It is the cache of ${baseHref}. It is a snapshot of the page. The current page could have changed in the meantime.
Tip: To quickly find your search term on this page, press Ctrl+F or ⌘-F (Mac) and use the find bar.

O nominalismo em Hobbes, por Bernardo Bianchi Barata Ribeiro | Revista Estudos Hum(e)anos

Revista Estudos Hum(e)anos

O nominalismo em Hobbes, por Bernardo Bianchi Barata Ribeiro

Posted in Número 0 by Revista Estudos Hum(e)anos on dezembro 8th, 2009

Este Artigo em PDF

Bernardo Bianchi Barata Ribeiro é pesquisador do Laboratório de Estudos Hum(e)anos.

___________________________________________________________________

Resumo

A partir de uma tomada das principais motivações do surgimento e desenvolvimento do método resolutivo-compositivo que estrutura o pensamento hobbesiano, realizaremos um esforço analítico para demonstrar a primazia do “elemento nominalista” na obra de Hobbes. Com isso procuramos evidenciar que a busca de Hobbes pela certeza tem por base a radicalização da incerteza, ou melhor, o recolhimento da Razão aos seus objetos adequados. Tratamos propriamente das analogias ou afinidades eletivas – e não filiações – entre Abelardo e Ockham. Fazemos uma oposição entre o tipo de nominalismo subjacente à filosofia da linguagem de Hobbes e o nominalismo de Abelardo e Ockham. Examinaremos, também, algumas peculiaridades do pensamento de Hobbes que lhe renderam o título de ultranominalista por parte de Leibniz. Procuramos explorar a centralidade do elemento nominalista para todo desenvolvimento da filosofia hobbesiana. O nominalismo figura, então, como verdadeiro ponto arquimediano deste pensamento maldito. Cumpre-nos, portanto, investigar que espécie de nominalismo está presente em Hobbes. Isto só poderá ser feito se analisarmos as aparentes contradições entre o materialismo e o dogmatismo moral, de um lado, e o nominalismo, do outro. Fundamentalmente, analisamos Hobbes sob o signo da vontade de realismo.

Palavras-chave:

Hobbes, Nominalismo

Abstract

From an outlet of the main motivations of the emergence and development of the resolutive-compositional method that structures the Hobbesian thought, we conduct an analitical attempt to demonstrate the primacy of the “nominalist element” in the works of Hobbes. With this, we seek to show that the search for certainty of Hobbes is based on the radicalization of uncertainty, or rather the recollection of Reason to their proper objects. We properly treat the elective affinities or analogies – not membership – between Abelard and Ockham. We do a kind of opposition between the nominalism philosophy subjacent to the philosophy of language of Hobbes and to the nominalism of Abelard and Ockham. We also review some of the peculiarities of Hobbes’s thought that gained oriented the atribution of the title of ultranominalist by Leibniz. We seek to explore the centrality of the nominal element for the entire development of the Hobbesian philosophy. Nominalism appears, then, as a true Archimedean point of this accursed thought. It is a must, therefore, to investigate what sort of nominalism i present in Hobbes. This can only be done by the examination of the apparent contradictions between materialism and moral dogmatism on one hand, and nominalism on another. Fundamentally, Hobbes is analised under the sign of the will of realism.

Key words

Hobbes, Nominalism

___________________________________________________________________

Introdução

A partir das duas principais partes da nossa natureza, Razão e Paixão, procederam dois tipos de saber: o matemático e o dogmático. O primeiro é livre de controvérsias e disputas, uma vez que consiste tão-somente na comparação de figuras e movimentos; a respeito destas coisas, a verdade e o interesse dos homens não se opõem reciprocamente. Mas, no caso do segundo, tudo é passível de disputa, pois este compara os homens e se intromete nos seus direitos e ganhos. Assim, tão logo a razão oponha-se a um homem, este imediatamente se oporá à razão. E disto decorre que aqueles que escreveram sobre justiça e política em geral contradizem uns aos outros e a si mesmos. Para reduzir esta doutrina às regras e à infalibilidade da razão, não há outro jeito senão, primeiramente, estabelecer como fundação princípios tais que as paixões – sem os contraditarem – não procurem deslocá-los: e, depois, construir sobre tal fundação a verdade dos fatos segundo a lei da natureza (os quais, até aqui, tem sido construídos no ar) por etapas, até que o todo seja inexpugnável (tradução livre)[1].

Começamos este trabalho por uma citação tão longa quanto reveladora. Nela, encontram-se as principais motivações do surgimento e desenvolvimento do método resolutivo-compositivo que estrutura o pensamento hobbesiano. A par das causas eficientes do método, realizaremos um esforço analítico para demonstrar a primazia do “elemento nominalista” na obra de Hobbes. Com isso procuramos evidenciar que a busca de Hobbes pela certeza tem por base a radicalização da incerteza, ou melhor, o recolhimento da Razão aos seus objetos adequados.

O trabalho se divide em três partes. Na primeira, tratamos propriamente das analogias ou afinidades eletivas – e não filiações – entre Abelardo e Ockham. Na primeira seção da parte seguinte, fazemos uma oposição entre o tipo de nominalismo subjacente à filosofia da linguagem de Hobbes e o nominalismo de Abelardo e Ockham. Examinaremos, também, algumas peculiaridades do pensamento de Hobbes que lhe renderam o título de ultranominalista por parte de Leibniz. Na segunda parte, procuramos explorar a centralidade do elemento nominalista para todo desenvolvimento da filosofia hobbesiana. O nominalismo figura, então, como verdadeiro ponto arquimediano deste pensamento maldito. Cumpre-nos, portanto, investigar que espécie de nominalismo está presente em Hobbes. Isto só poderá ser feito se analisarmos as aparentes contradições entre o materialismo e o dogmatismo moral, de um lado, e o nominalismo, do outro. Fundamentalmente, analisamos Hobbes sob o signo da vontade de realismo.

I. Abelardo e Ockham: o desvelamento do pensamento

Poderíamos tratar aqui da influência de Ockham na obra de Hobbes, contaminação esta que, dada a celebridade de Ockham na Inglaterra dos Stuarts, não seria difícil de estabelecer. Porém, este não é o objeto do trabalho. Isto implicaria toda sorte de arbitrariedades e exageros, como tornar Hobbes um herdeiro do nominalismo ou fazer de Ockham predecessor da filosofia política moderna. Cumpre-nos, portanto, atentar para as semelhanças crucias entre o nominalismo, tal como desenvolvido por Abelardo e Ockham, e a teoria da linguagem presente em Hobbes. Pois é inquestionável que a atenção a certos problemas análogos pautou a obra destes três autores. Em relação à exposição dos pensamentos de Abelardo e Ockham, priorizamos a ênfase de duas questões: (i) o que é o verdadeiro e (ii) que tipo de relação se estabelece entre os objetos e o entendimento que formamos deles. Procuraremos mostrar ainda que em ambos os autores medievais, o verdadeiro não se restringe à linguagem (falada ou escrita), mas que é algo afirmado na mente pela apreensão das coisas materiais. Isto, conforme veremos mais tarde, os põe em franca oposição a Hobbes.

I.1. Pedro Abelardo: muito além do vocalismo e da metafísica dos universais

O nominalismo representa uma intuição fina que atravessa o pensamento escolástico e desmonta a sua rígida carapaça dogmática. Consiste numa corrente de pensamento escolástico, principalmente desenvolvida por Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham – que se situa num momento pós-escolástico –, que se opunha à reificação da intelecção. Em última instância, este movimento envolve a desontologização do entendimento humano, insurgindo-se contra o hábito de tomar os nomes e conceitos que formulamos como se fossem as coisas consideradas em si mesmas e não signos das nossas cogitações a respeito destas coisas.

A polêmica entre nominalistas e realistas remetia ao status da lógica, tal como elaborada por Aristóteles, Porfírio e Boécio. Isto se materializou de forma vívida quanto à natureza dos universais. Afinal, seriam estes nomes coisas reais? Isto é, existiriam os universais nos distintos indivíduos dos quais é predicável? O partido realista defendia a realidade dos universais, isto é, tomava-os como coisas (res). Assim, e.g., certas correntes realistas defendiam que todos os membros de uma espécie ou gênero teriam alguma essência real em comum, pelo que eles seriam tal espécie ou tal gênero. Portanto, se “para um realista, a humanidade é uma realidade; para os nominalistas, a única coisa real são os indivíduos humanos”[2]. Contudo, deve-se ter em mente a extrema diversidade das opiniões realistas, bem como daquelas de seus antagonistas, os nominalistas.

