobre o assunto. Para mostrar a outra face da moeda, Ribas usou o mesmo artifício do jornal: deteve-se apenas nos aspectos do debate que o interessavam. Assim fez largo uso das declarações favoráveis ao seu trabalho, proferidas por um certo dr. Daniels na sessão da Sociedade de Medicina Tropical de Londres, onde seu artigo foi discutido, citando um longo trecho de sua fala que mostrava que a questão não parecia estar resolvida. Examinamos o que diz do alastrim o dr. Ribas em sua memória: ele o chama uma entidade mórbida, frase esta que, por si só, bastaria para demonstrar que o dr. Ribas considera o alastrim uma moléstia à parte. Depois não diz ele que o alastrim difere de todas as febres eruptivas até agora conhecidas em nosso país? ... Estou persuadido que o dr. Ribas, relendo hoje com maior atenção o que escreveu, e examinando com mais calma a questão, deverá reconhecer que se eu (assim como o dr. Daniels) lhe atribuí aquela opinião foi porque era isso o que logicamente se depreendia de seus escritos. Abalado pela discussão na sociedade, Carini procurou dar um tom mais conciliador ao seu artigo, mostrando que grande parte da discussão era fruto de um mal-entendido. No entanto, ele não abdicava de suas posições sobre a não identidade das doenças. | |
9 Utilizando sua antipática técnica de ridicularizar o oponente, ele convida Pereira Barreto a observar os quadros que apresenta sobre a baixa mortalidade de varíola na Alemanha e finaliza: "Grassará também lá o alastrim?" Na verdade, ele jogava para a platéia porque seus gráficos apresentavam somente as mortes pela doença, não se referindo ao seu índice de incidência.
10 Óbitos por varíola na cidade de São Paulo: 1895, 22; 1896, 21; 1897, 26; 1898, 345; 1899, 1; 1900, 7; 1901, 46; 1902, 66; 1903, 13; 1904, 19; 1905, 5; 1906, 5; 1907, 0; 1908, 136; 1909, 48; 1910, 5; 1911, 2; 1912, 237; 1913, 17; 1914, 16 (Anuário demográfico, 1915, p. 37). | A primeira parte da réplica de Rubião Meira se prendeu à questão da confluência das pústulas do alastrim. Municiando-se de uma longa bibliografia de especialistas estrangeiros, ele procurava demonstrar como se caracterizavam os sintomas epidérmicos da varíola confluente e afirmava que seu oponente se equivocava em atribuir ao alastrim as características desta doença. A seu ver, a doença reinante apresentava pústulas concorrentes e não confluentes. O interessante é que em lugar de Rubião Meira mostrar a diferença entre os dois males e acrescentar que Pereira Barreto fizera uma observação a seu ver incorreta, ele assumia um tom professoral, centrando-se em listar as opiniões dos médicos estrangeiros sobre a varíola de pústulas confluentes, o que na realidade não contrariava o argumento de seu oponente. O segundo artigo voltava-se para a questão da benignidade da doença. Mais uma vez, Meira calçava-se em uma ampla bibliografia para mostrar que em diversas epidemias a varíola causou pouca mortalidade, e que com o advento e aumento da utilização da vacina a mortalidade pela doença deveria ser cada vez menor em virtude da utilização desta.9 Além disso, trazia a público novos índices colhidos por médicos do interior do estado, que mostravam que a mortalidade da doença estava se agudizando. O artigo final tinha como alvo a afirmação da diferença das pústulas das duas doenças. Meira procurou mostrar que vários médicos haviam observado diferentes tipos de pústulas em epidemias de varíola, dependendo da intensidade da doença não podendo ser esse fator um caráter distintivo da mesma. Sua tríade de artigos termina com a afirmação da existência da varíola na cidade e com o pedido de providências que impedissem o alastramento do mal. Mas de pronto a epidemia não recrudesceu, e as críticas ao Serviço Sanitário cada vez mais se agudizavam. A prefeitura passou a ser culpabilizada pela sujeira na cidade que favorecia o surgimento da doença; os fiscais sanitários eram acusados de não cumprir suas funções de vacinadores etc. No final de