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Psicologia USP - The place of the unconscious or about the unconscious as a place

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Psicologia USP

Print version ISSN 0103-6564

Psicol. USP vol.10 n.1 São Paulo  1999

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641999000100002 

O LUGAR DO INCONSCIENTE OU SOBRE O INCONSCIENTE COMO LUGAR1

 

Deodato Curvo de Azambuja
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

A idéia básica do trabalho envolve uma certa elaboração da tópica do inconsciente, que corresponde até certo ponto à teoria bioniana de visão binocular. Dentro dessa teoria, consciente e inconsciente emergem no aparelho psíquico e se constituem muito mais pelas suas funções do que por estruturas radicalmente diferentes. É enfatizado muito mais a necessidade das funções de ambas do que a singularidade e autonomia dos lugares dados a consciente e inconsciente.
Descritores: Inconsciente. Consciente. Psicanálise. Freud, Sigmund, 1856-1939. Bion, Wilfred Ruprecht, 1897-1979.

 

 

Uma paciente sonhou que teve um filho. No sonho, seu filho nascia absolutamente sem dor, como se fosse um parafuso desenroscando-se da vagina. Ele era um pouco feio, e menino. Com o tempo, transformou-se em uma linda menina que a acompanhava a toda a parte.

Esse sonho deu-se no segundo ano de análise. No primeiro ano, sobretudo, ela não entendia porque estava fazendo análise; não por falta de inteligência, talvez até por excesso, incapaz porém de dar conta de um enorme inexplicável sentimento de solidão e angústia, o qual ela queria ter arrancado de si como se fosse um dente infeccionado.

Primogênita, era órfã de mãe desde os seis anos de idade. Seu pai casara-se novamente cerca de dois anos após a morte da mulher em um acidente, e se afastara deixando-a aos cuidados dos avós maternos. Somente após esse novo casamento, e por iniciativa da madrasta, é que ela voltara para a casa paterna.

Ela relacionava seu sentimento de solidão muito mais com esse sentimento de rejeição paterna do que com a morte da mãe. Apesar de ter sentido e chorado muito a perda da mãe, sua mágoa maior era o afastamento do pai. Rivalidade com a mãe ou impulsos matricidas estavam inteiramente excluídos da consciência.

Certa vez trouxe-me fotografias de quando era criança, em um período de férias com o pai, a madrasta e outras pessoas da família. Sua postura nas fotos era a de uma princesa. Menininha, ela colocava-se de um modo altivo e soberbo dentre os demais, como alguém que dominasse todo o grupo familiar. Pensei que seu sentimento de rejeição deveria ser tanto mais insuportável e doído quanto maior o confronto com sua soberba, em si mesma insuficiente, como demonstrava a busca de análise enquanto defesa da sua dor na solidão.

Foi algum tempo após a reflexão sobre esses fatos que a paciente relatou o sonho referido inicialmente. A par das associações que poderíamos fazer com suas histórias, duas ordens de idéias desenvolveram-se para mim. De um lado, tal produção onírica, conforme a paciente, era tão fantástica que só poderia desenvolver-se em um outro mundo, uma outra realidade. De outro lado, essa realidade diversa, esse outro mundo fazia-se presente ali comigo em função de toda a experiência que estava podendo desenvolver.

A essas duas faces da sua experiência vivida poderíamos chamar inconsciente. Ou, dizendo de outro modo: existe uma outra realidade - que costumamos chamar de realidade psíquica - para a qual as vias régias são o sonhar, de um lado, e a transferência, de outro. O sonho não é o inconsciente; o sonho, Freud dizia, é a via régia para o inconsciente, e à essa possibilidade de acesso que é o sonho eu acrescento a transferência.

Se existe uma via régia é porque existem igualmente outras vias. A via régia poderia ser a via dos reis (e das princesas), ou a via normal, a estrada pavimentada mais comum. Pode ser também a estrada que nos dá a maior convicção de que existe uma realidade psíquica não consciente. Quando a via de acesso são os sintomas neuróticos, como por exemplo no caso desta paciente que sofria de inúmeras fobias e obsessões, pode-se argumentar, como ela mesma o fazia, que não existe realidade outra nenhuma; que existe só chateação, aborrecimento, angústia, e que a nós analistas deveria caber apenas extirpar tais "aberrações" da vida dos reis e "princesas" como ela.

