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Entrevista com Alain Reynaud
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História do pensamento geográfico

Entrevista com Alain Reynaud

Entrevista realizada em Reims 11 fevereiro de 2012.
Laurent Beauguitte
Tradução de Hervé Théry, Leonor Bertone e Larissa Lira

Texto integral

“Mantive-me geógrafo apesar de mim mesmo (risos) até o fim ... mas com o desejo de fugir o mais rápido possível. Saí logo que pude, isto é o dia dos meus 60 anos. ”

1O objetivo da entrevista é a divulgação de seu trabalho no Brasil já que esta entrevista fará parte de um dossiê Alain Reynaud a ser publicado na Confins, revista franco-brasileira de geografia, coordenada por Hervé Théry e Neli de Mello-Théry. A entrevista terá três blocos principais: um sobre a sua formação e sua “carreira”, o segundo sobre seu trabalho e, finalmente, o último questionando a natureza científica da geografia.

O tempo de treinamento e a chegada em Reims

LB: Pergunta simples, ou talvez não tão simples no seu caso, por que você escolheu a geografia?

AR: Eu fui atraído para o ensino na idade de seis anos, ou seja, poucos dias depois que comecei a ir à escola. Posteriormente, eu quis conhecer melhor e entender o mundo, passado e presente, o que significava no ensino secundário, estudar história e geografia que proporcionavam uma chance de ter contato e uma abertura para o mundo. O professor correspondeu aos meus desejos e meus pais foram me empurrando nessa direção. Chegando na Universidade, eu tinha a escolha, na época, isto é, no início dos anos 60, entre duas graduações, de história (75% de história, 25% de geografia ) e de geografia (50% de história, 50% de geografia). No entanto, no secundário, as duas disciplinas eram equilibrados. E eu não estava pensando ir ensinar na Universidade. Mesmo sendo os meus gostos pessoais muito mais para a história, eu considerava que a graduação em geografia era mais adequada para minha futura carreira, e eu não queria, também, me trancar no passado e queria me interessar pelo mundo de hoje. Dito isto, eu não devo ser realmente um geógrafo, porque eu sempre me senti muito mais confortável e à vontade lidando com o tempo do que com o espaço.

LB: Toda a sua formação ocorreu em Bordeaux?

2AR: Completamente.

LB: Ocorreram encontros, ensinamentos marcantes?

  • 1  Exame de seleção para os estudos universitários (NdT)

3AR: Eu tive alguns professores fracos, o que é quase inevitável, mas uma maioria era de professores sérios, formadores e sólidos, mas apenas um realmente fascinante, motivador , emocionante, Henri Enjalbert, com quem senti empatia desde o início. Ele era geomorfologista, daí a minha paixão pela geomorfologia, a maioria do meu trabalho e das minhas leituras na universidade eram desse campo, o que também era comum na época para muitos estudantes. Mas ele foi um geomorfologista heterodoxo, até mesmo para alguns, herético. Entre os seus trabalhos notáveis, de Henri Enjalbert (o que não significa necessariamente os mais conhecidos, mas eu os considero significativos): « La vallée moyenne de la Charente » (“O vale médio do Charente”) nas Annales de Géographie, Les reliefs inachevés » (“Os relevos inacabados ”) nos Mélanges Meynier, a sua tese sobre a Aquitânia, especialmente o capítulo sobre o de Landes de Gascogne, em seguida, sua síntese original « Les formes du terrain dans la zone tempérée » (“As formas de relevo na zona temperada”), 150 páginas fascinantes na Géographie générale de La Pléiade. Ele também tem um percurso específico e muito revelador. Ele era filho de uma família de camponeses do Rouergue, falava patois (dialeto do francês meridional) em sua infância, e se tornou um puro produto da escola da Terceira República: professor do ensino primário, École Normale Supérieure de St. Cloud, agrégation (concurso do recrutamento do ensino secundário) de história e geografia com 30 anos, preso na Alemanha por quatro anos na Segunda Guerra Mundial, onde estudou extensivamente a geomorfologia no texto original alemão. Ele era um homem de grande cultura. Ele era capaz, nas excursões, de falar, de improviso, sobre tímpanos das igrejas românicas. Deve também ser dito que foi provavelmente o único presidente de banca de agrégation que não tinha passado no baccalauréat1, ele tinha apenas o “Certificado Superior”, o que lhe permitiu tornar-se um professor do ensino primário!

LB: Essa trajetória lembra um pouco o itinerário de Daniel Faucher, professor do ensino primário também.

4AR: Ele é típico da época. Daí a impressão que tive, ao ouvi-lo, que a geografia era mais abrangente do que a história, já que ela também incluía a história. Eu continuei no caminho geográfico, mas, mesmo antes da agrégation, eu sabia que não seria geomorfologista. Basicamente, a geomorfologia seria um hobby ...

LB: Em seguida, vem o diplôme d'études supérieures (DES), o que corresponde aproximadamente à dissertação de mestrado hoje?

5AR: Sim, só que não havia ensino, havia apenas duas dissertações: a principal e a secundária, uma em geografia humana e uma em geografia física, sendo uma ou a outra a principal.

LB: A sua principal foi em geografia humana, sobre movimentos populacionais no departamento de Landes de 1954 a 1962.

6AR: Sim, porque o censo acabara de ser publicado e o Departamento de Geografia queria explorá-lo. Eu ganhei o departamento de Landes.

LB: Não é que você escolheu?

7AR: Não, pouco importava para mim ... E então, em memorial secundário, os meandros da Dordogne no Quercy, orientado por Henri Enjalbert.

LB: Após o DES o Sr. se preparou para a agrégation, sempre em Bordeaux. Na época, a agrégation de Geografia servia para ensinar na escola secundária, mas também, mesmo que isso não tenha sido oficial, era necessária para ensinar na Universidade.

8AR: Não necessariamente, mas quase. O exercício era útil de uma certa maneira, uma vez que a agrégation na França é equivalente a uma super-graduação, ou seja, no sistema americano a uma graduação summa cum laude. Mas agrégation naquele momento deixava a impressão de um grande classicismo tanto pelo programa como pelos assuntos questionados. O problema da agrégation de geografia era a lentidão da evolução dos conteúdos, durante várias décadas ela ficou relativamente estática. Congelada no seu programa e, por conseguinte, nos temas das provas. Era a confirmação do bloqueio que eu tinha sentido durante os meus estudos.

LB: Você sentiu este bloqueio?

  • 2 A obra citada periodiza o fim da primeira guerra como o fim das cultura dos cantões da França rural (...)

9AR: Oh sim, muito. Grosso modo, o hiato entre uma geografia firmemente enraizada no ruralismo e na natureza, por isso na geografia física, que era onipresente (na disciplina de geografia geral, eu não tive nenhuma aula de geografia estritamente humana), e de outro lado uma sociedade francesa – e para além da França – cada vez mais urbana. A defasagem vem dos primórdios da escola francesa de geografia fundada por Vidal de la Blache. Hoje, basta consultar a obra de historiador americano Eugen Weber estudando La fin des terroirs 1870-1914, onde ele mostra o colapso de muitas zonas rurais francesas como resultado da emigração e da urbanização2. Mas Vidal e mais tarde os seus sucessores no século 20 inteiro queriam apresentar uma imagem fixa e congelada de um país rural, como se estivesse ainda vivo. A emigração rural foi classificada como o êxodo rural, portanto, considerada extremamente negativa. Não se levou em conta as realidades do momento, gostando ou não delas, como se essas regiões rurais continuassem a desempenhar um papel fundamental na organização do espaço. A discrepância vem de lá e eu vivi os seus últimos momentos. Na década de 60, a região, a palavra sagrada na geografia do tempo, não tinha mais significado, a análise deveria ter começado com as cidades e não terminar com elas.

LB: Você passou na agrégation?

10AR: Em 1966.

LB: E você foi mandado para Reims.

11AR: Sim, na escola Clémenceau.

LB: Você chegou em Reims, e começou a ensinar e Roger Brunet também estava lá no momento.

12AR: Ele era professor em Reims e diretor do departamento. Ele chegou em 1966, como eu, vindo de Toulouse.

LB: Ele entrou em contato com você para lhe propor de se tornar professor assistente na Universidade?