A formulação mais radical do nominalismo foi chamada de vocalismo ou verbalismo[3] e constituía na redução dos universais a vozes (voces), isto é, a sons vocais. Este é o posicionamento de Roscelino tal como foi recepcionado pelo seu tempo e pela posteridade. O universal seria um flatus vocis ou um sopro de voz. Assim, o vocalismo, em contraponto ao realismo, opunha voz (vox) a coisa (res). Porém, ao mesmo tempo, se confundia a idéia geral com a palavra pela qual esta é assinalada. E abria-se mão de toda dimensão significativa das idéias gerais. Como salienta Gilson, “subsiste então o problema de saber como esses ruídos, que constituem a linguagem falada, proporcionam um sentido ao pensamento”[4]. Ou seja, dá-se a redução da lógica à gramática, fenômeno para o qual Abelardo esteve atento. A redução da lógica ao nível da gramática implicava a renúncia a toda possibilidade de demonstração da verdade, importando apenas a construção completa de uma sentença, ligando um sujeito e um predicado através de uma cópula – o verbo “ser”.

Em Lógica para principiantes, Abelardo distingue duas formas de atribuição de qualidade às coisas: a lógica e a gramática[5]. À primeira, importam as ligações de predicação. Já à segunda, importam as ligações de construção, a qual “é boa todas as vezes que apresenta uma sentença completa, quer a coisa seja assim ou não”[6]. Nada impediria, desse modo, que se dissesse “o homem é uma pedra”. Esta parece ser a posição dos chamados verbalistas, o que remontaria ao antigo mestre de Abelardo, Roscelino. Ao contrário deste tipo de ligação, a ligação de predicação diz respeito à natureza das coisas e “serve para demonstrar a verdade do seu estado”. Semelhante ligação se define, com efeito, apenas em atenção à força de predicação, de modo que do homem não é adequado dizer que é uma pedra, mas sim que é um animal. Um nome é um signo da coisa que designa[7]. A distinção destas duas formas de ligação das palavras nos permite vislumbrar o esforço de Abelardo para salvar a lógica de uma redução discursiva. A lógica, afinal, não é um simples discurso, mas um discurso referido a coisas; coisas estas que se expressam na mente humana, como veremos a seguir.

Ao contrário da posição rosceliniana, que se limitou a considerar as idéias gerais como flatus vocis, o pensamento de Abelardo avançou de vox em direção a sermo, de modo a incluir o problema da significação das palavras abstratas na polêmica escolástica[8]. Após redigir a Lógica para principiantes, Abelardo considerou necessário extinguir toda impressão verbalista na sua Lógica a pedido de nossos companheiros (Logica Nostrorum petitioni sociorum, também conhecida como Glossulæ). Foi somente nesta obra que Abelardo opôs efetivamente vox a sermo, porém sem alterar substancialmente seus posicionamentos anteriores[9]. Parece ter havido uma motivação puramente formal[10] que o permitisse afastar-se expressamente de Roscelino.

As considerações postas em movimento na Lógica para principiantes já revelavam a mudança notável que separava Abelardo do seu antigo mestre, Roscelino, sem que tenha sido necessário lançar mão da oposição vox-sermo. Isto por que naquela obra Abelardo já professava a convicção de que um universal não é uma simples vox, mas uma vox significativa. Nesses termos, Abelardo põe em questão dois aspectos dos nomes aos quais o vocalismo não dedicou atenção: (i) que os nomes não são simples emissões vocais, porquanto eles significam algo, e (ii) que os nomes não significam nada naturalmente, a não ser por instituição humana (secundum placitum)[11]. Estes dois elementos se entrelaçam intimamente. No entanto, podemos afirmar que, pelo primeiro, Abelardo enfatiza que as palavras não são meros ruídos aleatórios, conquanto elas constituam a intelecção de algo. Isto, todavia, não serve para distinguir um nome de um latido, pois o latido também envolve a significação de algo, no caso, de que é um cachorro que está a latir. Dessa forma, pelo segundo, Abelardo atenta para o fato de que a atribuição de sentido se dá por instituição, fabricação. Não se trata de algo dado. Ou de algo a ser revelado. Abelardo revela uma dimensão antropológica na base do entendimento humano.

Pelo fato de a palavra ser significativa, não há que se entender que ela possua um significado do mesmo modo que uma substância possui acidentes, mas que, pelo som que pronunciamos, nós geramos uma intelecção, um entendimento. O sentido de uma palavra não é uma característica física. Ele deriva da alma. A significação que é produzida por um termo implica uma referência à coisa que se estabelece pelo entendimento. Desse modo, Abelardo sugere uma psicologia[12]. Significar é o próprio ato de engendrar uma intelecção. A palavra, enquanto forma do entendimento, expressa uma atividade humana que não é simplesmente derivada das coisas, mas que a elas se refere.

Contudo, se a apreensão do estado de uma coisa singular é causa eficiente da sua predicação, gerando um termo singular a ela correspondente, parece, a princípio, que o mesmo não ocorre em relação aos universais, pois o estado de uma coisa singular não pode justificar o sentido do termo universal. Um termo singular significa uma coisa determinada tal como ela se expressa na mente humana. Portanto, “assim como as coisas existem separadas em si mesmas, assim elas são significadas pelas palavras separadamente e o significado delas refere-se a uma coisa determinada, referência essa que os nomes universais não apresentam” (grifos nossos)[13].

Diante do fato de que as coisas são elas mesmas singulares, a que se refere, pois, um termo universal? A princípio estes parecem desprovidos de qualquer significação real. Abelardo, com efeito, concorda que Sócrates e Platão convenham entre si, mas ele não pode afirmar, como os realistas, que eles (Sócrates e Platão) convenham com o termo universal “homem”. Rigorosamente falando: “Sócrates e Platão são semelhantes no fato de serem homens”[14]. O que importa à significação, conseqüentemente, é um estado (status), ou seja, uma realidade concreta. Desse modo, afirma Abelardo:

Chamamos de estado de homem o próprio fato de ser homem, que não é uma coisa e que também dizemos ser a causa comum da imposição do nome aos indivíduos, conforme eles próprios combinam entre si uns com os outros. (…) Do mesmo modo, podemos chamar de estado de homem as próprias coisas estabelecidas na natureza do homem, e aquele que percebeu a sua semelhança comum foi quem lhes impôs o nome (grifos nossos)[15].

Abelardo relaciona “estado” com “ser algo”, o que somente se expressa na realidade concreta e é, no caso dos universais, causa comum da imposição do nome aos indivíduos. Torna-se evidente que um termo não é produzido ex nihilo, ou seja, arbitrariamente. Abelardo reconhece os homens como artífice de significados. Isto, entretanto, não envolve mero convencionalismo. É muito mais do que isso. Há uma relação do exterior com a subjetividade que impede uma produção errática verbalista. Esta relação, na medida em que produz ecos na consciência humana, a qual age sobre estas impressões e lhes dirige a sua inteligência, coloca os homens numa situação de construtores da sua existência simbólica. Cada novo objeto simbólico se conecta com o anterior e cria uma teia de significados não fragmentados. Por outro lado, em hipótese alguma, Abelardo assinala a existência de uma essência ou uma coisa indiferentemente idêntica nos distintos indivíduos, como defendia seu antigo mestre realista, Guilherme de Champeaux[16]. Se forem abstraídos todos os acidentes de determinada coisa singular, não encontraremos a substância comum. Pelo contrário, ainda assim, nos defrontaremos apenas com a substância individual. Mas podemos contemporizar com a doutrina realista, pois esta não erra porquanto reconheça a semelhança entre as coisas. O erro assenta-se no fato do realismo conceber mal esta semelhança comum[17].

Esse fundamento do universal nas coisas é o que Abelardo chama de seu ‘estado’(status), isto é, a maneira de ser própria de cada uma delas. O erro dos que atribuem uma realidade qualquer aos universais está em confundir ‘homem’, que não é nada, com ‘ser um homem’, que é alguma coisa. Do mesmo modo, ‘cavalo’ não existe, mas ‘ser um cavalo’ é uma realidade. É portanto, dessa realidade concreta que cumpre partir para explicar a validade lógica das predicações, o que então se torna possível. (…) Dois ou vários homens concordam em que cada um deles ‘é homem’, isto é, está no ‘estado de homem’”[18].