Ela acalmou-se bastante ao descobrir, através do seu sonho, que tinha uma realidade outra. A análise entrou em uma nova fase, pois ela já não produzia apenas sintomas: ela sonhava, como os reis que tinham tempo e credibilidade para sonhar, prever o futuro, conhecer o passado e viver o presente.

No trabalho Sobre o Narcisismo, de 1914, Freud coloca a situação edipiana em um contexto narcísico. O bebê é a majestade. Ele para o trânsito ao atravessar em seu carrinho2; ele é o representante e a salvação do narcisismo dos pais, envolvidos pelas perdas e pelo duro trabalho quotidiano, sem deuses e sem reis.

O bebê é a princesa extemporânea, como observei no comportamento e nas fotografias da minha paciente quando criança. Só que uma princesa cheia de mágoas; princesa secretamente frustrada pelo afastamento-rejeição paterna. Em seu sonho, ela própria tem o seu bebê de um modo igualmente narcísico: sem dor. Um bebê que, tornando-se maravilhoso, a acompanha e alivia em meio à dura realidade quotidiana.

Em tudo isso, onde está o inconsciente? Não está em "outro" lugar, como sugere a idéia do sonho como uma via régia para o inconsciente. O inconsciente que nasceu na era do narcisismo - quer seja narcisismo ferido, quer seja narcisismo realizado - não pode ser compreendido como um lugar, seja ele qual for. O sonho não é mais o representante de um outro espaço, de uma outra realidade, ou de uma realidade separada da realidade presente, pois, como vimos, o sonho somente "acontece" na transferência, e a transferência não é "outra" realidade.

Mas se não existe o inconsciente em um outro lugar, como ele existe, desde que nós psicanalistas, a partir dos sonhos, atos falhos, sintomas etc., deduzimos a existência de uma realidade psíquica não consciente?

Retornemos um pouco mais aos fatos clínicos. Minha paciente, na sessão seguinte àquela em que relatou seu sonho, contou-me uma conversa com uma médica sua amiga, na qual o tema havia sido a diferença de características de personalidade entre homens e mulheres. Observando uns e outros, ela os via muito diferentes: via as mulheres voltadas para resultados concretos limitados, finitos no tempo e no espaço; os homens, ao contrário, fazendo planos que parecem não ter nada a ver com a realidade imediata; lançando idéias que, se tiverem alguma razão de ser, só o terão em um tempo e espaço não presentes. Sua amiga lhe disse que isso a fazia pensar na situação da mulher com um número limitado de produção de óvulos por toda a vida, e na situação do homem, sem esse limite em relação aos espermatozóides.

Essas fantasias ligam-se, para mim, a duas vertentes. De um lado, tem a ver com a história pessoal da paciente e com sua história analítica (transferencial). Por outro lado, leva-me à questão teórica que estamos tratando - onde está o inconsciente?

Estou em uma encruzilhada. Poderia desenvolver uma e outra dessas duas vertentes em separado, voltando à história da paciente ou procurando ampliar o desenvolvimento teórico iniciado. Não sei qual o melhor caminho, e estou me segurando para não tomar caminho nenhum, porque a experiência de suspense que estou vivendo neste exato momento poderia, e deveria, ser comunicada de uma só vez, com um mesmo sentido de um desenvolvimento teórico e clínico. Trata-se da interpretação finito-infinito. Isso se repete de um modo tão universal, e em tantos níveis, que o resultado é vertigem.

Vertigem é a experiência concreta que estou vivendo neste momento em que escrevo. Vertigem deve ser também a experiência concreta da criança hipotética (simbolicamente, a análise desejada) que sai sem dor, desparafusando-se como no sonho. "Um menino feio" que se transforma em "uma menina linda", que acompanha a paciente no seu desenvolvimento em espiral.