13AR: É um pouco mais complexo ... O encontro com Roger Brunet foi muito simples, Henri Enjalbert tinha me aconselhado a entrar em contato com ele em sua resposta aos meus votos de Feliz Ano Novo de 1967. Eu queria pedir livros emprestados. O encontro ocorreu num sábado de manhã no Departamento de Geografia, na centro da cidade. na época, em ruínas. Ele estava lá e a discussão foi bastante longa, uma hora e meia. Poucos meses depois, ele me visitou: ele me ofereceu de ser professor assistente na Universidade. Eu tinha acabado de me candidatar para ser professor nas classes de preparação ao ensino superior, poucos dias antes. Então, eu recusei, apesar de sua insistência e ele teve que procurar alguém fora de Reims. Um ano depois, nova proposta e aceitação da minha parte. Eu não tinha qualidades especiais, mas a insistência veio da falta de alternativas: eu era naquele tempo o único agrégé de geografia nas escolas secundárias de Reims. Roger Brunet não tinha escolha, ao menos localmente.

LB: Quem estava no Departamento de Geografia, na época ? Roger Brunet ...

14AR: Era pouca coisa. A equipe foi formada em Reims com base na disponibilidade. Aqueles que já estavam lá: quatro em 1966, Roger Brunet e sua esposa Lucienne Le Rouzic e outros dois, depois seis, e em 1970 houve um recrutamento um maciço: três vagas de repente e uma substituição de um colega. Assim, uma revisão completa. O recrutamento foi feito nos corredores da agrégation, quase brigamos pelos recém-concursados. Foi assim que chegaram Jean Domingo e Gérard Dorel, mais Georges Cazes, ex-aluno de Roger Brunet em Toulouse e já professor ali. Assim, quatro jovens de apenas 30 anos, ao mesmo tempo: Jean Domingo, Gérard Dorel, Georges Cazes e eu. Rapidamente, a químico funcionou, com amizades e trocas intelectuais.

LB: Vocês quatro compartilhavam esta visão de uma geografia bloqueada?

15AR: Isso seria dizer muito, mas houve tendências comuns, influências mútuas surgiram. Depois de 1976 e da saída de Roger Brunet para o CNRS, a equipe permaneceu, mas a estrutura do departamento era um pouco estranha: dois professores de geomorfologia, além de sete professores assistentes e professores adjuntos, um só em geografia física e seis outros em geografia humana, e um cargo de professor, o de Roger Brunet, vago até 1983, isto é durante 7 anos. A isntituiçaõ mantivera grande estabilidade ao longo dos anos, fora a saída em 1981 de Georges Colin, já presidente do distrito de Reims e que tornou-se deputado, e de Gerard Dorel também em 1981, que passou a ser docente em Creteil, perto de Paris. O departamento foi realmente muito misto. Eu realmente sinto que demos uma imagem que não correspondia à realidade. Por fora, uma vez que a “jovens turcos” estavam ativos, escrevendo artigos, livros, manuais, falava-se deles, houve uma preocupação com a epistemologia, a reflexão. Então, Reims, em algum momento dos 70 anos, tornou-se conhecida. No entanto, em alguns aspectos, foi um dos departamentos mais conservadoras da França ...

LB: Na época, não era necessário ter concluído a tese para ser recrutado?

16AR: Você tem que colocar-se na situação dos anos 1960, marcada por um crescimento muito rápido das universidades. Em geografia, foram recrutados como auxiliares quase todos os anos o equivalente a uma turma de agregação, que é dizer cerca de 30 pessoas. Podia-se ser professor adjunto, com estabilidade de emprego sem tese não, apenas com um dossiê de artigos. Alguns nunca fizeram tese, na geografia como em outras disciplinas.

LB: Você trabalhou muito tempo para TIGR (Travaux de l’Institut de Géographie de Reims), você aparece inicialmente como editor assistente de l’Espace géographique e no grupo de discussão de Hérodote, a revista criada por Yves Lacoste em 1976. Mas estas colaborações não duram, por quê?

17AR: Eu participei no TIGR porque eu estava lá. No caso de l’Espace géographique, alguém em Reims assumiu o trabalho de secretariado, do qual eu tinha sido previamente encarregado, e eu me dediquei mais aos TIGR. No caso de Hérodote, houve alterações na equipe e eu não tentei continuar. Eu não era um homem de reuniões, encontros, mesas redondas e outros, então eu não tentei ficar ...

LB: Você participou no início do grupo Dupont?

18AR: Eu estava interessado, mas eu não tive contato direto, eu estava pouco a fim de ir a muitas reuniões em lugares mais ou menos distantes. O Grupo Dupont estava em plena atividade quando eu não estava interessado em geografia quantitativa. Ou, mais exatamente, eu poderia ter tentado, e eu tenho tentado, mas Lucienne Rouzic dava muito bem estas disciplinas. Eu também tinha outros projetos, e então só realmente me interessei mais tarde, no final dos anos 1980, em outro contexto. Eu li os livros do grupo Dupont mas eu não me mantive em contato estreito com o grupo, mesmo conhecendo bem Francois Durand-Dastès, que deu por muito tempo aulas em Reims.

LB: Quem influenciou o seu pensamento?

19AR: Quem desempenhou um papel importante no meu desenvolvimento intelectual foi um anglicista amigo da Universidade de Paris 8-Vincennes, Claude Chenain, cuja esposa era historiadora. Ele especializou-se nos meios de comunicação no Reino Unido, o que a priori é muito longe de geografia. Contudo, temos uma cumplicidade intelectual e discutíamos longamente muitas vezes Foucault, Barthes, Edgar Morin, o estruturalismo, o interesse da teoria, os novos rumos da história. Aconselhávamos um ao outro livros que não eram nem geografia, nem civilização Inglesa. Estávamos em ramos muito diferentes, mas tínhamos uma base conceitual comum.

LB: Como vocês se conheceram?

20AR: Ele era professor em escolas secundárias em Reims e me deparei com ele quando cheguei. Então ele foi para Paris e foi da Universidade de Paris 8 desde o seu início. É sorte, mais uma vez. Mas de qualquer forma, isso era bem típico de uma época em que o interesse na teoria era grande, o tempo que os americanos mais tarde chamaram de French theory, teoria francesa. E nós éramos leitores e comentadores de que foi feito nesta área.

A recusa da carreira acadêmica “normal'”

LB: Como você percebe a evolução da profissão docente na universidade entre o seu início e sua aposentadoria, em 2002? A universidade francesa enfrentou um número crescente de estudantes, depois uma estagnação significativa e agora, em algumas disciplinas, uma diminuição. Há também uma crescente importância dos dispositivos de avaliação dos pesquisadores e um papel crescente dos programas de financiamento e pesquisa. Como você viveu tudo isso?

  • 3  A região da qual Reims é capital (NdT)

21AR: Eu sempre me considerei primeiramente como um professor. Além disso, quando me perguntavam o que eu fazia, eu sempre dizia que eu estava ensinando, eu nunca tive a ideia de dizer que eu era um pesquisador. Então, eu era professor usando seu tempo livre para pesquisar. Daí a preocupação de temas bastante amplos e variados para estabelecer uma ligação com o ensino, exceto em casos especiais, como a China antiga. O número de alunos foi particularmente elevado nos anos 70 , até 200 ou mais no curso de História. Em seguida, houve uma tendência de queda, além de fragmentação, devida à multiplicação de opções que não existiam ou quase nos anos 1960-1970. As avaliações eram demasiado detalhadas, com um risco de bloqueamento. Vamos tomar um acadêmico do passado: ele quase não publicou nada durante 15 anos, entre 42 e 57 anos. Isto é muito feio pelos padrões de hoje ... Aos 57 anos, ele finalmente publicou um livro: A crítica da razão pura ... Kant teria sido desaprovado e penalizado hoje em comparação com colegas mais sérios e produtivos. Acrescento que Kant foi antes de mais nada um professor que deu muitas disciplinas em Königsberg, sobre tópicos extremamente variados. Uma avaliação a cada quatro anos talvez não faça muito sentido: em uma vida acadêmica, há momentos de reflexão, momentos aparentemente vazios, mas durante os quais você vai desenvolver produções futuras. Programas de pesquisa como são atualmente projetados na França na área das humanidades são um desastre, do meu ponto de vista. Se houvesse naquela época quadros tão apertados, eu não teria feito o que fiz. Epistemologia não estava em voga quando eu estava fazendo, cheirava a enxofre, a teoria da análise regional, a teoria em geral, não eram bem vistas na década de 70, a geografia histórica foi considerada estranha nos anos 80 por uma grande maioria de colegas, etc. Em Reims, quando se falava da pesquisa ela só podia dizer respeito à região Champagne-Ardennes3 e planejamento. Eu não estava realmente interessado na Champagne-Ardennes. Mas, como eu nunca tive verba de pesquisa, não importava.