Desse modo, Abelardo garante a significação real dos universais, ou seja, ele estabelece (i) que coisas são apreendidas pela denominação e (ii) de que modo elas são abrangidas. Resta ainda tratar mais cuidadosamente da parte mais interessante da sua argumentação, que consiste na explicação da significação intelectual dos universais[19], ou seja, na determinação do conteúdo dos universais no entendimento. Entra em cena a distinção entre o domínio sensitivo e o domínio intelectual. Não apenas isso, Abelardo distingue cuidadosamente, por um lado, o sentido e a coisa percebida; por outro, o intelecto e a forma da coisa que ele concebe[20]. Para Abelardo,

É mister, pois, distinguir cuidadosamente entre a coisa real e singular, a atividade dos sentidos, a do entendimento, e a forma ou semelhança produzida pelo entendimento. Enquanto apreendida pelo entendimento (enquanto ato) essa forma é algo ‘imaginado’, e como tal não se enquadra em nenhuma categoria; é comparável às cidades que vemos em sonhos, ou às idéias que o espírito do artista concebe antes de realizá-las na obra de arte[21].

Dessa maneira, Abelardo oferece um modo de concebermos a formação das imagens da intelecção ou do entendimento[22]. Há um objeto, uma torre, e.g., que afeta os nossos órgãos sensoriais. Os sentidos apreendem a torre tal como esta agiu sobre os órgãos sensoriais. Logo, os sentidos dependem de duas coisas: órgãos sensoriais e objeto material. O intelecto, por sua vez, depende da semelhança da coisa (rei similitudo) engendrada na alma e sobre a qual dirige a ação da sua inteligência. Abelardo distingue, nesses termos, quatro elementos: a coisa apreendida, os sentidos, a imagem da coisa e o intelecto, que é a ação da alma. O engendramento de semelhanças das coisas é resultado da imaginação do intelecto. Este produz a semelhança quando quer e como quer. Mas há necessariamente a pressuposição de que houve uma ação sobre os órgãos sensoriais no passado. Sempre se poderão imaginar cidades fantásticas e hircocervos, mas para isto tem que ter havido experiências singulares distintas que possam ser combinadas em imagens mentais.

Mesmo que a torre apreendida por nossos sentidos seja destruída, ainda reteremos a imagem dela no espírito. Abelardo ilustra o mesmo raciocínio com o nome da rosa. Ainda que, de fato, não haja mais rosas, ainda se poderia dizer “não há rosas” (nulla rosa est), pois ainda que a rosa seja mortal, seu nome é imortal[23]. Isto por que, como dissemos, a semelhança da coisa é o resultado de uma ação da alma correspondente ao movimento de expressão de uma coisa determinada nos órgãos sensoriais humanos. Retomando o que afirmamos logo acima: o modelo abelardiano não permite a compreensão da produção de significados com base na imagem de uma atividade errática ou voluntarista. Por certo, a imaginação pode envolver verdadeiras quimeras, mas mesmo estas dependem de um ancoradouro na realidade. A nomeação não surge ex nihilo, por arbítrio puro. Há, pois, uma causalidade por traz do processo de nomeação. Existe uma dinâmica intrínseca à alma que promove o acoplamento de um nome a um significado, a uma semelhança; significado este que é produzido através de uma intelecção que apreende a semelhança entre coisas diversas. Em suma, trata-se da operação do espírito humano e não de mero arbítrio. Ainda que a forma do nome e a própria imputação do nome a determinado significado possam ser completamente arbitrárias, o significado, em si mesmo, é obra do entendimento humano, que opera de maneira específica. Não bastam ligações de construção para que se apreenda este tipo de operação do entendimento, são necessárias ligações de predicações, o que envolve sempre uma referência metagramatical, que envolve o estado das coisas. Não podemos afirmar que o homem é uma pedra se, por pedra, entendemos ser algo que é distinto de ser homem. Ou seja, há uma referência a uma semelhança produzida em nós através da percepção de um conjunto de coisas singulares que concordam num estado específico. Desta feita, Abelardo concebe a atividade intelectiva livre do signo da vontade. A mente age por si mesma na concepção dos universais.

As palavras não são signos da inteligibilidade que o próprio Criador imprimiu em todas as coisas, como poderia querer um realista, nem tampouco são aleatoriedade pura. Os nomes são signos das semelhanças das coisas percebidas pelos sentidos e produzidas pelo entendimento. Abelardo põe em evidência a operação do espírito humano, que projeta nas palavras – nos flatus vocis – um significado que não é senão a semelhança entre as coisas e, desse modo, ruma decididamente em direção a uma certa psicologia.

Cabe-nos, agora, passar para a distinção entre a representação de um indivíduo e aquela de um universal, pois enquanto a imagem do primeiro é certa e determinada, a do segundo é fraca e confusa. Ou seja, “um universal não é senão uma palavra que designa a imagem confusa extraída pelo pensamento de uma pluralidade de indivíduos de natureza semelhante e que estão, por conseguinte, no mesmo ‘estado’”[24].

A relação do conhecimento particular com o conhecimento universal – isto é, aquele proporcionado pelos termos universais – é incontornável. Somente um conhecimento universal fundado no conhecimento de coisas sensíveis individuais pode ser verdadeiro, ou seja, pode subtrair-se da condição de mera opinião. Afinal, não nos é dado um conhecimento das coisas em si mesmas; conhecimento este somente acessível a Deus, que é causa de todas as coisas. Aos homens, no entanto, as coisas são acessíveis apenas enquanto elas se apresentam às suas experiências sensíveis. Logo, ao chegarmos pela primeira vez a uma cidade da qual somente ouvimos falar, constatamos a distância escandalosa entre aquilo que imagináramos e aquilo que vemos. Tampouco podemos ter outro conhecimento além do opinativo a respeito das formas intrínsecas inverificáveis pelos sentidos, tais como a racionalidade e a mortalidade[25]. Em suma, um universal vale tanto quanto a imagem de uma cidade que não visitamos. O conhecimento verdadeiro somente pode ser referido ao particular. Abelardo, dessa forma, invoca o indutivismo de Guilherme de Ockham. Desse modo, “como veremos, a sua posição em face do realismo coincide com a de Guilherme de Ockham; o grande nominalista do século XIV não terá fórmulas mais vigorosas, nem mais claras, sobre a individualidade das coisas”[26].

Por último, cabe enfatizar que o significado dos universais se obtém por meio da abstração. Conquanto Abelardo reconheça que, na realidade, não há formas separadas e que se erra ao atribuir a um ser uma propriedade que não lhe convém, nem por isso elimina-se o valor da abstração. Esta consiste, por sua vez, na forma como a atenção recai-se sobre as coisas, considerando à parte o que existe unido. O erro consiste em tomar a abstração, isto é, um tipo de conhecimento, como representativo da coisa nela mesma. Ora, isto implicaria deitar por terra todo o esforço de Abelardo para compreensão dos universais. Com efeito, ainda que “a matéria e a forma sempre existam misturas ao mesmo tempo”[27], o entendimento humano tem a capacidade de considerar cada uma alternadamente. Com isso, continuamos distantes da metafísica dos universais e identificamos, gradativamente, as repercussões psicológicas da teoria abelardiana.

A abstração tomista é transmutação do sensível em inteligível; nós estamos na metafísica: trata-se de libertar uma forma da sua matéria. Com Abelardo, nós estamos somente na psicologia: trata-se apenas de considerar, de diferentes maneiras, as coisas e suas imagens; a abstração é discernimento, atenção. Nada além (tradução livre)[28].

I.2 Guilherme de Ockham: a atividade do intelecto e a expressão das coisas

Não é necessário supor que Ockham tenha lido Abelardo, o que não é sugerido por nenhuma fonte[29]. Se Abelardo produz sua obra no começo mesmo da escolástica, em Guilherme de Ockham, por sua vez, já se insinuam elementos corrosivos da ordem medieval e anunciadores do que viria a seguir. Uma vez que a formulação hegemônica da escolástica, ainda que extremamente diversificada, era basicamente realista, o paralelo de Abelardo e Ockham deixa entrever que não foi tanto a filosofia moderna a causa da ruína desta outra filosofia. Pelo contrário, foi uma crítica interna, da qual estes dois autores são talvez os mais altos expoentes, a responsável por tal feito. Por outro lado, a obra de Ockham é sugestiva mesma dos rumos futuros da filosofia inglesa. Através dela, consolida-se uma oposição entre a filosofia inglesa e a filosofia continental, a qual se mostrará em toda sua radicalidade no debate de Descartes com Hobbes a respeito das Meditações cartesianas.