Vertigem é a conjugação do material germinativo masculino aparentemente infinito com a finitude do óvulo, só através do qual ele realiza sua infinitude potencial. Uma finitude que aparentemente se compraz em servir de expressão, ou de ser a face expressiva do infinito.

Atenção: estamos falando em termos de potencialidades ou de virtualidades, pois evidentemente o espermatozóide não é o infinito, muito menos o óvulo é o finito (seria muito mais adequado ficarmos apenas com as especulações, já bastante ousadas, de Freud (1920) em Além do Principio do Prazer, sobre "corpo finito" e "plasma germinativo infinito"). O que estou buscando é uma forma viva, real, e ao mesmo tempo teórica e útil, de aproximação e compreensão da proposição - onde está o inconsciente?

A partir dessa primeira forma de aproximação que estou desenvolvendo, consciente e inconsciente não podem ser compreendidos isoladamente: nem como lugares psíquicos isolados, nem como qualidades psíquicas, nem como processos isolados.

Um dos problemas na concepção freudiana do aparelho psíquico foi o evolucionismo darwiniano como elemento formador e construtor do aparelho: "inconsciente" foi concebido como inferior, evolutivamente, ao "consciente", e tornar consciente o inconsciente apareceu como uma fórmula técnica para o progresso, ou para o desenvolvimento.

Ora, se pensarmos consciente e inconsciente como processos psíquicos interdependentes, o desenvolvimentismo unívoco de inconsciente tornando-se consciente perde o sentido. O que encontramos é um entrelaçamento de processos, como o que procurei descrever através das experiências vividas pela paciente e por mim em torno de seu sonho e associações: uma experiência de vertigem, de interpenetração finito-infinito. Não cabe pensarmos o que seria mais desenvolvido nesse processo de interpenetração - o finito ou o infinito - do mesmo modo como não cabe pensarmos teoricamente quem é mais desenvolvido, o masculino ou o feminino, desde que um só existe em função do outro. O mesmo vale para consciente e inconsciente.

A partir desse ponto de vista, inconsciente, na prática, estará realizando-se ou expressando-se no consciente de várias formas. Do mesmo modo, consciente busca, ilumina, descobre no inconsciente desconhecido múltiplos conteúdos. Um não é melhor que o outro, nem maior, nem mais criativo ou mais vivo. A vida está na relação criativa que se estabelece entre consciente-inconsciente, conhecido-desconhecido, finito-infinito, feminino-masculino. Assim como a vida está também nas suas relações traumáticas, destrutivas, conflituosas.

Ora, tudo o que foi dito até aqui tem uma marca. Trata-se da marca do conhecimento e, porque não dizer logo, da marca ética e moral. Pode-se notar como estive preocupado em desfazer o sentido de valor e progresso atribuído equivocamente ora a consciente, ora a inconsciente, ora a masculino, ora a feminino, ora ao conhecido, ora ao desconhecido, e assim por diante. Tal preocupação deve-se à minha percepção de um plano anterior a essa questão ética ou de valor, que, é claro, também não pode ser deixado de lado.

Trata-se agora não mais, como eu perguntava, do lugar do inconsciente, mas do inconsciente como um lugar. E é desse lugar, a partir desse lugar, que mundo interno e externo são olhados, observados.

Tornar consciente o inconsciente, dentro dessa perspectiva, não é tirar conteúdos de uma caixa ou recipiente e colocá-los em outro melhor, ou mais desenvolvido; tornar consciente o inconsciente é ter consciência de a partir de que lugar - de qual origem, se quisermos - estou não apenas percebendo mas igualmente falando, pensando, agindo, enfim sendo.

Em outros termos: o inconsciente, assim concebido, não está no nível do puro conhecimento mas no nível da construção do conhecimento, seja ele puro ou impuro.

Deveríamos também dizer que o inconsciente está no nível do ser em conflito com o conhecimento? Deveríamos dizer que o conhecimento, por isso, jamais poderá atingir a totalidade do ser incognoscível, como Bion (1975) nos traz a partir de Kant?