outubro, a diretoria do Serviço Sanitário expediu uma nota informando que iria passar a tomar medidas extraordinárias contra a epidemia, intensificando a vacinação e o isolamento. Em dezembro, a epidemia já se apresentava em franco declínio, deixando de ser notícia. A epidemia havia acabado, e com ela a ilusão de que Ribas tinha saído fortalecido da controvérsia. Muito pelo contrário. A violência da doença, que somente naquele ano matara 237 pessoas cifra comparável apenas à grande epidemia de varíola havida em 1898 , e as críticas à atuação da saúde pública nesse episódio acabaram por reverter sua vitória inicial e abalar a sua posição na diretoria do Serviço Sanitário.10 No mês seguinte ao fim da epidemia, Ribas pediu demissão de seu cargo. Demissão essa que depois de aceita foi convertida em licença para o desempenho de uma missão oficial de estudos sobre a lepra na Europa e nos Estados Unidos. Embora não tenhamos base documental para relacionar estes fatos, o certo é que em alguma medida sua saída da direção do Serviço Sanitário se relacionou à epidemia. Além disso, outro episódio, relacionado à Sociedade de Medicina e Cirurgia, também atesta o inferno astral vivido por Ribas no campo médico paulista. Em fevereiro de 1913, ocorreria a eleição anual para renovar a diretoria e as comissões da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Emílio Ribas foi indicado para a comissão de Higiene, no entanto obteve apenas um voto, sendo que seus adversários tiveram uma votação bastante expressiva: Sérgio Meira e Affonso Azevedo obtiveram 29 votos cada um e Araripe Sucupira, 28 (Almeida, 1998; SMCSP, 1913). |
11 Segundo Latour (1989), um enunciado é composto de um conjunto de sentenças relacionadas à sua produção. Estas sentenças são por ele chamadas de modalidades. As modalidades positivas são sentenças que afastam o enunciado de suas condições de produção, tornando-os sólidos a ponto de serem vistos como verdades. As modalidades negativas são sentenças que infletem sobre o enunciado em direção as suas condições de produção, deixando claro por que ele é sólido ou fraco.
12 Numa controvérsia científica, Latour (op. cit.) chama de actantes os humanos ou não humanos envolvidos. Já os porta-vozes são os representantes destes. | Conclusão Uma luta em dois rounds. No primeiro Ribas se saiu melhor. Na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo suas opiniões prevaleceram ao fim das discussões. Tivemos, na verdade, um final diferente das grandes controvérsias científicas, onde comissões julgam os trabalhos e emitem pareceres indicando os que merecem entrar para a história como representantes da boa ciência e os que devem ser esquecidos pelo mundo acadêmico. Mas, de qualquer modo, houve um vencedor e um vencido. A observação das atas da Sociedade de Medicina e Cirurgia deixa claro que Carini saiu derrotado e isolado na contenda ali havida até porque o relatório oficial, elaborado por Affonso Azevedo, era contrário a sua opinião. Mostra também que o trabalho mais pesado ficou nas mãos dos aliados de Ribas, incansáveis em seus esforços de defendê-lo. Se Ribas limitava-se a manter sua postulação inicial sobre a diferença entre as características clínicas da varíola e do alastrim, seus aliados reforçavam sua posição corroendo por dentro o argumento de Carini à medida que postulavam seu desacordo com outros homens de laboratório que se voltaram para a questão. Restaria apenas esperar que se formulasse um novo consenso, onde, esquecidas as desavenças, a nova entidade mórbida pudesse ser adotada, definitivamente, pela nosografia médica. Ou, como quer Latour, terminada a batalha, a própria dinâmica da ciência se encarregaria de, aos poucos, dar fim às modalidades relacionadas aos enunciados que definiam a nova doença.11 Assim, depois de algum tempo, a nova entidade mórbida seria simplesmente o alastrim, não se confundindo mais com a varíola. Semelhanças clínicas, imunidade cruzada, diagnósticos semelhantes, especificidade dos corpúsculos de Guarnieri; esses e outros pontos logo deveriam ser esquecidos para a nova classificação subir ao panteão das verdades estabelecidas. |