Com Ockham, notamos mais uma vez o empenho de um lógico na crítica da metafísica dos universais. Sua análise, todavia, ao contrário daquela de Abelardo, invade o domínio da teologia, de sorte que Ockham se notabiliza como teólogo. Por outro lado, seu rigorismo implica o aprofundamento da separação entre filosofia e teologia[30], porquanto, em última instância, ele restringe as possibilidades de demonstração filosófica, somente reconhecendo como válido um gênero de demonstração. Nesses termos, provar uma proposição implica demonstrar ou bem a sua evidência imediata, ou bem a sua dedução apodítica a partir de outra proposição que seja imediatamente evidente[31]. Trata-se de uma lógica mínima, ancorada na primazia da intuição e, portanto, dos singulares. Nada mais necessário, portanto do que o chamado princípio da economia, também conhecido como a Navalha de Ockham[32]. Com efeito, para que uma proposição seja explicada, um indivíduo não deve mobilizar uma pluralidade desnecessária de causas da intelecção, tais como arquétipos ou espécies. Não há necessidade de apelar para elementos além daqueles derivados da intuição. Afinal, é somente a experiência que implica intuições de que não podemos duvidar.

Para Ockham, a única coisa real é o particular. O universal existe apenas na alma do sujeito cognoscitivo[33]. A universalidade não reside nas coisas, pois estas são essencialmente individuais. Desse modo, as palavras universais são, em si mesmas, coisas singulares. Sua universalidade consiste em poderem ser atribuídas a vários indivíduos. Desta maneira, enfatiza-se a absoluta impossibilidade de encontrarmos o universal na realidade. O universal é exterior à realidade tal como a palavra o é da coisa[34]. Ao asseverar que toda a realidade é composta por indivíduos, Ockham, tal como Abelardo, afirma, a respeito de um problema posto por uma lógica dos termos e signos das coisas, uma metafísica do indivíduo que configura a essência do nominalismo[35]. Notamos, pois, uma formidável defesa da primazia do particular e, por conseguinte, do conhecimento intuitivo, que se expressará num empirismo radical.

Ao conhecimento intuitivo, Ockham opõe o conhecimento abstrato. O primeiro, único que nos permite acessar os fatos, é “o conhecimento (…) em virtude do qual se pode conhecer evidentemente alguma verdade contingente, sobretudo de fatos presentes”[36]. É necessário enfatizar que a intuição não revela o objeto em toda sua clareza. Ela nos assegura apenas a evidência de uma existência atual[37]. O conhecimento abstrato, por sua vez, não nos garante este acesso às coisas. Não nos é dado por ele saber, “com evidência, se uma coisa contingente existe ou não”[38]. O conhecimento abstrato alheia-se da existência e da não-existência. Desse modo, não nos permite saber se uma coisa existente existe, ou se uma coisa não inexistente não existe. Nosso conhecimento começa pela apreensão do singular, que é material. É a partir deste conhecimento intuitivo que começa o conhecimento experimental[39]. O problema reside, dessa maneira, em saber como transpor a fragmentação do conhecimento intuitivo em direção a generalizações que nos permitam conhecer o mundo e agir sobre ele.

Uma vez que a realidade é um bloco de individuais fragmentados, a ciência não pode encontrar a inteligibilidade fora dos termos que a expressam. Ou seja, “as proposições são como a própria matéria de que é feito o saber: toda a nossa ciência consiste em proposições, e não há nada diferente delas que possa ser sabido”[40]. Dito de outra maneira, a inteligibilidade não reside nas coisas, mas é algo próprio do homem. A ciência não trata de coisas singulares, mas de proposições[41].

É isso o que proclama o Filósofo [Aristóteles] ao dizer que a ciência não se ocupa com as coisas singulares, mas só com as universais, que representam os próprios singulares. Entretanto, na linguagem metafórica e imprópria, diz-se que a ciência natural trata das coisas corruptíveis e móveis, porque se refere a termos que representam coisas[42].

As proposições se reduzem a palavras que sempre significam seres reais e particulares. São as proposições, consequentemente, que realizam as generalizações das experiências particulares, livrando os indivíduos do fluxo superabundante de realidades singulares e convidando-os à ação. Desse modo, “as proposições são como a própria matéria de que é feito o saber: toda a nossa ciência consiste em proposições, e não há nada diferente delas que possa ser sabido”[43]-[44]. As proposições são compostas por termos, os quais podem existir de três modos: mentais (in mente), falados (in voce), escritos (in scripto)[45]. Entre o plano do pensamento e os dois planos da linguagem (falado e escrito), existe uma correspondência tal que a análise do pensamento segue as articulações proporcionadas pela linguagem[46]. Entretanto, em hipótese alguma se pode reduzir o pensamento à linguagem, a não ser que se admita – não talvez sem razão – que o intelecto é uma forma de linguagem, uma linguagem natural. Ockham enfatiza que, enquanto os termos mentais significam algo naturalmente, a linguagem significa algo apenas artificialmente. Os termos mentais são conceitos, isto é, a própria atividade intelectual. Desse modo, nuvens negras no céu significarão chuva independentemente da linguagem em que esta certeza venha a se expressar. Fundamentalmente, “a faculdade de conceber é uma potência ilimitada de expressão: do intelecto nascem os signos de todas as coisas, que exprimem, em seguida, a diversidade das línguas escritas e das línguas faladas. O conceito é um signo natural que supõe signos artificiais” (tradução livre)[47].

A significação natural dos conceitos implica a universalidade natural em contraste com a universalidade artificial derivada da linguagem. A possibilidade do “universal” decorre da conveniência de um indivíduo com outro[48]. Esta conveniência pode se expressar na mente e na linguagem, dando origem a significações naturais ou artificiais[49]. Assim, um termo significa algo naturalmente do mesmo modo que qualquer efeito significa a sua causa. Do mesmo modo, um círculo afixado à porta significa que se vende vinho numa taverna[50], a fumaça indica a existência de fogo e o riso demonstra alegria[51]. Assim, o efeito é índice natural da causa. Mas é preciso lembrar que esta naturalidade reside também no domínio simbólico. Não se trata de algo inscrito nas coisas, mas na mente humana. Completamente distinta é a universalidade artificial. Esta consiste num sinal instituído voluntariamente para significar muitas coisas. Ou seja, trata-se de uma convenção, isto é, de algo posto ad placitum.

Cumpre-nos agora examinar melhor qual é a função do termo, o que exatamente um termo significa. Ora, um termo significa o objeto que substitui, ou seja, de que é o representante na proposição. Ockham argumenta neste sentido através da noção de suposição (suppositio)[52]. Os termos de uma proposição constituem, em conjunto, um sentido determinado: eles se referem a alguma coisa da qual eles aí operam como signos. Dessa forma, um signo pode corresponder a coisas diversas conforme as conexões semânticas que ele estabeleça no interior de uma proposição. Ou seja, uma coisa é dizer “homem é uma paroxítona”; outra, completamente diferente, é afirmar o “homem é um mamífero”. Não sem justiça, notamos que:

Se utilizarmos esta expressão fora da sua acepção técnica em que ela denota uma classe específica de termos, nós poderemos sustentar que todos os termos são sincategoremas. Ou seja, são fragmentos que, despidos por si mesmos de toda capacidade propriamente lingüística, não se encontram investidos dela senão na medida em que eles exercem a função categórica na predicação (…) (tradução livre)[53].

Para explicarmos a teoria do conhecimento em Ockham, devemos passar em revista as causas necessárias do conhecimento. Ao se perguntar se, como defendia o pensamento escolástico hegemônico, seria necessário haver algo para explicar a assimilação do objeto conhecido ao intelecto, isto é, algo que intermediasse a relação entre o objeto conhecido e o ato de conhecê-lo, Ockham problematiza um dos principais elementos do aristotelismo escolástico: as “espécies”. A doutrina escolástica hegemônica insistia na concorrência das chamadas “espécies”, que proporcionariam a transição da matéria para o espírito e da potência para o ato. Estava em jogo a separação que se tornou célebre com Aristóteles entre intelecto agente (intellectus agens) e intelecto paciente (intellectus patiens). Conforme a tradição aristotélica e escolástica, o intelecto agente concorre com os objetos sensíveis e os tornam inteligíveis por um processo de abstração – donde derivam as “espécies”. Sto. Agostinho, nesses termos, aludia a este tipo de intelecto como Luz Divina, que ilumina os objetos e os torna acessíveis ao entendimento. O intelecto paciente, portanto, é uma faculdade de receber e organizar os conceitos processados – ou iluminados – pelo intelecto agente.