Não, o inconsciente não é o ser, e o consciente não é o conhecimento em conflito com o ser. Tal construção torna a psicanálise, novamente, o exercício de um saber ora capaz, ora incapaz de dar conta do ser. As discussões sobre se a consciência pode ou não dar conta do ser, ou sobre se precisamos de uma capacidade positiva ou negativa, apesar de interessantes, não alcançam o dinamismo da construção do conhecimento. Tal movimento de isolar o fator conhecimento como um elemento em busca de ampliação, ou de humildade, coloca esse fator - conhecimento - em um plano incomum. Um plano que na sua extremidade de paixão confunde-se com a soberba e, na outra extremidade, com o ascetismo religioso.

Nada de errado nisso. Só que as outras paixões, nessa construção, ficam em um plano secundário em relação ao conhecimento.

A análise que Freud (1910) faz de Leonardo da Vinci toca exatamente nesse ponto, com muita argúcia. Vamos recordá-la em parte: "Não se tem o direito de amar ou odiar qualquer coisa da qual não se tenha um conhecimento profundo" (p.68) - isso é dito por Leonardo, e Freud rebate Leonardo:

Não é verdade que os seres humanos protelam o amor ou o ódio até adquirirem conhecimento mais profundo e maior familiaridade com o objeto desses sentimentos. Ao contrário, amam impulsivamente, movidos por emoções que nada tem a ver com conhecimento, e cuja ação, muito ao contrário, poderá ser amortecida pela reflexão e observação. Leonardo (...) simplesmente convertia sua paixão em sede de conhecimento: entregava-se então à investigação com a persistência, constância e penetração que derivam da paixão e, ao atingir o auge de seu trabalho intelectual, isto é a aquisição de conhecimento, permitia que o afeto há muito reprimido viesse à tona e transbordasse livremente, como se deixa correr a água represada de um rio, após ter sido utilizada. (Freud, 1910, p.68-9, grifos meus).

Na minha experiência clínica, observo também que o contato maior não é com conhecimento ou investigação no sentido descrito por Freud em relação a Leonardo. Na minha prática, conhecimento mistura-se a emoções e paixões de toda espécie. E encontramos, também, regularmente, uma condição anterior como se fosse um lugar de onde o conhecimento é construído.

No caso descrito da minha paciente, tal condição, ou tal lugar, pode corresponder àquilo que chamei de "ar de princesa", altiva e soberba, captado pelas fotografias que mostrou. A construção do conhecimento é buscada por ela a partir desse plano, ou desse "trono de princesa", porém uma catástrofe, com todas as suas conseqüências, põe o trono em permanente ameaça. O conhecimento não pode ser feito a partir do olhar tranqüilo da princesa sentada no seu trono, porque existe um terreno subjacente que põe o trono em constante estado de insegurança e agitação. Seu olhar passa a ser trêmulo e inseguro. Como pode o conhecimento surgir, ou ser construído, nessas condições?

É possível notar, de toda essa construção, como é precário o conhecimento; como está envolvido e dependente de outras histórias, construções em ruínas e paixões, apesar de ser também ele uma paixão.

A idéia de paixão fornece-nos mais uma aproximação essencial daquilo que chamamos inconsciente. O inconsciente, como as paixões, é o que nos arrasta e constitui. Por isso insisto: tem pouca importância, é inoperante, é inútil pensarmos em qual é o lugar do inconsciente, ou o que é o inconsciente substantivo, desde que o próprio pensamento é pensado a partir de fatores inconscientes que lhe escapam.