LB: Ao analisar todo o seu trabalho, existem dois grandes períodos: o primeiro sobre a epistemologia da geografia e o desenvolvimento de um quadro conceitual interpretativo do mundo, em diferentes escalas, entre centro e periferia. E, finalmente, um recuo, com outras atividades, como o desenvolvimento de um software e o trabalho sobre a China antiga.  

22AR: Na minha mente, há uma certa lógica. Epistemologia, em primeiro lugar, porque eu estava insatisfeito com a geografia que eu tinha conhecido, sensível às suas contradições e eu lamentava a tendência enciclopédica. Daí a necessidade de pensar para ver mais claro, seguindo uma inclinação espontânea pessoal para a filosofia, ou pelo menos a reflexão sobre o que eu estava fazendo. Então eu comecei assim. Após a epistemologia, senti a necessidade de voltar ao que foi considerado o coração da geografia, a geografia regional, mas em uma perspectiva mais teórica. Na sequência do artigo seminal de Etienne Juillard (« La région, essai de définition », “A região, tentativa de definição ”, 1962), do livro de Paul Claval (Régions, nations, grands espaces, “regiões, nações, grandes espaços”, 1968) ou dos artigos de Roger Brunet (« Pour une théorie de la géographie régionale », “Para uma teoria da geografia regional”, 1972). Li com interesse o livro de Samir Amin (Le développement inégal, O desenvolvimento desigual, 1973), e eu queria trabalhar em uma perspectiva geográfica além da oposição estreita centro-periferia, multiplicando os subtipos para melhor atender a variedade de situações. Como de costume, comecei a montante, com o conceito de classe sócio-espacial, em uma perspectiva mais ampla do que apenas a geografia, para ver as coisas mais claramente.

23E a retração, a partir de 1981 ... Os problemas que Gerard Dorel enfrentou, em um contexto muito particular de escassez de empregos, a ameaça da sua expulsão da Universidade, já que os professores assistentes não tinham estabilidade, desempenharam um papel importante: ele não estava mais no debate de ideias. Para mim não tinha risco, tendo estabilidade, e uma solução foi encontrada alguns meses mais tarde, mas o incidente era revelador e eu não queria mais jogar um jogo estúpido. Em outras palavras, uma reação que não foi pessoal nem epidérmica, mas substantiva. Eu tive uma confirmação das tensões internas na geografia em 1989, com os novos programas do último ano de colegial, e do tumulto que criaram nos círculos acadêmicos. Eu realmente não estava em sintonia com o meu ambiente. Assim, após 14 anos de trabalho duro (1967-1981), 21 anos de espera da aposentadoria (1981-2002). Mas uma espera fecunda: alguns artigos, muitas resenhas. Eu trabalhei em direções fora das controvérsias do momento, com trabalhos que me tomaram muito tempo: geografia histórica e computação, quando ele se tornava cada vez mais importante. A situação melhorou em meados dos anos 90 por vários motivos: mudança de geração, aumento da especialização, tolerância mútua. Agora você pode trabalhar sobre qualquer assunto, em qualquer contexto, sem provocar reações violentas. Mas, para mim já era tarde demais para voltar totalmente para a geografia e eu continuei alguns anos com o desenvolvimento do software Microgéo, antes de me aposentar definitivamente.

LB: Você fala de uma quebra em 1981, mas já no início dos anos 1970 você provocava reações violentas.

24AR: Sim, mas quando é um debate intelectual, não me incomoda. Aventurei-me a criticar muitos colegas, possivelmente com uma língua afiada, mas eu não tinha poder sobre eles. E eu posso concordar não com a direção de x ou y, posso dizer que fulano ou beltrano faz uma geografia que não me empolga, mas ele trabalha duro, por isso não se deve afastá-lo ou evitar que ele seja promovido, muito menos eliminá-lo.

LB: Na sua obra inicial, há muitas referências a Foucault, Deleuze, o que você encontrou nesses autores que você não encontrará em outros lugares?

25AR: Eu encontrei um pensamento (risos). E eu fui muito marcado em 1967 por Les mots et les choses de Foucault, que li logo após seu lançamento, em seguida, por L’archéologie du savoir e também mais tarde através de Deleuze e Guattari Mille plateaux, livro abundante, variado, às vezes irritante e obscuro, mas rico em conteúdo. Eu sempre quis sair do âmbito geográfico, por gostar de abertura e também porque eu não me sentia totalmente geógrafo.

LB: Você publicou principalmente no TIGR, um pouco na Mappemonde ou l’Espace géographique, e pouco ou nada nas revistas que eram então as referências. Penso, por exemplo nas Annales de géographie onde você publicou apenas uma resenha, como aconteceu?

26AR: Eu raramente ofereci artigos fora, mas muitos itens nos TIGR. Se eu escrevi em L’Information géographique ou Acta Geographica é porque me pediram. Uma única resenha nas Annales de géographie, porque foi a única que me foi pedida. A resenha de La face de la terre dos Pinchemel me foi pedida por Roger Brunet para l’Espace géographique. Então eu respondia aos pedidos, nem a todos aqueles que foram feitos para mim, respondia mas se não me pediam ...

A epistemologia

LB: Em 1971, você publica a Epistémologie de la géomorphologie. Será que este trabalho, não mostra desde o início uma espécie de suicídio acadêmico, uma vez que você atacava de frente o que aparecia, então, o auge da produção científica entre os geógrafos?

  • 4  O tratamento usado na época para tratar a tuberculose (NdT)

27AR: A epistemologia da geomorfologia é um projeto antigo, desde a época em que eu queria que fosse o tema de uma das minhas dissertações da pós-graduação. Era em geomorfologia que eu tinha feito a maior parte do meu trabalho, e que eu tinha pensado. Sempre esta mania ... Quando eu aceitei ser professor assistente, em 1968, devia apresentar um tema de tese. Sugeri a Roger Brunet o tópico seguinte: “Epistemologia da Geografia. Uma tentativa de definir uma ciência humana”. Ele concordou imediatamente, sem avisar-me contra as reações inevitáveis ​​que surgiriam no contexto da época. Então eu comecei a trabalhar. Um ano depois, fui a um sanatório4 nos Alpes por uns 12 meses. E lá, em 1970, com as notas acumuladas ao longo de meus anos de estudo em Bordeaux, eu escrevi a Epistémologie de la géomorphologie, propus à editora Masson, com quem trabalhava ao mesmo tempo para uma coleção de manuais de história para as faculdades. O livro foi aceito, não na coleção na qual eu pensei, “A Evolução da Ciência”, mas na coleção “Primeiro Ciclo”, onde eu já havia publicado L’épreuve d’histoire-géographie aux concours commerciaux (“ a prova de história e geografia nos concursos comerciais), cujo gestor considerou que o título era promissor, dada a importância da geomorfologia na geografia no momento. Ele estava errado, e as vendas totalizaram apenas 2.000 cópias, mas o livro ainda é uma grande celeuma no meio acadêmico.

28Eu propunha a autonomização da geomorfologia: era a conclusão lógica que eu tirava dos meus anos de estudo. O lugar da geomorfologia na pesquisa geográfica era manifestamente desproporcional. Retirar a geomorfologia da geografia podia parecer uma proposta escandalosa na época, mas o corte é de fato realizado hoje, geomorfologistas pouco se interessam pelos diversos ramos da geografia e geógrafos são indiferentes ao que geomorfologistas fazem. Suicídio acadêmico? Não, mas era imprudente para um jovem desconhecido criticar Pierre Birot e alguns outros geomorfologistas famosos. Quanto à carreira- lado, a única vez que eu lidei com as instâncias nacionais foi para o LAFMA (Lista aptidão às funções de professor) dando a possibilidade de obter a estabilidade, desde que se possa encontrar uma vaga disponível. Naquele ano, Henri Enjalbert foi vice-presidente e me defendeu mas mesmo assim só tive dois terços do votos. Jean Demangeot, autor de um relato altamente crítico nas Annales de Géographie teria dito algo como: “Vamos perdoá-lo, mas ele não deve mais cuidar de geomorfologia”.