Ockham, definitivamente, negava tudo isto. Afinal, a dois objetos que estivessem em condições de se afetar reciprocamente, um podendo exercer uma ação e o outro podendo sofrê-la, nada faltaria. Não seria, com efeito, necessário mais nada além da dinâmica dos objetos para explicar como um elemento material pode ser representado ao intelecto, que é espiritual. Ou seja, Ockham afirma que é a própria coisa, imediatamente e sem o concurso de nenhum intermediário entre ela e o intelecto, que se encontra percebida ou conhecida[54]. Ora, o objeto e o intelecto bastam, por conseguinte, para explicar a intuição sensível. Da mesma forma, bastam para explicar o conhecimento abstrato que dela decorre. Não seria verdadeiro dizer que o universal é obra do entendimento humano. Decerto ele deriva do intelecto, mas trata-se antes de um processo natural que se dá no âmbito da alma. Trata-se de um processo que guarda férteis analogias com a refração da luz em contato com objetos materiais. Desse modo, o universal nasce na alma a partir do singular. A intuição está, portanto, colada ao conhecimento. O mundo, enquanto conjunto fragmentado de indivíduos sensíveis, interpela o homem, que, por sua vez, coloniza o mundo – que é uma imagem irreal tal como são todas as imagens que se produzem no intelecto –, dando-lhe uma forma inteligível A nossa ação sobre o mundo depende da aceitação das provocações que as coisas sensíveis exercem sobre nós. Logo, “não há que se afirmar que o intelecto produz o universal: é mais verdadeiro dizer que o objeto, agindo progressivamente, o engendra na alma. O espírito não é aquilo que concebe, mas o lugar onde nasce o conceito” (tradução livre)[55]. Em outras palavras, é a natureza que operando de forma misteriosa, engendra os universais na alma (dico quod natura occulte operatur in universalibus). O intelecto não é, pois, o sujeito do ato de intelecção. Não podemos separar o ato pelo qual conhecemos as coisas do intelecto no qual este conhecimento se dá. Rigorosamente falando, “pensar é significar”[56]. E o processo de constituição de significados, isto é, o entendimento, não pode jamais ser considerado prisioneiro de uma lógica voluntarista, como se tudo fosse criado convencionalmente (ad placitum). Ockham repete Abelardo. Os conceitos, os termos mentais, são necessariamente postos pela ação das coisas singulares no intelecto humano. Portanto, o universal não é concebido como mero objeto do entendimento, mas como função do entendimento; função esta que expressa um certo automatismo da atividade intelectiva, uma dinâmica própria. Os universais são funções que ocorrem em nós a despeito do nosso concurso voluntário. A atividade produtiva do intelecto se dá naturalmente, sem que esteja em seu poder ser diferentemente. Dito de outra maneira, não lhe cabe ser passivo. Assim sendo, é somente na linguagem que podem ser encontrados a convenção e o arbítrio.

Há ainda uma analogia possível entre a refutação de intermediários no entendimento humano e a criação divina. Isto por que do mesmo modo que Ockham refuta a existência das espécies entre o entendimento e o ato de conhecer, ele recusa a existência de arquétipos entre o ato de criação e as coisas que Deus cria. Ou seja, ele concebe a vontade divina da maneira mais livre possível. Desse modo, talvez possamos conceber a suposta passividade do entendimento como uma liberdade necessariamente posta. Os homens conhecem a despeito de si mesmos[57].

2. Thomas Hobbes: nominalismo e vontade de realismo

Ao passarmos ao exame de Hobbes, enfatizaremos a importância da sua filosofia da linguagem. De fato, compartilhamos da convicção de que a linguagem desempenha uma função incontornável na filosofia hobbesiana. Ainda que seja difícil – e talvez não recomendável – abordar as bases do pensamento de Hobbes sem nos referirmos à influência galileana, procuramos enfatizar um outro aspecto do pensamento de Hobbes. A análise de Ockham e Abelardo trouxe à luz uma doutrina que não permanece cativa da gramática, nem dispensa a investigação da verdade. O entendimento humano é elevado à condição de artífice do universo simbólico em que vivemos. Dá-se a um só tempo a desdivinização e a desreificação do entendimento humano. Os universais, portanto, não estão nem na mente de Deus nem nas coisas sensíveis. Desse modo, iniciaremos nossa investigação chamando à atenção do leitor para o modo como Leibniz tratou deste aspecto da filosofia de Hobbes. Leibniz apelidou Hobbes de ultranominalista. Isto por que, de um lado, Hobbes situaria a verdade nas denominações das coisas e não nas coisas em si mesmas. E, de outro, Hobbes tornaria a verdade dependente do arbítrio humano[58]. A afirmação de Leibniz é cuidadosamente examinada por Y.C. Zarka[59] e J. Bernhardt[60]. Além das obras de Hobbes pertinentes à questão, a presente seção do artigo segue as análises feitas por estes dois autores[61].

Em conexão direta com os nominalistas medievais, Hobbes afirma que não há, no mundo, “nenhum universal além dos nomes, pois as coisas nomeadas são, cada uma delas, individuais e singulares”[62]. Porém, expressando o seu radical nominalismo, Hobbes sentencia que “a verdade e a falsidade não têm lugar senão entre aquelas criaturas que usam a fala”[63]. E, mais adiante: “as primeiras verdades foram estabelecidas arbitrariamente pelos que primeiro atribuíram nomes às coisas”[64].

Abelardo e Ockham, conforme se procurou demonstrar, derivavam a significação dos universais de uma operação intelectual, de modo que os conceitos, ainda que possam seguir as articulações da linguagem, não podem ser reduzidos a ela. A rigor, a significação dos universais é uma operação pré-lingüística. Hobbes, todavia, não reconhece qualquer capacidade no espírito pela qual ele possa representar um termo universal. Os universais somente nascem mediante um processo de significação, o qual é uma operação lingüística.

Existem duas formas de conhecimento acessíveis aos homens: o conhecimento empírico e o conhecimento racional[65]. Pelo primeiro, Hobbes filia-se ao entendimento de Abelardo e Ockham, na medida em que admite apenas a percepção do singular contingente. O conhecimento empírico envolve basicamente sensação, memória e imaginação – estas duas últimas consistem em sensações em vias de degradação, de modo que não se distinguem tanto da primeira, mas a envolvem. Hobbes afirma que este gênero de conhecimento é absoluto[66], pois nos assegura a evidência de uma existência atual. Porém, não nos dá acesso àquilo que a coisa é em si mesma. Assim, as qualidades sensíveis não são propriedades das coisas, mas dos nossos sentidos em função das coisas percebidas. A “brancura” não emana da superfície branca, mas é uma qualidade própria da nossa percepção do objeto[67]. As idéias e imagens mentais formadas pela sensação são representações fragmentadas e contingentes. Não nos é dado passar da apreensão do fato singular para a ligação de fatos, isto é, apreendemos apenas as seqüências dos fatos, sem que as entendamos. Por mais extenso que seja o conhecimento empírico, ou seja, por maior que seja a coleção de eventos observados, nada impede a ocorrência de um evento contraditório. De fato, nem mesmo a noção de causalidade, na medida em que ela implica uma relação necessária e universal, poderá se fundar sobre a repetição empírica. Hobbes afirma, “ainda que um homem tenha sempre testemunhado até então o dia e a noite se sucederem um ao outro, ele não poderá concluir que tenha sido ou que será eternamente sempre assim” (tradução livre)[68]. O conhecimento empírico, dessa maneira, nos mantém cativos da incerteza, restando-nos apenas observar o maior número possível de repetições do evento, o que torna menos incerto um sinal qualquer[69]. Neste domínio de conhecimento, pode se dar o erro, mas não ocorre nem verdade nem falsidade, pois estas dependerão da linguagem.

Hobbes, porém, não é um verbalista. É preciso não se deixar enganar. A linguagem que Hobbes afirma não é arbitrária, vez que os termos são dotados de significação. Dizer que “um quadrado é redondo é um mero som”[70], ou seja, um flatus vocis. Ora, o sujeito da oração (um quadrado) envolve um significado que não é implicada pela significação do termo “redondo”. Por outro lado, caso se diga: “homem é um ser vivo”. O termo “ser vivo” envolverá tudo o que o termo “homem” significa. Trata-se, desta forma, de uma proposição verdadeira. Com isso, começamos a identificar a existência de uma necessidade interna à linguagem de que Hobbes fala. No entanto, não há paralelo com a “força de predicação” de que falava Abelardo, pois esta implicava sempre uma referência à natureza das coisas, o que não é o caso em Hobbes.