Vejamos uma outra forma de reflexão sobre o inconsciente. Um paciente queria estar em uma vernissage e, ao mesmo tempo, estar com a mulher e os filhos. Levou a mulher à vernissage e, no melhor da festa, a mulher começou a puxá-lo pelo braço, querendo ir embora para jantar com os filhos. Ele acabou cedendo, mas com o sentimento de que a mulher estava lhe "cortando o barato". Ele conhece a mulher e se conhece. Sabe que é aparentemente mais tolerante do que ela, sabe que se fosse ele daria mais tempo para a mulher se divertir com as amigas, suportando a posição de acompanhante mais facilmente. Todo esse saber, no entanto, tem um tal peso que ele não pode ser diferente dele mesmo. É um saber com o qual se identifica; é uma marca, uma identidade; ele não pode ser outro. Ser outro significa ser igual à mulher? Ele porém não pode ser igual à mulher, pois deixaria de ser ele mesmo, o que o deixaria muito inseguro. Ser outro é insuportável, não por ser melhor ou pior, mas por falta de hábito. Só que, para ele encontrar um pouco mais de satisfação, precisa arriscar ser um pouco diferente do que é. Precisaria, por exemplo, ter dito à mulher que queria ficar mais um pouco com os amigos, e precisaria que a manifestação desse desejo não viesse como uma bomba que explodisse a mulher. Porque ele também queria estar com ela, e também queria ser como ela, só que tinha muito medo, por não saber como ser diferente.

Existia um sentimento de não haver tempo para ser outro; essa obrigação de ser o mesmo; essa divisão entre si mesmo e o outro; essa imperiosidade e, ao mesmo tempo, essa impossibilidade de escolha entre si mesmo e o outro; o desejo de ser totalmente diferente, e ao mesmo tempo a percepção da impossibilidade de ser totalmente diferente. Essa convivência entre opostos e contrários, às vezes suportável e às vezes insuportável, nada tem a ver com o inconsciente puro que não existe. Tem a ver com a violência pela qual muitas vezes o conhecido, e o conhecimento também, está em conflito com o desconhecido e com o não-conhecimento ou inconsciente.

É muito difícil, a partir de um lugar diferente do psicanalista, visualizar a importância e utilidade da noção de conhecimento em conflito com o não-conhecimento. Todas essas informações do tipo das que eu estava transmitindo, se ouvidas por não-analistas, podem ser recebidas como um amontoado de obsessões sobre as quais não se deveria perder tempo: que importa afinal se a pessoa vai a uma vernissage ou não, se vai sozinha ou acompanhada? Essa, por exemplo, é a posição da minha "cliente-princesa". Ela vive fatos e sentimentos semelhantes freqüentemente, porém quase morre de ódio com tanta "bobagem". Já este outro paciente aproxima-se de um modo diferente do conflito - conflito que, dizia, parece desdobrar-se não apenas entre o si-mesmo e o outro como, de um modo violento, entre o conhecimento e o não-conhecimento.

O foco da questão muda de conhecimento-não conhecimento, ou consciente-inconsciente, para a violência do conflito, quando nos aprofundamos na análise de qualquer um dos dois casos. O segundo caso eu diria que está mais adiantado na análise da sua transferência; seria fácil a transposição do seu desejo de ser um outro para mim mesmo; ou seja, seria fácil para ele compreender seu desejo de ser como eu, na medida em que me vê com maiores possibilidades de ser continente de emoções antagônicas como amor e ódio. Nesse sentido, subitamente eu sou o representante do inconsciente, ou desse lugar produtor, e ao mesmo tempo continente de emoções antagônicas. E ai ocorre um fenômeno interessante. Não sou apenas esse lugar ideal, sou ao mesmo tempo invejado como ideal encarnado. Não é possível tornar-me apenas - eu e a análise - algo semelhante àquele bebê do sonho da minha paciente, admirado e maravilhoso. À medida que a análise prossegue, novos elementos vêm à luz. De um lado, a inveja; de outro, a repressão expressa na idéia de "cortar o barato", ou "puxar o tapete".

Em recente e interessante trabalho, Eksterman (1993) descreve como se dá a repressão, do ponto de vista topográfico. Existe uma espécie de retirada da representação verbal do controle da pulsão, de modo que ela perde o significado; esvazia o desejo. É o que ocorre no caso do paciente, cuja mulher, ao lhe dizer "vamos embora daqui", cassa-lhe a palavra. Ele até poderia bater o pé e ficar, só que não teria mais significado/importância ficar ali, seria apenas um desejo sem palavras; poderia ficar, mas já sem condições de falar, de se comunicar com os outros, o que era afinal o mais importante, o que mais interessava.