29LB: Alias foi o que você fez, você o ouviu (risos).

30 AR: Eu não tinha a intenção de analisar mais a geomorfologia. Virei-me em outras direções, para uma reflexão sobre toda a disciplina geográfica.

  • 5  Thomas Samuel Kuhn, 1962 (NdT)

31LB: Após esta reflexão sobre a geomorfologia, há vários artigos e livros sobre geografia como um todo, incluindo La géographie entre le mythe et la science (a Geografia entre mito e ciência) em 1974 e La géographie, science sociale (Geografia, ciência social) em 1981. Neste último, você usa uma abordagem próxima daquela de The Structure of Scientific Revolutions5 (A Estrutura das Revoluções Científicas) com a ideia de ciência normal, de uma ciência que vai entrar em crise e de um novo paradigma que emergirá. Essa leitura lhe parece ainda relevante, quando você vê que hoje a geografia tem correntes muito diferentes, que se ignoram a maior parte do tempo, cada um com suas referências, sua métodos, revistas e conferências, etc. ?

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32AR: Os dois livros dedicados à epistemologia da geografia como um todo foram escritos com sete ou oito anos de intervalo. De alguma forma, eles formam um todo, porque eles são dedicados a este assunto e, finalmente, representam de uma certa forma a tese projetada. No entanto, são duas obras diferentes, porque, neste intervalo evolui, mudei através das minhas leituras e reflexões. É por isso que a antiga Tese do Estado, que durava de 8 a 15 anos, não combinava comigo: implica ficar fiel, nos mesmos quadros de pensamento. Não é meu temperamento, e a geografia estava mudando rapidamente na época. Eu conheci o livro de Kuhn só em 1977, na Flórida. Mas a ideia era subjacente desde L’épistémologie de la géomorphologie com a “ruptura epistemológica” de Louis Althusser e as ideias de Michel Foucault. O conceito de paradigma ainda é relevante hoje? Sim. Para a geografia? Talvez não, pois ela está mais fragmentado do que nunca.

33LB: O tom é menos provocativo em La géographie, science sociale que em La géographie, entre le mythe et la science

34AR: Sim, por uma simples razão de serenidade, porque este livro foi escrito no verão de 1981, isto é, quando eu decidi me por em recuo. Mas eu queria escrever este livro, eu tinha acumulado os elementos durante anos e eu o escrevi, o que prova que eu “recuei” não por um capricho, tudo era bem pensado, mas eu o escrevi como uma espécie de despedida da geografia. Com uma certa serenidade, enquanto eu estava muito infeliz com o que tinha acontecido.

Centro (s) e periferia (s)

LB: O segundo elemento importante no seu trabalho são as relações entre periferia e centro. O que é muito interessante ao ler hoje Espace, société et justice (Espaço, sociedade e justiça) é que todo o raciocínio é baseado na relação entre as classes sócio-espaciais. Toda a tipologia entre centro, periferia, periferia dominada, explorada, negligenciada, isolada, ângulos mortos e outros, todos tem por base estes relacionamentos.

35AR: Sim, a minha abordagem foi a de quebrar um hábito arraigado entre os geógrafos: o estudo da região em si. O que me interessava era colocar uma região no contexto e tentar compreender o seu significado em um grupo, seu lugar reçativamente aos outros. Faço notar que hoje, eu usaria um vocabulário diferente em dois casos: território, simplesmente, em vez de classe sócio-espacial e periferia, em vez de periferia contando apenas com as suas próprias forças. Em ambos os casos, para deixar a formulação mais leve. Mas, no momento, o território estava menos na moda do que nos dias de hoje, e eu gostava de forjar palavras ou frases. Eu tinha o desejo de criar uma tipologia mais abrangente do que a oposição esquemática centro-periferia, de levar em conta a variedade de situações. Alguns subtipos surgiram a partir dos exemplos que eu tinha em mente, como o centro dominante, a periferia dominada, a periferia negligenciada, ou isolada, enquanto outros subtipos me pareceram possíveis para completar o quadro teórico de combinações. Deixe-me explicar com um exemplo: eu defini inicialmente a periferia integrada, sem especificação, pensando nas periferias dominadas, mas não despovoadas e desfrutando de uma inversão do fluxo em seu favor, o que correspondia ao que Georges Cazes e eu tínhamos chamado dez anos antes de “metamorfismo de contato”, falando da região situada entre 100 e 200 km ao redor de Paris. Então eu pensei que uma periferia negligenciada ou até mais, um ângulo morto, o que Robert Ferras mais tarde teria chamado de “área de espera”, poderia também beneficiar de uma reversão de fluxos, mas em um contexto diferente, daí a distinção periferia integrada e anexada e periferia integrada explorada.

LB: Este é também um sistema dinâmico.

36AR: Eu reintroduzi o tempo, algumas décadas ou séculos, dependendo do caso.

LB: Três tipos de fluxos são utilizados para estabelecer a tipologia: fluxos econômicos, fluxos financeiros e de migração. Porém não há consideração de outros tipos de fluxos, os fluxos de natureza cultural ou religiosa.

37AR: A dimensão cultural não está totalmente ausente. Ao reler os meus trabalhos, eu vejo que eu escrevi na página 21, sobre as classes sócio-espaciais: “Estas são os grupos sociais com uma coesão e uma capacidade de inovação e criatividade que lhes permitem ser excepcionalmente produtivas, não só o sentido econômico, mas também no sentido artístico (Florença) ou intelectual, por exemplo Viena, onde tantos elementos ainda vivos no pensamento contemporâneo foram forjados chaves durante várias décadas (1880-1930)”. Mas reconheço sem dificuldade que essa consideração é “muito fraca ”, como você diz. Eu também teria gostado de mencionar o movimento dos centros de gravidade nessas áreas, mas o que se teria dito se eu tivesse me detido para falar sobre pintura, literatura e música? E em segundo lugar, parece que essas relações estão em escalas maiores, em ritmos mais lentos. Eu também estava com um número limitado de páginas e eu tive que insistir para obter uma extensão de vinte páginas. Caso o contrário, o livro teria ido em múltiplas direções. Dito isto, sim, a visão é amplamente baseada em fenômenos econômicos em geral, mas sem querer cair na “economicismo”.

LB: O livro foi publicado em uma bela coleção editada por Paul Claval. Como você chegou nesta coleção?

38AR: Mais uma vez, o acaso. Depois de La géographie entre le mythe et la science, eu tinha acumulado folhas sempre sobre a epistemologia da geografia, mas também trabalhado em análises regionais teóricas e ministrado disciplinas de análise regional. Um dia, provavelmente em 1977, eu estava em Paris na livraria PUF da Place de la Sorbonne, com Claude Chenain, para comprar livros. Eu encontrei Paul Claval e ele me perguntou o que eu estava trabalhando. O que eu disse o interessou e ele me pediu para fazer um volume para sua coleção “espaço e liberdade.” Pensei sobre isso durante as semanas seguintes e o projeto tomou forma.

LB: O que você acha da forma como Guy Di Meo assumiu e adaptou este conceito, que tornou-se formação sócio-espacial em seu próprio trabalho?

39AR: Eu fiquei muito feliz. Eu sempre quis ser um semeador de ideias. Eu esperava que essas ideias fossem retomadas, matizadas, detalhadas, criticadas. Isso foi muito bem feito por Guy Di Meo. E no caso da Epistémologie de la géomorphologie, eu teria preferido que os geomorfologistas retomassem algumas de minhas ideias, debatessem, por exemplo, concepções de tempo em geomorfologia, ao invés de me criticar tão fortemente.

Esperando para se aposentar: China antiga e computador

LB: Depois de trabalhar na geografia como uma ciência social, você está interessado em geografia histórica se refugiando na antiga China, o termo refúgio talvez não seja tão ruim.

40AR: Sim ... Depois dos incidentes de 1981 mencionados acima, passei cinco anos fazendo geografia histórica da China antiga. Mas era uma extensão do trabalho sobre centro e periferia, tendo a oportunidade de aplicar a teoria a um caso particular. Eu dependia dos três volumes de uma crônica antiga, que era uma fonte notável, desde que sejam feitas perguntas de uma maneira que não fosse a de sinólogos. Nas palavras do historiador Paul Veyne, “sempre há perguntas que não pensamos em nos fazer”. O livro sobre a China é de geografia histórica. Embora, para mim, a palavra importante, nesse momento em minha vida fosse a história, o livro é também de geografia, uma vez que os processos espaciais ocupam um lugar importante, e desde que se aceite a ideia que o espaço tem uma relação especial com a geografia.