Examinemos melhor a questão da significação dos universais em Hobbes. Uma denominação universal significa não uma imagem particular, mas uma relação, uma semelhança. Para Abelardo, como vimos, esta semelhança implicava uma intelecção pela qual nós poderíamos apreender uma representação geral. Assim, sabendo em que consiste “ser homem”, poderíamos pensar o estado (status) correspondente. Hobbes, todavia, recusa toda representação universal sem, contudo, esvaziar os termos universais de significação. Isto por que Hobbes nega toda função de generalização mental autônoma[71]. A generalização depende da linguagem. Hobbes ilustra a argumentação através do seguinte exemplo:

se tiver diante dos olhos um triângulo e também dois ângulos retos (como os dos cantos de um quadrado), pode, através de medição, comparar e descobrir que os três ângulos daquele triângulo são iguais àqueles dois ângulos retos que estão ao lado. Mas, se lhe for mostrado um outro triângulo diferente do primeiro na forma, ele não pode saber sem um novo trabalho se os três ângulos desse triângulo são também iguais ao mesmo. Mas aquele que tem o uso das palavras, quando observa que tal igualdade era conseqüente, não do comprimento dos lados, nem de qualquer outro aspecto particular do triângulo, mas apenas do fato de os lados serem retos e os ângulos três, e de isso ser aquilo que o levava a denominar tal figura um triângulo, não hesitará em concluir universalmente que tal igualdade dos ângulos existe em todos os triângulos, sejam eles quais forem, e em registrar sua invenção nestes termos gerais: ‘Todo triângulo tem seus três ângulos iguais a dois ângulos retos’. E assim a conseqüência descoberta num caso particular passa a ser registrada e recordada, como uma regra universal[72].

A linguagem em Hobbes deve superar a contingência e a fragmentação das nossas representações mentais. Isto ocorre porque a linguagem permite uma análise e uma síntese irrealizáveis pela nossa imaginação. Desse modo, razão e linguagem serão indissociáveis. Se as representações são todas particulares e fragmentadas, cabe à linguagem oferecer significações universais. A função lingüística torna possível a operação mental porquanto produz um conceito geral que, considerado em si mesmo, não é uma representação, de sorte que desaparece tão logo suspendamos o uso das palavras. O conceito geral é, portanto, uma significação produzida pela linguagem. Desse modo, podemos derivar uma oposição entre razão-significação, de um lado, e sensação-representação, do outro. Afinal, o próprio “raciocínio nada mais é do que a união e a ligação de nomes ou designações pela palavra ‘é’. Consequentemente, admitido que a razão não nos fornece qualquer conclusão acerca da natureza das coisas, mas apenas dos termos que as designam[73], cumpre-nos estabelecer um discurso que nos transporte para além do solipsismo originário das idéias sensações fragmentadas e contingentes. Somente desse modo podemos realizar as generalizações necessárias.

Ainda que a linguagem não seja arbitrária, é certo que ela envolve em Hobbes uma dupla arbitrariedade. Os signos lingüísticos são arbitrários não apenas em relação à coisa ou àquilo a que se referem, mas igualmente são arbitrários com referência às concepções que eles significam. Entre o nome e a coisa não existe nenhuma comparação possível, nenhuma similitude que possa nos fazer imaginar que os nomes das coisas foram impostos pela natureza[74]. Porém, a partir do momento em que as palavras recebem através de suas definições um significado preciso, a verdade se torna possível. Nesses termos,

Vendo então que a verdade consiste na adequada ordenação de nomes em nossas afirmações, um homem que procurar a verdade rigorosa deve lembrar-se que coisa substitui cada palavra de que se serve, e colocá-la de acordo com isso; de outro modo ver-se-á enredado em palavras, como uma ave em varas enviscadas[75].

Não se pode tomar as seqüências de palavras e pensamentos como sendo seqüências de coisas. Desse modo, o nominalismo hobbesiano consuma a ruptura entre ser e conhecer[76]. Hobbes afirma, nesse sentido, que os nomes são signos das nossas cogitações e não das coisas[77]. Desse modo, por exemplo, Hobbes afirma que coisa alguma corresponde à palavra “nada”. O conhecimento, portanto, somente se faz possível na medida em que mantemos a distância entre a palavra e a coisa. Ou seja, é preciso um afastamento da fragmentação. O nominalismo aqui concebido exige este distanciamento e abre espaço para uma linguagem dogmática, para uma vontade de realismo. Desta maneira, torna-se elementar a conclamação da geometria em Hobbes, pois “em geometria (…) os homens começam por estabelecer as significações de suas palavras, e a esse estabelecimento de significações chamam definições, e colocam-nas no início de seu cálculo”[78]. A geometria, para Hobbes é o começo de tudo, porque com ela atribuímos definições certas e claras às coisas. Ela nos livra das teias de aranha formadas pela nomeação desordenada[79]. A geometria é uma regra capaz de verdade. De fato, ela inaugura mesmo a possibilidade real da verdade.

A ligação do sujeito ao predicado não nos faz conhecer a essência de uma coisa, mas a sucessão e a ligação de nossas concepções. A rigor, não se pode separar a essência da existência, isto consistiria em reificação de ficções do entendimento humano, pois a essência, longe de nos fornecer a verdade de uma natureza ou de um ser, se reduz a uma abstração do espírito, a uma imagem mental sem vinculação ontológica. É esse o sentido da crítica que Hobbes faz a Descartes[80]. Assim, se Hobbes, ainda que reprove a distinção entre essência e existência, continua a empregar o termo no seu discurso, este passa a denotar apenas uma essência nominal, uma operação lingüística. Dito de outra maneira, “a essência não é nada além da palavra pela qual nós nomeamos uma coisa para significar a concepção que dela podemos ter”[81]. Com efeito, “a essência não é uma coisa criada ou incriada, mas uma denominação fabricada artificialmente”[82]. Somente desta maneira torna-se possível uma noção de verdade eterna, que nada mais é do que uma hipérbole independente de qualquer validação ontológica.

O conceito de causalidade que caracteriza o conhecimento filosófico depende da exigência humana de racionalidade e não da ordem ontológica das coisas. Assim a ciência não tem por função nos fornecer um conhecimento cuja validade ontológica seja certa, mas antes deve cuidar de produzir, a partir do conhecimento das causas, os efeitos desejados. O materialismo está diretamente ligado à crítica nominalista do discurso metafísico, porque ao destruir a ilusão da ontologia, revela a possibilidade de uma física. Assim todas as categorias do saber, despidas de suas conotações essencialistas, transformam-se em categorias física. A racionalidade não está no mundo. É um imperativo que decorre da ação humana sobre o mundo. Hobbes, portanto, não tem nenhuma preocupação com a validade ontológica do conhecimento, mas sim com as condições de possibilidade discursivamente envolvidas. Nesses termos, Hobbes opera uma transgressão do empirismo pelo nominalismo. As coisas consideradas em si mesmas serão sempre inacessíveis. Somente nos restará um conhecimento discursivo que reconfigura a essência das coisas.

Uma vez que a essência das coisas nos é inacessível e que o discurso ontológico é considerado ilusório, “o conhecimento abandona a natureza para se desenvolver no domínio do artifício”[83]. Desse modo, toda a filosofia de Hobbes se articula em torno do nominalismo radical que constitui o ponto arquimediano da sua virada dogmática. A concepção materialista do mundo é, desta maneira, fundada sobre o nominalismo. O materialismo é a maneira de que nós dispomos para racionalmente conhecer o real. Não se trata, portanto, de conhecer a substância verdadeira das coisas. Esta permanece inacessível. O mundo humano é totalmente organizado sob o pálio do artifício. É operando no artifício que os homens devem buscar o fundamento de uma certeza absoluta que não existe na natureza. O conhecimento, por conseguinte, concebido como obra humana, nos distancia definitivamente do mundo natural e nos convida a viver o artifício. A necessidade das nossas deduções será, então, sempre hipotética. A teoria da causalidade diz mais respeito ao poder que exercemos sobre as coisas, de modo a saciar nossas necessidades, do que a um conhecimento da natureza tal como ela é em si mesma. O conhecimento é uma operação da linguagem. A filosofia possui, portanto, uma função discursiva que é terapêutica: libertar o espírito dos homens das palavras insignificantes que aprisionam o seu pensamento e podem levá-los a perder o Estado e, por conseguinte, a perder a si mesmos[84]. Desse modo, a história, ou seja, o estudo daquilo que se passou não tem relevância. Não importa o estudo daquilo que se passou, mas antes daquilo que pode ser[85]-[86], ou melhor, daquilo que deve ser.

2.1. O Leviatã: o nominalismo e o supremo artifício

Faremos algumas breves incursões sobre a relação do nominalismo com a política. Esta última seção do trabalho foi originalmente concebida para ser a parte principal, o que, infelizmente, acabou não ocorrendo.