No caso do meu paciente, a palavra lhe foi cassada não verticalmente, de cima para baixo, mas horizontalmente, como enfatizou Eksterman na sua elaboração da metapsicologia. Horizontalmente, na medida em que o seu desejo também era estar com a mulher e os filhos. E se ele queria estar onde estava a palavra, ou poder falar e se envolver, e se a palavra tinha escorregado daquele lugar com os amigos para um outro lugar com a mulher e os filhos, de nada adiantaria ficar onde estava.

Esse processo todo de um deslocamento horizontal ou não hierárquico da palavra envolve, nesse caso, em grande parte uma repressão normal, ou em grande parte consciente. Ou, nesse caso, consciente e inconsciente estão mais ou menos entrelaçados e não ocupam lugares essencialmente diferentes. O problema parece ocorrer quando a repressão se dá em um processo conflituoso, onde "quem pode mais chora menos", ou também onde "quem chora mais pode mais"; processo onde existe competição e hierarquização mais ou menos rígidas, não apenas entre os participantes, mas até como modelo de uma hierarquia psíquica mais ou menos rígida. O que promove tal hierarquização e rigidez psíquica em geral? Ou, por que se dá tal hierarquia?

Eksterman, revendo a metapsicologia freudiana, mostra com clareza como não se dá a hierarquização com o deslocamento da palavra, ou dos significados, ou da graça, no sentido lateral ou horizontal. Ficou faltando discutir ou, a meu ver, entender melhor porque isso acontece. E nesse momento - da discussão do porquê - somos levados a recorrer a alguma forma de hierarquização psíquica mais ou menos rígida.

Penso que aqui entramos na especificidade da organização psíquica de cada um. Quando, por exemplo, generalizamos e buscamos o inconsciente escondido nas pulsões de vida e de morte, tendemos a perder o que Lacan designava como o campo da palavra ou da comunicação, onde cada um mostra o que tem de específico ou de original, seja falando ou não falando.

Tal atitude de abstinência do analista em querer compreender, como dizia Bion, o que existe por detrás desta ou daquela forma de comunicação, traz-nos para junto da própria comunicação. O mistério é agora deslocado, transferido das profundezas para a superfície.

É um mistério operativo, na medida em que não sabemos como cada paciente, ou cada dupla paciente-analista, poderá ampliar o continente comunicativo significativamente, de modo que o paciente possa ampliar sua identidade através da elaboração das suas relações – e das transferências dessas relações na relação analítica – evoluindo de uma identidade auto-centrada para uma identidade com condições de suportar o descentramento das suas próprias determinações.

Tal perspectiva teórica é interessante, porém insuficiente. O que descrevi, no primeiro caso, como experiência de vertigem e, no segundo caso, como experiência de esvaziamento ("cortar o barato/puxar o tapete") em situações fora da relação analítica bipessoal acontece a todo momento na própria relação analítica. São "lacunas" na comunicação, impasses, perplexidade, paralisias, ausências de pensamento, ausência de sentimento ou emoções em estado de fúria, aturdimento e assim por diante. Tais fenômenos não se restringem apenas ao nível transferencial- contratransferencial. Esse nível, certamente, constitui o nosso campo de trabalho, mas reduzir toda essa atividade ao "aqui, agora, comigo" é patético e asfixiante.

A força do inconsciente presentificando-se através do que nos escapa da consciência, ou do conhecimento, ou da comunicação, é uma questão antes de tudo prática. Os fenomenólogos costumam sustentar que o inconsciente não existe com a força que lhe damos a partir da prática psicanalítica. Um de seus argumentos é que o inconsciente é apenas o inadvertido; é aquilo que não sei neste ou naquele momento, mas que com o tempo posso vir a saber. O pressuposto dessa postura é de que o conhecimento é constituinte. Mas, por exemplo, a força ou intensidade dos fenômenos clínicos de ausência, ou de lacunas do conhecimento, torna insustentável tal pressuposto. É preciso ampliar de tal modo o conceito de conhecimento e de consciência que tal conceito perde sua especificidade.