LB: Como historiadores e sinólogos receberam o livro? Eu não encontrei resenhas ...

41AR: Nem bem nem mal, uma vez que têm ignorado a sua existência. Eu tinha dois públicos potenciais entre historiadores franceses: primeiro, os historiadores da antiguidade, mas sabemos que, na França, a história antiga é limitada territorialmente à bacia do Mediterrâneo e, na Universidade, quase que exclusivamente à Grécia e Roma, cada um desses assuntos com seus especialistas, por isso é normalmente impensável para eles lerem um livro sobre a China e seria absurdo culpá-los. Especialmente quando o livro vem de um geógrafo ... Além disso, os sinólogos, mas eles não são muitos e a maior parte deles são claramente especializados, uns na literatura, e outros na história século 18. Eles não tinham, portanto, nenhuma razão para prestar atenção a um livro sobre os tempos antigos. De qualquer maneira, cruzar uma abordagem geográfica teórica com a China antiga era muito repulsiva para muitos leitores. Eu não tinha oferecido o manuscrito a qualquer editora, porque eu pensei que era invendável. Mas quando Roger Brunet quis publicá-lo em uma forma muito reduzida, um terço ou um quarto, eu disse sim imediatamente. Então eu não tinha nenhuma razão para recusar.

LB: Você passou dez anos elaborando um software. Como foi isso?

42AR: Primeiro foi uma maneira de me ocupar.

LB: Sim (risos), mas há muitas maneiras de ocupar-se. 

43AR: Sim, sim, mas não apenas pessoalmente, mas também na perspectiva de um novo deslocamento: Lucienne Rouzic, desde 1976, tinha cuidado do ensino de estatística na graduação, tendo sempre a preocupação de ficar clara e compreensível para um público de “literários”, mas o tempo de sua aposentadoria se aproximava. Eu assumi, com a intenção de colocar a ferramenta ao serviço deste ensino. Senti a necessidade de um software apropriado, e o mais “simples” era fazer isso sozinho, daí o maior trabalho da minha vida profissional. Uma experiência incomum, que me introduziu em uma nova área, a da programação. Eu estava longe da briga epistemológica! E ao mesmo tempo, eu fazia um trabalho útil já que tinha uma demanda na Universidade, mas também no ensino secundário. Daí muitos módulos introduzidos no software para atender diversas necessidades, desde mapas coropléticos até a análise fatorial, reencontrando ainda a unidade da geografia com módulos de climatologia e análise granulométrica. Mas o trabalho ultrapassava as forças de um indivíduo. Eu até pensei por um tempo em fazer uma versão trilíngue (inglês, francês, alemão), o que um início de realização me provou ser possível, mas, teria levado meses de trabalho só para isso. Era muito pesado, e então não teria sido possível difundir no exterior, por isso não valia a pena.

LB: Você encontrou um certo prazer nisso?

44AR: No princípio, é fascinante ... ma toma muito tempo. O programa deve ter mais de mil páginas de instruções em uma linguagem esotérica, finalmente ... não é legível.

De volta à questão central da geografia como uma ciência?

LB: Para você geografia é uma ciência?

45AR: Esta é a questão mais delicada, é onde eu mais pensei e penei ... Para mim, a questão suscita duas observações que nos levam bastante longe a montante. Dois pontos porque realmente tem um a) e um b) que não devem ser confundidos

  1. existem ciências humanas ou sociais?

46A resposta parece óbvia agora: sim. Mas, pessoalmente, sou mais cético comparando esta aspiração amplamente compartilhada na comunidade científica e o conteúdo de muitos trabalhos. Mesmo muito interessantes, esses estudos não parecem assemelhar-se ao que se faz há muito tempo nas ciências naturais. Sem cair em um positivismo presunçoso, pode-se pensar que “Ciência” muitas vezes é simplesmente um sinônimo de trabalho duro e de longo prazo, ao contrário do que os jornalistas fazem quando estudam as mesmas perguntas. Mas o rigor é necessariamente sinônimo de ciência no sentido estrito do termo?

47Começo com uma observação de vocabulário: no século 19, se fazia a distinção entre o estudioso, em seu sótão com suas retortas, o erudito em sues arquivos empoeirados, e o pensador, que não precisava nem de umas nem de outras. Hoje, o “estudioso” é ultrapassado, o “erudito” tornou-se quase um insulto e “pensador” não parece muito sério. Portanto, os três tornaram-se “pesquisadores” e obviamente cientistas, o que parece supor que todos fazem a mesma coisa. Além de questões de vocabulário e de organização institucional, coloca-se a questão da “ciência” humana ou social.

48Se olharmos para as sociedades humanas, podemos coletar fatos, acumulando-as com cuidado, sem fim; também pode-se preferir pensar, lidar com conceitos ou simplesmente ideias. Por mais de dois milênios, existem apenas dois caminhos a seguir, fatos ou de pensamento, isto é, a história ou filosofia. Eles têm em comum o fato de não terem seu próprio domínio: o historiador e filósofo têm sido envolvidos em todos os tipos de perguntas, e basta ler Heródoto e Platão para estar convencido. Obviamente, uma sabedoria pura, livre de qualquer ideia ou pensamento puro, ignorando qualquer fato da vida, são becos sem saída. Confúcio compreendeu isso há 2 500 anos atrás, quando disse: “Aprender sem pensar é inútil, pensar sem aprender é perigoso. ”A solução é injetar uma dose de pensamento em uma dose de fatos ou acontecimentos no campo das ideias.

49No século 19, as humanidades ou ciências sociais entraram no jogo. Comparadas à história, elas não se preocupam com o passado, ou muito pouco, limitando-se a um fatia fina do tempo, mas elas se concentram no presente. Ao mesmo tempo, cortam a realidade em domínios e cada ciência humana suporta um campo ou tópico. Os especialistas de áreas específicas são então confrontados com uma escolha: ou eles acumulam fatos, como historiadores acadêmicos e fazem a chamada história do tempo presente, ou então eles refletem muito – o que é mais fácil já que o seu campo é relativamente estreito – e criam conceitos articulados em teorias destinadas a explicar uma parte da realidade social. Em outras palavras, qualquer especialista em ciência social inevitavelmente oscila entre os dois polos principais, os fatos e o pensamento, ele é bastante “historiador” entre aspas ou “filósofo” entre aspas, mas normalmente ele combina os dois em partes desiguais, de acordo com suas tendências pessoais. É fácil ver que alguns trabalhos de sociólogos, extremamente minuciosos, se assemelham com o que os historiadores chamam com desdém de erudição local, enquanto outros trabalham na sociologia de maneira praticamente equivalente à filosofia. Na França, continuamos com a “fabricação” dos filósofos. Onde estão eles agora? Alguns continuam filósofos, mas outros atuam, no ensino do jornalismo ou da ciência, ou maciçamente na sociologia, como Raymond Aron ou mais recentemente Pierre Bourdieu. É de se admirar que seus trabalhos tenham um tom diferente do que muitos sociólogos da educação? Michel Foucault, professor de filosofia, escreveu uma tese sobre a história da loucura na idade clássica que atraiu a atenção de historiadores, e por boas razões. Em outras palavras, as paredes entre os compartimentos do conhecimento, felizmente, não são estanques. É por isso que eu prontamente admito que há cientistas sociais, cada um com um campo de estudo, conceitos, teorias, técnicas que lhes são mais ou menos próprios, mas ao memso tempo eu questiono a sua existência tanto como ciência e como campos de conhecimento.

50b) A geografia é uma ciência?