Antes das fraturas eclesiásticas, a unidade da Igreja Católica implicava a união da consciência individual – a dimensão espiritual – com a vida mundana, incluindo as interações políticas. A Reforma acarretou a cisma entre estas duas dimensões: o interior e o exterior. Os indivíduos, dessa maneira, passaram a se reconhecer como capazes de julgar por si mesmos a realidade. Eles se tornaram, portanto, árbitros de suas próprias ações. Assim, fizeram-se operadores da inteligibilidade do mundo. Os indivíduos foram finalmente remetidos às suas próprias consciências individuais, isto é, à sede subjetiva de toda atribuição de sentido. A isso se seguiu uma nomeação desordenada das coisas. As contingências religiosas e econômicas afloraram e desorganizaram o campo simbólico, provocando as guerras civis. Com efeito,

a guerra civil (…) advém do veneno de doutrinas rebeldes; uma delas afirma que cada um é juiz das ações boas e más, a outra que é pecado o que se faz contra a própria consciência.

O movimento reformatório e a conseqüente divisão das instâncias religiosas remeteram o homem de volta à sua consciência. A consciência desprovida de amparo externo degenera em fetiche de uma justiça em causa própria[87].

Nesse sentido, Hobbes só poderia dizer: “o trabalho mais proveitoso que um filósofo da moral pode realizar é o de apontar o dever de obediência, único meio de promover a paz”[88].

O problema da obediência levou Hobbes ao estudo da história, buscando nela os exemplos de comportamento que ensinassem aos homens os seus verdadeiros deveres. Contudo, do método histórico não pôde derivar nenhuma moralidade necessária. A história, de fato, não fornecia uma linguagem certa e determinada. Ela apelava para a boa intenção dos homens e não para suas paixões íntimas, o egoísmo e o medo. Desse modo, Hobbes abandona a história enquanto conjunto de narrativas fragmentadas e contingentes em benefício de uma história típica[89]. O método resolutivo-compositivo de Hobbes permite-lhe elaborar uma história universal e necessária. Ao retirar toda contingência do modelo explicativo, Hobbes se permite recontar a história do homem não tanto a partir do que aconteceu, mas a partir do que deveria ter acontecido. Assim concebida, é mais perfeitamente humana das histórias, pois leva em consideração apenas aquilo que existe no homem, seus medos, esperanças e egoísmos. Desse modo, o método analítico-sintético permite que Hobbes realize generalizações que seriam impossíveis pelo estudo histórico anterior. Do método resulta a obediência necessária.

Da oposição entre a história típica, que deve instruir a obediência civil, e a história real, resulta a separação entre uma dimensão deontológica e uma dimensão ontológica. As contingências da esfera social devem, portanto, ser atiradas para fora do espaço propriamente político, que se erige como exceção em meios à desordem simbólica. Isto por que Hobbes mantém-se certo de que as convicções privadas são inamovíveis, porquanto o pensamento é livre[90]. Decerto, ninguém está obrigado a acreditar em absurdos, pois o Estado não tem como impor tal ato[91]. Obviamente, nada impede que o Soberano os imponha e procure implementá-los. Não se trata de um limite moral à ação do Estado, mas de um limite fático. Por conseguinte, o Estado somente pode reclamar uma obediência pública, isto é, propriamente política. A filosofia política, nesses termos, deve se escorar numa linguagem certa, que lhe permita contar com a obediência certa dos cidadãos. Ou seja, trata-se da fabricação de autômatos políticos. Porém, o caos das denominações desordenadas convive com o Estado, mas é confinado a uma esfera alheia da política. Assim, “Hobbes deve (…) conceber o Estado como uma construção política em que as convicções privadas são destituídas de sua repercussão política”[92]. Desta feita, destaca-se o cidadão do homem.

Hobbes não concebe um Estado arbitrário. A obediência não significa obediência porque o soberano assim o quer. Mas, antes o Soberano é a condição para que a obediência signifique obediência. Ou seja, o advento da Soberania permite uma significação adequada dos termos. Dito de outra maneira, o advento da Soberania o permite que as Leis naturais decantem no mundo. Dessa forma, notamos uma passagem do nominalismo para o realismo necessário da obediência. As Leis naturais são uma virtualidade. Decerto, elas são eternas e necessárias, mas nada garante a sua aderência ao mundo das contingências. É preciso que o advento do Estado as torne reais e efetivas, de sorte que elas possam ser efetivamente lei, e não meros teoremas racionais[93], pois lei sem espada é mero flatus vocis. Portanto,

A lei da natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idêntica extensão. Porque as leis de natureza (…) na condição de simples natureza (…) não são propriamente leis, mas qualidades que predispõem os homens para a paz e a obediência. Só depois de instituído o Estado elas efetivamente se tornam leis, nunca antes, pois passam então a ser ordens do Estado, portanto também leis civis, pois é o poder soberano que obriga os homens a obedecer-lhes [94].

É nesse sentido que Hobbes afirma a co-extensividade entre lei natural e lei civil. Do mesmo modo, as leis naturais somente se harmonizam com as paixões humanas diante do medo da coerção.

Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes[95].

Não se pode pensar que a lei natural é uma forma vazia, uma régua de Lesbos que adere à vontade do Soberano. A rigor, a lei natural é supostamente derivada do método resolutivo-compositivo, ou seja, ela deve implicar um conteúdo inseparável do próprio exercício da Sobrania. O Soberano, por óbvio, não está sujeito às leis naturais, ainda que possa vir a violá-las, porquanto pela representação[96], ele somente pode vir a ter de responder perante Deus.

O mesmo vale também para um príncipe soberano que leve à morte um súdito inocente. Embora o ato seja contrário à lei de natureza, por ser contrário à eqüidade, como foi o caso de Davi ao matar Urias; contudo não foi uma injúria feita a Urias, e sim a Deus[97].

BIBLIOGRAFIA

ABELARDO, Pedro, “Lógica para principiantes” in Os Pensadores, vol. VIII, ed. Victor Civita (São Paulo: Abril Cultural, 1973), 227.

_______. “História das minhas calamidades” in Os Pensadores, vol. VII, ed. Victor Civita, São Paulo: Abril Cultural, 1973.

BERNHARDT, Jean. “Nominalisme et Mécanisme dans la pensée de Hobbes (I) e (II)” in Archives de Philosophie, vol. 51, no4, Paris : Éditions Beauchesne, 1988.

BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

DESCARTES, René e HOBBES, Thomas. “Third Objections to the Meditations with Replies” in Great books of the Western world, vol. XXXI, ed. Mortimer J. Adler, Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952.

GILSON, Étienne. Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

HOBBES, Thomas. Elementos de Filosofia – Primeira Seção – Sobre o Corpo. Parte I – Computação ou Lógica, trad. José Oscar de A. Marques (Campinas: IFCH/Unicamp, 2005), 30; cap. 3, VIII.

_______. “Leviatã” in Os Pensadores, vol. XIV, ed. Victor Civita, São Paulo: Abril Cultural, 1974.

_______. Elements of Law. Cary – EUA: Oxford University Press, 1994.

_______. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HOCHART, Patrick. “Guillaume d’Occam: le signe et sa duplicité” in Histoire de la Philosophie II, ed. François Châtelet, Paris : Librairie Hachette, 1999.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

MARENBON, John. “Life, milieu, and intellectual contexts” in The Cambridge Companion to Abelard, ed. Jeffrey E. Brower e Kevin Guilfoy, Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

OCKHAM, Guilherme de. “Seleção de Obras” in Os Pensadores, vol. VIII, ed. Victor Civita, São Paulo: Abril Cultural, 1973.

STRAUSS, Leo. The Political Philosophy of Hobbes. Chicago: The University of Chicago Press, 1984.

VIGNAUX, Paul. “Nominalisme” in Dictionnaire de Théologie Catholique, ed. Alfred Vacant, Paris : Letouzey et Ane, 1903-1950.

VIGNAUX Paul. A filosofia na Idade Média. Lisboa: Presença, 1994.

ZARKA, Yves-Charles. “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes” in Archives de Philosophie, vol. 48, no2, Paris : Éditions Beauchesne, 1985.

[1] “From the two principal parts of our nature, Reason and Passion, have proceeded two kinds of learning, mathematical and dogmatical. The former is free from controversies and dispute, because it consisteth in comparing figures and motion only; in which things truth and the interest of men, oppose not each other. But in the later there is nothing not disputable, because it compareth men, and meddleth with their right and profit; in which as oft as reason is against a man, so oft will a man be against reason. And from hence it comes, that they who have written of justice and policy in general do all invade each other, and themselves, with contradiction. To reduce this doctrine to the rules and infallibility of reason, there is no way, but first, to put such principles down for a foundation, as passion not mistrusting may not seek to displace: And afterward to build thereon the truth of cases in the law of nature (which hitherto have been built in the air) by degrees, till the whole be inexpugnable” (Thomas Hobbes, Elements of Law, Cary: Oxford University Press, 1994, 07; epístola dedicatória )

[2] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média (São Paulo: Martins Fontes, 2001), 289.