Em vez disso, o conceito de inconsciente em psicanálise envolve uma divisão, uma ruptura do psiquismo cujo protótipo é a repressão. Repressão (ou similar) e inconsciente não existem um sem o outro, e em seu conjunto permitem uma compreensão mais abrangente dos fenômenos do que a idéia de inadvertido.

Evidentemente o conceito de inconsciente não deve ficar acima das criticas. Entre os franceses, Green (1973) algumas vezes criticou não apenas os fenomenólogos mas muitos psicanalistas da escola americana, que, abertamente ou não, julgam dispensável o conceito de inconsciente e se perdem nas franjas dos fenômenos. Seu argumento é o mesmo de uma citação que vi recentemente atribuída a Leonardo da Vinci: "Assim como cada reino dividido é desfeito, do mesmo modo cada engenho dividido em diversos estados se confunde e se enfraquece".

A divisão do "engenho psicanalítico" tem acontecido de vários modos em relação a sua teoria, seu método e sua clínica. É freqüente ouvir declarações de psicanalistas que dizem acreditar apenas na sua experiência clínica, que não são teóricos; outros só acreditam no método; outros, coitados, são acusados de teóricos.

Em algumas elaborações que tenho apresentado em Reuniões Cien-tíficas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e em Congressos, e particularmente em um trabalho que apresentei no "XII Pré-Congresso Didático do XIII Congresso Brasileiro de Psicanálise", em 1991, em São Paulo, procurei mostrar como os conceitos tidos como pertencentes à técnica ou ao método não podem ser compreendidos isoladamente da teoria do inconsciente.

O contexto agora é outro, mas creio que seria útil relembrar pelo menos a idéia central que ali expunha, a qual neste contexto atual poderia ser traduzida nos seguintes termos: transferência está para o inconsciente assim como o finito está para o infinito.

É uma idéia fascinante, porém excessivamente geral. Envolve um certo sonho, no qual existe o pensamento desejante de uma elaboração da transferência simultânea à ampliação do movimento de tornar consciente o inconsciente. Embora as coisas não se passem bem assim, penso que continua útil como modelo, no sentido de poder ser usada como uma espécie de ponte, de unidade entre prática e teoria - lembrando sempre que estamos, mais uma vez, estabelecendo uma analogia e não uma igualdade.

 

 

AZAMBUJA, D.C. The Place of the unconscious or about the Unconscious as a Place. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.11-24, 1999.

Abstract: The basic idea in this paper involves a certain elaboration on the place of the unconscious, which corresponds, to a certain extent, to the Bionian theory of binocular vision. In this theory, both the conscious and unconscious emerge in the psychic apparatus and they are much more constituted by their functions than by radically different structures. What is emphasized is much more the need of functions for both than the singularity and autonomy of the locations attributed to conscious and unconscious.
Index terms: Unconscious. Conscious. Psychoanalysis. Freud, Sigmund, 1856-1939. Bion, Wilfred Ruprecht, 1897-1979.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BION, W. Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires, Paidós, 1975.        [ Links ]

EKSTERMAN, A. A metapsicologia de Freud: posfácio à Edição Brasileira. São Paulo, SBPSP, 1993.        [ Links ]

FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1976. v.18, p.13-85.        [ Links ]

FREUD, S. (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1970. v.11, p.53-124.        [ Links ]

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GREEN, A. Le discours vivant: la conception psychanalytique de l'affect. Paris, PUF, 1973. p.104, 132, 189, 195.        [ Links ]

 

 

 

1 Este trabalho é parte de uma palestra apresentada no Fórum Temático sobre O inconsciente, realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 22/09/93.

2 His majesty the baby – provável referência de Freud a um conhecido quadro da Academia Real, que mostrava dois policiais londrinos interrompendo o intenso tráfego para uma babá atravessar empurrando um carrinho de criança.