51Em comparação com as ciências humanas ou ciências sociais que são limitadas a um tema (daí a sociologia, psicologia, economia, ciência política, antropologia, demografia, etc.), a geografia, desde o século 19, quer tocar em tudo, e assim continua. Uma palavra resume tudo muito bem, já falei, saber enciclopédico. Ela não apenas toca nos temas de ciências sociais, mas também aqueles das ciências da terra. Em outras palavras, pode-se considerar a geografia como o conhecimento universal, em uma perspectiva muito hegeliana. Costumava ter uma oposição entre a geografia chamada de “geral”, que corre em todas as direções, e da geografia chamada “regional”, que para implementar eficazmente esse apetite gigantesco praticava o enciclopedismo em uma área limitada. Mas uma mudança ocorreu na geografia na segunda metade do século 20, na década de 1970 na França. Fomos dos enciclopedismo de nível individual para o enciclopedismo em escala coletiva. Deixe-me explicar antes, cada geógrafo pretendia dominar mais ou menos todos os ramos da disciplina, o que era essencial para estudar áreas, grandes ou pequenas. Agora, o geógrafo é especialista e quer apenas cuidar do seu campo ou de dois campos. Um Departamento de Geografia, e, a fortiori, todos os geógrafos acadêmicos franceses, tornaram-se uma enciclopédia viva por justaposição de especialistas. Não sei de nenhum campo de conhecimento que não tenha aparecido mais ou menos no trabalho de algum geógrafo: a química do granito, a música da Europa Central, as línguas de Madagascar, a hidrologia fluvial da Lorraine , o direito, a pintura, os romances de Flaubert. Por trás de cada item deste inventário interminável, posso colocar um nome ... Muitos desses trabalhos são de boa qualidade, e eu não questiono isso. Eu até costumo dizer que a especialização tem melhorado a qualidade média das produções geográficas, precisamente porque não há mais enciclopedismo a nível individual. Mas o problema está em outro lugar.

52Toda a questão é saber quais são as relações entre estes especialistas. Elas parecem-me hoje como particularmente fracas e cada geógrafo tende a ter mais ligações com profissionais que trabalham no mesmo tema de pesquisa do que com os seus colegas do Departamento de Geografia, que estão apenas espacialmente perto. A geografia é, então, simplesmente uma instituição permanente, uma concha, um refúgio. Por que não? ... A geografia na França, mas também em outros países, me dá a impressão de ser composta de uma multidão de “células”, no sentido biológico da célula, de tamanhos variados que vão de meia dúzia a algumas dezenas de colegas, que vivem em simbiose com várias outras disciplinas. Ainda existiria em todas as universidades se não fosse salva pela sua presença no ensino secundário e a necessidade de preparar os alunos para o concurso de os professores?

53Para ver mais claramente, comparemos, considerando a história da geografia nos Estados Unidos. A National Geographic Society foi fundada em 1888. Mas tivemos de esperar até 1903 para ver aparecer o primeiro departamento de geografia da Universidade de Chicago. Harvard também criou um departamento um pouco mais tarde, mas em 1948 decidiu simplesmente eliminar o seu Departamento de Geografia, seguindo as recomendações de uma comissão de inquérito nomeada pela Presidência e que concluiu que, após inúmeras audiências, que a geografia tinha um estatuto epistemológico muito incerto. Richard Hartshorne, grande geógrafo e da época, o autor de The nature of Geography,, passou por este “tribunal” de não-geógrafos. Ele usou os argumentos conhecidos “A geografia é o concreto, é o terreno, toca tudo, é ótima” mas os seus ouvintes concluíram: “não podemos manter esse monstro epistemológico ... ” Em Chicago, hoje, existe apenas a graduação de geografia, num college que faz parte da Universidade, mas mais do que isso, enquanto Chicago formou coortes de doutores no século 20. Na Universidade da Califórnia em Davis, até a graduação em geografia desapareceu. Alguns dirão que a geografia tem um lado mais “técnico” que as letras e ciências humanas: o prestigioso Massachusetts Institute of Technology, surpreendentemente, tem departamentos de história, filosofia, ciências humanas e até mesmo de teatro mas, não de geografia. Basicamente, um pequeno estudo mostra que a geografia desapareceu ou permanece apenas no estado residual nas universidades mais seletivas que formam a elite, é ausente ou presente apenas como uma opção nos colégios de baixa notação e se mantém muito bem em faculdades e universidades de estatuto médio, muitas vezes para a formação de especialistas em Sistemas de Informação Geográfica (SIG) ou especialistas em desenvolvimento local.

Um percurso singular

LB: Você escreveu-me uma vez: “Eu não sou realmente um geógrafo, eu teria sido ainda mais inclinado a ser historiador ou filósofo.” O fato de não ter feito mais história continua a ser um arrependimento?

54AR: Sim, sem dúvida, mas os arrependimentos são inúteis (risos). A história teria proporcionado para mim muitas vantagens como uma atração e satisfação pessoal, mas também a chance de jogar em vários tabuleiros: as amplas perspectivas sintéticas, estudos de detalhes, a reflexão epistemológica sob o nome de historiografia, ou seja orientações concebíveis também na geografia, mas também biografias e filosofia da história, impossíveis a transpor na geografia que, apesar de sua diversidade abundante, não integrou a biografia. Eu posso contar-lhe uma história pessoal que me fez sonhar. Há cerca de vinte anos, eu estava na biblioteca da universidade e esperava por livros. Trouxeram um livro para uma estudante próxima a mim: O capitular de Carlos, o Calvo, eu senti uma pontada no meu coração dizendo: “Se eu fosse um historiador, eram para mim que trariam tais livros”. Reação involuntária, de origem aparentemente muito profunda, e ainda mais surpreendente porque, se eu fosse um historiador, eu não teria me dedicado a minha vida ao capitular. Mas eu sei que eu realmente senti algo naquele dia ...

LB: O que é surpreendente, mesmo quando dividimos o seu trabalho em grandes blocos, é a ausência de especialização. Você tem escrito artigos sobre o modelo de fazenda na Beauce, sobre Los Angeles, sobre a epistemologia da geografia do turismo, finalmente, uma variedade de assuntos. Não há especialização em um tema ou um espaço, mas muita liberdade.

55AR: A especialização sempre me deu medo. Eu preciso ter interesses variados, que também podem, direta ou indiretamente, se enriquecer uns dos outros. Nós, obviamente, não podemos abranger tudo, mas é bom mudar de assunto, com uma profundidade variável. Uma coisa é escrever um livro, outra um artigo de algumas páginas. Por exemplo, eu fiz um artigo que foi mencionado várias vezes: “Elementos para uma epistemologia da geografia do turismo”, mas eu não era um especialista em turismo como Georges Cazes. Dito isto, ele tinha me levado a reuniões onde falamos sobre turismo, discutimos, eu li suas produções e as de outros geógrafos, portanto, novamente, uma singular oportunidade. Gostaria de acrescentar também que, embora eu não tenha dedicado a minha vida a um tema ou a um espaço (perspectiva horrível!), eu ainda fiz muita epistemologia por quinze anos, análise regional por dez anos, um programa de computação por dez anos. Mas nunca foi uma única atividade e eu progredi por deslocamentos graduais. A consequência foi que cada vez mais eu tinha uma defasagem entre a minha principal atividade do momento e a imagem que as pessoas tinham de mim lá fora, que me pôs sempre njuma situação instável e obrigou-me a declinar propostas. Por exemplo, por volta de 1990, um americano me pediu para revisar e atualizar a Epistémologie de la géomorphologie para traduzi-la em inglês, mas eu estava totalmente desconectado da geomorfologia desde vinte anos. Da mesma forma, em 2002, Bernadette Mérenne-Schoumaker me ofereceu para fazer uma série de palestras em Liége sobre análise regional, mas eu estava terminando Microgéo e estava à beira da aposentadoria trabalhando com perspectivas muito diferentes do que geografia.

LB: Uma parte importante da sua atividade foi a produção de livros didáticos, quase todos feitos com co-autores, o que não é o caso do seus outros trabalhos. O que isso lhe acrescentou? É uma continuação lógica da profissão de docente? A possibilidade de sair de um trabalho solitário?

56AR: Eu sempre me considerei em primeiro lugar como professor. É bom ter um trabalho pessoal, um trabalho individual, mas eu também queria ser útil para os estudantes, os meus e os de outros. Mas trabalhos muito especializados não combinam com as necessidades de formação do aluno, especialmente em uma universidade pequena. Assim, eu passei cinco anos estudando a China antiga, mas eu nunca conversei sobre isso com os alunos.