Na sessão de 3 de novembro de 1910, apresentei à Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo uma nota na qual procurei demonstrar que o alastrim, a febre exantemática contagiosa que reinava no interior do estado de São Paulo e em outros estados vizinhos não era outra coisa senão a varíola. Combati a opinião daqueles que queriam fazer da moléstia uma entidade mórbida à parte; e a meu modo de ver não havia nenhuma razão para batizá-la de nomes diferentes, nem para separá-la da varíola. Apesar de ter sido o meu diagnóstico fundamentado sobre dados anatomopatológicos e experimentais muito precisos, ele não foi logo aceito e outras publicações seguiram-se, umas favoráveis, a maior parte contrária à identidade das duas afecções. Se a epidemia se tivesse extinguido então, é de presumir que cada um teria ficado com sua opinião e que a dúvida persistiria. Mas dois anos e meio se passaram, a epidemia continuou, ganhou outras regiões, e hoje a opinião do corpo médico está radicalmente modificada. Muitos dos clínicos que não se haviam rendido às demonstrações do laboratório, se convenceram diante dos novos fatos epidemiológicos que observaram .... Acredito que esses fatos epidemiológicos e a mortalidade bastante elevada observada na cidade e no estado de São Paulo vêm em apoio da minha opinião e que devem dissipar as últimas dúvidas, se ainda existem, sobre a identidade do alastrim com a varíola (Carini, 1913). A sessão foi encerrada sem discussão e a controvérsia mais uma vez, reaberta. Em outubro, Affonso Azevedo o autor do relatório contra as opiniões de Carini na primeira parte da controvérsia voltaria ao tema na sociedade, inscrevendo-se para rebater a comunicação de Carini. Mais uma vez a listagem dos mesmos argumentos e opiniões, só que Carini passou a ter o apoio de outros colegas, em especial de Rubião Meira. Por duas vezes a controvérsia voltaria à sociedade em novembro de 1914, mas a discussão perdeu o fôlego. Não havendo novos argumentos ou aliados, transformar-se-ia num bate-boca que opunha Affonso Azevedo a Carini e Rubião Meira. Aos poucos a questão foi deixada de lado. Post-scriptum Aqui, considerações sobre as posições em jogo não têm importância. No entanto, para matar a curiosidade do leitor, vejamos alguns aspectos do debate à luz dos saberes atuais. Emílio Ribas sustentou a idéia de que o alastrim fosse doença autônoma, distinta da varíola. Este ponto de vista, consubstanciado, até certo ponto, pelas pesquisas de Torres e Teixeira (1935) relativas à histopatologia comparada das duas doenças, não se harmoniza, porém, com as verificações imunológicas de Downie e colaboradores (1950), que não lograram observar diferença entre varíola e alastrim, em provas de neutralização (na cório-alantóide) e de fixação de complemento. Em relação à sintomatologia, considera-se hoje que a varíola pode apresentar diversos quadros, que se diferenciam, principalmente, pela maior ou menor intensidade dos sintomas. Suas duas formas principais: a major, também conhecida como bexiga, varíola vera ou verdadeira; e a minor, também denominada de alastrim amaas, kaffirpox e milkpox. As duas formas não apresentam diferenciações clínicas, distinguindo-se, somente, por seus aspectos epidemiológicos. Segundo o virologista Juan Angulo (1982, p. 658): "A varíola major é caracterizada por um coeficiente de letalidade da ordem de 20%, assim como pela maior proporção de quadros clínicos severos. A varíola minor caracteriza-se por uma letalidade de aproximadamente um por cento e predominância de quadros clínicos benignos. Em casos clínicos isolados, assim como em pequenos surtos, diferenciar entre varíola major e varíola minor é impossível, pois a porcentagem da mortalidade é que estabelece a diferença decisiva." |
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