[3] Também designado como sententia vocum.

[4] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 289-290.

[5] Pedro Abelardo, “Lógica para principiantes” in Os Pensadores, vol. VIII, ed. Victor Civita (São Paulo: Abril Cultural, 1973), 227.

[6] Ibid.

[7] Paul Vignaux, “Nominalisme” in Dictionnaire de Théologie Catholique, ed. Alfred Vacant (Paris : Letouzey et Ane, 1903-1950), 723.

[8] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 726.

[9] John Marenbon, “Life, milieu, and intellectual contexts” in The Cambridge Companion to Abelard, ed. Jeffrey E. Brower e Kevin Guilfoy (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), 34.

[10] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 725.

[11] Ibid., 724.

[12] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 726.

[13] Pedro Abelardo, “Lógica para principiantes”, 242.

[14] Ibid., 230.

[15] Pedro Abelardo, “Lógica para principiantes”, 230.

[16] Id., “História das minhas calamidades” in Os Pensadores, vol. VII, ed. Victor Civita (São Paulo: Abril Cultural, 1973), 251-252.

[17] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 727.

[18] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 347-348.

[19] A distinção entre significação real e significação intelectual é de Paul Vignaux. Ele a expõe em Paul Vignaux, “Nominalisme”, 726-730.

[20] É precisamente a esta semelhança da coisa (rei similitudo) – também referida como (i) forma da coisa que o intelecto concebe (forma rei quam intellectus concipit) e (i) coisa imaginária e fictícia (res imaginaria quædam et ficta) – que nos referimos através do termo “imagem da intelecção”, como prefere Paul Vignaux, ou “imagem do entendimento”, como prefere o Professor Renato Lessa.

[21] Philotheus Boehner e Etienne Gilson, História da filosofia cristã (Petrópolis: Editora Vozes, 2007), 301.

[22] Pedro Abelardo, “Lógica para principiantes”, 231.

[23] Ibid., 242.

[24] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 348.

[25] Pedro Abelardo, “Lógica para principiantes”, 234.

[26] Paul Vignaux, A filosofia na Idade Média (Lisboa: Presença, 1994), 60.

[27] Pedro Abelardo, “Lógica para principiantes”, 236.

[28] “L’abstraction thomiste est transmutation du sensible en intelligible; nous sommes en métaphysique : il s’agit de libérer une forme de sa matière. Avec Abélard, nous sommes seulement en psychologie : il s’agit seulement de considérer, de différentes façons, les choses et leurs images ; l’abstraction est discernement, attention. Rien de plus” (Paul Vignaux, “Nominalisme” in Dictionnaire de Théologie Catholique, 730).

[29] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 802.

[30] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 795.

[31] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras” in Os Pensadores, vol. VIII, ed. Victor Civita (São Paulo: Abril Cultural, 1973), 349. Cf . Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 795.

[32] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 349.

[33] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 799.

[34] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 741.

[35] Ibid., 742.

[36] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 350.

[37] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 753.

[38] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 350.

[39] Ibid., 351.

[40] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 800.

[41] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 737.

[42] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 345.

[43] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 800.

[44] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 344.

[45] Ibid., 361.

[46] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 737.

[47] “la faculté de concevoir est une puissance illimitée d’expression : de l’intellect naissent des signes de toutes choses, qu’expriment ensuite la diversité des langues parlées ; le concept est un signe naturel, que supposent les signes artificiels” (Paul Vignaux, “Nominalisme”, 750).

[48] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 741.

[49] Desse modo, Abelardo se faz muito presente, lembrando da questão da semelhança (similitudo) entre o estado (status) de um conjunto de coisas.

[50] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 362.

[51] Ibid., 355.

[52] Guilherme de Ockham, “Seleção de Obras”, 346.

[53] “En tirant cette expression hors de son acception technique où elle dénote une classe spécifique des termes, on pourrait soutenir que tous les termes son des syncatégorèmes, autrement dit des fragments qui, dénués par eux-mêmes de toute capacité proprement linguistique, ne s’en trouvent investis que pour autant qu’ils prennent part au travail catégorique de la prédication (…)” (Patrick Hochart, “Guillaume d’Occam: le signe et sa duplicité” in Histoire de la Philosophie II, ed. François Châtelet [Paris : Librairie Hachette, 1999], 191).

[54] Cf. Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 804-805.

[55] “Ne disons pas que l’intellect produit l’universel : il est plus vrai de dire que l’objet agissant de proche en proche, l’engendre dans l’âme. L’esprit n’est pas ce qui conçoit, mais ce où naît le concept” (Paul Vignaux, “Nominalisme”, 753).

[56] Paul Vignaux, “Nominalisme”, 757

[57] Etienne Gilson, Filosofia na Idade Média, 805

[58] Jean Bernhardt, “Nominalisme et Mécanisme dans la pensée de Hobbes (II)” in Archives de Philosophie, vol. 51, no4 (Paris : Éditions Beauchesne, 1988), 580.

[59] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes” in Archives de Philosophie, vol. 48, no2 (Paris : Éditions Beauchesne, 1985), 177-233.

[60] O texto de Bernhardt foi publicado em duas partes em dois números diferentes dos Archives de Philosophie. Jean Bernhardt, “Nominalisme et Mécanisme dans la pensée de Hobbes (I)” in Archives de Philosophie, vol. 48, no2 (Paris : Éditions Beauchesne, 1985), 235-249 ; e Jean Bernhardt, “Nominalisme et Mécanisme dans la pensée de Hobbes (II)” in Archives de Philosophie, vol. 51, no4 (Paris : Éditions Beauchesne, 1988), 579-596.

[61] Zarka assume a questão como sendo reveladora de algo verdadeiro quanto ao íntimo da obra de Hobbes. Bernhardt, diferentemente, considera a qualificação de Leibniz como equivocada, sendo o suposto nominalismo hobbesiano uma mera aparência, que apenas mascara a valorização do empirismo e o seu realismo mecanicista.

[62] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 25; cap. IV.

[63] Id., Elementos de Filosofia – Primeira Seção – Sobre o Corpo. Parte I – Computação ou Lógica, trad. José Oscar de A. Marques (Campinas: IFCH/Unicamp, 2005), 30; cap. III, 8.

[64] Thomas Hobbes, Sobre o Corpo, 31; cap. 3, VIII, p. 31.

[65] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 134; cap, V.

[66] Ibid., 55; cap. IX.

[67] Ibid., 13; cap. I.

[68] ”for though a man hath always seen the day and night to follow one another hitherto; yet can he not thence conclude they shall do so, or that they have done so eternally. Experience concludeth nothing universally” (Thomas Hobbes, Elements of Law, p. 18; IV, 10).

[69] Id., “Leviatã”, 22; cap. III.

[70] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 29; cap, IV.

[71] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 198

[72] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 26; cap. IV.

[73] René Descartes e Thomas Hobbes, “Third Objections to the Meditations with Replies” in Great books of the Western world, vol. XXXI, ed. Mortimer J. Adler (Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1952), 136; objection IV.

[74] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 194.

[75] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 27; cap. IV.

[76] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 203

[77] Thomas Hobbes, Sobre o Corpo, 31; cap. II, II, p. 31.

[78] Id., “Leviatã”, 27; cap. IV.

[79] Id., Sobre o Corpo, 31; cap. III, 8.

[80] Descartes e Thomas Hobbes, “Third Objections to the Meditations with Replies”, 142; objection XIV.

[81] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 212-213.

[82] Leviatã, versão latina, III, cap. 46, pp 498-499 apud Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 213.

[83] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 220.

[84] Yves-Charles Zarka, “Empirisme, nominalisme et matérialisme chez Hobbes”, 233.

[85] Ibid., 191.

[86] Cf. Thomas Hobbes, “Leviatã”, 131; cap. XX.

[87] Reinhart Koselleck, Crítica e Crise (Rio de Janeiro: Contraponto, 1999), 30.

[88] Thomas Hobbes, Do Cidadão (São Paulo: Martins Fontes, 2002), 12.

[89] Leo Strauss, The Political Philosophy of Hobbes (Chicago: The University of Chicago Press, 1984), 104.

[90] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 268; cap, XXXVII.

[91] Sobre os limites fáticos à atuação do Estado, v. Thomas Hobbes, Do Cidadão, 48-50.

[92] Reinhart Koselleck, Crítica e Crise (Rio de Janeiro: Contraponto, 1999), 31.

[93] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 99; cap, XV.

[94] Ibid., 166; cap. XXVI.

[95] Thomas Hobbes, “Leviatã”, 107.

[96] Ibid, 100.

[97] Ibid., 135.

Comentários desativados