57A preocupação da ligação com o ensino me levou a tratar de assuntos gerais, como a teoria da análise regional, que poderia ser útil para uma disciplina sobre um determinado território, ou mesmo para sínteses na escala de país inteiro, como os Estados Unidos, a URSS, e pontos de partida para a preparação dos alunos aos concursos. Finalmente, a minha passagem rápida nas classes preparatórias, onde eu teria ficado se o Roger Brunet não tivesse me chamado para a Universidade, e minha relação com André Gauthier, me incentivaram a participar na coleção de manuais de Bréal, que também são usados por alunos do último ano colegial. O trabalho em equipe em um ambiente agradável foi um contrapeso ao trabalho solitário em outras áreas. E o público era de estudantes das universidades ou que estavam se preparando ao exame de admissão às escolas de negócios. Foi também uma abertura. Assim eu era capaz de produzir muito porque eu estava trabalhando em colaboração: metade ou um terço ou um décimo de trabalho, conforme o caso, não representava um ônus indevido.

LB: Você pensa ter influenciado alguns geógrafos?

  • 6  A comissão encarregada de recrutar novos colegas, formada de membros do departamento e de membros (...)

58AR: Aparentemente sim, alguns. Mas eu realmente não sei quantos, além de três ou quatro nomes, porque eu vivia fora da comunidade geográfica, especialmente na segunda metade da minha vida profissional. Acho que deixei alguns colegas preocupados, por exemplo em Reims, o Presidente da Comissão de especialistas6, com quem mantive relações humanas extremamente cordiais , sempre me considerou louco e perigoso: uma epistemologia da geomorfologia que critica Pierre Birot, um livro sobre a Lorraine sem cuestas, centros que às vezes se situam na borda do espaço, uma visão heterodoxa do relevo appalachiano herdado de Henri Enjalbert, trabalhos sobre temas muito variados, além da ausência de tese, eu realmente parecia irrecuperável.

LB: Quando você se aposentou, você se livrou de boa parte dos seus livros de geografia. Mas você tem mantido alguns e especialmente Propos d’un géographe (Palavras de um geógrafo) de André Allix, por quê?

59AR: Propos d’un géographe, publicado em 1960, é uma coleção de artigos e reportagens escritas entre 1923 e 1957. Comprei quando ainda era estudante e eu tinha sido seduzido pela liberdade de expressão e uma preocupação com a reflexão. Aqui estão alguns títulos: “O homem na geografia humana e o problema do livre-arbítrio”, “Os metais preciosos e caçadores de fortuna en Oisans”, “A corrosão sub-glacial”, “Uma estrada romana reconstituída”, “A duração e os geógrafos”. Parece “anarquismo epistemológico” à maneira do Feyerabend ... Eu só podia ser seduzido por André Allix. Aqui está o que escreve o historiador Georges Duby nos Essais d’ego-histoire (Ensaios de ego-história, Gallimard, 1987, p 117.), lembrando a sua graduação em Lyon: “Optei por começar com a geografia. Para falar a verdade, para me livrar dela o mais rapidamente possível. [...] Dentro de poucos dias eu estava conquistado. Pelos homens encarregados de minha educação, em primeiro lugar. Eram dois alunos de Raoul Blanchard, oriundos desta escola de Grenoble que resistia aos parisienses, Gibert André e André Allix. Este último tinha a estatura, os gestos, de um nobre. Ele cuidava da sua aparência. Pelo o olho afiado, pela relevância da análise, pela clareza de discurso, ele subjugava”. É normal que as qualidades de André Allix aparecessem em seus escritos.

60LB: De que livro você está mais orgulhoso? E qual lhe parece ter resistido melhor ao tempo?

  • 7  Roger Brunet, Robert Ferras et Hervé Théry (NdT).

61AR: O livro do qual estou mais orgulhoso? Esta não é a palavra correta. Eu estava feliz ao preparar e escrever a Géohistoire de la Chine (Geo-história da China) mas também ao escrever a resenha de Les mots de la géographie (As palavras da geografia) de Roger Brunet7. Esta resenha me tomou cerca de um mês de trabalho, mas que prazer passar esse tempo com palavras. O livro que parece ter resistido melhor ao tempo? Aparentemente Société, espace et justice (Sociedade, espaço e justiça). Mas eu acho que por dois motivos, o seu conteúdo, em primeiro lugar, mas também porque foi publicado por uma grande editora. Ao contrario os outros dois livros sobre a geografia não são bem impressos e são frágeis, por isso não vão durar muito tempo de qualquer maneira.

Viagens e geração (ões)

LB Você viajou muito, você ainda está viajando?

62AR: Eu me lembro da primeira frase do livro de Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques  (Tristes Trópicos), “Eu odeio viagens e exploradores”. Viajar pode ser divertido depois de semanas de trabalho em seu escritório, para uma mudança de ares, como diz o ditado. Mas o turismo em sua forma mais pura, para ver paisagens naturais e monumentos, onde você se encontra com outros turistas, nunca me agradou. Já que eu era um geógrafo, tive que viajar, mas eu queria aproveitar a viagem para fazer geografia, isto é diferente de ver as curiosidades. Assim, em Londres, arrastei Claude Chenain em cidades recém construídas, cuja paisagens, eu admito, não eram muito bonitas: ele ainda se lembra, mas por dois dias ele fez geografia urbana, em vez de passear. Hoje, como não faço mais geografia, eu não tenho motivo para viajar, especialmente porque o Google Earth permite ir a qualquer lugar instantaneamente.

LB: Você escreveu vários artigos sobre Los Angeles, uma cidade que parece realmente atrair você.

63AR: Sim, desde a primeira vez que fui lá, em 1973. Mas no senso de atração intelectual. Quinze ou vinte anos mais tarde, Lucienne Rouzic a quem eu tinha dito que tinha dado 6 ou 8 horas de aula sobre a Cidade dos Anjos respondeu dizendo: “Ah, você gostaria de viver em Los Angeles?”. Eu imediatamente disse:“ Não, não mesmo!”. Ela ficou surpresa. Mas um historiador que dedicou sua vida ao estudo da Grande Guerra deve sonhar em ter passado quatro anos em uma trincheira? Existem objetos geográficos que podem ser de grande interesse, sem amor, isto é, sem identificar-se com eles. Los Angeles é um caso limite do espaço urbano. Olhando para algumas cidades dos EUA, percebemos rapidamente semelhanças que permitem desenvolver um modelo. Inúmeros exemplos adicionais só vão matizar o modelo. Além da inevitável especificidade de cada exemplo, não aprendemos nada mais em termos de processos e mecanismos. Mas Los Angeles apresenta um desvio muito forte em relação ao modelo, daí o interesse de um ponto de vista teórico ... eu volto às minhas obsessões.

LB: Você não escreveu quase nada sobre Reims.

64AR: Eu não gostava de estudar as áreas onde eu estava, isto é, Reims, a Champagne, ou até mesmo a França. Sentia a necessidade de uma distância. O historiador estuda o que está longe no tempo e que está morto. Eu queria estudar o que está longe no espaço, mesmo se não for morto, ninguém é perfeito ... Então, eu estava particularmente a vontade com a China antiga, que oferecia tanto afastamento no tempo como no espaço. Eu faria minha, de bom grado, a fórmula de Leonardo da Vinci: “la pittura è cosa mentale” (a pintura é coisa mental) transpondo “la geografia è cosa mentale”, mas tratava-se de um posição herética no meio geográfico da minha juventude, que era muito pé no chão.

LB: Você não chegou cedo demais?

65Há questões de geração (25 anos) e, na minha opinião, de meia-geração (doze a quinze anos). Vivi momentos que eram ao mesmo tempo emocionantes, porque tudo estava se movendo em todas as direções, e ao mesmo tempo teria sido melhor pertencer a uma meia-geração anterior ou posterior. Um ou outro.

66Meia- geração antes, e você está no lado de Roger Brunet e daqueles que são um pouco mais velhos, o que significa os geógrafos que fizeram, inicialmente, trabalho na linha “normal” dos seus estudos, mesmo fazendo isso à sua maneira, em seguida fizeram uma carreira “normal” e, finalmente, tendo uma posição segura, podiam acompanhar as mudanças na geografia que ocorreram 15 anos mais tarde, e se envolver, se quisessem. Roger Brunet é um bom exemplo. Olhe para suas teses: a tese principal de Lescampagnes toulousaines (o campo na região de Toulouse), que é muito bem feita, mas que não deixou os conservadores em pânico. Prolongava uma tradição, incluindo as estratégias de controle da terra ou as redes urbanas, mas afinal Raymond Dugrand ao mesmo tempo falava apenas da rede urbana, e não foi considerado heterodoxo. Mas ao mesmo tempo ele fez uma tese secundária, Les phénomènes de discontinuité en géographie (Os fenômenos de descontinuidade em geografia), que anunciava o seu futuro desenvolvimento, e por isso é muito reveladora.

67Por outro lado, se eu tivesse pertencido à meia-geração mais jovem, como por exemplo Christian Grataloup, eu teria começado a trabalhar, depois de me formar, em uma atmosfera que rapidamente teria se tornado bastante favorável. Por volta de 1995, em vez de estar com cinquenta e poucos anos, eu teria apenas 40 anos, que teria me deixado um horizonte de um quarto de século. Enquanto, no meu caso, quando o horizonte ficou claro, eu não mais me concentrava na geografia, uma vez que eu já estava no meu escritório para programar Microgéo ...

LB: Você continua a observar o que está acontecendo na Geografia?

68AR: De longe ... De muito longe, e eu sinto que a geografia está mais fragmentada do que nunca, mas ela ficou serena, todos trabalham como desejam, o que eu acho uma coisa muito boa. Os resultados são sempre muito variados. Mas temos que procurar uma coerência em nome de uma concepção de geografia? Eu vejo a geografia atual como uma oportunidade aberta às pessoas de formações muito diferentes e de trabalhar na maior liberdade. Basicamente, seria a implementação do “anarquismo epistemológico” outrora defendido por Paul Feyerabend em seu livro Contre la méthode (Contra o método). Em outras palavras, o que era visto como um limite e até mesmo como uma fraqueza ou um escândalo, poderia se tornar uma força, desde que indivíduos inteligentes sejam capazes de apreciá-lo. Hoje, um geógrafo pode combinar como quiser qualquer elemento do conhecimento para melhor ou para pior ... Tentar definir a geografia, torná-la mais coerente como querem ser a psicologia, a sociologia e outras ciências, acho que não é o caminho. É impossível hoje. É por isso que eu digo, me divertindo e sendo sério, sim, deixamos o barco correr e, finalmente, eu lamento não estar lá agora. Precisamente porque eu poderia fazer o que quiser, e até mesmo algo mais, pretendendo – a sem provocar nenhuma condenação –  que é a geografia.

À guisa de conclusão

69AR: Em retrospecto, parece que a geografia da minha juventude teve um ponto fraco em relação à história: a sua posição privilegiada no lugar, isto é, nos níveis mais baixos de escala espacial. Consequência lógica do primado longamente reivindicado pela geografia regional. O geógrafo se sentiu completamente à vontade na escala da área rural, estudando em primeiro lugar os seus elementos físicos, o relevo principalmente, e as atividades agrícolas. O centro de gravidade da história era colocado em um grau mais elevado da escala, a do país, no sentido do Estado-nação, de impérios ou mesmo de grupos de estados. Esta atração da geografia para a escala local fez com que o estudo dos Estados, depois de algumas poucas considerações gerais, passassem a trabalhar com coisas sérias, isto é para o estudo de pequenos “pedaços”, em outras palavras um quebra-cabeça, que não é sem interesse, mas rapidamente revelou-se um impasse sem esperança, porque a escala local é muito complexa na sua infinita diversidade. Uma visão mais ampla é necessária, que exige ferramentas teóricas e um desejo de melhor síntese para melhor compreender o mundo.

70E é aí que vem o problema, ou melhor, vinha em um tempo não muito longínquo. Cita-se uma frase de Jean Delvert, autor de uma tese intitulada Le paysan cambodgien (O camponês cambojano), em uma reunião do CNRS: “na geografia, nosso papel não é pensar”. A consequência lógica de tal atitude é a referência ritual ao campo e ao concreto. Eu ouvi quatro ou cinco vezes dois colegas geomorfologistas dizerem em reuniões de departamento quando se tratava da alocação de nossos escassos recursos: “Na geografia, não precisamos de livros”. Eu também ouvi de outros colegas, que não eram da geografia física, tirar sarro dos “geógrafos de gabinete”. De repente, me senti anormal e eu pensei, ou eles estão certos e eu não pertenço a este grupo, ou eles estão errados e isso é ultrajante. Estas palavras nunca refletiram as opiniões de todos os geógrafos acadêmicos, mas eles vão além de isoladas reflexões infelizes: Jean Delvert foi presidente do júri da agrégation de geografia, a exaltação do campo e do concreto foi regra geral em inúmeros escritos, ouvi um geomorfologista conhecido, de fora de Reims, membro da comissão de especialistas, dizer que depois de um estudo de campo não era necessário escrever, mas que – consciente da enormidade do que ele disse, especialmente no contexto de recrutamento – logo voltou atrás.

  • 8  Entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1940 (NdT).

71Felizmente esses dias acabaram e, agora, a globalização tornou-se um assunto tão nobre quanto a habitação rural estudada no período entre-guerras8. Isso é reconfortante e animador. Mesmo quando alguém não é realmente um geógrafo, como é o meu caso, ao menos ele não se desespera com a geografia. Afinal, no período entre-guerras, a geografia, muito diferente do que é hoje, poderia seduzir por seu dinamismo. Eu volto à fala de Georges Duby, “O prestígio de geografia estava no auge. Optei por começar com essa disciplina. Na verdade, o meu propósito era de me livrar o mais rapidamente possível: na escola, ela me entediava. Eu não tinha ideia de que em seu vivo progresso, ela levava atrás dela todas as ciências humanas. Em poucos dias eu estava conquistado. [...] Logo que entrei no ensino superior, eu me submeti à influência desta ciência dos espaços abertos. Ela modelou as formas essenciais através das quais eu praticaria minha profissão”. Que melhor homenagem você poderia possivelmente querer, do autor do Dimanche de Bouvines e do Temps des cathédrales ? (O domingo de Bouvines e O tempos das catedrais)? Mas então por que eu não tive a mesma impressão? Por que nos anos 1960 a 1980 houve tensões e um desejo de renovação? Talvez porque uma geração de geógrafos não fora capaz de se adaptar suficientemente.

72Mas eu sinto uma outra pista: no início dos anos quarenta, houve a criação da graduação e da agrégation de Geografia e, portanto, uma ruptura com a história, não muito clara no meu tempo, mas cada vez nítida ao longo dos anos e das reformas. Duby admirava os geógrafos de Lyon, mas eram historiadores, que tiveram exatamente a mesma formação de historiadores acadêmicos, e haviam simplesmente escolhido especializar-se em geografia, como outros historiadores tinham escolhido a Idade Média. Meu mestre Henri Enjalbert foi formado como historiador e manteve-se assim em grande parte dos seus escritos e das suas palestras, a sua visão de tempos geomorfológicos foi de fato a visão de um momento histórico. A separação entre história e geografia, que ocorreu após 70 anos de íntima associação, pode ter tido consequências negativas. Mas as coisas estão mudando desde os anos 90, geógrafos fazem geografia histórica e muitas outras coisas, eles não têm mais medo de pensar, eles trabalham na escala do mundo, eles voltaram ao grupo das ciências humanas. Só falta assumir a liderança e para isso eu confio na geração mais jovem para continuar a restaurar o tonus da geografia, talvez como parte de um “anarquismo epistemológico” frutífero. Portanto, a conclusão da minha conclusão é: “agora é a sua vez” (risos).

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Notas

1  Exame de seleção para os estudos universitários (NdT)

2 A obra citada periodiza o fim da primeira guerra como o fim das cultura dos cantões da França rural. O autor também atribuiu esta mudança a implementação das linhas férreas no espaço econômica francês (NdT)

3  A região da qual Reims é capital (NdT)

4  O tratamento usado na época para tratar a tuberculose (NdT)

5  Thomas Samuel Kuhn, 1962 (NdT)

6  A comissão encarregada de recrutar novos colegas, formada de membros do departamento e de membros externos (NdT).

7  Roger Brunet, Robert Ferras et Hervé Théry (NdT).

8  Entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1940 (NdT).

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Para citar este artigo

Referência electrónica

Laurent Beauguitte, « Entrevista com Alain Reynaud », Confins [Online], 15 | 2012, posto online em 23 Junho 2012, Consultado o 27 Fevereiro 2014. URL : http://confins.revues.org/7698 ; DOI : 10.4000/confins.7698

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Autor

Laurent Beauguitte

CNRS, UMR IDEAS, Rouen, com a colaboração ativa de Alain Reynaudbeauguittelaurent@hotmail.com

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